Revista nº5 Abril- Junho
Matrix,
a Herança Clássica num êxito cinematográfico
Outras Conversas com Ana Leal de Faria
Os Aventureiros no Mar Tenebroso Um Breve Olhar sobre Lisboa Antiga
Editorial Nova edição com novos estudos que abordam questões de religião, cinema, arte ou geográficas. A revista do Instituto PAEHI tem servido para lançar novos problemas e questões sobre diversos assuntos, assim como possibilitar “novos” investigadores a publicar os seus trabalhos e estudos. Este esforço de criar um meio que permita a jovens investigadores lançarem-se na publicação de artigos é uma das formas mais eficazes e concretas para tal. Ao observarmos e compararmos a panóplia de oportunidades em França ou Itália (onde a indústria cultural tem um impacto profundo na economia nacional) com a situação de Portugal, esta é constrangedora e complexa. Para além das revistas das diferentes de unidades científicas nacionais (exemplo do CEM do Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória», da Medievalista do Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova de Lisboa ou da Cadmo do Centro de História da Universidade de Lisboa) são escassas as plataformas de escrita para o lançamento de artigos e estudos de jovens investigadores do país. E esta lacuna explica-se pela falta de investimento e de interesse na área da cultura e das ciências sociais. É problemático quando temos as maiores entidades nacionais a recusar prestar qualquer apoio a uma área que apelidam de “excedentária e sem qualquer utilidade para Portugal”. Esta questão foi visível com a redução extrema dos apoios à Fundação para Ciência e Tecnologia e já era visível com a falta de apoios aos museus e câmaras na área cultural que acabaram por condenar, em parte, a viabilidade futura da cultura e da sociedade em Portugal. É evidente que se houvesse um grande investimento imediato na indústria cultural portuguesa não iríamos ter rendimentos instantaneamente. No médio-longo prazo a indústria cultural portuguesa, bem pensada e sem qualquer tipo de influência externa, iria dar grandes resultados na área financeira, económica, cultural e na mais importante de todas, a social. Novos horizontes, novas realidades e novas oportunidades. A revista Férula, mesmo não sendo uma publicação impressa, permite a todos os que desejem apresentar problemas e estudos sob a forma de um artigo dinâmico e interessante (sempre aliado à exigência científica que tem de imperar nestas áreas), dando a conhecer novos rostos e novas mentalidades. O sentimento de todo o corpo de edição da Férula é de dever cumprido e de vontade de atingir mais cinco números no futuro próximo, mantendo os mesmos princípios e objectivos que sempre motivaram a fundação e criação desta associação. Relembrando o Passado, Pensando o Futuro, Um cumprimento especial a todos os colegas que compõem o Conselho Científico do Instituto e um cumprimento maior a todos que mantêm o interesse em nós, Francisco Isaac Lembrando o Passado, Pensando o Futuro
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Índice Agenda Cultural Externa
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Um Breve Olhar sobre a Lisboa Antiga
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19 Escudo de Eneias - O Programa Político de Augusto 28 Outras Conversas com Ana Leal de Faria 38 Os Aventureiros no Mar Tenebroso 42 Matrix, Herança Clássica num êxito cinematográfico 48 Comentário Crítico ao Filme: Tróia (2004) 58 Visita ao Museu Nacional de Arqueologia 61 Viagem a Córdova 65 A Beleza Feminina confrontada consigo mesma
Quotidianos Medievais: 1º Encontro de Recriação Histórica em Abrantes
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Director da Publicação Francisco Isaac Redactora Chefe Catarina Almeida Conselho de Redacção Francisco Isaac, Amanda Coelho, João Camacho, Carolina Soares, André Silva, Ricardo Martins e Catarina Almeida. Edição Laura Saldanha Laura Saldanha e Gonçalo Ribeiro Não nos pertencem quaisquer direitos de uso da imagem.
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Agenda Cultural Março a Junho de 2014 ORDEM E PROGRESSO, História e Cultura Política – VI Seminário 11 de Março de 2014; Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Sala 5.2 Entrada Livre Organizado pelo Centro de História da FLUL e tendo como coordenador o prof. Doutor Ernesto Castro Leal, este seminário tem o seguinte programa: 10h00 – Ordem e Progresso em Gilberto Freyre Ernesto Castro Leal (FLUL/CH) 10h30 – Misticismo e Ordem Simbólica em Euclides da Cunha António Araújo (FDUL) e Isabel Corrêa da Silva (ICS-UL) 11h00 – Debate 11h30 – Luís Augusto Ferreira de Castro: a Maçonaria como paradigma da Ordem e do Progresso António Ventura (FLUL/CH) 12h00 – Razão e Progresso em Kant Viriato Soromenho-Marques (FLUL/CF) 12h30 – Debate 14h30 – Ordem e Progresso republicanos em Condorcet Luís Andrade (FCSH-NOVA/CHC) 15h00 – Ordem e Progresso em Comte José Esteves Pereira (Universidade NOVA de Lisboa) 15h30 – Debate 16h00 – A noção de Progresso em Leonardo Coimbra António Martins da Costa (UCP-Porto/CEPP) 16h30 – Ideia de Progresso em Félix Pereira Norberto Ferreira da Cunha (U. Minho/Museu Bernardino Machado) 17h00 – Debate 18h00 – Lançamento do Livro «Pátria e Liberdade»
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Apresentação: Paula Morão (FLUL/CEC)
2ª Ed. Colóquio Internacional «LISBOA E OS ESTRANGEIROS | LISBOA DOS ESTRANGEIROS depois do terramoto de 1755» De 13-03-2014 a 14-03-2014 09h30 - 18h00 no Palácio Fronteira Organizado pela FCFA e GAL e com a colaboração de: ARTS-Instituto de História da Arte da FLUL e CHAM, UAC-UNL, o colóquio «LISBOA E OS ESTRANGEIROS | LISBOA DOS ESTRANGEIROS depois do terramoto de 1755» tem por objectivo abordar a capital dos estrangeiros e na perspectiva dos mesmos. Procurar-se-á reconhecer a sua presença – traduzida em efémera passagem ou mais dilatada permanência – através das edificações (as igrejas nacionais, os palácios e/ou casas onde residiram, as campanhas promovidas em diversas edificações), das obras de arte trazidas para Lisboa (ainda in situ ou deslocadas) e ainda o seu olhar (através das imagens por si criadas) e a sua voz (através dos textos que nos legaram, sob a forma de subtis e breves impressões ou mais amplas narrativas). Vai ter, por isso, dois núcleos contemplados: um primeiro de “Impressões e narrativas: as comunidades residentes e os viajantes” e um segundo de “Testemunhos materiais: arte e artistas estrangeiros em Lisboa”. A Sessão de encerramento será feita pela Prof.ª Doutora Maria João Baptista Neto, pela Profª Doutora Maria João Ferreira e pela Prof.ª Doutora Teresa Leonor Vale. Para saber mais informações e para se inscrever pode telefonar para o: 21 778 20 23 ou escrever
para
o
E-mail:
fcfa-cultura@netcabo.pt,
ou
dirigir-se
a
http://www.cham.fcsh.unl.pt/ac_actividade.aspx?ActId=115. II Encontro Anual A Europa no Mundo - A Europa entre Guerras (1919-1939) Faculdade de Ciências Sociais e Humanes da Universidade Nova de Lisboa 3 e 4 de Abril de 2014
O II Encontro A Europa no Mundo será dedicado ao estudo, análise, debate e interpretação das transformações políticas, económicas, sociais e culturais ocorridas na Europa durante o período entre No âmbito deste tema geral, aceitam-se propostas de comunicação que analisem, entre outras, as seguintes questões, aceitando-se tanto estudos de caso individuais como trabalhos comparativos: - A reconstrução europeia; - Ideias de Europa e primeiros projectos de integração europeia; - Os refugiados de guerra e as migrações; - A Liga das Nações e o internacionalismo do pós-guerra; - Os Estados Unidos da América e o auxílio à Europa; - A Grande Depressão e o nacionalismo económico; - Círculos e meios sociais e económicos; - A democracia e a ditadura; - As elites intelectuais e a Europa: espaços e representações culturais – discursos e debates; - Memórias de Guerra e identidades europeias.
Este colóquio foi organizado por Maria Fernanda Rollo (IHC- FCSH), Maria Manuela Tavares Ribeiro
(CEIS20
e
FLUC),
Ana
Paula
Pires
(IHC-FCSH),
Alice
Cunha
(IHC-FCSH)
e
Isabel Valente (CEIS20). A taxa de inscrição é de 10€ (estudantes) ou 20€ (académicos e outros investigadores). Para obter outras informações dirija-se a http://www.ihc.fcsh.unl.pt/pt/encontroscientificos/congressos-e-coloquios/item/35771-ii-encontro-anual-a-europa-no-mundo-a-europa-entreguerras-1919-1939.
