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Teoria Geral do Direito e da PolĂ­tica


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Teoria Geral do Direito e da Política / Obra organizada pelo Instituto IOB - São Paulo: Editora IOB, 2013. ISBN 978-85-8079-026-9


Sumário

Capítulo 1 – Dicotomia entre Direito Objetivo e Direito Subjetivo, 5 1. Dicotomia entre o Direito Objetivo e o Direito Subjetivo, 5 2. Heteronomia e Coerção, 7 3. Bilateralidade e Atributividade, 8 4. Direito Objetivo como Norma, Ordenamento e Instituição, 10 5. Caracterização do Direito Subjetivo, 11 6. Classificação do Direito Subjetivo, 13 7. Direito Subjetivo Metaindividual, 14 Capítulo 2 – Fontes do Direito, 16 1. Fontes do Direito – Introdução, 16 2. Fontes do Direito – Lei, 17 3. Hierarquia das Fontes – I, 19 4. Hierarquia das Fontes – II, 20 5. Diálogo das Fontes, 21 6. Princípios Gerais do Direito, 22 7. Jurisprudência e Súmula, 24 8. Costumes, Negócios Jurídicos e Doutrina, 26 9. Doutrina e Negócios Jurídicos, 27


Capítulo 3 – Eficácia da Lei no Tempo, 29 1. Eficácia, 29 2. Eficácia da Lei no Tempo e a Segurança Jurídica, 31 3. Definição da Coisa Julgada, Ato Jurídico e Direito Adquirido, 32 4. Conflitos de Normas Jurídicas no Tempo, 34 Capítulo 4 – Teoria Geral da Política, 36 1. Política – Introdução, 36 2. Política e Direito, 38 3. O Direito da Política e a Política do Direito, 39 4. Ideologias, 41 5. Declaração Universal do Direito do Homem da ONU – I, 42 6. Declaração Universal do Direito do Homem da ONU – II, 44 7. A Universalidade dos Direitos Humanos, 45 Gabarito, 48


Capítulo 1

Dicotomia entre Direito Objetivo e Direito Subjetivo

1. Dicotomia entre o Direito Objetivo e o Direito Subjetivo 1.1 Apresentação Nesta unidade, estudaremos a dicotomia entre direito objetivo e direito subjetivo.

1.2 Síntese A dogmática jurídica vale-se de dicotomias para catalogar seus institutos, na busca de agrupá-los com rigor e alcançar maior eficácia na solução de conflitos. Dicotomia é um modo de classificação em que as divisões e subdivisões não têm mais de dois termos. A dicotomia aparece em outros momentos no tempo e no espaço, como no Direito Romano com as expressões lex e jus; no período medieval, com


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6 norma agendi (norma de agir) e facultas agendi (faculdade de agir); em inglês aparecem law e right. Uma das clássicas dicotomias jurídicas é aquela entre direito objetivo e direito subjetivo. Outra que pode ser apontada é a dicotomia entre direito positivo e direito natural, embora hoje esteja muito enfraquecida. A expressão direito natural encontra-se banalizada e pouco utilizada no ponto de vista teórico e pragmático. Isso por que após o advento da revolução francesa ficou impossível tratar de direito natural transcendente a ordem de direito positivo. Antes da revolução francesa, falava-se em direito natural como direitos humanos. A doutrina jus naturalista que trata do direito natural defende a ideia de direitos imutáveis, intangíveis, eternos, que devem servir de inspiração e de limitação ao poder de positivação das autoridades jurídicas. A doutrina do direito natural se presta a fundamentar um direito positivo, que deve ser uma espécie de duplicata do direito natural, segundo as suas limitações. Até esse momento, o direito à vida não era questionado, mas negar o direito à sepultura foi contra o direito natural, e a lei de Deus, podendo o Rei Creonte sofrer a penalidade divina. Isso, porque esse direito precede as condições humanas, de modo que não seria possível se atentar contra o direito ao sepultamento, já que os gregos acreditavam que o sepultamento, a alma não encontraria o caminho da luz, e ficaria perambulando pelo hades. Episódio semelhante se deu no Brasil, em que os escravos acreditavam que os que fossem decapitados não chegariam ao paraíso pós-terreno. Usando-se dessa crença, os fazendeiros ameaçavam dizendo que o escravo que se suicidasse, teria a cabeça arrancada. A doutrina do direito natural pretende defender a tese de que há direitos inatos, não intocáveis que devem ser preservados. Os direitos considerados naturais passam por positivação no período das revoluções modernas. Segundo Ferraz Júnior (2003: 145), a dicotomia entre direito objetivo e direito subjetivo visa “realçar que o direito é um fenômeno objetivo que não pertence a ninguém socialmente, que é um dado cultural, composto de normas, instituições, mas que, de outro lado, é também um fenômeno subjetivo, visto que faz dos sujeitos, titulares de poderes, obrigações, faculdades, estabelecendo entre eles relações.” A expressão direito objetivo é utilizada tanto para se referir a um sistema jurídico como um todo quanto a um conjunto de suas normas ou ainda a preceitos isolados do sistema (Maynez, 1956: 36).


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2. Heteronomia e Coerção 2.1 Apresentação Nesta unidade, estudaremos a heteronomia e a coerção.

É comum na doutrina a utilização de expressões como norma agendi, que é o direito objetivo, o dever do agir, e facultas agendi, que é o direito subjetivo, a faculdade de agir. Direito objetivo é uma expressão ampla, onde se pode enquadrar todo o complexo de normas do ordenamento jurídico. Nem toda situação de subjetivação de norma jurídica no plano de atribuição de prerrogativas é propriamente uma faculdade de agir. Essa é uma instituição medieval. Objeto e sujeito formam uma dicotomia epistemológica, e objeto é tudo o que não constitui o sujeito, que está fora dele. A objetividade da norma jurídica está aí, no fato de independer da vontade, poder ou disposição dos sujeitos a que se destina. As normas são subjetivas apenas se são de natureza moral, ou seja, se decorrem da vontade própria daquele que as cumpre. O direito não é autônomo, e sim heterônomo, não podendo usar o direito subjetivo como um direito do próprio indivíduo. Há deveres morais, mas não direitos morais. O direito subjetivo decorre do direito objetivo, de modo que fique claro a heteronomia do direito. Heteronomia é executar a lei elaborada pelo outro. Para Kelsen, a objetividade da norma jurídica (como dever ser de um ato de vontade objetivo) está no fundamento de validade intrínseco à ordem jurídica, que independe da ordem moral para ter legitimidade. Sob o ponto de vista da Filosofia do Direito o que distingue a ordem moral da ordem jurídica é exatamente a heteronomia da norma jurídica, ou seja, o fato dela ser posta fora da vontade subjetiva de seus destinatários. As normas morais são de natureza autônoma; normas jurídicas são de natureza heterônoma: A autonomia vem do grego, autos + nomos (lei própria), ou seja, dar a si mesmo as leis, ou cumprir leis decorrentes da própria vontade. Heteronomia vem também do grego hetero + nomos, ou seja, cumprir normas decorrentes da vontade alheia.

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2.2 Síntese


8 O critério de que os imperativos autônomos são emitidos e cumpridos pela mesma pessoa e que os heterônomos são emitidos e cumpridos por pessoas diversas ajuda na distinção entre direito e moral, mas não satisfatoriamente, visto que há sistemas morais que são heterônomos, como os Dez Mandamentos, e há também aquelas parcelas do sistema jurídico que se constituem autonomamente através da esfera de manifestação reservada à autonomia privada no direito privado (Bobbio, 1995: 70). Desse modo, para distinguir direito e moral a doutrina elenca outros elementos além da heteronomia e da autonomia, como a coercibilidade e a bilateralidade-atributiva, entre outras de menor importância. Coação significa força, violência, constrangimento. Definir o direito objetivo em função da coerção é o mais comum na Ciência do Direito. No Direito prefere-se empregar o termo coerção, visto que coação é vício do ato jurídico enquanto coerção é o emprego legítimo da força exercida pelo Estado e dentro dos limites da lei. A coerção se difere da coercitividade, uma vez que esta é a incidência da coerção potencial para situações reais. Norma jurídica que não traz sanção se torna mero conselho, não sendo nem norma moral. Pereira (1999: 35) apresenta uma definição do direito objetivo coercibilista: “o direito objetivo compreende um complexo de normas, a que os indivíduos devem obediência, sob a sanção do Estado, que no caso da transgressão é chamado, pelo seu órgão competente, a compelir o infrator a se sujeitar ao império da ordem jurídica.”

3. Bilateralidade e Atributividade

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3.1 Apresentação Nesta unidade, estudaremos a bilateralidade e atributividade.

3.2 Síntese Bilateralidade e atributividade são mais duas caracterizações do direito objetivo, além da coercibilidade e da distinção entre heteronomia e autonomia. Bilateralidade, segundo Reale, é característica de toda norma, a qual é bilateral por se destinar a regular a relação entre duas ou mais pessoas (num sentido intersubjetivo, social). Assim, até as normas morais são bilaterais, porque são


imperativos do agir de um indivíduo que regulam sua relação com os outros indivíduos, já que não se pode falar em ação moralmente boa ou má em relação a um objeto, apenas em relação a pessoas. Reale entende que não há separação entre a bilateralidade e atributividade. Ele usa a expressão “bilateralidade atributiva” como característica do direito. A atributividade, por sua vez, é característica exclusiva da norma jurídica. A bilateralidade-atributiva é o estabelecimento prévio, objetivo e proporcional de uma relação entre sujeitos. Uma norma nunca se destina a um comportamento de um indivíduo isoladamente. A moralidade também é bilateral uma vez que as regras comportamentais de índole moral também se referem a uma relação. Segundo Reale, verifica-se atributividade quando “duas ou mais pessoas se relacionam segundo uma proporção objetiva que as autoriza a pretender ou a fazer garantidamente algo”; trata-se, portanto, de uma proporção intersubjetiva. Uma consequência gerada pela atributividade é a exigibilidade, ou seja, uma pretensão que pode ser exercida via ação e que justifica a própria coercibilidade (como mecanismo de imposição do dever jurídico ao sujeito passivo). No plano moral não existe distinção entre direito e dever, e, portanto, indivíduos cumprindo seus deveres morais, reciprocamente, cumprem uma ordem moral estabelecida culturalmente. Importante ressaltar que a tese de Reale (defendida anteriormente por Del Vecchio e Radbruch sem menção específica ao termo atributividade) faz com que a coercibilidade não seja nota exclusiva do direito, pois só terá sentido porque a atributividade traz consigo a exigibilidade, ou seja, se um direito é exigível seu titular poderá se utilizar da coerção estatal para dar cumpribilidade a um dever que satisfaça seu direito. A tese de Reale sobre direito objetivo nos parece a mais atual e lúcida, indo de acordo com os rumos pós-positivistas do direito, assumindo-o como conjunto de normas fundadas em valores, expressos em normas-regra e em normas-princípio. O termo “Estado Democrático de Direito” pode ser chamado de estado democrático de “Direitos”, uma vez que alude a um estado que fixa direitos fundamentais, onde o seu direito é estabelecido por uma bilateralidade atributiva, que é o estabelecimento prévio, objetivo e proporcional de uma relação entre os sujeitos. Prévio, porque já está estabelecido. Objetivo, porque não há subjetividade, e proporcional porque há limitação do que é devido e do que é exigido.

