O Urbanismo Colaborativo como caminho de solução aos desafios da cidade

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O Urbanismo Colaborativo como caminho de solução aos desafios da cidade IZ A DOR A C A RVA LHO L A NER Mestranda, Universidade de Brasília, Coordenadora de Pesquisa, Instituto COURB

Resumo Com a rápida urbanização das cidades latino americanas, o avanço da cultura digital, do aumento da consciência ambiental e demais transformações urbanas e sociais, novas práticas de gerir, desenhar e participar das nossas cidades foram demandadas. Desta forma, surge o conceito de Urbanismo Colaborativo, ainda pouco difundido e aplicado no âmbito do planejamento urbano brasileiro. Corresponde, portanto, a uma tentativa de aproximar os cidadãos das decisões coletivas, conferindo autonomia às populações locais e promovendo a integração de todos os atores envolvidos na construção das nossas cidades. O Instituto de Urbanismo Colaborativo COURB busca, com a institucionalização de tal conceito, mapear uma rede de ações colaborativas e integrar entidades que atuem incentivando a apropriação da cidade por seus usuários, intermediando a participação popular em intervenções urbanas relacionadas tanto a dinâmica da cidade em si, quanto ao seu planejamento urbano. Desde planos e projetos urbanos, ações de engajamento e pesquisa, o COURB tem como objetivo principal a integração dos agentes sociais envolvidos, dialogando com os interesses divergentes e construindo ações inclusivas. Como matéria prima do urbanismo, o exercício da arquitetura deve estar sempre conectado ao interesse coletivo, pressupondo a economia, a segurança e o conforto como fatores tão imprescindíveis quanto o direito à vida. Partindo de tal preceito, gerar o espelhamento dos seus valores intrínsecos a um espaço público que qualifique o modo como as cidades acolhem e respondem às necessidades das pessoas. Como consequência, em sua sintaxe espacial, gerar condições que estimulam e elevam o convívio à colaboração ativa, transformando usuários em agentes de transformação do bem urbano que já lhes pertence.

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Palavras-Chave Urbanismo Colaborativo; COURB; Participação popular; Urbanismo; Cidade inclusiva.

1. O que é Urbanismo Colaborativo e como pode contribuir para a solução dos problemas da cidade É possível promover mudança a partir da participação social? Se olharmos em volta, veremos que nossas cidades são construídas também pelas mãos das suas comunidades. Ao mesmo tempo, vemos que planejadores muitas vezes não contemplam as necessidades da população, impondo estruturas urbanas dissociadas de seu contexto local. Como podemos unir o saber técnico ao conhecimento e experiência dos seus usuários, construindo cidades inclusivas, de maneira mais colaborativa? Ao discutir tais questões essenciais a construção de um processo democrático de participação cidadã no desenvolvimento das cidades atualmente, é possível se aproximar de um conceito. O Urbanismo Colaborativo, portanto, pretende intervir na cidade a partir da visão dos próprios moradores, em uma colaboração paralela entre técnicos e cidadão, eliminando essa diferenciação de quem é planejador e apresenta algo que acredita ser o melhor para a cidade, e dos cidadãos comuns, aos quais restariam acatar essa decisão e se enquadrar no que é ofertado. Planejadores e cidadãos locais devem trabalhar em conjunto, buscando um planejamento colaborativo, adotando uma visão em que todos estão sob o mesmo patamar e buscam a mesma coisa: construir uma cidade mais viva e inclusiva. O saber empírico, de quem vivencia a cidade e experimenta sua rotina, suas glórias e seus desafios, deve ser considerado com equiparável peso ao conhecimento de estudiosos da cidade e planejadores, os quais possuem as ferramentas técnicas necessárias à elaboração e execução do planejamento e desenho urbano da cidade. O conceito de urbanismo colaborativo busca tratar a participação popular não somente como um meio, enfocando apenas no resultado final da intervenção, mas de dar importância a esse processo de mudança