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Ciclo de cinema 2014 «O Religioso no Cinema: História(s) e Memória(s)» 14 de Janeiro a 17 de Junho de 2014 Auditório de Santo António da Paróquia de Grijó Entrada Livre
Conjugando a vertente formativa do CEHR e a crescente preocupação pela dinamização cultural da comunidade de que é parte integrante, o CEHR-Porto organizou ciclos de cinema de temática religiosa que proporcionem a oportunidade de aprofundamento do conhecimento e compreensão do fenómeno religioso, nas suas mais variadas concretizações, por via, no caso concreto, da visualização e debate (orientado) de filmes que abordem questões centrais desse fenómeno. Com estes ciclos, pretende-se ainda dar uma maior visibilidade quer ao trabalho desenvolvido pelo CEHR na região norte quer à sua estrutura, mediante um movimento descentralizador e em relação aos ambientes académicos e uma presença mais efetiva junto das comunidades locais e dos seus públicos. O início das sessões é às 21h30, começando com uma breve introdução ao filme e contextualização, seguida do Visionamento do mesmo e concluído com um debate (20 min). As próximas sessões são: 18 de Março – Lutero de Eric Till (2003) Introdução de Adélio Abeu (CEHR) 29
de
Abril
-
O
hábito
negro
de
Bruce
Beresford
(1991)
Andy
Garcia
(2012)
Introdução de Acácio Sanches (CEHR) 20
de
Maio
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Cristiada
de
Introdução de Luís Amaral (CEHR) 17 de Junho - Dos Homens e dos Deuses de Xavier Beauvois (2010) Introdução de António Bacelar (Dioc. do Porto)
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Congresso Internacional "A Revolução de Abril. Portugal 1974-75" Teatro Nacional D. Maria II 21 a 24 de Abril de 2014 Aproximando-se o 40.º aniversário da Revolução que pôs fim ao Estado Novo e abriu caminho à instauração do regime democrático em Portugal, o Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL em parceria com o Teatro Nacional D. Maria II, organizou este congresso reunindo trabalhos de investigadores ligados a este período. O Congresso A Revolução de Abril agregará assim intervenções proferidas por conferencistas internacionais e nacionais convidados e também a apresentação de comunicações seleccionadas a partir deste convite à submissão de propostas. Adoptando um registo interdisciplinar e internacional, a organização do congresso privilegiará propostas de comunicações originais enquadradas nos seguintes eixos temático (sem prejuízo de virem a ser aceites propostas de comunicações dedicadas a outros temas): - Partidos, instituições e poder político; - Movimento das Forças Armadas e intervenção política dos militares; - Descolonização; - Movimentos e conflitos sociais; - Economia e desenvolvimento; - Educação, estética e cultura; - Dimensão internacional da Revolução Portuguesa; - Memória; - Historiografia;
Para mais informações: http://www.ihc.fcsh.unl.pt/pt/encontros-cientificos/congressose-coloquios/item/35553-congresso-internacional-a-revolu%C3%A7%C3%A3o-de-abrilportugal-1974-75.
MÚSICACONCIENCIA Exposição do Centro de Historias 20 de Fevereiro a 27 de Abril de 2014 Entrada Gratuita “ A Ciencia es el conjunto de conocimientos sistemáticamente estructurados y susceptibles de ser articulados unos con otros. La Música es el arte de combinar los sonidos en el tiempo. La Música, incluso la más sencilla y popular, está asociada a procesos que nos remiten a múltiples facetas de la Ciencia: física, matemática, química, astronomía, lingüística, sociología... Nombres que todos relacionamos con la Ciencia, como Pitágoras, Descartes, Franklin, u Ohm, entre otros, realizaron estudios que buscaban comprender la naturaleza de la música. En esta exposición se ofrecen algunos aspectos de esa relación.”
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Um Breve Olhar Sobre Lisboa Antiga Apontamento sobre a evolução da cidade Medieval e a construção da cidade Moderna Inês Simão
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ERA-ARQUEOLOGIA Licenciada em Arqueologia pela Faculdade de Ciências Socias e Humanas da UNL;
“Logo a abrir, apareces-me pousada sobre o Tejo como uma cidade de navegar. Não me admiro: sempre que me sinto em alturas de abranger o mundo, no pico de um miradouro ou sentado numa nuvem, vejo-te em cidade-nave, barca com ruas e jardins por dentro, e até a brisa que corre me sabe a sal.” (Pires, 1998: 7)
Lisboa como espaço urbano terá nascido em época romana, mas a actual cidade é fruto de um conjunto de evoluções e adaptações a diferentes momentos históricos e culturais que deixaram marcas na sua fisionomia. Sobre a antiga cidade romana irá crescer a cidade medieval, cujo processo de formação se inicia com a chegada de populações islâmicas e continua após a integração no reino de Portugal, dando lugar a uma nova cidade quinhentista, e sofrendo posteriormente as importantes remodelações pombalinas.
Neste longo percurso os séculos X e XVI surgem como dois momentos de prosperidade e cosmopolitismo que se traduzem em importantes alterações urbanísticas e nas formas de viver a cidade. A imagem passada por autores destas épocas, embora condicionada pelos seus propósitos de escrita, contribuiu para a memória e identidade da cidade e permite-nos, hoje em dia, descortinar diferentes traços que se destacam na sua vida, no seu urbanismo e na sua evolução socio-económica.
As fontes escritas deixadas por estes autores surgem assim como uma interessante forma de procurar os ecos da imagem da cidade nessas épocas antigas. São textos que nos trazem pistas sobre a forma como a cidade se desenvolveu e que características se destacavam para a sociedade da altura.
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1 Fontes: Al-Idrisi, La Première Géographie de l’Occident, IV, 1, Ed. Henri Bresc e Annliese Nef, Paris, 1999; Ahmede Arrazi, descrição do Al-Andalus no século X in António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe, vol.I, Lisboa, Seara Nova, 1972; Al-Munim Al-Himiari, Kitab Ar-Rawd Al-Mitar (séc.XII) in António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe, vol.I, Lisboa, Seara Nova, 1972; Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147. Carta de um cruzado inglês, Apresentação de José Felicidade Alves, Lisboa, Livros Horizonte, 2004; Damião de Góis, Descrição da Cidade de Lisboa, Lisboa, Livros Horizonte, 1988; Cristóvão Rodrigues de Oliveira, Lisboa em 1551. Sumário em que brevemente se contém algumas coisas assim eclesiásticas como seculares que há na cidade de Lisboa, Lisboa, Livros Horizonte, 1987, pp.101-104.
O breve apontamento agora apresentado procura versar sobre a evolução da Lisboa medieval, nascida sob a influência islâmica, e a construção da cidade moderna, já em período quinhentista, e parte precisamente de um conjunto de fontes destas épocas que nos permitem 1
olhar a cidade de diferentes formas. Parte do último grande império mediterrânico nos textos árabes; cidade conquistada na luta contra os infiéis na carta de um cruzado francês; ou capital de um rico império comercial e marítimo nos textos quinhentistas, o papel de Lisboa é sempre louvado e a sua imagem deve reflectir a prosperidade e a glória de quem a governa. Nos textos referidos existe uma ideia comum. Será a posição geograficamente estratégica, num lugar de grande riqueza de recursos e de controlo de importantes vias, que permitirá à cidade florescer desde tempos mais remotos. Lisboa cresceu a partir do topo de uma colina, num lugar privilegiado que permitia controlar os férteis vales à sua volta e o estuário do Tejo, com a sua abundância de recursos. A sua economia assentará desde cedo na exploração destes diversos recursos: os produtos do estuário (peixe, sal, marisco), do cultivo da lezíria ribatejana e das hortas que a circundam, da madeira para construção naval, das indústrias extractivas (calcário, barro e ouro de Almada), dos bons territórios para caça e de produções industriais locais. A cidade apresenta, assim, uma prosperidade económica apoiada na grande variedade e qualidade de produtos, fruto da fertilidade do seu termo e do rio. “E o termo de Lisboa é comprido de muitos bens cá há aí mui saborosas frutas. E ajuntou em si as bondades do mar e da terra. E há aí muito mel e muito bom.” (Coelho, 1972: 40) “Le blé qu’on y sème ne reste en terre que quarante jours avant qu’on puísse le moissonner et qu’une mesure en rapporte cent.”(Bresc e Nef, 1999:267) “Não fabricam o sal: escavam-no. É de tal modo abundante de figo, que nós a custo pudemos consumir uma parte deles. Até nas praças vicejam os pastos. É notável por muitos géneros de caça: não tem lebres, mas tem aves de várias espécies.” (Alves, 2004: 32) “Ali a nossa gente faz pesquisa de ouro, misturado com areias [...], é também habitual isso acontercer em muitos outros sítios, ao longo da margem do Tejo.” (Góis, 2002: 135) Lisboa cresceu, precisamente, junto ao Tejo e dependente deste até muito tarde na sua história. Dele irá retirar todo o tipo de riquezas e é ele a sua porta de acesso ao mundo.