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4. Direito Objetivo como Norma, Ordenamento e Instituição 4.1 Apresentação Nesta unidade, estudaremos o direito objetivo como norma, ordenamento e instituição.

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4.2 Síntese A concepção do direito objetivo como norma é centrada por Kelsen, mas o direito objetivo pode se referir à norma ou ao conjunto de normas e suas relações. A definição do direito objetivo como norma parte da definição kelsiana de que o direito é um sentido objetivo de “dever ser”, de um ato de vontade. Ou seja, a norma aponta para algo, significa a realidade. O “dever ser” diz sobre um ato de vontade. As normas objeto de estudo são decorrentes de atos de vontade. O sentido de “dever ser” que decorre de um ato de vontade objetivo, só é objetivo porque esse ato de vontade decorre de outro ato de vontade, até chegar ao último ato que é a Constituição Federal. Kelsen define a norma como sendo objeto de estudo da ciência do direito, que só existe como norma porque decorre de outra. Para autores como Santi Romano e Bobbio o direito objetivo é um ordenamento jurídico e não meramente um conjunto de normas, uma vez que normas não coexistem de maneira desconexa e em constante embate. A diferença entre sistema e conjunto de normas está na relação entre seus elementos: no conjunto os elementos se mantêm separados e independentes uns dos outros; no sistema as partes se conectam a uma estrutura que as une e que buscam cumprir um fim comum ao todo sistêmico. Fora do sistema as partes não têm autonomia e a ausência das partes no sistema leva a sua falência. Santi Romano (2008: 68) define o ordenamento jurídico como “entidade que por um lado se move conforme suas normas, mas, sobretudo, por outro, ele mesmo as move quase como se elas fossem peões em um tabuleiro de xadrez. Deste modo, elas representam mais o objeto e o meio da atividade do ordenamento, do que um elemento da sua estrutura”. Bobbio foi um dos primeiros a formular a ideia de direito objetivo como ordenamento jurídico, mas atribui a Kelsen a propulsão para a tese, pois teve


11 “consciência da importância de problemas conexos com o ordenamento jurídico” e considerou pela primeira vez que a Teoria Geral do Direito deveria tratar de uma teoria do ordenamento jurídico (Bobbio, 1997: 21). As normas jurídicas sofrem de lacunas, mas o sistema se arma de normas de prevenção às lacunas. O art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil expressa que na ausência da lei o juiz se socorrerá das fontes do direito, ou da analogia. São características próprias do ordenamento jurídico a hierarquia, a unidade, a coerência, a completude e a dinâmica. Na perspectiva do ordenamento (não na das normas consideradas isoladamente) podem surgir problemas a respeito de sua unidade se constituir hierarquicamente (hierarquia das normas); de suas normas não serem contraditórias e excludentes entre si (antinomias jurídicas); de sua pretensão de completude gerar a discussão sobre a existência de lacunas; de suas relações com outros ordenamentos jurídicos. A definição do direito como instituição (nem norma, nem sistema) é defendida por autores como Santi Romano e Hauriou, para quem o direito tem mais fatores que normas em relação segundo uma estrutura unificante e funcionalizante. Segundo a definição institucionalista o direito se compõe de três fatores: • Sociedade – sua base de fato, origem de sua existência; • Ordem – fim ao qual tende o direito; e • Organização – meio pelo qual a ordem se realiza.

Exercício 1.

Discursiva (máximo de 60 linhas). A plenitude do ordenamento jurídico e o problema das lacunas.

5. Caracterização do Direito Subjetivo

Nesta unidade, estudaremos a caracterização do direito subjetivo.

5.2 Síntese A norma jurídica está posta fora do sujeito, mas destina-se a ele ou a ser cumprida por ele, o que leva ao entendimento de que o direito objetivo gera o direito subjetivo. Na Antiguidade a liberdade era um status político reconhecido publicamente (status libertatis x status servitutis) e, com a noção de

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5.1 Apresentação


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12 livre-arbítrio trazida pelo cristianismo passou a ser uma condição interna. Mas a expressão de todas as liberdades individuais encontra restrições no próprio exercício do livre-arbítrio de cada um e o problema que se põe é se o direito objetivo apenas reconhece e estabelece as condições de exercício do direito subjetivo, que seria uma realidade existente por si só enquanto decorrência da liberdade humana, ou seja, se o direito subjetivo tem ou não realidade diversa do direito objetivo. As Teorias clássicas sobre o direito subjetivo são: • Teoria da vontade, postulada por Bernard Windscheid: se baseia na ideia de liberdade e define o direito subjetivo como “poder ou domínio da vontade livre do homem que o ordenamento protege e confere” (Ferraz Júnior, 2003: 147); as críticas a essa tese estão no fato de nem sempre a vontade poder ser reconhecida como essência de um direito, como no caso dos incapazes, das pessoas jurídicas, ou daqueles que têm um direito mas não querem exercê-lo (Maynez, 1956: 188). • Teoria do interesse: postulada por Rudolf Von Ihering, critica a teoria da vontade e defende que em todo direito há dois elementos, um substancial – o interesse, e outro formal – a actio, e o direito subjetivo se define como “o interesse juridicamente protegido”; as críticas dirigidas a essa tese são que direitos podem existir mesmo sem que haja interesse em seu objeto e que há casos em que o interesse do titular do direito se choca com o próprio direito (Ferraz Júnior, 2003: 148). • Teoria da garantia: segundo essa teoria o direito subjetivo tem por base a “possibilidade de fazer a garantia da ordem jurídica tornar efetiva a proteção (judicial) do direito”, o que acaba por negar-lhe realidade própria, pois o direito subjetivo se confunde, aqui, com a proteção da liberdade pelo direito objetivo (Ferraz Júnior, 2003: 148). Pela teoria da pretensão garantida, tradicional na doutrina do direito como poder de agir para garantir o exercício de um direito subjetivo, por meio do exercício do direito de ação, o direito subjetivo é a possibilidade de ser pretendido algo efetivamente pela pessoa que se situar concretamente nas circunstâncias genericamente previstas na norma jurídica. Segundo Reale (2002: 258), “é a possibilidade de exigir-se, de maneira garantida, aquilo que as normas de direito atribuem a alguém como próprio”. Como tal exigibilidade implica a disposição de uma ação que possibilite a busca do direito através da decisão judicial, temos a definição subjetiva de processo como uma sucessão de atos visando à definição do direito subjetivo trazido legitimamente à apreciação judicial. Para Kelsen (1991: 142), apenas quando um indivíduo é juridicamente obrigado a uma determinada conduta em face de outro é que se diz que este tem direito subjetivo, ou seja, o direito subjetivo nada mais é que um reflexo do dever jurídico. Como para Kelsen a ordem jurídica é essencialmente impo-


13 sição de deveres e não atribuição de direitos, os direitos existentes são apenas reflexos de deveres. E há, inclusive, casos de imposição de deveres que sequer provocam reflexo, como na proibição de matar animais silvestres ou cortar árvores, em que não se pode dizer que há direito dos animais ou das árvores (Kelsen, 1991: 141). Para Kelsen, inclusive, a concepção tradicional de direito subjetivo como algo diverso do dever jurídico nada mais é que decorrência da doutrina do direito natural, o que, para ele, é uma tentativa de fundamentar o direito para além dos seus limites de validação, algo inadmissível numa doutrina pura do direito. Apenas partindo da ideia da existência de uma pretensão à conduta de outro indivíduo é que Kelsen (1991: 149) admite a existência de um direito subjetivo em sentido técnico, que não é função essencial do direito objetivo, mas somente uma técnica particular da qual ele se vale (sem que precise necessariamente se valer) para conferir a um indivíduo que não é um órgão do Poder Judiciário o poder jurídico de colocar em movimento um processo (através de uma ação) para alcançar uma decisão judicial que aplique uma sanção concreta como reação à violação do dever. O que faz Kelsen é reservar o uso da expressão direito subjetivo para designar a circunstância jurídica do próprio direito objetivo em uma relação sui generis com um sujeito.

6. Classificação do Direito Subjetivo 6.1 Apresentação Nesta unidade, estudaremos a classificação do direito subjetivo.

Se há direito público e privado, haverá direito subjetivo público e direito subjetivo privado. Direitos subjetivos públicos são aqueles cujo sujeito é de direito público, com relação de subordinação e que protegem um interesse geral. Direitos subjetivos privados são aqueles cujo sujeito é de direito privado, com relação de coordenação e que protegem um interesse particular. Há também os direitos subjetivos absolutos e relativos. O direito relativo é aquele em que “a obrigação correspondente incumbe a um ou vários sujeitos, individualmente determinados” (Maynez, 1956: 199); exemplo são os direitos de crédito ou pessoais (in personam), em que o titular

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6.2 Síntese


14 tem a faculdade de exigir ações ou omissões de pessoa determinada por vínculo decorrente de pacto específico, sob o princípio de que o que determinadas pessoas pactuaram entre si não pode beneficiar nem prejudicar a outros. Já o direito absoluto é aquele em que “o dever correlato é uma obrigação universal a respeito do direito” (Maynez, 1956: 199); exemplo são os direitos reais (in rem), que autorizam o uso, fruição, disposição e reivindicação sobre uma coisa, impondo abstenções a um número indeterminado de pessoas (erga omnes) e o titular do direito tem a faculdade de obter a entrega ou restituição do objeto de qualquer pessoa que tenha dele se apoderado. Para Kelsen inexiste direito real, pois a relação não é da pessoa com o objeto e sim entre pessoas, e qualquer direito é essencialmente pessoal e a distinção se faria apenas pela determinabilidade do sujeito passivo da relação (Ferraz Júnior, 2003: 153). É importante conceituar também os direitos subjetivos disponíveis e indisponíveis. Direitos indisponíveis são aqueles sobre os quais não se pode transigir ou abdicar, como o direito à vida e à integridade. O art. 11 do Código Civil Brasileiro dispõe que, salvo exceções legais, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis. Direitos disponíveis são aqueles sobre os quais se pode transigir ou abdicar. É importante mencionar os direitos subjetivos principais e acessórios. Direitos subjetivos principais têm existência autônoma. Direitos subjetivos acessórios existem apenas em decorrência de um principal e a ele aderindo em caráter secundário. O acessório segue o principal. Em um contrato de compra e venda, o direito principal é o preço, e acessório a ele, os juros.

7. Direito Subjetivo Metaindividual

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7.1 Apresentação Nesta unidade, estudaremos o direito subjetivo metaindividual.

