REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA: Os retrocessos dos marcos normativos posteriores ao Estatuto da Cidade.

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IX CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO URBANÍSTICO GT 05 - REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA E URBANIZAÇÃO DE FAVELAS E ASSENTAMENTOS PRECÁRIOS

REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA: Os retrocessos dos marcos normativos posteriores ao Estatuto da Cidade.

Autor:

SALLUM, Hélio Machado¹; ¹Advogado. Assessor Jurídico da Gerência de Atividades Contenciosas Urbanísticas, Ambientais e de Posturas Urbanas - Procuradoria Geral do Município de Belo Horizonte/MG . Diretor administrativo-jurídico do Instituto COURB. helio@courb.org

1 - Introdução Diante do impulso industrial vivido pelo Brasil, sobretudo durante a década de 50, e a consequente aceleração no processo de urbanização, muitas pessoas abandonaram suas vidas no meio rural em busca das supostas novas oportunidades decorrentes da construção do espaço urbano. Lamentavelmente, boa parte desse contingente migrante não alcançou o objetivo esperado, restando-lhes ocupar espaços onde com um custo habitacional compatível à sua renda. Áreas supostamente desocupadas aos olhos de quem necessitava urgentemente de um local para se instalar representavam, muitas vezes, a única opção aos que não desejavam retornar à vida no campo. Nesse cenário a informalidade se tornou cada vez mais utilizada pelo brasileiro na apropriação do espaço urbano. Embora por vezes representasse a única saída para muitas pessoas, o emprego da informalidade nesse processo é acompanhado de restrições que geralmente colocavam o morador de assentamentos informais em situação delicada. Brevemente, pode-se pontuar a insegurança nas relações econômicas, gerada pela inexistência de título de propriedade privada, obstaculizando o acesso às linhas de crédito, bem como a escassa oferta de equipamentos e serviços urbanos. O tema é tratado pelo economista peruano Hernando de Soto em sua obra "O Mistério do Capital"1, trazendo o título de propriedade formal como forma segura de garantir o recolhimento de tributos e a realização de negócios entre particulares. O conceito de propriedade ultrapassa a noção pura e simples da afirmação da posse, sendo também capaz de garantir transações associadas a esse título. A ausência do título é o que faz da propriedade

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DE SOTO, Hernando. O mistério do capital: por que o capitalismo da certo nos países desenvolvidos e

fracassa no resto do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2001. 306 p.

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informal, nas palavras do economista, "capital morto". Ocorre que, como induz o autor, em países como o Brasil o processo de legalização (ou regularização) dessa propriedade formal se mostra historicamente difícil, seja pela morosidade da Administração ou pela sistemática utilização da propriedade privada para fins especulativos, fortalecendo o emprego da informalidade. No decorrer dessa história as questões urbanas se apresentam por vezes mais relevantes, com o tempo sendo assimiladas como demandas sociais e direitos difusos, levando as pessoas a buscarem caminhos para reverter o quadro de desigualdade no país. Seguindo essa lógica, a evolução da legislação urbanística no Brasil visou transformar a sociedade civil em protagonista do processo de construção das normas e conceitos ligados à cidade. Enquanto importante marco dessa evolução, a Constituição Federal de 1988 introduziu princípios, tais como a função social da propriedade, que solidificam a tese de que a cidade não deve influenciar no processo de desigualdade social. Posteriormente, o direito de moradia é elevado ao nível de Direito Social pela Emenda Constitucional no 26/2000, e são definidas as diretrizes gerais da política urbana nacional, apresentadas pela Lei Federal no 10.257/01, o Estatuto da Cidade. Notoriamente, é cada vez mais relevante o papel da sociedade civil no processo, seja enquanto responsável ou destinatário de seus desdobramentos. Por todo o exposto, justifica-se abordar a evolução do processo de construção da legislação referente ao uso do solo urbano brasileiro, tendo como centro de análise a tratativa conferida às moradias informais. Tanto o processo histórico, quanto as perspectivas futuras acerca da regularização do uso do solo urbano no Brasil, servem de conteúdo para a estruturação das ideias, buscando alternativas de nível participativo para os conflitos, envolvendo o melhor emprego da função social da propriedade em face da desigualdade de acesso legítimo ao solo urbano, evidenciada em praticamente todo o território nacional. A sociedade civil deve compreender o peso de sua influência, conhecendo seus direitos e se empoderando, postura assegurada de forma explícita pelo Estatuto da Cidade e demais leis urbanísticas brasileiras. O engajamento da sociedade é extremamente importante para o processo de construção e assimilação dos direitos e deveres ligados à cidade, aumentando o senso de pertencimento. A extensão do Brasil e as peculiaridades de cada Município sugerem que essa seja a chave para a afirmação do direito à cidade, devendo, portanto, orientar as ações políticas em prol de cidades mais acessíveis e democráticas. O caminho é difícil, mas não pode deixar de ser percorrido. 2 - Obstáculos normativos do processo de democratização do uso do solo urbano Depois do Estatuto da Cidade sobrevieram outras Leis Federais, atuando diretamente no aperfeiçoamento dos conceitos ali tratados, tais como a função social da propriedade e a efetiva participação da sociedade civil no processo legislativo urbanístico, limitando-se a traçar diretrizes gerais. Com relação à regularização fundiária urbana, destaca-se como marco normativo recente a Lei Federal no 11.977/09, responsável pela implementação do programa do Governo Federal 2