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Isso é notório desde o período islâmico, “Há nele tanta abundância de peixes, que os habitantes acreditam que dois terços da sua corrente são de água e o outro terço de peixes. É também rico de mariscos [… ] ” (Alves, 2004: 31) e particularmente importante na constituição da cidade quinhentista, “pois nos dias de hoje esse mesmo Tejo dita leis e normas por todas as costas do Oceano, em África e na Ásia, e a elas se submetem” (Góis, 2002:189). O rio é de essencial importância para a vida e o desenvolvimento da cidade.
Figura 1 – Gravura representando uma das mais antigas panorâmicas da cidade de Lisboa no século XVI, publicada na obra de Sebastian Munster, Cosmographei oder Beschreibung aller Lander Herrschaften, furnemten, Setten, Geschichten, Gebreuchten, Hantierung.
O domínio muçulmano de Lisboa iniciar-se-á no ano de 714, quando é conquistada por Abd Alaziz Ibn Muça, e trará desde logo modificações com a influência da nova cultura, como a passagem do nome Olissipo para al-Usbûna. Será entre o século X e o seguinte que al-Usbûna conhecerá um maior crescimento demográfico e urbanístico, acompanhado por um período de desenvolvimento cultural e económico. Lisboa vai adaptar-se aos novos modelos de governar e de viver, com a sua estrutura urbana a organizar-se de acordo com a tradição mediterrânica de cidades porto, embora com as suas características próprias.
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A integração no mundo romano havia-lhe proporcionado um importante desenvolvimento urbano-monumental (estruturas habitacionais, teatro, circo e banhos) e uma estrutura industrial (como exemplificam os diversos vestígios de fábricas de preparação de produtos piscícolas), bem como estruturas defensivas. Representando um passado que não é descurado pelos autores agora analisados. Esta é uma cidade antiga. A sua fisionomia urbana e as suas formas de vida foram sendo construídas por diferentes povos e culturas que aí foram deixando as suas marcas. A sua antiguidade era já reconhecida no século X pelos autores árabes, “é uma cidade antiga edificada à beira-mar cujas vagas se vêm quebrar contra as suas muralhas,”(Coelho, 1972: 56) e louvada no século XVI, por lhe conferir uma ligação ao mundo clássico antigo, numa época onde o classicismo assume extrema importância. Merece especial destaque precisamente o seu passado romano, referido tanto por autores árabes como quinhentistas. Para os últimos esta ligação é fortemente referida em conjunto com a lendária fundação da cidade pelo herói grego Ulisses: “Varrão chama-lhe Olisiponem; Ptolemeu, Oliosiponem; Estrabão, por seu lado, dálhe o nome de Ulisseam, e parece afirmar, a partir das palavras de Asclepíades de Mirleia, que foi fundada por Ulisses.”(Góis, 2002: 103) “Foi chamada antigamente, em tempo dos Romanos, OLISIPO, [...] a qual então não era mais que o alto da cidade. [...] Depois naquela grande destruição de Espanha foi tomada dos Mouros de África, aos quais (passados muitos anos), atomuo El-Rei D.Afonso Henriques.”(Oliveira, 1987: 101) Mas se o recorte inicial de Lisboa foi romano, o traçado típico dos bairros mais antigos é, sem dúvida, árabe: vielas tortuosas, pequenas praças, casas que quase se encostam de um lado ao outro das ruas estreita. Al-Usbûna será uma cidade densamente povoada e fortemente protegida que se integra na província de Balata, com uma vasta zona de influência no seu termo. O centro urbano em si irá destacar-se pela sua posição como porto de abrigo e como polarizador das rotas da terra e do mar, desenvolvendo-se aí um rico comércio dos vários produtos destas rotas. O seu urbanismo será marcado pela existência de uma grande população que exige uma grande densidade construtiva. As suas ruas e habitações crescem e ocupam todo o espaço disponível, apresentando-se estreitas e cheias de vida desde o período árabe, “os seus edifícios estão aglomerados tão apertadamente que, a não ser entre as dos comerciantes, dificilmente se achará uma rua com mais de oito pés de largura.” (Alves, 2004: 32)
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A sua estrutura urbana irá desenvolver-se, como muitas outras cidades islâmicas, a partir de dois pólos principais. No cume da colina ergue-se a alcáçova com os paços do alcaide e amuralhamento próprio, correspondendo, hoje em dia, ao Castelo de S. Jorge e ao bairro de Santa Cruz. Aí se juntam as elites governativas que detêm o poder económico, político e militar da cidade. Esta une-se, a meio da encosta, tendo como ponto de referência a plataforma central onde cresce a mesquita, com a popular medina. A mesquita principal da cidade (possivelmente situada junto à actual Sé) marcaria o ritmo urbano e destacar-se-ia por entre o casario com o seu minarete. Na beira-rio estrutura-se a cidade baixa, marcada por uma intensa actividade portuária e de construção naval, onde se reúnem artesãos, pescadores e comerciantes. A medina apresentaria forte densidade populacional e seria defendida por dois quilómetros de muralha (Cerca Moura), desenvolvendo-se ao longo da encosta virada a sudoeste da colina da alcáçova. Dentro das suas muralhas desenvolve-se um apertado emaranhado urbano com uma grande densidade de casarios, principalmente junto à beira-rio, com a sua rede de ruas labirínticas e sinuosas. Extramuros organizam-se dois arrabaldes, “Existem arrabaldes alcandorados nos rochedos cortados a pique, e são tantas as dificuldades que os defendem, que se nos podem ter em conta de castelos bem fortificados.” (Alves, 2004: 32) O bairro do Ocidente na zona baixa, junto ao rio, onde se juntam artesãos, pescadores e comerciantes e onde se situam alguns estaleiros de construção naval, bem como centros de produção oleira. E o bairro de Alfama que perdura até hoje como bom testemunho de “um bairro à época, vivendo-se num emaranhado de ruas, becos, calçadas e travessas, onde a população se dedica à faina marítima e onde uma elite muçulmana usufrui da excelência das suas águas.” (Amaral, 2002:19) Estas águas de boa qualidade são um dos seus atractivos principais, importantes essencialmente para um mundo árabe em cujas cidades os banhos públicos ocupam um lugar marcante. Em Alfama existe assim “fonte termal situada junto ao mar. São termas abobadas nas quais brota água quente e água fria e que a maré-cheia cobre.”(Coelho, 1972: 56) Ao nível do sistema defensivo a cidade teria já algum amuralhamento desde a época romana, com uma pequena fortificação e parte da futura Cerca Moura, mas será com a presença islâmica que assistiremos à construção do castelo na zona da alcáçova e da Cerca Moura que se desenvolve ao redor da cidade na encosta do castelo.
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A este amuralhamento irá D. Fernando acrescentar nova cintura de muralhas que abrange um maior perímetro urbano, envolvendo os antigos arrabaldes onde a vida urbana tinha apresentando grande desenvolvimento. No século XVI a cidade cresce definitivamente para fora destas muralhas fernandinas e conjuga a presença do seu espaço antigo com novos bairros e edifícios que se vão tornar marcas da Lisboa quinhentista. Mesmo assim a sua arquitectura defensiva é destacada em praticamente todos os textos com referências ao seu castelo, muralhas e portas de acesso, “Tem da parte do mar vinte e duas portas, e de terra dezasseis, e por todo o muro setenta e sete torres.” (Oliveira, 1987: 102), sendo uma característica marcante da sua fisionomia e da organização do seu espaço urbano, “O alto do monte é cingido de uma muralha circular e os muros da cidade descem pela encosta, à direita e à esquerda, até à margem do Tejo.” (Alves, 2004: 31) No ano de 1147 Lisboa é conquistada por D. Afonso Henriques e torna-se parte do reino cristão de Portugal. As principais alterações da cidade medieval cristã passarão pela mudança da religião dominante. As mesquitas são abandonadas ou transformadas em igrejas cristãs, novas igrejas são fundadas e diferentes ordens religiosas vão-se instalando na cidade. A população muçulmana passa a concentrar-se na Mouraria e a cidade continua a demonstrar um crescimento, principalmente na zona dos arrabaldes, no exterior da Cerca Moura. A partir do século XIV, acompanhada da construção da nova muralha para envolver e proteger toda a urbe, o crescimento urbano vai continuar, “obedecendo também a pólos de atracção que eram os conventos, as novas paroquiais e algumas casas nobres.”(França, 2005: 12) Os núcleos principais da cidade são ainda o topo da colina, onde permanece o Paço Real, os espaços junto a conventos e igrejas, e a zona ribeirinha que começa, com D. Dinis, a ganhar um papel mais importante na vida comercial da cidade. As actividades comerciais e artesanais da cidade vão continuar a crescer e os contactos comerciais com o Mediterrâneo e o Norte da Europa não vão cessar. Lisboa atingirá o papel de “capital” do reino já no século XIII, com a conquista definitiva do Alentejo, altura em que a eminência de um ataque muçulmano é reduzida. E será já no século XV que assistiremos a um desenvolvimento exponencial da cidade quando “Lisboa passou a ser a base principal dos empreendimentos ultramarinos do século XV que motivavam e mobilizavam rei, nobreza, burguesia e povo miúdo. Aumentou em população e riqueza.”(Santana e Sucena, 1994: 512) O seu crescimento demográfico e urbano não irá mais parar, com o surgimento de novos bairros a ocidente, oriente e norte, definitivamente para fora da área amuralhada.