7.2 Síntese Há direitos subjetivos que implicam deveres, como o pátrio poder, motivo pelo qual alguns juristas defendem a substituição da categoria de direito subjetivo pela de situação jurídica, dentre eles, Paul Roubier. Roubier (1963: 2) conceitua situação jurídica como “complexo de prerrogativas, de direitos e deveres, criadores de condições vantajosas para os


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seus beneficiários, dependente de fato ou de estado, ou ainda, de ato produtor de consequências jurídicas”. Reale (2002: 258-260) segue nesse sentido e faz a distinção entre direito subjetivo e outras situações subjetivas. Entre as situações subjetivas de Reale, tem-se as seguintes: • Interesse legítimo, que pode equiparar-se a um direito subjetivo provisório; são situações em que há incidência normativa, não de direito subjetivo, mas de mero interesse legítimo ao qual se liga uma pretensão razoável, que pode ou não ser acatada pelo juiz ao final do processo, reconhecendo ou não a existência do direito subjetivo. • Faculdade, que é uma das formas pelas quais um direito subjetivo pode ser explicitado, por exemplo, o direito de propriedade, que se manifesta nas faculdades de usar, fruir, dispor e reivindicar. • Poder (potestas) de fazer algo que é, segundo Reale, a “expressão de uma competência ou atribuição conferida a uma pessoa, pública ou privada, sem que exista propriamente uma pretensão e obrigação correlatas, e nem o exercício de uma faculdade”. Um exemplo é o poder familiar, em que não há prestação dos filhos para os pais e a sujeição dos filhos se dá dentro dos limites legais, em benefício dos próprios filhos e da sociedade como um todo e não como satisfação dos interesses dos pais. • Ônus, que é uma condição de necessidade para a validade de um ato jurídico (sob pena de não haver nele vantagem ou garantia) e não uma obrigação. O ônus da revelia não vai gerar necessariamente a sucumbência. Existem hoje os direitos metaindividuais que são direitos subjetivos e consistem em uma nova concepção de direito subjetivo, que não se enquadra nos moldes da teoria geral do direito clássico, que não trabalha com essa referência de metaindividualidade.


Capítulo 2

Fontes do Direito

1. Fontes do Direito – Introdução 1.1 Apresentação Nesta unidade, iniciaremos o estudo sobre as fontes do direito.

1.2 Síntese As fontes do direito são os meios pelos quais o direito se positiva, ou seja, é através delas que os conteúdos pré-jurídicos revestem-se de juridicidade. A doutrina muitas vezes faz a distinção entre fontes materiais e fontes formais do direito, mas como apenas as fontes formais interessam à Ciência do Direito e à técnica jurídica, Reale prefere adotar simplesmente a expressão fontes do direito, sem nada especificar. A confusão semântica e terminológica ocorre devido à tentativa de rigor na definição das fontes pela doutrina, que às vezes se refere aos processos pelos


17 quais o direito se positiva e, outras, se refere aos instrumentos produzidos, positivados ou reconhecidos para aplicação jurídica. Para Reale (2002: 141) há quatro fontes do direito, advindas das quatro formas de poder. Vejamos: • O processo legislativo (Poder Legislativo), e não as leis que dele decorrem; • A jurisdição (Poder Judiciário), e não a jurisprudência produzida por ela; • Os usos e costumes (poder social), e não o procedimento de sua formação; e • A fonte negocial (autonomia da vontade), e não o processo em si de externalização da autonomia privada. Seguindo a definição de Reale, acredita-se ser adequado arrolar quatro fontes do direito, a partir dos poderes de que emanam, mas, alinhando-se com Dimoulis (2007: 203), faz-se referência às próprias fontes normativas que do poder resulta, pois que as fontes indicam “os ‘lugares’ nos quais se encontram os dispositivos jurídicos e onde as pessoas devem pesquisar sempre que desejem tomar conhecimento do direito em vigor. Essas fontes são denominadas formais porque dão forma ao direito, porque ‘formulam’ os dispositivos válidos”. São elas, a lei, a jurisprudência, os costumes e os negócios jurídicos. Vale lembrar, aqui, que a analogia não é fonte do direito e sim um método de integração de lacunas, que “consiste em partir de um elemento já existente, que se amplia e estende a um caso não contemplado. Esse elemento pode ser uma simples lei (analogia legis) ou os princípios de todo o direito positivo (analogia juris)” (Del Vecchio, 2003: 15). Importante ressaltar que os princípios gerais de direito, diferentemente do que dá a entender o art. 4º da LICC (em dissonância com o reconhecimento dado hoje aos princípios), não são um tipo de procedimento analógico e, pelo contrário, são considerados pela jurística contemporânea como fonte material do direito, de normatividade imediata, própria, original e até superior.

2.1 Apresentação Nesta unidade, estudaremos a lei como fonte do direito.

2.1 Síntese A lei é a fonte primária e obrigatória do direito nos países de tradição romano-germânica ou civil law, cuja tendência é elaborar normas jurídicas escritas

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2. Fontes do Direito – Lei


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18 – a lei – e codificá-las, contrariamente aos sistemas jurídicos consuetudinários, que tem por norma obrigatória e imediata o costume. A definição de lei como norma jurídica escrita tem caráter histórico e não faz mais que identificar que o sistema jurídico se alinha com o construído pelos romanos e faz-se necessário uma definição mais precisa e atual, que assuma a escrituralidade para promover, por exemplo, um paralelo entre lei e sentença, que também é norma escrita. Cabe mencionar que os princípios também são normas jurídicas, mas que dispensam positivação na forma escrita: segundo Dimoulis (2003: 73), “A preferência pelo direito escrito corresponde a duas exigências: por um lado, atende o requisito da segurança jurídica (...), já que a palavra escrita permite a comprovação da existência da norma e sua interpretação de forma muito mais objetiva do que a comunicação oral. Por outro lado, a forma escrita satisfaz a exigência da publicidade, podendo o escrito alcançar a todos os interessados, sendo divulgado de forma rápida, eficaz e segura.” Outra definição de lei que se apresenta é a de ser norma jurídica escrita, geral e abstrata, em que já se faz presente o paralelo entre os planos da elaboração e da aplicação do direito (geral e abstrato X particular e concreto). Para Bobbio (1993: 143) a generalidade da norma se relaciona ao seu destinatário e a abstração se relaciona à ação a ser praticada. As súmulas vinculantes não têm eficácia geral, pois efeito vinculante é diferente de força de lei (Siqueira Júnior, 2009: 96). Ferraz Júnior distingue lei formal e lei material feita pela Teoria do Direito da seguinte maneira: • Lei em sentido material – é a que tem natureza solene e institucionalizada de normas gerais; • Lei em sentido formal – sua forma a caracteriza, pelo seu conteúdo adquirir caráter de lei ao obedecer a sua forma de produção, mesmo que não seja uma norma geral. Essa definição não é uniforme entre a doutrina e não é capaz de resolver o problema daquelas normas que mesmo sendo gerais e abstratas não podem ser chamadas de lei (a menos que seja num sentido lato), como decretos e portarias (que apenas dão executoriedade às leis). Os processos de elaboração das normas são variados, sendo o processo legislativo ordinário conduzido em conjunto pelo Legislativo e pela Chefia do Executivo o utilizado para as leis ordinárias e complementares, cujos processos se distinguem apenas pelo quorum de votação (maioria absoluta ou simples), enquanto outras normas primárias decorrem de processos legislativos especiais. Quanto ao procedimento de elaboração das leis, a doutrina também costuma fazer uma distinção entre leis formais e materiais, de acordo com a elaboração


19 ter sido via processo legislativo ordinário ou outras modalidades. Para a maior parte da doutrina as leis em sentido formal se submetem ao princípio da legalidade estrita e as leis em sentido material, à legalidade ampla. A Emenda Constitucional se exclui dessa dicotomia, pois “enquanto proposta, é considerada um ato infraconstitucional sem qualquer normatividade, só ingressando no ordenamento jurídico após sua aprovação, passando então a ser preceito constitucional, de mesma hierarquia das normas constitucionais originárias. (Moraes, 2009: 661). Cabe esclarecimento sobre o sentido da palavra legislação, que é mais ampla que lei em sentido técnico. Em sentido lato, legislação é o modo de formação das normas jurídicas por meio de atos competentes e que estabelecem as normas soberanas, que, por sua vez, estabelecem competências para que sejam estabelecidas outras normas, numa cadeia que, no fim, demonstra que a Constituição é o ato fundante de todas as outras normas.

3. Hierarquia das Fontes – I 3.1 Apresentação Nesta unidade, estudaremos a hierarquia das fontes.

A hierarquia das fontes se refere às fontes estatais em relação à elaboração legislativa, pois as normas jurídicas são postas em planos diferentes e em relação de precedência umas sobre as outras. Segundo Bobbio (1997: 93) “a inferioridade de uma norma em relação à outra consiste na menor força de seu poder normativo; essa menor força se manifesta justamente na incapacidade de estabelecer uma regulamentação que esteja em oposição à regulamentação de uma norma hierarquicamente superior”. Adotar-se-á a distribuição da relação das normas umas com as outras no sistema jurídico apresentada por Maria Helena Diniz baseada em Franco Montoro: • Normas constitucionais; • Leis complementares; • Leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções; • Decretos regulamentares;

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3.2 Síntese


20 • Normas internas (despachos, estatutos, regimentos, etc.); e • Normas individuais (contratos, testamentos, sentenças, etc.). Complementando essa pirâmide pode-se colocar: • Portarias abaixo dos Decretos; • Tratados Internacionais ratificados ao lado de leis ordinárias; • Decretos-leis recepcionados pela CRFB/1988 ao lado de leis ordinárias ou complementares (de acordo com as exigências constitucionais); e • Tratados Internacionais ratificados sobre direitos humanos equivalem a Emendas Constitucionais (art. 5º, § 3º, acrescido pela EC nº 45/2004). As normas infralegais complementam as leis. Os decretos são expedidos pela chefia do Executivo para regular leis. As portarias são atos ministeriais inferiores aos decretos e estabelecem normas de eficácia individual e apenas para órgãos da administração pública. As instruções são atos administrativos internos que vinculam os órgãos da administração.

4. Hierarquia das Fontes – II 4.1 Apresentação Nesta unidade, daremos continuidade ao estudo da hierarquia das fontes.

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4.2 Síntese Segundo Bobbio, “a inferioridade de uma norma em relação à outra, consiste na menor força do seu poder normativo. Essa menor força se manifesta justamente na incapacidade de estabelecer uma regulamentação que esteja em oposição à regulamentação de uma norma hierarquicamente superior”. Há os que defendem que haveria decreto autônomo caso houvesse omissão da lei, mas o decreto autônomo tem o poder de revogação da lei. Segundo Bobbio, o decreto tem de subir na hierarquia e ocupar o lugar da lei, como o decreto-lei o fazia antes da Constituição de 1988. A hierarquização das normas jurídicas é fortemente criticada. Alguns autores acreditam ser mais correto falar em supremacia da Constituição sobre todo o sistema jurídico em lugar de uma hierarquia entre as normas, considerando a distribuição das competências normativas que a Constituição estabelece. Os tratados internacionais sobre os direitos humanos serão equiparados a emenda constitucional desde que aprovados segundo as regras previstas.