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construído pela comunidade local. A abordagem popular, de trazer voz aos usuários locais e empoderá-los para que se sintam pertencentes ao ponto de intervir em sua cidade, a fim de torná-la adequada às suas necessidades é tão ou mais importante que o resultado da intervenção em si, no momento em que a construção é finalizada. O urbanismo colaborativo e a participação cidadã estão nos meios: Durante a elaboração e execução de uma intervenção urbana pelos cidadãos locais e de que forma será utilizada posteriormente. Para tanto, deve-se valorizar o processo de abordagem desta população e o uso que será dado ao espaço, buscando valorizar o sentimento de pertencer ao lugar, acima do resultado em si. Idealmente, pessoas de todas as idades e classes tem de encontrar espaço para trazer sua opinião e vivência acerca da discussão dos rumos da cidade, já que cada realidade traz diferentes esferas e necessidades. Neste processo de colaboração, os habitantes saem da passividade para se transformarem, gradualmente, em agentes catalisadores da mudança no âmbito local urbano, à medida que entendem possuir um direito sobre a cidade e a forma como ela deve suprir a necessidade coletiva de melhor qualidade de vida urbana, expressa no suprimento da infraestrutura básica, oferta de áreas verdes e de lazer, provimento de mobilidade urbana, habitação de qualidade, entre outros aspectos. O conceito central para a adoção de um hábito, neste caso o hábito de contribuir com a construção da cidade, é a “auto-eficácia” (self-efficacy), termo criado pelo psicólogo Albert Bandura. Tal termo pode ser definido como a crença pessoal na capacidade de executar determinada ação com sucesso, e assim persistir no comportamento de maneira consistente ao longo da vida. Esta “auto-eficácia” pode ser estimulada, pelos planejadores, através da criação de ambientes acolhedores e mecanismos que promovam o engajamento de maneira prazerosa e que tragam resultados visíveis aos colaboradores de maneira a afetar positivamente como as pessoas abordam os desafios e tarefas relacionados a melhoria no espaço sociológico da cidade em que habitam. Nikos Salíngaros, por sua vez, defende uma metodologia de construção na habitação social na qual o morador está envolvido desde o início do processo de elaboração do desenho, atuando como agente local inteligente. Assim, torna-se possível aplicar métodos de auto-or-

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ganização em que a própria comunidade se apropria do espaço público urbano, considerando-o a extensão de sua moradia, e o planejador atua somente para gerenciar o processo, buscando favorecer as intervenções de baixo-para-cima em pequena escala em detrimento do planejamento cima-para-baixo. Como exemplo ele traz a configuração das favelas, que utilizam de estratégias singulares de auto-organização, onde a comunidade encontra uma forma orgânica e efetiva de suprir suas necessidades apesar da ausência do planejamento urbano. Não é apenas deixar a comunidade encontrar uma solução por conta própria, mas empoderar seus moradores com recursos de tecnologia, técnicas construtivas e entendimento da forma urbana. É importante que eles experienciem o processo de desenho e construção como seu processo. Trata-se de estabelecer conexões e engajamento. O ponto-chave é o processo que comporte real engajamento, que seja ágil o suficiente para responder a processos adaptativos e que possa se engajar sem ser dirigido pela dinâmica social da desigualdade em infelizes direções. (SALÍNGAROS, 2011. P.193) Partindo do conceito de auto-eficácia por Bandura e da valorização da auto-organização de favelas por Salíngaros, o Urbanismo Colaborativo pretende elevar a importância do cidadão na consolidação dos aspectos sociológicos da cidade. A melhor segurança e manutenção do espaço público só são alcançadas através do uso contínuo por seus moradores locais. Em contrapartida, essa valorização do uso comunitário só é conquistada a partir do reconhecimento, pela população local, daquele espaço como extensão de sua moradia, desenvolvendo, portanto, o sentimento de pertencimento. Logo, o planejador assumiria a função de facilitador, responsável pelo provimento de ferramentas para que a própria população se aproprie de tal conhecimento e interfira no processo de construção da cidade, reconhecendo suas necessidades e buscando concretizá-las.