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A Baixa da cidade vai adoptar o papel de centro urbano à medida que a importância das navegações marítimas e do acesso ao rio vai aumentando. Lisboa vai essencialmente ganhar novos pólos de desenvolvimento e actividade. “Assim, ao findar do século XV, a cidade tinha, não dois mas quatro ou cinco centros ou pólos aglutinadores: a alcáçova, ainda centro militar e político, onde vivia o rei e se situava a corte; a catedral ou Sé, mantendo as suas funções religiosas ímpares […]; a Ribeira; o Rossio; e a Rua Nova, na Baixa.” (Santana e Sucena, 1994: 512) O século XVI marcará o início de um período de prosperidade por toda a Europa, com as suas principais cidades a sofrerem um aumento demográfico e urbano. A cidade de Lisboa vai beneficiar do período de expansão marítima para obter um desenvolvimento bem mais marcante. A população da cidade, que recebe produtos de todo o mundo, vai aumentar e diversificar-se, tornando-a numa urbe verdadeiramente cosmopolita. Novos artesãos, novos mercadores e comerciantes, novos marinheiros e novos serviços régios para controlo do seu comércio. Novas pessoas e novas riquezas trazem para o espaço urbano novos palácios e casas nobres. Neste século o factor de auto-suficiência começa a ser menos importante, ao mesmo tempo que Lisboa deixa de produzir o suficiente para toda a sua população. O seu lugar como capital do reino e centro do novo império comercial marítimo trazem à cidade os produtos de todo o mundo. Os textos desta época não deixam ainda, no entanto, de referir a vitalidade agrícola da região com a presença de férteis hortas e pomares nos arredores de Lisboa, “Faz-se descida a um vale muito ameno, contíguo às muralhas da cidade, plantado de hortas por todos os lados.”(Góis, 2002: 143) O rio e a zona ribeirinha vão passar a deter o papel central da cidade e “à entrada do século XVI, Lisboa modificou profundamente a sua estrutura urbana, física e simbolicamente, com a instalação da corte junto ao rio, num novo paço real.” O novo Terreiro do Paço torna-se o centro da vida da corte, “local de convívio e passeio, ócio e negócio, de espectáculo, de festa.”(França, 2005: 15) As ruas da baixa da cidade, entre o rio e a praça do Rossio, vão agora concentrar grande parte das actividades comerciais e artesanais. As zonas ribeirinhas são ocupadas por casas da corte e serviços de apoio ao comércio marítimo, num movimento iniciado no século anterior. Lisboa é agora o centro de um grande império marítimo e comercial e a ela chegam produtos e pessoas de todo o mundo, sendo necessário prepará-la para este papel. Houve que organizar toda uma rede de infra-estruturas que accionassem um sistema tão complexo como o que emergiu da organização de carreiras regulares para o Ultramar – as Naus da Carreira – e para a Flandres, e permitissem sustentar um comércio altamente diversificado.
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O desenvolvimento urbano vai atingir novas áreas e a cidade tornar-se cada vez maior. Com a expulsão de judeus e muçulmanos, os seus bairros incorporam-se na cidade cristã. Diversos conventos são erguidos fora das muralhas trazendo novas zonas habitacionais (zona da Graça, campos de Sant’Ana e de Santa Clara). No princípio do século começa a construção do Bairro Alto de S. Roque que contribui para o crescimento da cidade a Ocidente. Para Este será o convento da Madre de Deus a marcar o limite da expansão da cidade, enquanto que para Oeste os recentes edifícios do Mosteiro do Jerónimos e da Torre de Belém. A imagem geral da cidade no século XVI é a de um franco crescimento urbano, que vai ocupando as diversas colinas e vales que envolvem a colina onde Lisboa nasceu, saindo para fora das suas muralhas e criando zonas suburbanas com cada vez maior actividade urbana, “A implantação da antiga cidade de Lisboa ocupava de antanho apenas uma elevação de colina que se prolongava até à margem do Tejo, mas hoje o seu perímetro abrange vários montes e vales. [...] O território da cidade, como se poderá verificar por qualquer ponto para onde se volte o olhar, está por todo o lado coberto de mansões suburbanas e rústicas, com edifícos magníficos, por causa da produtividade da terra.” (Góis, 2002: 181) Nos textos do século XVI vamos encontrar descrições de uma Lisboa nobre e rica, marcada pela presença de edifícios e palácios para as classes mais altas, enriquecidas pelo comércio ultramarino. Lisboa é afinal capital do reino e local de habitação do rei com a sua corte. O seu espaço urbano é marcado pela presença de edifícios administrativos e nobres que, mais uma vez, se destacam por uma boa e bela construção. “A grandeza e magnificência do interior da cidade são de tal ordem que, com razão, pode ela rivalizar com todas as outras cidades da Europa, tanto pelo número de habitantes como pela beleza e variedade das construções.”(Góis, 2002: 149) A imagem de Lisboa quinhentista é, por último, a de uma cidade cristã e profundamente marcada pela religiosidade. “É celebrado nela o culto divino em tantos e tão sumptuosos templos e casas de oração.”(Oliveira, 1987: 102) As igrejas e conventos povoam a cidade, criam paróquias, freguesias e bairros, e trazem novos edifícios de verdadeira beleza, “quanto às igrejas, […], são elas em número de vinte e cinco, sem contar as que estão entregues a monges, eremitas e monjas de clausura,”(Góis, 2002: 179) no espaço urbano e no seu termo, “por um lado e por outro, os campos estão cobertos não apenas de aldeias e povoados, mas também de igrejas e conventos, tão numerosos e tão belos.” (Góis, 2002: 181) Nesta época, Lisboa e o Tejo são vias de acesso ao mundo. Aí se iniciaram diversas viagens de descobertas do mundo, desde os tempos mais remotos dos árabes, “ce fut de Lisbonne que partirent les “Aventuriers” […] lorsqu’ils partirent sur l’océan Ténébreux pour savoir ce qui s’y trouvait et quelles étaient ses limites,”(Bresc e Nef, 1999: 269) até ao período áureo dos Descobrimentos em que o reino vai ter um papel de grande relevância, “Duas são as cidades que, nos nossos tempos, poderíamos legitimamente designar por senhoras do Oceano e como que suas rainhas. […] Uma delas é Lisboa” (Góis, 2002: 83)
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A cidade será marcada por uma intensa vida comercial, “Era o mais opulento centro comercial de toda a África e duma grande parte da Europa.” (Alves, 2004: 31), que já na época árabe se destacava, surgindo o comércio mundial, no período quinhentista, como grande impulsionador do crescimento socio-económico da cidade, numa altura em que as águas do Tejo são “ocupadas sempre com muito grossas naus e navios assim estrangeiros como do reino.”(Oliveira, 1999: 104) Em conjunto com esta riqueza comercial Lisboa vai apresentar uma
riqueza
social, destacando-se o
seu
cosmopolitismo em ambas as épocas referidas. Aí se juntam gentes de todo o mundo que fazem a cidade florescer de vida. “A causa de tamanha aglomeração de homens era que não havia entre eles nenhuma religião obrigatória; e como cada qual tinha a religião que queria, por isso de todas as partes do mundo os homens mais depravados acorriam aqui.”( (Alves, 2004: 32) “Para aqui confluem, todos os dias, à compita, comerciantes de quase todas as partes do mundo e suas gentes, em concurso extremo de pessoas, por causa das vantagens oferecidas pelo comércio e pelo porto.”(Góis, 2002: 161) Bibliografia Fontes Alves, J.F., (Ap.), (2004), Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147. Carta de um cruzado inglês, Lisboa, Livros Horizonte; Bresc, H. e Nef, A., (Ed.), (1999), Al-Idrisi. La Première Géographie de l’Occident, IV, Paris; Coelho, A.B., (1972), Portugal na Espanha Árabe, vol.I, Lisboa, Seara Nova; Oliveira, C.R., (1987), Lisboa em 1551. Sumário em que brevemente se contém algumas coisas assim eclesiásticas como seculares que há na cidade de Lisboa, Lisboa, Livros Horizonte; Góis, D., (1988), Descrição da Cidade de Lisboa, Lisboa, Livros Horizonte. Obras gerais Dias, M.T., (1987), Lisboa Desaparecida, Quimera, Coimbra; Santana, F. e Sucena, E., (dir.), (1994), Dicionário da História de Lisboa, Lisboa, Carlos Quintas & Associados – Consultores, Lda.; França,J.A., (2005), Lisboa: Urbanismo e Arquitectura, 5ªedição, Lisboa, Livros Horizonte; Matos, J.L. e Braga, I., (1998), Lisboa das Sete Cidades, Lisboa, Assírio e Alvim; Pires, J.C., (1998), Lisboa. Livro de Bordo, 4ªedição, Lisboa, Publicações Dom Quixote; Torres, C., (1994), “Lisboa Muçulmana. Um espaço urbano e seu território”, Lisboa Subterrânea, Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia, pp.80-85.