21 A Teoria Geral do Direito tradicional reconhece a hierarquia das fontes, que “tecnicamente é um instrumento importante para o mapeamento formal das competências estatais. O ponto de partida é a Constituição, que, por pressuposto analítico, determina todas as competências normativas do Estado” (Ferraz Júnior, 2003: 236-7), de modo que a delimitação se faz pela distribuição de competências, mas ainda com destaque para a hierarquia “quando dentro desse mapa horizontalmente estendido, uma competência avança nos limites da outra. É nesse momento que surge uma verticalização, em tese organizada por uma regra estrutural do sistema: a lex superior” (Ferraz Júnior, 2003: 237). Para aqueles que fazem oposição à tese da hierarquia das fontes, em havendo invasão de competência, uma norma deve preponderar não por ser superior, mas por contrariar limites constitucionais horizontais preestabelecidos. E esses limites seriam suficientes para demonstrar a ausência de hierarquia entre as leis federais e as estaduais, por exemplo, visto que disciplinam âmbitos diferentes de incidência normativa. Favoravelmente à hierarquia, Ferraz Júnior (2003: 237) pondera que distinções verticais existem quando matéria própria de uma competência seja veiculada por norma de outra competência, por exemplo, se uma lei complementar regular matéria de lei ordinária. E a recíproca, nesses casos, não é verdadeira.

5. Diálogo das Fontes 5.1 Apresentação Nesta unidade, estudaremos o diálogo das fontes.

No caso de conflitos de normas, o critério da hierarquia se sobrepõe a todos os outros critérios. O diálogo das fontes é uma tese que se contrapõe à hierarquia das fontes e é defendida no Brasil por Cláudia Lima Marques. Segundo essa tese, a resolução dos conflitos de leis não deve ser feita por critérios de exclusão e sim pela aplicação coordenada de normas infraconstitucionais diversas que disponham sobre a mesma situação jurídica, aplicação que deve ser voltada para finalidade constitucional que lhes fundamenta. Um bom exemplo é o caso do Código de Defesa do Consumidor, que não deve limitar a aplicação do Código Civil e, antes, oferecer suporte, criando um

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5.2 Síntese


22 diálogo entre os dois Códigos, permitindo a aplicação mais favorável ao consumidor e, consequentemente, a maior proteção possível ao economicamente mais fraco, que é o valor constitucional em questão. A tese teve inspiração através da que foi defendida pelo internacionalista alemão Erik Jayme, que utiliza a expressão diálogo de fontes na defesa de que todas as fontes do direito não devem ser interpretadas num sentido excludente, sejam elas nacionais ou internacionais. Segundo Jayme (1995: 259) “Os direitos do homem, as constituições, as convenções internacionais: todas estas fontes não se excluem mutuamente. Os juízes são necessários para coordenar estas fontes, escutando o que elas dizem”. A aplicação do diálogo de fontes no direito penal está sendo discutida no Supremo Tribunal Federal, sobre a impossibilidade de criação da Lex Tertia, ou seja, a constituição de duas leis, de instrumentos diversos para a conformação do delito. O Supremo Tribunal Federal não admite, sob o argumento de que o judiciário estaria invadindo o legislativo. O STF alega, ainda, que não se trata de construção de terceira lei, mas de mera retroatividade.

6. Princípios Gerais do Direito 6.1 Apresentação Nesta unidade, estudaremos os princípios gerais do direito.

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6.2 Síntese Reconhecer a normatividade dos princípios, mudou os rumos do direito ocidental, como característica do pós-positivismo. Sendo assim, na resolução do Conselho Nacional de Justiça, há espaço para discussão da lei, sendo tema relevante e atual, dado que a normatividade não era considerada. Ainda que se estabeleça hierarquia, os princípios serão usados na falta da lei. Na própria estrutura hierárquica do sistema jurídico, não há lugar para o princípio, pois a estrutura é voltada para atos legislativos, que passam por processo de solenidade e generalidade. A distinção entre normas e princípios foi feita, por La Taille, através de uma metáfora em que os princípios seriam a bússola e as regras, os mapas a partir delas confeccionados, pois “como é com bússolas que se fabricam mapas, e não o contrário, possui maior sofisticação moral quem sabe, além de ler mapas, empregar as bússolas. (...) Sem regras, a moral correria o risco de permanecer


como um vago conjunto de boas intenções; também é verdade que, apenas com elas, ela arrisca assemelhar-se a um regulamento preciso, mas limitado” (La Taille, 2006: 74). Pensando em relação ao direito, pode-se dizer que regras sem os princípios representariam ilimitadas possibilidades de regulação de condutas verificáveis como normas possíveis mas sem destinação rumo a ações concretas com efeitos concretos. A tentativa de esgotar as possibilidades de regulações jurídicas com os movimentos de codificações não teve sucesso, a vida jurídica (Volksgeist) impõe o reconhecimento de lacunas e incoerências no sistema de regras, motivo pelo qual se impõe, também, o reconhecimento dos princípios e seu emprego conjugado com as regras positivadas. O precursor da normatividade dos princípios, segundo Bonavides, foi Boulanger, que acentuou que as regras comportam situações jurídicas determinadas, enquanto os princípios comportam indefinidas aplicações e tem existência mesmo que não se reflitam em textos da lei, sua enunciação numa jurisprudência é manifestação do espírito de uma legislação. Bonavides (1996: 244) elenca duas posições doutrinárias em relação aos princípios: uma os considera como ideias jurídicas norteadoras, postulando concretização na lei e na jurisprudência; outra considera que eles não seriam somente ratio legis, mas também lex, numa norma jurídica de aplicação imediata. São características dos princípios: generalidade, alta fecundidade e a baixa densidade normativa. Uma das características da nova hermenêutica constitucional é assumir a normatividade imediata e fecunda dos princípios. Valor vem do latim axio, que se traduz como aquilo que é digno de consideração. Norma é “a prescrição do valor nas circunstâncias concretas da ação” (Lima Vaz, 2002: 283). O princípio tem maior grau de concreção que o valor; é o valor reformulado enquanto proposição jurídica, com previsões e consequências jurídicas, mas possui delimitações amplas e flexíveis que os diferenciam das normas-regra. Entre regras e princípios há a distinção feita por Alexy, em que as primeiras conflitam e os últimos, colidem. O conflito se resolve no plano da validade e com a aplicação das máximas lex superior, posterior e specialis, que excluem uma das aplicações. Já a colisão de princípios é resolvida no plano axiológico, que promove um sopesamento das circunstâncias em questão. Sopesar é proceder uma análise sobre o peso que tem cada princípio no caso concreto, para que prevaleça aquele de maior peso e fundamentação. Duas observações importantes devem ser feitas sobre os princípios. Uma, sobre a importância da consolidação da ideia de princípio como norma para a mudança de rumos do positivismo para o pós-positivismo, marca desse novo

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24 modo de pensar o direito como sistema deontológico e axiológico que obriga seu aplicador a cumprir o fim de realização da justiça observando seus fundamentos e razões. Outra, sobre o uso indiscriminado de princípios para as tomadas de decisão, o que distorce o pretendido pelo Direito pós-positivista, numa aplicação que não discrimina nem explicita os valores que constituem o princípio aplicado. Se um princípio usado não possui especificidade com relação ao caso em análise, deve-se explicitá-lo e provar que o princípio se aplica principalmente quando tomados como veículos de valores. Valor é a essência do bem que tornam aquela coisa boa. A palavra valor vem do latim, e significa aquilo que é digno de ser apreciado pelo sujeito. São cinco os valores vetoriais do ocidente: O valor da verdade para a ciência, o valor da justiça para o direito, o valor do bem para a ética, o valor do santo para a religião, o valor da beleza para a estética. A norma é prescrição do valor nas suas ações concretas, assim, mesmo que a lei não seja expressão da justiça, é ela que obriga.

Exercício 2.

Como o positivismo tradicional se revela como um instrumento de dominação?

7. Jurisprudência e Súmula 7.1 Apresentação

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Nesta unidade, estudaremos jurisprudência e súmula.

7.2 Síntese Jurisprudência é o conjunto das decisões uniformes e constantes dos tribunais, resultantes da aplicação de normas a casos semelhantes, o que constitui uma norma geral aplicável a qualquer hipótese similar ou idêntica, o que, em países de tradição consuetudinária vincula decisões futuras. No Brasil há o princípio da independência da magistratura, ou seja, o juiz deve julgar de acordo com a lei e com sua consciência. Segue-se o sistema romanístico, em que não há vinculação dos juízes aos tribunais superiores e por isso, muitas vezes, a doutrina até nega o caráter de fonte à jurisprudência.


Segundo Ferraz Júnior (2003: 245), no entanto, é inegável o papel da jurisprudência ao fixar o sentido das leis, não para alterá-las, mas para dar-lhe um sentido geral de orientação que não obriga, mas acaba por prevalecer de fato. Para o autor, há também os julgados que preenchem lacunas, como um tipo de costume praeter legem judicial que resulta de decisões repetidamente proferidas em casos semelhantes e sobre os quais há convicção de obrigatoriedade entre os juízes. Enquanto Ferraz Júnior considera a jurisprudência fonte interpretativa da lei, Reale (2002: 169) a considera como fonte acessória ou secundária: “Se uma regra é, no fundo, a sua interpretação, isto é, aquilo que se diz ser o seu significado, não há como negar à Jurisprudência a categoria de fonte do Direito, visto como ao juiz é dado armar de obrigatoriedade aquilo que declara ser ‘de direito’ no caso concreto”. No século XX há uma tendência a uma mistura entre os sistemas de tradição romanística e consuetudinária, chamada pelos canadenses de bijuralismo entre sistemas, em que características de um e de outro sistema se interpenetram. A trajetória das súmulas no Brasil se deu da seguinte forma: • A Lei nº 8.038/1990 institui a súmula impeditiva de recurso no âmbito interno do STJ e do STF. • A Lei nº 9.139/1995, alterando o art. 557 do CPC determinando que o relator negasse seguimento a recurso em confronto com súmula ou jurisprudência dominante do próprio Tribunal ou do STF ou de Tribunal Superior, ampliando a abrangência da súmula impeditiva de recurso. • Emenda Constitucional nº 45/2004 institui a súmula vinculante no sistema jurídico brasileiro, de competência exclusiva do STF. • Lei nº 11.417/2006, que regulamenta o procedimento de edição, revisão e cancelamento das súmulas vinculantes e até sua promulgação o STF não havia editado nenhuma súmula vinculante. A súmula vinculante gera efeito vinculante (o que é diferente de erga omnes e de força de lei), tem natureza jurídica dotada de obrigatoriedade abstrata, restrita aos órgãos do Poder Judiciário e da administração pública. As súmulas vinculantes têm três finalidades importantes: garantia de segurança jurídica (o art. 103-A da Constituição Federal exige reiteradas decisões sobre a matéria sumulada); preservação do princípio da igualdade (exigência de relevante número de processos sobre questão idêntica); efetivação do princípio da celeridade processual (art. 5º, LXXXVIII). O engessamento, apontado pelos opositores à súmula vinculante, não constitui problema real, visto haver a possibilidade de revisão ou cancelamento de súmulas pelo STF.

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8. Costumes, Negócios Jurídicos e Doutrina 8.1 Apresentação Nesta unidade, falaremos dos costumes, negócios jurídicos e a doutrina enquanto fonte do direito.