2. O papel do planejador na construção do urbanismo colaborativo. O Urbanismo enquanto campo disciplinar e prática profissional, constituído a partir do final do século XVIII, é compreendido como o campo de reflexão e ação técnica cujo saber específico é a própria cidade (PEREIRA,

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2003). Com as transformações sociais ocorridas ao longo dos anos, novas metodologias e técnicas para se pensar a cidade, de modo a incluir as pessoas no processo de construção, foram demandadas. Além disso, o desafio de se compreender que o planejamento urbano deve abranger toda a complexidade do território da cidade e não apenas o que ideologicamente é constituído como cidade, indica um novo ponto a se considerar nos desafios instituídos no âmbito do Urbanismo Colaborativo. Muitos autores reconhecem a importância da inclusão das pessoas na construção das cidades na contemporaneidade. No entanto, na gestão urbana das cidades o reconhecimento do papel do técnico planejador como mediador dessas necessidades sociais ainda é incipiente. Ao falar do papel dos técnicos em assentamentos, Paola Jacques apresenta o termo “maestro”. Segundo a autora, o arquiteto-urbanista deveria simplesmente conduzir os diferentes atores e gerenciar os fluxos de movimento já existentes no contexto local. Desse modo, o papel do técnico deveria se tornar discreto, coletivo e anônimo. Para isso acontecer é necessário que os arquitetos-urbanistas deixem de lado certa postura demiúrgica para que possam seguir, de forma mais modesta, o processo já iniciado pelos próprios moradores. (JACQUES, 2004) Para que a aproximação entre técnicos e população aconteça e o objetivo de construção coletiva do Urbanismo Colaborativo seja atendido, o técnico deve buscar a elevação do caráter de participação para além da ratificação de decisões políticas e técnicas deliberadas previamente. A participação cidadã surge como motor do processo, devendo ser compreendida não somente como debate e deliberação, mas especialmente como ação direta na construção da cidade. Além disso, seu papel deve ser dedicado a legitimar a construção social urbana, reconhecendo ações sociais e compreendendo efetivamente as necessidades da população. Para que esta relação seja estabelecida, o técnico deve oferecer ferramentas que possibilitem esse novo vínculo e sejam capazes de gerar instrumentos para que a população possa exercer o poder que agora com ela foi compartilhado. Neste sentido, e com o impulso das novas tecnologias de comunicação, a informação ganha um papel preponderante, pois, ao ser difundida de maneira transparente e clara, pode transmitir o conhecimento, que antes era de domínio técnico, ao cidadão.

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Dentro da construção de um planejamento urbano participativo, que, de certa forma, abandone a prática tradicionalista para adotar uma postura de baixo-para-cima, onde os moradores locais ganham autonomia para intervir e identificar as maiores necessidades do planejamento no contexto de sua própria comunidade, Marcos Carvalho traz como fatores básicos a comunicação entre a administração municipal e o cidadão comum de forma horizontal. Desta forma, aproxima o cidadão dos processos e tomadas de decisão, buscando ainda a educação da população em geral, capacitando-a para entender o funcionamento das políticas urbanas locais bem como o seu papel na formação de políticas mais colaborativas. Para o autor, A participação pode ser potencializada tanto através da difusão de conceitos básicos relativos aos problemas urbanos, quanto da revelação dos conflitos e agentes atuantes na construção do espaço. Se a importância dessa difusão for incorporada na prática dos profissionais envolvidos nos processos de planejamento, essa articulação entre planejamento, educação, comunicação e participação pode colaborar na formação de uma consciência coletiva atuante e esclarecida da sua realidade. (CARVALHO, 2011) Sobre os processos “bottom-up” e “top-down”, de baixo para cima e de cima para baixo, para Lydon e Garcia, o desejo em promover novas experiências urbanas, apropriações, a preservação do ambiente construído e a democratização do uso do solo citadino, podem partir tanto do poder público municipal como da sociedade civil, contanto que haja participação social. Ainda que estejam se referindo ao Urbanismo Tático, para os autores, esta temática inclusiva pode ser uma importante ferramenta para subverter processos burocráticos lentos e permitir que medidas sancionadas, ou não, façam parte da dinâmica urbana. (LYDON E GARCIA, 2015).