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Ciclo Conversas Culturais na Almedina Pessoas, Locais e Momentos da História
Coordenação: Instituto PAEHI – Associação para estudos Históricos Interdisciplinares Organização: Livrarias Almedina Livraria Almedina Atrium Saldanha | Entrada Livre
19 de fevereiro, 18h30 A Queda do Muro de Berlim: Problemas e Consequências militares, políticas e económicas Com Pedro Gomes Barbosa (CEG-UL) | Moderação por: Francisco Isaac
5 de março, 18h30 2000 Anos de Augusto: da Política à Sociedade
Com Joana Costa (IPAEHI), José Magalhães (IPAEHI), Raúl Teixeira (IPAEHI)
26 de março, 18h30 Portugal em Extinção: O Lince e o Lobo em Portugal
Com Francisco Petrucci-Fonseca (CBA-FCUL) | Moderação por: Francisco Isaac (CITCEM-UP)
9 de abril, 18h30 Conquistas e Invasões: Muçulmanos e Vikings em Portugal
Com Hélio Pires (IEM-FCSH UNL), Pedro Gomes Barbosa (CEG-UL), Mário de Gouveia (IEM-UNL) Moderação por: Catarina Almeida (IPAEHI)
30 de abril, 18h30 O Egipto Antigo no Cinema e na Literatura
Com João Camacho (CHUL/IPAEHI), José das Candeias Sales (CHUL/U. Aberta)
14 de maio, 18h30 A Idade Média aos Olhos do Século XX-XII: Interpretações no Cinema e na Literatura Com Hélio Pires (IEM-FCSH UNL), Francisco Isaac (CITCEM-UP) | Moderação por: Catarina Almeida (IPAEHI)
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A beleza feminina confrontada consigo mesma. Ensaio sobre o feminino na cerâmica grega Ricardo Louro Martins 1 (CHUL/IPAEHI) Neste breve ensaio sobre a beleza feminina, pretendemos levantar algumas questões sobre a
1
Investigador do IPAEHI e CHUL;
relação entre o feminino e o espelho, o feminino que se observa a si mesmo e o feminino observado, tal como nos chega da cerâmica grega e se projecta na atemporalidade daquilo que é o “feminino”: uma definição que se constrói por oposição ao masculino, mas que não pretende, claro está, uma desvinculação ou guerrilha entre as diferenças sexuais ou qualquer outro tipo de diferenças. Muito pelo contrário, pretende-se encontrar a sua igualdade que resulta das diferenças. As quatro faces de uma pirâmide nascem de costas voltadas, mas encontram-se como iguais num topo ideal e harmonizador – assim deveriam finalizar todas as diferenças – se entendidas desde um topo congregador, e não desde uma base vitimada pela gravidade do mundo. O espelho tem na nossa cultura um conjunto muito variado de significados que, na sua maioria, derivam do imaginário grego. Simbolicamente, o espelho está relacionado com aquilo que não podemos compreender directamente, mas somente através de um reflexo, e dependendo da qualidade do reflector – o conhecedor, por exemplo – assim a qualidade daquilo que é reflectido – o conhecido. Aplicando a ideia de reflexo ao próprio Homem, compreendemos o espelho como o conhecimento que este pode ter de si mesmo e daquilo que o rodeia. Expressando numa primeira abordagem os perigos de se “contemplar” demasiado nas águas do mundo, como no mito de Narciso (Ovídio, Metamorfoses 3.341, e ss.), significando a identificação que o Homem faz com o que lhe é exterior e que, de facto, ele não é. Em termos práticos, o mesmo acontece com uma peça de roupa, uma crença, uma posição ideológica, ou mesmo uma pessoa, por exemplo. Na realidade, podemos não gostar daquilo que está fora de nós, mas sim do nosso “reflexo” junto a esse objecto, de sermos acompanhados e significados por ele, facto que nos diverte daquilo que realmente somos. Também podemos não gostar daquilo que está dentro de nós, claro está, mas geralmente isso dá-se por via da comparação qualitativa (ou deveríamos chamar-lhe separatismo aparente?) entre o “fora” e o “dentro”, um confronto que nos leva a escolher uma das partes. Na realidade, o Homem não chega a ser-se de facto, já que é várias coisas em tempos e espaços diferentes, conforme a sua circunstância, o que nos leva a concluir que é sempre reflexo daquilo que vê, e nunca aquilo que vê lhe parece um reflexo de si mesmo. O espelho, enquanto criador de espaços e aparências, é uma metáfora comum para a “ilusão”, em que julgamos verdadeiro aquilo que nos separa da verdade. Por exemplo, o céu é reflectido no mar, mas não é por mergulharmos no mar que chegaremos ao céu. No entanto, necessitamos dessa ilusão para chegar à verdade, pois sem vermos o reflexo, não chagaríamos a imaginar a sua origem, da mesma forma que, à maneira de Sócrates (Platão, Apologia de Sócrates 21d), necessitamos da ignorância para chegar ao conhecimento.
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É assim que esse espelho reflecte precisamente o contrário da identificação com o exterior, i.e., a necessidade de nos conhecermos a nós mesmos, à maneira délfica, através de uma preparação, de uma introspecção e de um “pôr-se à prova” constantes, em que o Eu e a sua circunstância, à maneira de Ortega y Gasset, não se distinguem. Sendo esse Eu a base de todo o conhecimento da sua circunstância, e como tal, ele o reflexo daquilo que o rodeia. É, portanto, através do seu próprio “reflexo”, ou da sua mente-espelho, que o Homem se conhece a si e ao seu entorno, afastando-se e aproximando-se simultaneamente daquilo que é, libertando-se e aprisionando-se, gerando
auto-conhecimento
e
auto-domínio
quando reconhece as suas limitações e a sua circunstância ou, por outro lado, ilusão e vaidade, quando a sua imagem se separa de si e se materializa fora. O espelho encontra-se assim como um meio termo, símbolo da mente ilusória que capta das verdades determinadas formas. O próprio homem, animal mental, representa esse espelho, quando reflecte em si o macrocosmo, os deuses e a totalidade. Daí que necessitemos do reflexo para compreender, dado que não temos outra alternativa de compreender um Ideal a não ser por ideias reflectidas, materializadas: sombras geradas pela própria luz. O mito do desmembramento de Dioniso, tal como nos chega de Burkert, diz-nos que Dioniso havia sido “distraído”, observando-se num espelho, quando foi morto, desmembrado, cozinhado e comido pelos Titãs. Plotino verá no espelho de Dioniso, a queda narcisista da alma no mundo, que se identifica com a sua sombra e reflexo, caindo da sua origem (Plotino, Enéadas 4.3.12). Este mito relata-nos, de forma alegórica, o momento onde as almas se separaram da sua unidade, como se “distraíram” com o seu próprio reflexo no mundo, se separaram e caíram. Devemos supor que as almas caídas no mundo devem buscar esse regresso e (re)união através do reflexo contrário, aquele que desde o mundo reflecte o céu. O espelho é o mesmo, o ponto de observação é que muda. Para Platão esta é precisamente a função da alma caída no mundo, ascender ao Bem e ao Belo absolutos através dos seus reflexos, i.e., dos vários bens e dos vários belos reflectidos no mundo (Platão, República 1.353d-354a; Banquete 210a-212b). Ainda que hoje procuremos mais aquilo que nos une do que aquilo que nos separa, a verdade é que os sexos tendem a manter-se separados enquanto complementos um do outro, com formas e naturezas diferentes que interagem entre si. Na Antiguidade o espelho era um objecto essencialmente doméstico, oferecido à rapariga da casa e que representava a sua chegada à puberdade, bem como o seu futuro estatuto de noiva e de mãe. Tal como hoje, era em frente ao espelho que a rapariga se “preparava” para os rituais e aparições em público, mas também, devemos supor, onde a esposa se embelezava para o seu marido [1, 7]. Fig. 1 Mulher sentada segurando um espelho, c. 470-460 a.C.. Museu Nacional Arqueológico de Atenas.