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8.2 Síntese O art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil traz a previsão do costume como fonte do Direito. Um costume pode ser acolhido juridicamente se atender à fórmula em latim que traz seus elementos definidores: inveterata consuetudo et opinio juris necessitatis. São dois os elementos constitutivos do costume como fonte do direito (ambos estão contidos na fórmula em latim). O elemento objetivo, da longevidade, ou seja, prática reiterada e prolongada de certos atos. E o segundo é o elemento subjetivo, que consiste no reconhecimento da obrigatoriedade jurídica daquela prática como se fosse lei por parte da coletividade. São três as espécies de costume. O primeiro é o costume secundum legem, que auxilia na interpretação de conceitos indeterminados ou não definidos tecnicamente, que aparecem em textos legais, como a expressão “repouso noturno”. Estaria, segundo parte da doutrina, inscrito no art. 5º da LICC, que exige a observância dos costumes da coletividade por parte do juiz e há, ainda, previsão específica de aplicação dos costumes locais, como nos arts. 615 e 1.297, § 1º, do CCB. O segundo é o costume praeter legem, que complementa as lacunas da lei e está previsto no art. 4º da LICC, que representa fonte reconhecida na legislação como subsidiária à lei por ser autorizado o seu emprego com vistas à integração de lacunas. O terceiro é costume contra legem, que tem o poder de revogar a lei e não é admitido nos sistemas de tradição romanística como o brasileiro. Pode, no máximo, ser excepcionalmente invocado em situações em que não se oponha à finalidade da regra ou a realize mais satisfatoriamente apesar de se opor à sua literalidade, situação em que é aparentemente contra legem, mas não contra jus. O famoso julgado TJSP – Acórdão de 15/05/1941, RT 132/660 e 662 é um exemplo de inobservância da letra da regra visando alcançar sua finalidade. De outro lado, o RE 153.531-8 do STF não reconheceu um costume do Estado de Santa Catarina contra a CRFB.


27 Usos são práticas gerais ou locais ou profissionais que concorrem de modo tácito para a formação dos atos jurídicos, especialmente contratos. Os usos têm elemento objetivo, mas não têm elemento subjetivo, pois apenas completam e interpretam a vontade das partes envolvidas na formação do ato jurídico e que acolheram livremente os usos ao criarem a relação jurídica (Gény, 1925: 420). Adverte Dimoulis (2007: 229) que “nas sociedades atuais, que conhecem vertiginosas e incessantes mudanças em que se constata uma ‘inflação’ de leis sem precedentes, não há possibilidade objetiva para a formação de costumes, que surgem de forma lenta e paulatina. Dessa forma, hoje não existem praticamente costumes (Costa, 2001: 191) a não ser em relação a questões secundárias, sobre as quais o legislador não quis legislar. Isso significa que o costume encontra-se em processo de extinção, algo que gera protestos dos juristas mais conservadores (Justo, 2003: 211)”.

Exercício 3.

Quais são os limites da atuação do juiz na escola livre do direito?

9. Doutrina e Negócios Jurídicos 9.1 Apresentação Nesta unidade, estudaremos a doutrina e os negócios jurídicos como fontes do direito.

Doutrina é o nome que têm os estudos de caráter científico que os juristas fazem sobre o Direito, com propósitos meramente teóricos ou de interpretação e aplicação das regras. Por ser atividade intelectual livre, a doutrina não é considerada fonte formal do Direito. Segundo Ferraz Junior, a doutrina é fonte intelectual do Direito, sem a qual não seria possível compreender o sistema jurídico. Em Roma, a doutrina era fonte, de maneira a criar obrigação. Os juristas romanos elaboravam lista de jurisconsultos chamada de Tribunal dos Mortos, que eram invocados para esclarecer divergências. Fontes negociais são expressão da autonomia privada, que estabelecem normas individuais vinculantes que podem até criar situações não previstas em lei,

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9.2 Síntese


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se obedecidos os preceitos sobre a capacidade do sujeito que pratica o ato, sobre a possibilidade do objeto, sobre a forma prevista ou não defesa em lei. Há quem ainda fale na tradicional cláusula sobre o respeito à moral e aos bons costumes. A autonomia privada é reconhecida pelo Direito Privado estatal, como, por exemplo, na parte final do caput do art. 2.035 do Código Civil: “A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.” Há muitas normas cogentes no direito privado atualmente, que significam uma grande limitação à manifestação da vontade privada, por exemplo, com a positivação dos preceitos de ordem pública do parágrafo único do art. 2.035 do Código Civil: “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.” Em razão da limitação que a autonomia privada sofre é que a doutrina costuma apontar a inadequação da clássica dicotomia entre direito público e direito privado e há, inclusive, autores que prefiram falar em uma terceira categoria, de ramos mistos do Direito, a exemplo do Direito do trabalho ou do consumidor. A autonomia privada da contemporaneidade não se confunde com a autonomia da vontade ampla e restrita do direito romano, de forma que a confirmação dos negócios jurídicos, deve observar as funções sociais.


Capítulo 3

Eficácia da Lei no Tempo

1. Eficácia 1.1 Apresentação Nesta unidade, estudaremos a eficácia da lei no tempo.

1.2 Síntese A palavra “eficácia” é confundida com expressões utilizadas a propósito da inserção de normas jurídicas no ordenamento jurídico, e sua aplicabilidade como existência temporal. É a possibilidade de produção de efeitos. A expressão eficácia social também é admitida no Direito quanto à eficácia da lei, da possibilidade de produção de efeitos, que vai depender de condições fáticas para incidência da norma e condições técnicas. Para a Ciência Jurídica, existência não se confunde com validade, pois uma norma pode existir de fato e ser declarada muito tempo depois inconstitucio-


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30 nal, inválida, portanto. A validade do Direito diz respeito a sua pertinência ao ordenamento jurídico, ou seja, se a norma jurídica ingressou no ordenamento respeitando as estabelecidas em outra norma superior. Bobbio discrimina três operações necessárias para se atestar a validade de uma norma: verificar se a autoridade que a promulgou tinha poder legítimo para expedi-la; comprovar se ela não foi revogada; comprovar se não há incompatibilidade entre ela e outra que a revogou implicitamente. A vigência da norma refere-se ao seu período de validade, que vai do momento da publicação oficial até o momento em que é retirada do sistema jurídico por revogação ou pela sua caducidade. Existem leis permanentes, que são excluídas do sistema pela revogação operada por outra lei e leis temporárias, que têm um tempo de vigência previamente demarcado no seu próprio texto ou em outra lei que lhe dá fundamento de validade, sujeitando-se, portanto, à caducidade, como acontece com a Medida Provisória, que tem seu tempo previsto na Constituição. A distinção entre vigência, vigor e eficácia não é pacífica na Teoria Geral do Direito e não cabe aprofundar nessa discussão aqui. Vale conferir o art. 1º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que menciona que a lei começa a vigorar em todo o país, 45 dias após publicação. A vigência da lei é tempo marcado da sua existência válida. A validade é a pertinência da norma jurídica ao sistema de normas. A norma se diz válida quando se encontra dentro das condições previstas. A norma que não é válida pode viger, mas poderá ter sua vigência deflagrada por irregularidade e ser retirada do ordenamento jurídico. O art. 8º da Lei Complementar nº 95/1998 estabelece que a vigência da lei deverá ser indicada de forma expressa e com prazo razoável para que dela se tome conhecimento; e que a entrada em vigor na data da publicação deva ser reservada a leis “de pequena repercussão”. É uma disposição diversa do comando da LINDB e a discussão gira em torno de ter aquele comando sido revogado por este. Na doutrina há quem afirme que foi revogado, mas defende-se que não foi, pois a regra atual é que a vigência seja referida de forma expressa enquanto o disposto na lei anterior traz a cláusula “salvo disposição em contrário”. Não se pode falar em verdadeira antinomia entre elas. A atual dispõe em sentido contrário, mas se a lei não indicar o momento da sua entrada em vigor, é possível invocar o período de vacância presumida (45 dias) da lei anterior. Nesse caso, mais valia tem o diálogo de fontes que a exclusão antinômica. Não há antinomia jurídica entre o art. 1º da LINDB, e o art. 8º da Lei Complementar nº 95/1998, que diz que a norma deve trazer prazo previsto. Para Ferraz Júnior (2003: 200), a eficácia social ou efetividade da norma jurídica tem o sentido de sucesso normativo, que pode ser alcançada pela observância espontânea, ou por imposição do Poder Judiciário, enquanto a eficácia


31 técnica “tem a ver com a aplicabilidade das normas como uma aptidão mais ou menos extensa para produzir efeitos” (...), de modo que ela possa depender de outras normas para cumprir essa função. Daí ser a eficácia plena, limitada ou contida. (Ferraz Júnior, 2003: 201-202). A eficácia é, portanto, “uma qualidade da norma que se refere à possibilidade de produção concreta de efeitos, porque estão presentes as condições fáticas exigíveis para sua observância, espontânea ou imposta, ou para a satisfação dos objetivos visados (efetividade ou eficácia social), ou porque estão presentes as condições técnico-normativas exigíveis para sua aplicação (eficácia técnica)”. (Ferraz Júnior, 2003: 203).

2. Eficácia da Lei no Tempo e a Segurança Jurídica 2.1 Apresentação Nesta unidade, estudaremos a eficácia da lei no tempo e a segurança jurídica.

A aplicabilidade de uma lei sempre se destina ao presente e ao futuro, por razões lógicas, o que já passou não pode ser modificado e sim, feito de outro modo. Uma lei pode revogar total (ab-rogação) ou parcialmente (derrogação) outra lei, e estas alterações não podem, em nome da segurança jurídica, interferir em situações de fato consumadas pela vigência da norma anterior. É a regra clássica tempus regit actum. Relações de tempo são as que o sujeito se coloca em situação de sucessividade nas suas experiências. A experiência do tempo não poderia ser negada pelo Direito, partindo-se do pressuposto de que todas as relações jurídicas possuem início e fim para o Direito, aí as previsões de prescrição e decadência. O princípio que rege a dimensão temporal da eficácia das leis no ordenamento brasileiro é o princípio da irretroatividade das leis, que possui algumas exceções, no entanto. Na Constituição de 1988 estão protegidos de possíveis prejuízos da lei, no art. 5º, XXXVI, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, o que só poderia acontecer se a lei retroagisse. A definição dos três institutos encontra-se no art. 6º da LINDB.

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2.2 Síntese


32 Essas três situações traduzem a ocorrência de uma inovação legislativa, pois são invocadas exatamente quando uma lei inova o sistema jurídico e não tem seus efeitos reconhecidos diante da constatação dessas três situações subjetivas. A constatação se dá pela aferição de que o direito subjetivo se concretizou e externou num ato jurídico perfeito, pela possibilidade do exercício de um direito subjetivo adquirido na vigência da lei anterior, mas ainda não fruído, e pela comprovação documental da existência de decisão final inalterável. Pela legislação mencionada se apreende que a regra é que a lei produzirá efeitos após entrar em vigor e seus efeitos não se estenderão para o passado. Uma exceção é a norma penal mais benéfica, que pode tanto retroagir como ultra-agir, se em benefício do réu.