"Minha Casa Minha Vida". O não mais vigente Capítulo III, totalmente suprimido pela Medida Provisória no 759/2016, a ser especificamente tratada adiante, cuidava da regularização fundiária de assentamentos urbanos em sintonia com os princípios norteadores do Estatuto da Cidade, preservando a garantia do direito social à moradia e o pleno desenvolvimento da função social da propriedade urbana. Desenvolvendo o tema, sabe-se que é constitucionalmente exigido que Municípios com mais de 20.000 habitantes desenvolvam um Plano Diretor Municipal (PDM) próprio, necessariamente elaborado à luz dos princípios e diretrizes da legislação Federal. Essa forma de descentralização, prevista pelo § 1o do artigo 182 da Constituição, permite que os Municípios adequem as normas Federais às suas realidades específicas, atendendo aos interesses locais. Considerando os números apresentados pela Profa. Daniela Campos Libório, em artigo escrito no ano de 20162, mais de 60% de um total de 5.572 cidades brasileiras possuíam Plano Diretor à época ou estava em processo de elaboração. Se relacionado o tempo de vigência do Estatuto da Cidade com a pluralidade de Municípios verificada no território nacional, é razoável considerar que houve um avanço significativo na difusão das diretrizes gerais ali previstas. Partindo dessa análise, percebe-se que o processo de consolidação dos conceitos presentes no Estatuto da Cidade e na legislação urbanística Federal não é algo simples, refletindo diretamente no emprego de políticas locais como a regularização fundiária urbana em assentamentos informais, ora explorada. O já mencionado Capítulo III da Lei Federal no 11.977/09 previa instrumentos de afirmação da função social da propriedade, atendendo a demandas de pessoas vivendo de maneira informal e precária. Como exemplo, as Zonas Especiais de Interesse Social - ZEIS, conceito não mais presente no ordenamento jurídico Federal, permitiam a regularização de moradias informais localizadas em áreas centrais, por meio de zoneamento. Compreendida a realidade local, pessoas antes vivendo de forma irregular poderiam ver assegurado seu direito à propriedade e à cidade, sem que fosse necessário um reassentamento. O instituto das ZEIS já estava plenamente assimilado por diversos Planos Diretores, o que representava um dos elementos que compõem a insegurança jurídica apresentada pela edição da Medida Provisória no 759 no ano de 2016. Medida Provisória é um instrumento normativo que nasce de um ato próprio do Presidente da República, especificamente para atender casos de relevância e urgência. Apesar de não ser objeto de apreciação pelo Poder Legislativo, a Medida Provisória tem força de lei. Não é diferente com a Medida Provisória ora apreciada. A tese contrária à validade da Medida Provisória n o 759/16 ganha força diante da impositividade com que esta altera a legislação referente à regularização fundiária de assentamentos informais, resultado de um processo histórico, sem qualquer participação da sociedade. No caso, salvo melhor juízo, um dos preceitos fundamentais do Estatuto da Cidade restou completamente ignorado.

LIBÓRIO, Daniela Campos. Estatuto das Cidades: 15 anos da Lei no 10.257/2001. Revista Brasileira de Direito Urbanístico - RBDU, Belo Horizonte, ano 2, n.3, p. 9-17, jul./dez. 2016. 2