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Era também este espelho que permitia à rapariga confrontar-se consigo mesma, antes de se confrontar com o exterior e com os olhares masculinos. Da mesma forma com que um terreno é preparado para o arado, ou um sulco para as primeiras chuvas, também a mulher se prepara para o homem, mantendo-se na receptividade, como aquela do interior, por exemplo. A beleza física, como aquela que a mulher “ordena” em frente a um espelho, é para Platão um reflexo da beleza divina, e é essa beleza que, causando terror sagrado ao amante, o poderia levar a sacrificar a essa beleza reflectida no amado, como se fosse um deus encarnado (Platão, Fedro 251a), como quem sacrifica à Lua, por esta reflectir a luz do Sol.
2) Protecção de espelho com cena erótica e Eros com coroa de flores ou faixa, 340–320 a.C.. Museum of Fine Arts, Boston.
Os espelhos eram assim exclusivamente relacionados com o mundo feminino, com o observar-se e ver desde dentro, o que é evidenciado pelo facto de este ser um atributo de Afrodite: “ideal” que as raparigas procuravam fazer descer a si mesmas, quando a sua beleza era revelada e reflectida [3, 4]. Representando um objecto “poderoso” e “mágico”, este é colocado ao serviço da mulher, ao mesmo tempo que a define enquanto aquela que se observa a si mesma, ou aquela que quer ser observada, como um espelho. Os espelhos gregos e romanos podiam ainda ter representações decorativas, que iam desde o tópico mitológico até ao acto sexual, o que nos leva a crer que, para além do seu sentido decorativo, estes serviriam de inspiração “moral” à sua utilizadora.
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Os espelhos eram assim exclusivamente relacionados com o mundo feminino, com o observar-se e ver desde dentro, o que é evidenciado pelo facto de este ser um atributo de Afrodite: “ideal” que as raparigas procuravam fazer descer a si mesmas, quando a sua beleza era revelada e reflectida [3,
4].
Representando
um
objecto
“poderoso” e “mágico”, este é colocado ao serviço da mulher, ao mesmo tempo que a define enquanto aquela que se observa a si mesma, ou aquela que quer ser observada, como um espelho. Os espelhos gregos e romanos podiam ainda ter representações decorativas,
que
iam
desde
o
tópico
mitológico até ao acto sexual, o que nos leva a crer que, para além do seu sentido decorativo, estes serviriam de inspiração
3) Afrodite com espelho junto a Eros, com inscrição
“moral” à sua utilizadora.
APHRODITE, c. 360 a.C.. The Cleveland Museum of Art.
A representação dos deuses, com os seus atributos, ajudaria a rapariga a reconhecer os deuses e a sua presença, mas por outro lado, a representação de cenas sexuais [2], ajudaria a rapariga a “reconhecer” o seu futuro, a preparar-se para a sua derradeira iniciação feminina, o casamento e o ritual do leito, identificando-se e inspirando-se na representação. emotivos,
Também
simbolicamente,
em
termos
os
amantes
veem-se um ao outro como num espelho (Platão, Fedro 255d), como se fossem apenas um, procurando-se um no outro, identificando-se
um
com
o
outro,
exteriorizando-se um no outro, etc.. O espelho indicia também a virtude feminina, a mulher que se “observa” a si mesma e à sua fidelidade, cuidando da sua imagem pública.
4) Espelho com suporte, representando Afrodite-cariátide, dois Erotes e uma sereia, c. 460 a.C. Walters Art Museum.
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Era também este espelho que permitia à rapariga confrontar-se consigo mesma, antes de se confrontar com o exterior e com os olhares masculinos. Da mesma forma com que um terreno é preparado para o arado, ou um sulco para as primeiras chuvas, também a mulher se prepara para o homem, mantendo-se na receptividade, como aquela do interior, por exemplo. A beleza física, como aquela que a mulher “ordena” em frente a um espelho, é para Platão um reflexo da beleza divina, e é essa beleza que, causando terror sagrado ao amante, o poderia levar a sacrificar a essa beleza reflectida no amado, como se fosse um deus encarnado (Platão, Fedro 251a), como quem sacrifica à Lua, por esta reflectir a luz do Sol. A cerâmica grega representa habitualmente as mulheres no seu quotidiano, incluindo, claro está, o embelezamento em frente a um espelho. Alguns vasos têm fins religiosos, como o casamento, ritos fúnebres, iniciação e o sacrifício, outros estão relacionados com o consumo de vinho durante o symposion, que têm uma utilização maioritariamente masculina. Mas também há vasos com uma funcionalidade feminina, como os vasos para perfumes, maquilhagem, banho e cosmética,
que
representações ilustrando
a
podiam da
mulher
sua
utilidade
vir no [8].
decorados seu
com
quotidiano,
No
caso
das
representações femininas para olhos masculinos – que sendo
produzidos
num
universo
masculino,
encontram naturalmente uma visão masculina –, o seu sentido não seria criticar o narcisismo feminino, mas o contrário, dar uma oportunidade ao mundo masculino
–
o
principal
criador,
utilizador
e
observador destas representações – de ter uma visão privilegiada daquilo que a mulher fazia dentro de casa, como se contemplasse o “mistério” ou a “origem” da beleza [1, 7-9]. 5) Rapariga com espelho, c. 480 a.C.. Museu do Louvre.
A arte grega representa o imaginário social e não a realidade, e neste sentido é a mulher, e não o homem, quem deseja ser observada. Tudo aquilo que a mulher faz tem que ver com a forma como ela aparece e é vista. Ela deverá ser observada pelo homem, e observar-se a si mesma enquanto é observada. Será esta relação entre as naturezas masculina e feminina que é representada no tópico da mulher em frente ao espelho. É ela quem “precisa” de ser observada, e como tal, a sua natureza leva-a a dedicar mais tempo à aparência.
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6) Criação de Pandora, período arcaico, British Museum.
É por esse motivo que ela, na cerâmica grega, se confronta consigo mesma, observando-se frente a um espelho [1, 7], mas também, confronta o observador [5, 8-9]. Quando uma mulher se prepara em frente a um espelho, fá-lo na intimidade e na “esperança” de ser vista, de ser contemplada, e de que o observador reconheça que ela teve o cuidado de se preparar para ser vista. Simbolicamente não é ela quem observa de forma activa ou frontal, mas quem convida e inspira, como a Musa ao poeta, o olhar masculino. No entanto, na arte, ela confronta com o seu olhar o olhar masculino, chamando-o à contemplação ou questionando-o sobre a qualidade da mesma. É a mesma ideia que subentendemos na literatura clássica em geral, mas também no ritual indo-europeu, em que o olhar feminino é passivo, fingido ou escondido, resguardando-se da acção, sendo ela mesma o “objecto” observado. A mulher, ao ver-se num espelho, reflecte a acção de Afrodite, encarnando a deusa e descobrindo em si um “princípio feminino”, maquilhando-se e encarnando a beleza divina, com a qual anseia ser comparada. Podemos ainda afirmar, esquivando-nos à temporalidade e ao concreto, que não haverá nada de pior para o feminino do que o não ser observado, ser ignorado ou desprezado por aqueles que estão próximos, dado que o “objecto” dador, iluminador e harmonizador, como é o feminino, deve manter-se como centro (ainda que passivo) das visões, atenções e acções, e nunca numa periferia activa – lugar deixado ao masculino. O masculino, como aquele heróico, move-se quando inspirado pelo feminino, por essa “voz” criadora que alimenta todas as acções, da qual parte e à qual regressa. É Helena quem chama os Aqueus, e Penélope quem chama Ulisses – uma origem que leva à periferia e a um retorno dessa periferia à origem primeira. Pandora [6] olha o observador de frente, em forma de estátua, enquanto os deuses se aproximam, um a um, para lhe dar os dons. Pandora está a chamar a visão masculina – para a qual foi criada enquanto símbolo do feminino – à sua beleza, mas também, se subentendermos Pandora enquanto “dadora” de todos os males do mundo, é também aquela que dá ao homem as dificuldades necessárias à sua superação, aquela que o está a chamar à acção no mundo, o que não é muito diferente daquilo que faz Eva com Adão, por exemplo, dando-lhe a possibilidade de trabalhar e trabalhar-se, progredir e evoluir. Claro que esta interpretação só é válida fora da visão reducionista judaico-cristã de que o trabalho é um castigo, já que na Antiguidade é, genericamente, algo necessário à ordem do social e celeste. O feminino é o grande gerador de vida em todas as suas formas, como tal, sem o “observar”, aquilo que é masculino não chega concretamente a viver e a ser.