3. Definição da Coisa Julgada, Ato Jurídico e Direito Adquirido 3.1 Apresentação Nesta unidade, estudaremos a definição da coisa julgada, o ato jurídico e direito adquirido.

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3.2 Síntese A coisa julgada é intocável pela inovação legislativa. Tratar da coisa julgada se mostra mais fácil, pois há um documento de valor estatal e jurídico que veicula uma situação jurídica de subjetivação, seja o Direito adquirido reconhecido, ou o ato jurídico perfeito. Ato jurídico perfeito é aquele já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. Alguns atos se consumam completamente durante a vigência de uma lei, mas “há atos que iniciam o processo de efetivação sob o domínio de uma lei e continuam sob o domínio da lei nova (...), como um contrato que prevê o pagamento de prestação com correção monetária, quando no curso do prazo, a correção monetária se extingue”. (Ferraz Júnior, 2003: 252). O art. 2.035 do novo Código Civil traz a seguinte redação: “Cessa a obrigação mútua estabelecida no artigo antecedente, havendo convenção em contrário, e bem assim dando-se a evicção por culpa do evicto, ou por fato posterior à partilha.” O direito adquirido é aquele cuja titularidade permite seu exercício, ainda que este não tenha ocorrido, e que se estende no tempo de vigência de


uma nova lei. É a possibilidade de fruição de um direito diretamente ou por interposta pessoa, possibilidade esta, que não pode ser desconstituída por lei nova que venha alterar a situação hipotética prevista no direito objetivo anterior, cujas condições foram satisfeitas para aquisição da titularidade daquele direito. A doutrina costuma definir o direito adquirido como aqueles definitivamente incorporados ao patrimônio ou à personalidade de seu titular, sejam os já realizados, sejam os que simplesmente dependem de um prazo para o seu exercício, sejam ainda subordinados a uma condição inalterável ao arbítrio de outrem. Entretanto, entendemos que esta definição omite o caso de direitos adquiridos não exercidos, como o caso sempre citado do direito adquirido à aposentadoria, porque satisfeitas as condições para a sua fruição, que diante da lei nova continua exercitável, pois ainda não exercido. Atualmente tornou-se comum a técnica legislativa da inserção de regras de transição na inovação normativa, para aquelas situações jurídicas que ainda não se constituíram como direito adquirido (expectativa de direito), mas às quais se permite a possibilidade de adequação de sua situação como opção segundo referidas normas. Por exemplo, com o advento da Emenda Constitucional nº 20/1998, várias pessoas tinham a expectativa de direito de se aposentarem com proventos integrais. Quando a Emenda mudou as regras, com a imposição de idade mínima, aquelas pessoas que quase já tinham o tempo para aposentar, segundo a regra de transição, aguardariam mais cinco anos para adquirem o direito à aposentadoria. A coisa julgada ou caso julgado, veiculada numa sentença (ou acórdão) transitada em julgado, é a decisão ou caso julgado sobre a qual não cabe mais recurso, seja porque se esgotaram as instâncias recursais, seja porque houve preclusão. Atualmente a coisa julgada vem sendo flexibilizada. No Recurso Especial nº 196.966-DF, por exemplo, lê-se a seguinte passagem no voto do Ministro Ruy Rosado de Aguiar: “A regra da coisa julgada, válida para o tempo em que não se conhecia prova segura de filiação, e por isso dependente de ficções, não pode ser mantida contra a evidência da verdade que se extrai do exame de DNA, pois a ninguém interessa – nem aos filhos, nem aos pais, nem à sociedade – que o registro seja negação da realidade.” Uma das mais contundentes argumentações sobre a relativização da coisa julgada é a de que ela é uma garantia constitucional ao lado de outros direitos, garantias e princípios constitucionais, e com eles deve se coordenar, pois estão em pé de igualdade. Invoca-se o princípio da proporcionalidade para o sopesamento entre quaisquer princípios ou garantias fundamentais em colisão. Não seria diferente no tratamento da coisa julgada, como a conhecida questão da investigação de paternidade diante de nova prova contundente produzida (exame de DNA). Remetemos o leitor às discussões sobre o tema no Direito Processual e no Processo Constitucional.

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4. Conflitos de Normas Jurídicas no Tempo 4.1 Apresentação Nesta unidade, estudaremos o conflito de normas jurídicas no tempo.

Teoria Geral do Direito e da Política

4.2 Síntese O art. 2º da LINDB dispõe que não se destinando a vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. Tal menção se refere às leis permanentes e temporárias. As temporárias se submetem à caducidade, num prazo previsto em si mesmas, para que cumpra seu termo de vigência. As permanentes se submetem à revogação total ou ab-rogação, e parcial, derrogação ou modificação. No Direito Intertemporal são discutidas as questões do conflito de normas no tempo, que aparecem porque pode ocorrer que as situações submetidas ao império da norma anterior não tenham ainda sob a vigência dela produzido todos os seus efeitos, trazendo para o presente circunstâncias constituídas, mas não totalmente concluídas, e que se estendem pelo tempo da nova lei em vigor. A sucessão normativa pode gerar contradições, vale dizer, antinomias jurídicas meramente aparentes, uma vez que tais regras visam a garantir a coerência do ordenamento jurídico. Como explica Barroso (2010: 55), o conflito de leis no tempo “não resulta da coexistência de leis, como no direito internacional privado, mas de sua sucessão”. Conflitos de normas no tempo geram a antinomia, que ocorre quando duas normas se contradizem no tempo, sem revogação expressa, gerando contradição. Tal conflito será relacionado com as regras clássicas de hierarquia, em que a lei superior revoga a inferior, a lei posterior revoga a anterior, e a lei especial revoga a geral. A expressão antinomia vem da Ciência da Lógica e significa rigorosamente contradição insuperável. As antinomias geradas por normas em conflito podem ser insolúveis (ou reais) e solúveis (aparentes). As aparentes podem ser solucionadas por critérios previstos em lei e reconhecidos na doutrina; as reais são as que o intérprete não consegue solucionar ou pela falta de critério, ou pelo conflito dos próprios critérios. (Bobbio, 1997: 92). São três as regras fundamentais para a solução de antinomias: • O cronológico (lex posterior derogat priori) impõe-se pela obviedade. Este critério evidencia a circunstância de que na experiência humana tudo se sucede no tempo, o qual é a relação de sucessividade entre os fenômenos que o sujeito estabelece internamente, enquanto que espaço é a relação de contiguidade que o sujeito estabelece com as coisas


(Kant). Por isso o critério cronológico ser óbvio, até por que se o legislador pretendia fazer prevalecer a norma precedente, a lei sucessiva seria um ato inútil e sem finalidade (Bobbio, 1997: 93). • O critério hierárquico (lex superior derogat inferiori) decorre da hierarquia de normas, sendo aquele pelo qual, entre duas normas incompatíveis, prevalece a hierarquicamente superior. • O critério da especialidade (lex specialis derogat generali) expressa a relação entre normas gerais e especiais, sendo que estas subtraem daquelas uma parcela de sua matéria (contrária ou contraditória) (Bobbio, 1997: 97). Ferraz Júnior (2003: 127) pondera que normas especiais não se confundem com excepcionais. Estas abrem exceção, por exemplo: não haverá prisão civil por dívida, salvo o depositário infiel e o alimentante inadimplente. Veja que se trata de uma exceção à regra geral, sendo contrária a esta. O art. 2º, § 1º, traz três critérios de ordem cronológica, quando declara que a lei posterior revoga a anterior, o que ocorre quando expressamente o declare, seja com ela incompatível, ou regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. Outrossim, o § 2º do mesmo artigo, determina que a lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior. A revogação expressa é a que menos confusão gera, a não ser quando a lei revogadora é inconstitucional, caso em que o ato revogador é inválido. Conforme o art. 9º da Lei Complementar nº 95/1998, com a redação trazida pela Lei Complementar nº 107/2001, “A cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas”. O critério de solução é o hierárquico, como deve ser se concebe a supremacia da Constituição no ordenamento. A LINDB não traz a regra da hierarquia, pois é inferior à Constituição, e, portanto, submete-se à sua supremacia e à hierarquia pela Constituição estabelecida e só poderia trazer o critério cronológico e o da especialidade, como efetivamente o faz. O critério hierárquico, que se sobrepõe aos outros em qualquer caso. Se uma lei especial anterior for considerada incompatível com a Constituição, não será por esta recepcionada, ainda que seja a Constituição, por sua própria natureza um diploma de normas gerais, incluindo-se aqui os seus princípios. O Direito brasileiro não admite a repristinação, ou seja, retornar ao anterior. Juridicamente, seria a restauração de uma norma revogada pela revogação da norma que a revogou. Se o legislador pretender fazê-lo, há de se manifestar expressamente na nova lei revogadora, o que não seria boa técnica legislativa, visto que bastaria a nova lei restaurar o conteúdo daquela lei revogada. No plano da elaboração legislativa não se admite repristinar, mas no plano da aplicação não se olvide os efeitos repristinatórios no controle de constitucionalidade.

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Capítulo 4

Teoria Geral da Política

1. Política – Introdução 1.1 Apresentação Nesta unidade, iniciaremos o estudo da teoria geral da política.

1.2 Síntese A Teoria Geral do Direito e da Política está prevista na Resolução nº 75 do Conselho Nacional de Justiça. São as relações entre direito e política que nos remetem às relações entre o direito e o poder. Resolve também o modo como o direito regula o poder e é por ele influenciado, bem como as relações entre a ciência política e a ciência do direito, que estudam essas questões em perspectivas diversas. Todos esses elementos são relevantes para o estudo da Teoria Geral da Política.


No conceito de política da Grécia antiga, há as concepções de Platão e Sócrates que definiram a política como a ciência da polis, ou seja, a ciência da cidade, encarregada de cuidar do ser social e coletivo que é o homem, considerado na definição de Aristóteles um zoon politikón, um animal político. O homem é um animal político por natureza, que deve viver em sociedade, pois somente ele, entre todos os animais, possui o dom da palavra. Essa concepção tem por finalidade fazer entender o que é útil ou prejudicial, e, por consequência, o que é justo, e o que é injusto. Portanto, o homem se diferencia do animal, não por sentir dor ou prazer, mas porque tem aquela compreensão e a comunga porque a palavra possibilita tal comunicação, formando a família do Estado. Diante disso, conclui-se que toda cidade é uma associação, e esta tem em vista um bem, pois o homem só luta pelo que considera um bem, e o bem mais elevado de todos e que possibilita todos os demais, é a cidade ou sociedade política. Nicolau Maquiavel em sua obra “O Príncipe”, apresenta uma nova versão da ciência política, como sendo reflexões sobre a natureza do poder político e sobre os modos de conversar com esse poder. Tais observações foram calcadas em observação atenta, de modo empírico. “O Príncipe” era uma obra baseada em seu tempo, nas articulações do poder que o autor observava. Maquiavel pressupõe a natureza corrompida do homem, voltada à satisfação de suas paixões, razão pela qual é preciso que sejam mantidos submissos para que a vida em sociedade seja possível. Paixões no sentido de ser submetido fisicamente e psicologicamente. Segundo Maquiavel, os homens precisavam ser mantidos submissos. Para o filósofo, a ciência política tem de refletir sobre a ordenação do grupo social pela força exercida pelos poucos chefes que são capazes de conquistar e manter o poder sobre os dominados, em que o dominante tenha o poder de dominar e controlar os demais. Sob a ótica de Maquiavel, a ciência política passa a ser o estudo das formas de alcance e manutenção do poder, e não das formas que organizam a polis para a realização de todos os bens para o homem, o que faz pressupor o bem maior, que é a organização que torna isso possível. A obra deste pensador deixou sua marca registrada na compreensão ocidental de política e ciência política até os dias atuais. No século XX, Max Weber definira política como “o conjunto dos esforços que se faz em vista de participar do poder ou influenciar a divisão do poder entre os estados, ou entre os diversos grupos do interior do mesmo Estado”. A ciência do direito visa ao estudo sistemático das normas de direito positivo, suas relações, suas instituições, seus princípios, e as situações destas decorrentes, como as relações de poder e o próprio do Estado.