3. Conclusão Como conclusão, vê-se necessário buscar uma resposta à seguinte questão, primordial na construção de um planejamento colaborativo democrático e inclusivo: Como adequar as ações participativas para beneficiarem as mais diversas classes sociais e econômicas, visto que possuem

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diferentes necessidades a serem atendidas, bem como visões divergentes quanto ao que seria uma cidade igualitária e inclusiva? Para alcançar um processo participativo mais amplo e sólido, é necessário estabelecer a união entre comunidades locais, bem como o fortalecimento da figura de suas lideranças. A organização local deve não só representar as necessidades da própria comunidade como também trabalhar juntamente ao governo local para que as ações públicas e administrativas respondam efetivamente a uma participação cidadã mais presente e colaborativa. Viviana Fernández, ao tratar da participação cidadã na consolidação do desenho urbano da cidade, acredita ser fundamental a capacitação e aplicação de um processo participativo que inclua os cidadãos não só na tomada de decisões a respeito do planejamento urbano, como também na própria gestão de recursos municipais. A população precisa ser capaz de entender como funciona o processo de planejamento de sua cidade como um todo, para entender em quais espaços é possível cobrar os interesses e necessidades coletivas. La ciudadanía exige el fortalecimiento de sus capacidades y la ampliación de sus oportunidades de modo de lograr interiorizarse de cómo funciona el Estado, como se gestionan sus recursos, específicamente en el nivel local y por último como este nivel crea o promueve espacios para que esta ciudadanía organizada pueda presentar demandas. (FERNÁNDEZ, 2012) A gestão democrática aliada a ferramenta digital pode ser uma das formas mais eficientes de potencializar o envolvimento da população no planejamento urbano global e local. O uso de redes sociais, aplicativos e plataformas eletrônicas possibilita ampliar o escopo do processo participativo e facilitar o retorno dessa participação à população engajada, desburocratizando o processo em si e tornando-o mais acessível. É importante, contudo, não limitar a divulgação do processo participativo apenas ao meio virtual, correndo o risco de excluir uma parcela significativa da população. O uso de diversos meios de comunicação é imprescindível para garantir a participação de diferentes grupos sociais, cumprindo a necessidade de alcançar maiores níveis de diversidade social e econômica em ações urbanas e de planejamento voltadas à participação cidadã.

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No segundo semestre de 2016, o Instituto COURB abriu uma chamada de voluntários para ações colaborativas urbanas na Plataforma “Engaja”. Entre 22 de setembro a 25 de novembro de 2016, 1309 pessoas de 23 unidades da federação do Brasil se cadastraram. A análise das informações fornecidas traz importantes dados sobre o campo do urbanismo colaborativo no Brasil. Pouco mais de 13% dos voluntários já haviam liderado iniciativas urbanas comunitárias anteriormente e apenas cerca de 12% se disseram vinculados a alguma associação, coletivo ou organização não-governamental. Mais de 52% dos voluntários cadastrados nunca haviam participado de ações similares. Os dados da Plataforma “Engaja” também revelam uma grande crença dos voluntários em mídias sociais e tecnologias sociais como potenciais métodos de mobilização. Apenas 12,3% acreditam que métodos convencionais, como carros de som e panfletagem são a melhor maneira de divulgar iniciativa e escalar cidadãos para ações urbanas, enquanto 31,2% apostam em aplicativos com geo-localização e 58,5% em páginas de Facebook. Partindo desses dados, é possível observar que a inclusão tecnológica da população tem proporcionado uma participação popular mais ativa nos processos de gestão da cidade, unindo pessoas que têm interesses mútuos, bem como uma maior transparência nas ações do governo. É possível que esse resultado seja fruto de uma cidadania mais participativa, mais informada e com maior consciência cidadã.

4. Bibliografia FREIRE, J, Urbanismo emergente: ciudad, tecnología e innovación social – Emerging urban planning: city, technology and social innovation. In: Paisajes Domésticos / Domestic Landscapes. Redes de Borde / Edge Networks, Espanha, 2009. Editora SEPES Entidad Estatal de Suelo. Vol. 4, pp. 18-27. PEREIRA, M. S., Notas sobre o Urbanismo no Brasil: construções e crises de um campo disciplinar. In: Urbanismo em Questão. Editora UFRJ Prourb, Rio de Janeiro, 2003. BANDURA, Albert, Self-efficacy in changing societies. Cambridge university, 1995. Healey, P., Building institutional capacity through collaborative approaches to urban planning, Environment and planning A, University of British Columbia, Canada, 1998, Vol. 30, N. 9, pp. 1531-1546.

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