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Era também este espelho que permitia à rapariga confrontar-se consigo mesma, antes de se confrontar com o exterior e com os olhares masculinos. Da mesma forma com que um terreno é preparado para o arado, ou um sulco para as primeiras chuvas, também a mulher se prepara para o homem, mantendo-se na receptividade, como aquela do interior, por exemplo. A beleza física, como aquela que a mulher “ordena” em frente a um espelho, é para Platão um reflexo da beleza divina, e é essa beleza que, causando terror sagrado ao amante, o poderia levar a sacrificar a essa beleza reflectida no amado, como se fosse um deus encarnado (Platão, Fedro 251a), como quem sacrifica à Lua, por esta reflectir a luz do Sol. O acto de contemplar-se diz-nos também que não existe estética sem ética, i.e., beleza externa sem beleza interna, porque uma reflecte e ilumina a outra. Em termos práticos, não há beleza externa que dure se não for sustentada por uma beleza interior, nem falta de beleza exterior que não seja iluminada pela beleza interior, e que por isso, não se torne bela. Por este motivo, o contemplar-se fisicamente num espelho, não deixa de ser um contemplar-se internamente, reconhecer-se, gostar ou não daquilo que se é, observando as virtudes a salientar e os defeitos a corrigir. É provavelmente este o sentido de cosmética feminina, já que os gregos designam com a mesma raiz, ordem e cosmética, representando, por exemplo, o casamento nos pyxis (vasos cilíndricos que serviam para fins cosméticos e joelharia), comparando, em certa 7) Três mulheres nuas no banho, com espelho e inscrição KALE,
medida, o casamento com a ordem do mundo.
«bela». Kunsthistorisches Museum, Viena.
A mulher tem uma significação caótica na literatura antiga, começando com Pandora, a dadora do chaos ao universo masculino [6]. O combate ao chaos, a «desordem», é feito através do kosmos, a «ordem», e neste trabalho, os deuses combatem os anti-deuses, os homens combatem o inimigo e o bárbaro, e a mulher combate a “desordem” da aparência, através da cosmética, adornando-se, pondo-se em ordem (kosmos), externamente, mas também internamente, embelezando o carácter (ethos). São estas formas puras e celestes, como o Bem e o Belo, que se reflectem no mundo, que formam em conjunto um kosmos ordenado (Platão, República 500c.), e por este motivo devem ser entendidas em conjunto, como uma unidade primordial, e previamente ordenadas. Esta mesma ideia de ordenar aquilo que está desordenado por meio de um espelho, ou reflexo, pode estar implícita na deusa Iaso, a «cura», cujo atributo é o espelho.
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Não deixa de ser interessante a forma como o espelho expressa a forma do “diâmetro” que representa o “princípio feminino”, como a terra, a água ou o ovo, sendo possível encontrar nele alguma alusão à ciclicidade e à vida. O próprio símbolo do planeta Vénus (♀), e outros semelhantes como o ankh, terá alguma relação com o formato do espelho, assemelhando-se a um ser humano, ou melhor, àquilo que desce desde a unidade (mundo mental-espiritual) até às quatro direcções do espaço (mundo manifestado), ao contrário do símbolo da terra, que faz o caminho inverno.
8) Mulheres no banho, stamnos (jarro para levar água), c. 440–430 a.C.
9) Mulher com espelho, c. 430 a.C. Museu do Louvre.
Staatliche Antikensammlungen, Munique.
Por outro lado, Eros [2-4] e Afrodite [3-4] são associados com a arte do embelezamento, mas também com o acto sexual e o amor erótico. A mulher inspirada por Afrodite e Eros, ganha uma significação de efeito irresistível sobre o masculino, semelhante àquele produzido pelas Sereias [4]. Em termos sexuais, estes inspiram o feminino, o que se torna óbvio a partir do Helenismo, em que a mulher ganha maior actividade e liberdade na comunidade, mas também maior liberdade de movimentos no leito [2]. Neste sentido, o espelho torna-se ele mesmo na passividade inspiradora da actividade feminina, um preparar-se para a acção futura. Concluindo, as mulheres representadas no seu quotidiano expressam uma necessidade, gosto ou imaginário masculino, de observar o feminino e aquilo que este faz longe do seu olhar. Mas o facto destas mulheres confrontarem visualmente o observador, levam-nos a crer que o chamam à observação da beleza que elas mesmas contemplaram (verificaram) em frente a um espelho, mas sobretudo, convidam-no ao belo e ao sublime. A inteligência receptiva e a sensibilidade intelectual femininas iluminam a acção masculina e permitem, à maneira platónica, que esta chegue ao Belo ideal, que é reflectido pela beleza aparente, ou pela forma que participa desse mesmo Belo. Para o feminino, que é simbolizado pelo próprio espelho, este confronto não é gratuito. Expressa o confronto que a mulher tem consigo mesma, observando-se, ordenando-se, polindo-se como a um espelho de bronze para que reflicta o mais perfeitamente possível aquilo que ela é idealmente, compreendendo-se a si mesma como reflexo e encarnação do Belo e do Puro – bem como das qualidades de Afrodite e do amor – antes de se manifestar e de ser reconhecida como tal pelo universo masculino.
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Bibliografia Koloski-Ostrow, C. Lyons, Naked Truths: Women, sexuality, and gender in classical art and archaeology, London, Routledge, 2004. Anne Hollander, Seeing Through Clothes, California, University of California Press, 1978. Catalin Partenie (ed), Plato: Selected Myths, Oxford, Oxford University Press, 2004. François Lissarrague, “Femmes au Figuré”, Georges Duby, Michelle Perrot, Histoire de Femmes en Occident I: L'Antiquité, Paris, Perrin, 2002. J. Berger, Ways of Seeing, London, Harmondsworth, 1972. Mark Stansbury-O'Donnell, Looking at Greek Art, Cambridge, Cambridge University Press, 2011. Ortega y Gasset, Meditaciones del Quijote, Madrid, Residencia de Estudiantes, 1914. Richard Kraut (ed), The Cambridge Companion to Plato, Cambridge, Cambridge University Press, 1992. Stephanie Jamison, “Roles for Women in Vedic Śrauta Ritual” in Arvind Sharma (ed.), Goddesses and Women in the Indic Religious Tradition, Leiden, Brill, 2005. Walter Burkert, Religião Grega Grega na Épocana Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Lisboa, Calouste Walter Burkert, Religião Época Clássica e Arcaica, Gulbenkian, 1993.
Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.
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O Escudo de Eneias – O Programa Político de Augusto Raul Teixeira
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Pelos anos 20 do século I a. C., Públio Vergílio Marão compunha a sua Eneida, opus magnum que procurava imitar e ultrapassar o modelo de toda a Cultura e Literatura Clássicas, o poeta supostamente cego que teria composto a Ilíada e a Odisseia, o conhecido, ou talvez não, Homero. O centro ideológico de toda a Eneida será o seu canto VIII, quando o herói declarado do poema aporta no futuro forum Boarium, em plena “futura Roma”, ainda habitada pelos
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Investigador do IPAEHI e CHUL;
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Vide VERGÍLIO, Eneida, 4º edição, Lisboa, Bertrand Editora, 2013, 8.587.
Árcades do grego Evandro. Este é um dos cantos mais complexos da obra e seguramente uma análise de todos os seus constituintes ultrapassa as possibilidades de um simples artigo. Proponho-me centrar a análise na parte final deste canto e no seu modelo cultural e literário, analisando a sua importância para o historiador da antiguidade. De facto, depois de mostrar Eneias a visitar o espaço da futura Roma, numa topografia simbólica que projecta a Eneida para o presente do autor e dos primeiros leitores, para lá do espaço e do tempo mítico em que a ilusão narrativa supostamente se deveria manter, Vergílio muda repentinamente o espaço. Eneias não está mais em Roma mas em Cerveteri; o problema é, no entanto, semelhante ao que motivara a ida a Roma: perante a hostilidade dos povos itálicos à chegada dos Troianos, Eneias precisa de 2
aliados e também de armas. É isso que a deusa Vénus encomenda a Vulcano, deus das forjas e seu marido. Em Cerveteri, Eneias vem receber as armas das mãos da própria mãe. Todavia, a Eneida é mais complexa do que aparenta, pois, imediatamente no início do seu estudo surge uma pergunta minimamente curiosa: porque razão Vergílio transformou a epopeia dedicada a um herói troiano, Eneias, fugido da cidade de Tróia destruída pela guerra, numa espécie de panegírico a Augusto? Inclusive num panegírico à própria gens Iulia? É neste problema que me proponho apresentar uma interpretação sobre o escudo de Eneias, o qual desempenha um papel fundamental na interpretação da obra, e no esclarecimento dos propósitos do autor. Naturalmente, Vergílio não está propriamente a criar nada de novo, antes pelo contrário, ele está deliberadamente, como qualquer leitor minimamente culto reconheceria, a imitar o canto XVIII da Ilíada, quando Tétis, mãe do protagonista deste poema, solicita a Hefesto, o Vulcano grego, novas e poderosas armas para o filho. O paralelismo é demasiado evidente e conhecido para que me alongue nele – Vergílio
quer
imitar
o
seu
maior
“modelo”
e
simultaneamente “rival”; é no seu campo literário que ele o vai vencer. E, de facto, o que se seguia na Ilíada era a mais importante écfrase da Antiguidade, modelo de todas as outras descrições vívidas de objectos que a partir de então se encontrarão nos textos antigos: no canto XVIII da Ilíada segue-se a descrição do famoso escudo de Aquiles, com a sua complexa ornamentação.