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38 Já a ciência política em sentido amplo, tem por objeto o estudo dos acontecimentos, das instituições e das ideias políticas, tanto em sentido teórico (doutrina) como em sentido prático (arte), referindo-se ao passado, ao presente e às possibilidades futuras.

2. Política e Direito 2.1 Apresentação Nesta unidade, estudaremos política e direito.

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2.2 Síntese O estudo da organização política e dos comportamentos políticos pela ciência política abstrai-se dos elementos jurídicos na constituição desses fenômenos. Dalmo de Abreu Dallari adverte que “tal enfoque é de evidente utilidade para complementar os estudos da Teoria do Estado”. Portanto, isso se mostra insuficiente para a compreensão dos direitos, das obrigações e das implicações jurídicas que estão contidas no fato político ou que decorrem dele. Compreender o fato político por si só não é atribuição do juiz, por exemplo, a lei Maria da Penha. Conhecer razões pelas quais a norma incide, é um bom passo para que uma interpretação dela seja mais satisfatória. Os estudos da ciência do direito em muito se afastaram das discussões sobre os fundamentos políticos de suas normas, e Kelsen tem papel de destaque nessa forma abstrata de se estudar direito. Reale aponta que quando Hans Kelsen, na segunda década do século passado desfraldou a bandeira da teoria pura do direito, a ciência jurídica era uma espécie de cidadela cercada por todos os lados, de psicólogos economistas, políticos, entre outros, e cada um procurava transpor os muros da cidadela para torná-la sua. Houve a necessidade de purificar o Direito, propondo uma teoria pura para eliminar do campo do jurista os elementos metajurídicos que geravam uma série de problemas, os quais o jurista não conseguia resolver satisfatoriamente. Nesta concepção, razões políticas que influenciam o conteúdo das normas jurídicas, que desencadeiam alterações da ordem jurídica não devem, portanto, fazer parte do estudo da ciência do direito. Kelsen reduz a um complexo de normas, entendendo que estado de direito (estado que preserva o direito) é uma redundância, pois não há Estado sem normas que o constitui.


39 O Estado se explica pela unidade das normas de direito de determinado sistema, do qual ele é apenas nome ou sinônimo. Quem elucidar o direito como norma elucidará o estado. Segundo Kelsen, a força coercitiva do Estado, nada mais significa que o grau de eficácia da regra de direito, ou seja, da norma jurídica. O Estado, que é organização de poder para Kelsen, se esvazia de toda a substantividade dele sob o ponto de vista social ou político. O que importa é a sua valoração. A teoria geral do direito tradicional se omite a enfrentar as discussões sobre as relações entre direito e política. Os teóricos do direito normalmente buscam seu fundamento na moralidade, numa perspectiva filosófica. Tais teóricos são chamados de “apologetas do direito”, por fazerem uma apologia ao direito, enquanto ordem imune às influências da política. Para os teóricos apologetas, os procedimentos políticos são mecanismos de realização do direito, não tendo qualquer expressão em si mesmos. Com o advento do estado democrático de direito, a consideração do “valor realização de direitos” como “valor supremo da vida coletiva” torna o Estado, e seus procedimentos políticos servos desse ideário. Os teóricos ditos críticos colocam como ponto central de discussão do direito, as relações do direito positivo com a política, considerando que as relações do direito com a moral e a justiça são ideológicas. Segundo esses teóricos, a referência à moral e à justiça, objetiva ocultar a natureza política do direito. Sua relação com a política significa analisar o direito como fenômeno que decorre das relações de poder entre os dominantes e os dominados, como meio de manutenção do poder, fugindo do mito de um direito neutro a serviço do “bem comum” pensado abstratamente (Dimoulis, 2007: 120).

4.

Julgue se a assertiva abaixo está certa ou errada. Pode-se afirmar que todos os teóricos críticos da escola de Frankfurt são marxistas.

3. O Direito da Política e a Política do Direito 3.1 Apresentação Nesta unidade, estudaremos o direito da política e a política do direito.

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Exercício


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3.2 Síntese Em alguns momentos o assessor jurídico é criticado no sentido de impor barreiras, dizendo que certas medidas são inconstitucionais. O direito entendido na perspectiva política caracteriza a ordem jurídica em função dos objetivos políticos que a precedem e sustentam. É a perspectiva política que está em ênfase, o que leva a ideia de que o direito seja produto, finalidade e instrumento da política. Entende o direito como uma forma particular de política, por tentar controlar e coibir expressões variadas e expressões políticas que passam a ser consideradas ilegais (Dimoulis, 2007: 126). Ao invés de o ordenamento jurídico estar sujeito à política, o político é que está sujeito ao ordenamento jurídico. Essa divisão compartimenta a realidade em estatutos científicos que acabam criando convicções artificiais sobre a realidade, destoantes dela. Dialeticamente, a relação entre direito e política é tão essencial quanto a relação do direito com a moral, que lhe dá o fundamento de justiça. Estudar as relações entre essas formas de manifestação das sociedades humanas e do ser humano é empreitada complexa que leva a recortes epistemológicos que facilitam a análise de cada viés delas, ainda que não satisfatórios sob o ponto de vista de sua totalidade. A empreitada mais radical no direito foi a de Kelsen, que reduziu o estudo do direito ao estudo de normas de direito positivo, segundo o qual o que precede e ocorre posteriormente não é problema do direito. A ciência do direito atribui à política a escolha sobre o conteúdo mais adequado à norma no momento da sua positivação, a matéria mais conveniente, a melhor opção na escolha de um valor social em detrimento de outro. Também caberá à política a solução mais viável diante da conjuntura posta, e não propriamente a realização de um ideal de justiça, que pode se tornar algo impossível naquele momento empírico. O que não se admite é que aquelas escolhas façam parte do leque de estudos da enciclopédia de saberes jurídicos. Por exemplo, a eleição de uma punição mais severa para o peculato do que para o furto. Na perspectiva da ciência penal, é questão de política criminal, o que a exclui dessas discussões prévias dos tipos penais e sua aplicação. A perspectiva de estudo pela qual a ciência política toma o direito, remete à reflexão sobre as ideologias que conduzem suas normas. Daí a importância de se refletir sobre o problema das ideologias no direito.


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4. Ideologias 4.1 Apresentação Nesta unidade, estudaremos as ideologias no direito.

Para Vicente Barreto não é possível falar em ideologia sem falar em marxismo, pois foi Marx quem delineou teoricamente o conceito, e empregou o termo em dois sentidos, no singular e no plural. Ideologia em sentido geral, tratando praticamente de superestrutura, ou de cultura no sentido sociológico comum, e ideologias particulares, como ideias e formas de pensar das diferentes classes sociais. “Em ambos os casos, o que se afirma é que tais ideias refletem e ao mesmo tempo reforçam e legitimam o padrão existente de interesses e relações sociais” (Barreto, 2010: 264). Wolkmer adverte que as ideologias estão presentes em toda parte, enquanto crenças e fundamentações do mundo. O sentido original vem do grego com o significado de estudo das ideias ou do conhecimento. O sentido moderno do conceito foi elaborado durante a revolução francesa, pelo filósofo francês Antoine Destutt de Tracy, como ciência das ideias. Segundo Wolkmer, seria o estudo das origens e da evolução das ideias, sendo este o verdadeiro fundamento das demais ciências, haja vista que essa ciência investiga e descreve como nossos pensamentos se constituem. O sentido foi empregado por Napoleão Bonaparte, ao chamar de ideólogos os intelectuais que promoveram a sua ascensão ao poder. Entretanto, Napoleão, a respeito de tais ideias republicanas e antirreligiosas, passou a considerar uma ameaça ao seu absolutismo apoiado pela igreja. No entanto, conforme entende Wolkmer, essa conotação pejorativa de coisa abstrata, utópica e artificial será incorporada e disseminada pela tradição clássica do marxismo. O citado autor ainda aduz que atualmente a palavra é tomada em duplo sentido. Um deles, que Bobbio denominou “fraco”, como conjunto de ideias, valores, maneira de sentir e de pensar de pessoas ou grupos. E em outro sentido, como falsa consciência das relações de domínio entre as classes, como ilusão, mistificação, distorção e oposição ao conhecimento verdadeiro. Marilena Chauí emprega a ideologia como ideias distorcidas da realidade que são construídas na experiência social, esclarecendo que a mesma nos oferece explicações da aparência como se fosse sua essência.

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4.2 Síntese


42 A apresentação da realidade é invertida em suas causas e efeitos, princípios e consequências, condição e condicionado, de modo a formar um imaginário social invertido sobre os seres humanos, sobre suas relações. Segundo Marilena Chauí, a ideologia é o conjunto de ideias desse imaginário social. Este conceito toma o sentido mais comumente empregado, e se destina a denunciar as distorções sobre a realidade. Um grupo de filósofos alemães do século XX entende que a filosofia tem uma tarefa para além das meras especulações e reflexões, a de reconstruir as ideologias que estão ocultas por trás das convicções. Tais convicções são equivocadamente formadas sob influência de poderes diversos. Independentemente do sentido que se tome, quando o direito ocidental instituiu uma nova concepção de lei como norma geral e abstrata, adotou-se uma nova ideologia, a da igualdade e da certeza necessárias à nova ordem jurídica. Tais características da lei decorrem da ideia e convicção de que a generalidade é garantia de igualdade, tal como a abstração é garantia de certeza.

Exercício 5.

Por que a análise crítica de Karl Marx se adéqua aos pressupostos da teoria crítica?

5. Declaração Universal do Direito do Homem da ONU – I

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5.1 Apresentação Nesta unidade, estudaremos a declaração universal do direito do homem da ONU.

5.2 Síntese Ruffia observa que as declarações anteriores à revolução francesa não tiveram bases filosóficas, nem pretensão universalista. Suas ideias não foram inspiradas pelo movimento iluminista, e nem nas pretensões universalistas, como entendemos hoje a declaração dos direitos humanos.