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Os avanços da legislação urbanística registrados até então encontram enorme desafio com a edição da Medida Provisória ora analisada. O conceito de Regularização Fundiária, antes previsto no artigo 46 da Lei Federal no 11.977/093, já não existe mais. Em substituição, o texto da Medida Provisória prevê um novo instituto, a REURB, que oferece uma nova roupagem ao extinto instrumento para regularização de assentamentos informais, mas peca por não apresentar em seu texto qualquer menção à garantia do desenvolvimento da função da propriedade urbana, como antes ocorria. Com isso, alteram-se conceitos já plenamente assimilados pelos Municípios, bem como a aplicação efetiva de instrumentos de política urbana, gerando enorme insegurança jurídica, e até uma eventual necessidade de requalificação de servidores públicos, o que pode elevar custos de administrações municipais e tornar os procedimentos de regularização ainda mais difíceis e demorados. A sociedade civil deve conhecer da sua relevância para a construção do espaço que habita, reivindicando sua participação nas questões urbanas. Os assentamentos informais representam uma das mais sensíveis dessas questões e, portanto, precisam ser objeto de uma discussão aberta, franca, com envolvimento direto da sociedade civil, seja representada por indivíduos ou organizações, objetivando a melhor solução para as demandas. Para isso, as informações devem chegar às pessoas de forma objetiva e ampla, dando maior cobertura ao tema e provocando debates. Alterações imperativas como as impostas pela Medida Provisória no 759/16 aumentam a tensão de um cenário naturalmente conflituoso, e causam enorme insegurança sobre relações já fragilizadas.

3 - Considerações finais Na construção da legislação urbanística, especialmente no que diz respeito ao envolvimento da sociedade civil no processo e ao respeito à função social da propriedade, eventuais alterações não podem ser impositivas e "vir de cima para baixo" como está se propondo. Muito já se progrediu, tanto no campo da assimilação dos conceitos e princípios do Estatuto da Cidade e de leis posteriores (como é o caso da Lei no 11.977/09), quanto na aplicação dos instrumentos ali dispostos. O exemplo ora tratado é a regulação fundiária de assentamentos informais e, como percebido, os reflexos da edição da Medida Provisória no 759/16 são consideráveis. O momento é de reflexão e união por parte da sociedade civil como um todo, passado um longo período de afirmação dos direitos fundamentais e sociais desde 1988, garantidos como base da República Federativa no trato do povo. Importante compreender a dimensão do Brasil e

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texto do revogado artigo 46 da Lei Federal no 11.977/09 previa: "A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado." A função social da propriedade era expressamente tutelada à luz dos princípios do Estatuto da Cidade, o que não ocorre no art. 10 da Medida Provisória n o 759/16, que trata dos objetivos da Reurb. 4


como pode lhe ser custoso, inclusive financeiramente, reoperar a máquina administrativa em função de alterações de conceitos e procedimentos já absorvidos pela práxis habitual de significativa parte de seus Municípios. Trata-se de enorme insegurança jurídica e social, que pode ser minimizada pela participação da sociedade civil no processo legislativo e, no caso de necessidade real de alteração da legislação, que sejam respeitados os processos participativos já concluídos. Em outras palavras, que os textos legais em vigência sirvam de base para a construção dos novos, vez que resultaram de um longo processo de afirmação da função social da propriedade, cuja participação da sociedade se fez valer. Preservar as conquistas do processo de assimilação dos conceitos presentes no Estatuto da Cidade é dever da sociedade civil, sendo necessário que esta esteja à frente do processo, principalmente no debate de questões historicamente delicadas, como a regularização de assentamentos informais. A sociedade civil, da mesma forma, é responsável pela publicidade e por tornar os problemas de fato conhecidos, fomentando o interesse de um maior numero de pessoas. O envolvimento social de grande escala relativo a questões urbanas, estimula o senso de pertencimento de cada indivíduo, empoderando a sociedade como um todo para atuar na defesa de seus interesses. Nesse sentido, com o conhecimento e participação efetiva da sociedade, a construção das leis urbanísticas se mostra mais segura quanto ao atendimento das demandas sociais e especificidades de cada lugar. De maneira atemporal e oportuna, reflete o escritor João Guimarães Rosa em trecho de sua grande obra: "Uma coisa é pôr ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias[...] "4 4 - Referencias bibliográficas 1 DE SOTO, Hernando. O mistério do capital: por que o capitalismo da certo nos países desenvolvidos e fracassa no resto do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2001. 306 p. 2 LIBÓRIO, Daniela Campos. Estatuto das Cidades: 15 anos da Lei no 10.257/2001. Revista Brasileira de Direito Urbanístico - RBDU, Belo Horizonte, ano 2, n.3, p. 9-17, jul./dez. 2016. 3 BRASIL. Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009. Dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas; altera o Decreto-Lei no 3.365, de 21 de junho de 1941, as Leis nos 4.380, de 21 de agosto de 1964, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 10.257, de 10 de julho de 2001, e a Medida Provisória no 2.197-43, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 8 de jul. 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11977.htm . Acesso em: 11 jun. 2017. 4 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 31.

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ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 31. 5


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