Segundo Ruffia, foi na França que floresceu a doutrina que reconhecia expressamente a todos os indivíduos os direitos ditos naturais, a partir de pressupostos filosóficos referentes ao originário estado de natureza, no qual se encontravam os indivíduos antes de pactuarem a entrada no estado civil. No estado civil restariam resíduos essenciais da liberdade ilimitada que gozavam no estágio anterior, e que deveriam ser preservados e transformados em direitos subjetivos, superiores ao direito do estado, justamente por serem anteriores cronologicamente e superiores em dignidade por sua própria natureza. A positivação dos direitos humanos encontra suas raízes na Bill of Rights, no século XVII, apesar de filósofos e historiadores afirmarem que essa carta política nada mais foi que uma declaração de alguns privilégios da nobreza da época. Posteriormente ao Bill of Rights, outro documento relevante foi a Declaração da Virgínia, de 1776, nos Estados Unidos. Esta tinha como objetivo principal proteger a liberdade religiosa, tendo em vista que este era o grande motivo da emigração do povo europeu para o novo mundo. Foi o grande marco da história do ocidente na sua busca pelo significado da liberdade. Neste momento, toda a humanidade pretendia ser universalmente livre. A proposta da revolução não fora uma desvinculação jurídico-política, como o foi a revolução americana. Já a revolução francesa pretendia a libertação de um povo com relação ao domínio de outro povo ou governo. Na França de 1789 não havia um interesse pontual como o americano. Os franceses não declaravam apenas que um ou alguns eram livres e iguais em seus direitos, mas que todos os homens eram livres. Já no século XX, há uma preocupação com a proteção dos direitos humanos na esfera internacional, pois os Estados, principalmente os subdesenvolvidos, são os seus maiores violadores. Celso Albuquerque esclarece que os violadores continuam participando das organizações internacionais. Atualmente, há autores que falam em direito internacional dos direitos do homem como uma especificidade, porque ele é colocado em movimento pelo indivíduo, enquanto o direito internacional geral é pelo Estado. É no século XX que os direitos humanos ganham status de direitos internacionais, sendo a Carta das Nações Unidas o principal documento que se refere aos direitos humanos no plano internacional.

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6. Declaração Universal do Direito do Homem da ONU – II 6.1 Apresentação Nesta unidade, daremos continuidade ao estudo da declaração universal do direito do homem da ONU.

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6.2 Síntese A declaração universal dos direitos humanos das Organizações das Nações Unidas, foi aprovada em 1948. Uma obrigação clássica sobre a obrigatoriedade da declaração divide-se entre autores que defendem que ela vincula os ordenamentos internos, e os que entendem que são meras diretivas, cabendo a cada Estado atingir sua própria evolução política e jurídica até chegar à declaração interna desses direitos, já num estágio jurídico avançado. A palavra “homem” é usada no sentido de humanidade. A crítica é no sentido de que a declaração dos direitos humanos acaba não se aplicando a toda a humanidade, e a ONU tenta impô-la a todos os países, tentando manter a paz internacional. Neste sentido, a Assembleia Geral da ONU em 1966 aprovou dois pactos na tentativa de regulamentar os direitos humanos de forma vinculativa, que resultou no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e aplicação progressiva, e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de aplicação imediata. O conselho econômico e social é o principal órgão encarregado dos direitos humanos na ONU. Atualmente, o sistema global do direito internacional, representado pela ONU, vem se coordenando com sistemas regionais, que facilitam o acesso dos indivíduos à tutela jurídica humanitária. Assim, os próprios indivíduos vêm sendo reconhecidos, não como atores no processo de elaboração do direito internacional, mas no que tange a sua aplicação também, o que tem alcançado maior destaque e operacionalidade no plano dos sistemas regionais de proteção humanitária. Esses sistemas regionais caracterizam-se justamente por uma maior homogeneidade entre seus membros se forem comparados tanto no que se refere aos sistemas “jurídicos políticos”, quanto aos aspectos culturais. Isto acaba por tornar os seus mecanismos de proteção mais eficazes em relação àqueles do sistema global.


45 Os estudiosos da ciência política constatam que há uma diferença entre o primeiro e o segundo mundo, na compreensão da necessidade de atuação mútua e internacionalizada, na preservação e garantia dos direitos humanos. Enquanto sociedades pacíficas e prósperas têm condições de harmonizar seus interesses nacionais com o nível razoavelmente cosmopolita das reivindicações da ONU, Estados do segundo mundo assumem a herança política da força própria do nacionalismo europeu. A grande contradição reside no fato de que adotam postura expansionista para o exterior, ao mesmo tempo em que mantêm sua estabilidade interna por meio de dominação autoritária. Esses Estados são sensíveis nas questões sobre fronteiras e insistem neuroticamente em sua soberania, o que inibe o relacionamento mútuo no plano internacional e exige reforço nas atuações diplomáticas. A recepção dos direitos humanos pelas ordens jurídicas internas significa o reconhecimento de sua importância e essencialidade. A recepção deve se fazer acompanhar por uma abertura na clássica concepção de soberania, sob pena de perderem seu caráter eminentemente universalista. Esta universalidade há de ser material e não meramente formal, que é outro problema que assola a declaração de direitos. Não se trata apenas de declarar, mas sim para a efetivação de sua aplicação.

Exercício 6.

Discursiva (máximo de 60 linhas) Multiculturalismo e a reconstrução intercultural dos direitos humanos. Efetividade, aplicações e limites.

7.1 Apresentação Nesta unidade, estudaremos a universalidade dos direitos humanos.

7.2 Síntese Habermas acredita que o primeiro passo para a real proteção dos direitos humanos declarados é a transformação do clássico direito internacional público

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7. A Universalidade dos Direitos Humanos


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46 em direito cosmopolita. A ideia de direito cosmopolita se encontra na metafísica dos costumes, seção terceira da segunda parte da Doutrina do Direito, na qual Kant trata do direito público. Ali o autor considera o direito cosmopolita como o único capaz de conduzir união entre os povos, pois que tem por propósito estabelecer leis universais para o comércio entre eles. Kant sugere ainda, que esse direito possibilita uma relação pacífica entre os povos, à medida em que ela passa a ser tutelada juridicamente, deixando de ser meramente filantrópica. O fundamento dessa pretensão está no fato de que a natureza encerrou todos os seres humanos, juntos, no mesmo espaço, o globus terraqueus. Como a posse do solo por cada um só pode se dar numa parcela dele, não estão em comunidade jurídica da posse (communio), mas em uma comunidade possível de interação física (commercium). Habernas retoma essa ideia, remetendo ao direito esta função de pacificação dos povos, já num plano juridicizado. O pacifismo jurídico não depende apenas cercar estados de guerra latentes entre os governos soberanos com o direito internacional. Além disso, visa a superação dessa latência em uma ordem cosmopolita integralmente juridificada (tradução de Verrechtlichten). Para compreendermos qualquer discussão sobre a universalidade dos direitos humanos, não pode ser omitido que a tutela se dá, antes e precipuamente, na ordem internacional. É necessário partir do pressuposto de que os indivíduos, e não somente o Estado, devem figurar nessa ordem como sujeitos de relações internacionais, pois são os indivíduos, os destinatários últimos dessa tutela. A doutrina contemporânea aponta duas justificativas à necessidade do indivíduo compor as relações internacionais. Segundo a doutrina, ser pessoa internacional ocorre quando a própria dignidade humana, que leva a ordem jurídica internacional a lhe reconhecer e proteger direitos fundamentais, e a noção de direito em si mesma, posto que é uma obra do homem para o homem. Da mesma forma que o discurso jus naturalista impregnou os estados absolutistas, impondo-lhes o reconhecimento dos direitos de primeira geração. As gerações subsequentes de direitos humanos são direcionadas à ordem supranacional, ou a um direito cosmopolita, como quer Habernas. Na pós-modernidade não se pensa apenas em direitos de cidadãos, vinculados à concepção restrita de soberania. Trata-se de universalizar, sem fronteiras, a garantia dos direitos sociais, dos de fraternidade, para se realizar, enfim, uma sociedade de consenso, pressuposta no reconhecimento, o que os estoicos já idealizavam como a “comunidade do gênero humano”. A primeira grande vantagem em se transitar para uma sociedade verdadeiramente cosmopolita é a colocação do indivíduo como membro dessa associação, o que protegeria o cidadão de um Estado contra as possíveis arbitrariedades do seu próprio governo.


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Exercício 7.

Identifique as matrizes jurídico filosóficas das correntes conflitantes ao princípio da universalidade dos Direitos humanos.

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A consequência mais importante de um direito que se impõe à soberania dos Estados é a responsabilização pessoal de funcionários por seus crimes no serviço público e militar. O primeiro passo a ser tomado seria evoluir o conceito de direitos humanos do plano estritamente moral para o plano jurídico, promovendo-se uma juridificação desses valores, o que possibilitaria o estabelecimento de uma condição cosmopolita, a de que as infrações contra os direitos humanos não devam ser julgados e combatidos imediatamente a partir de pontos de vista morais, mas antes observados como ações ilícitas graves dentro de uma ordem jurídica pública universal. A juridificação enérgica das relações internacionais não é possível sem procedimentos estabelecidos para solução de conflitos. Justamente a institucionalização desses procedimentos protegerá o tratamento das violações aos direitos humanos, contra uma desdiferenciação moral do direito e evitará a discriminação moral subitamente eficaz de inimigos. Os direitos humanos ainda padecem da qualificação de serem orientadores axiológicos morais para a avaliação de objetivos políticos. Seria diferente se os direitos humanos não entrarem no jogo apenas como orientação moral da própria ação política, mas também como direitos que precisam ser implementados em sentido jurídico. A questão fundamental é que os direitos humanos apresentam, a despeito de seu conteúdo puramente moral, características estruturais de direitos subjetivos que são dependentes originariamente da obtenção de validade em uma ordem coerciva. Quando os direitos humanos encontrarem seu lugar numa ordem jurídica democrática mundial, de modo análogo ao que se sucedeu com os direitos fundamentais nas Constituições nacionais. Poderemos partir em nível global da ideia de que os destinatários desses direitos podem compreender-se ao mesmo tempo como seus autores.


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Teoria Geral do Direito e da Política

Gabarito

1. Características do positivismo jurídico. A impossibilidade de existência de lacunas segundo a teoria tradicional. A constante constatação de lacunas na realidade, e a necessidade de um pensamento crítico ante a ineficiência da técnica jurídica. 2. Reduz o direito a um mero conjunto de regras cuja produção, uma vez que formalmente válida, é incontestável. 3. Não há. Os limites seriam apenas a consciência do julgador. 4. Errada. A escola de Frankfurt não compartilha, necessariamente, a ideologia marxista, mas seu modo analítico crítico de ver o mundo. 5. Baseada na historicidade e cultura, a formulação crítica de

Marx descreve a formação de classes e a relação de dominação entre esses grupos. A crítica ao modelo vigente, portanto, visa a revelação da dominação, descobrir o que está por trás do discurso. Pressupõe a transformação pela ação. 6. O modelo vigente de direitos humanos. Universalismo e relativismo. Atritos práticos. Necessidade de um diálogo intercultural e modificação do sistema. Ressaltar as viabilidades reais e utópicas. Aplicação das doutrinas nos tribunais internacionais. 7. Universalistas: jusnaturalismo. Relativistas, em que todo direito é criado pelo homem, neopositivismo.


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