Fig. Busto de Virgílio, Túmulo de Virgílio, Nápoles. Fonte: Wikipedia
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3 Vide TAPLIN, Oliver; The shield of Achilles within the Iliad, Greece and Rome 27, 1980, p. 37.
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Vide HOMERO, A Ilíada, [s.l.], Publicações Europa – América, [s.d.], p. 272
Vergílio, escusado seria notá-lo, não faz as coisas por menos: também introduz no final do canto ideologicamente mais importante do seu poema uma extensa descrição de um escudo, como óbvia imitação da arma homérica – o escudo do “seu” Eneias. E, no entanto, os dois episódios, deliberadamente paralelos, não podiam, de facto, apresentar diferenças mais pronunciadas do que de facto apresentam.
Na Ilíada e na Eneida, a construção literária dos dois escudos segue um mesmo paradigma: ambas assentam em três elementos básicos: em Homero, encontramos a representação da Cidade em Paz, a descrição da Cidade em Guerra e um conjunto de seis cenas dedicadas às actividades humanas e aos elementos de astronomia e/ou astrologia, incluindo a representação do rio Oceano; já em Vergílio, estes três elementos aparecem numa ordem invertida – encontramos, assim, a representação do conjunto de seis cenas da História Romana; depois, a corresponder à Cidade em Guerra em Homero, a descrição/narrativa da Batalha de Áccio; e, ainda, a constituir a versão “romana” da Cidade em Paz, surge a pax et principatus, o mundo 3
Romano em paz sob a liderança de Augusto.
Mas, o paralelismo entre a concepção dos escudos vai ainda mais longe, até ao máximo pormenor. Na medida em que, dentro destes três elementos, os quais se encontram subdivididos em secções, existe uma clara analogia. Assim, em Homero, a Cidade de Paz, cuja cena poderá ser 4 dividida em duas parcelas, caracteriza-se pelas festividades de um casamento e pela
representação de anciãos “sentados sobre pedras polidas, no círculo sagrado”, arbitrando uma disputa legal na ágora e proferindo, em troca de dois talentos, a melhor decisão judicial. Já em Vergílio, a sua “Cidade de Paz”, que representa o triunfo e a consequente pax aeterna proporcionada por Augusto, pode também ser dividida em duas partes, a primeira corresponde à descrição das festividades associadas ao triplo triunfo de Augusto, e a segunda à apresentação de Augusto sentado no trono do templo de Apolo, no Palatino, onde recebia as oferendas das nações do mundo.
Paralelismos deste tipo continuam a existir entre ambos os escudos. Na Ilíada, a Cidade em Guerra é apresentada pela descrição de dois exércitos, um dos sitiantes e o outro dos sitiados, onde está incorporada a representação de algumas divindades participantes neste conflito, como a Discórdia e o Tumulto. Na Eneida, a “Cidade em Guerra”, que representa a batalha de Áccio, é apresentada primeiro pela descrição das forças de Augusto de um lado e das forças de Marco António e de Cleópatra do outro. Neste quadro, Vergílio aproveita também para narrar a subsequente batalha entre os exércitos, onde inclui também a acção das divindades que participaram neste acontecimento: Neptuno, Vénus e Minerva – divindades apoiantes de Augusto; bem como os deuses do Nilo e Anúbis – deidades de Marco António e de Cleópatra.
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No que se refere às restantes cenas, sobre as actividades humanas e os astros, no caso da Ilíada,
Vide TAPLIN, Oliver; op. cit. p. 37.
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Vide HOMERO, op. cit. p. 274.
e sobre a História de Roma, na Eneida, também podemos encontrar um paralelismo entre os dois escudos, uma vez que ambos terminam com a representação de danças absolutamente 5
tradicionais: Homero faz alusão ao coro que teoricamente Dédalo construíra para Ariadne em
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Vide VERGÍLIO, op. cit., VIII, 598 – 630, p. 219
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Cnossos, ao mesmo tempo que relata episódios de dança e de diversão; Vergílio faz a descrição das danças dos Sálios e dos Lupercos. No entanto, apesar de seguir os modelos homéricos, Vergílio substitui a visão cósmica mais global de Homero por uma visão aparentemente mais restrita: prefere insistir as res Italas 7
Romanorumque triumphos (“a história de Itália e os triunfos dos Romanos”), elementos que introduziriam a romanidade no mundo, unificado por Roma na época de Augusto. Na verdade, é apenas aparentemente que Vergílio assume uma visão mais restrita do que Homero. É facto que Hefesto termina o escudo de Aquiles esculpindo o rio Oceano, o qual rodeava todas as representações entalhadas. Porém, Vulcano, na construção final do seu escudo, esculpe o rio Eufrates, o Reno e o Araxes, inclusive uma lista de tribos que habitavam as periferias dos territórios romanos, os quais seriam em breve, ou pelo menos seria esse o desejo romano, incorporados nos territórios do Império. No fundo, a conclusão do escudo de Eneias representava o triunfo da civilização romana no orbe conquistado, onde Roma, sendo o centro de toda uma civilização, tinha a obrigatoriedade de conquistar e de civilizar o mundo conhecido. Ora, é também aqui que o escudo de Eneias se distancia do de Aquiles. De facto, os temas esculpidos por Hefesto são de algum modo estranhos à história do herói e à própria sequência narrativa da Ilíada. Efectivamente, na Ilíada, a descrição do escudo funciona como uma espécie de intervalo narrativo, em que o narrador/ouvinte se afasta do tópico da guerra e da cólera do herói, para se dedicar a uma descrição que, em termos puramente temáticos, não parece acrescentar especial informação à narrativa. No fundo, retirando-se à Ilíada a écfrase do escudo de Aquiles, a narrativa não perderia especialmente com a ausência. No entanto, não é apenas do ponto de vista da técnica literária que esta cena ganha especial relevo. Para o historiador, esta descrição é também fundamental, pois, ela constitui uma boa síntese da mundividência grega na época arcaica. Em oposição, a écfrase do escudo de Eneias não seria possível retirá-la da sequência narrativa da epopeia, pois esta perderia o seu significado. De facto, o escudo de Eneias é uma peça fundamental para a leitura de toda a Eneida. Deste modo, podemos afirmar seguramente que o escudo de Eneias tem um valor e função simbólicas mais profundas, uma vez que as ornamentações do escudo têm como função aclarar para o leitor aquele que seria o “verdadeiro” sentido da história romana, que terminaria com Augusto e que estaria prefigurado já na aventura de Eneias desde Tróia ao Lácio. Sendo assim, o escudo de Eneias servia para enaltecer o passado dos Romanos, culminando no aparecimento, quase divino e providencial, da figura de Augusto.
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Além disto, o escudo recebe uma função pragmática com o próprio Eneias, pois, ao ser oferecido
8 Vide HARRISON, S. J.; The Survival and Supremacy of Rome: The Unity of the Shield of Aeneas in http://www.classicalresourcecentre.com/legacy/shield_ of_aeneas.pdf [acedido a 20 de Fevereiro de 2014], p.70.
9 Vide VERGÍLIO, op. cit., VIII, 630 - 654, p. 219 e 220.
10 Vide idem, ibidem, VIII, 630 - 654, p. 219 e 220.
por Vénus num contexto bélico e de ameaça dos povos do Lácio, desempenharia de imediato uma função militar: seria usado na guerra em Itália, provocada pela chegada dos Troianos, os 8
antepassados dos Romanos . E, de facto, a existência de Roma, de algum modo, e em termos míticos e simbólicos, dependia desta guerra travada por Eneias em solo itálico. A existência de Roma dependeria da astúcia e do engenho de Eneias, mas também das suas armas, as quais, nomeadamente o seu escudo, exibiam perto de setecentos anos de história de uma cidade, a cidade de Roma, que para o herói troiano ainda era uma simples miragem e, ao mesmo tempo, uma promessa. No fundo, Eneias carregava sobre os ombros, não só um instrumento de guerra, mas também o vislumbre dos feitos da sua estirpe. Ao mesmo tempo que exaltava Augusto e Roma, Vergílio procurava mostrar os laços de parentesco entre Romanos e Gregos, já que na Ilíada a religião, a língua e a genealogia dos heróis uniam estreitamente os Troianos aos Gregos. Roma, situada assim no cerne do cosmo lendário, eximia-se ao opróbrio de ser considerada bárbara pelos Gregos, os quais designavam desta maneira todos os povos de língua diferente da sua: a despeito da humildade das suas origens, os Romanos podiam reclamar-se herdeiros das grandes figuras do passado mítico helénico; a Ilíada também lhes pertencia. Mas, podemos ir ainda mais longe na análise. A maioria das cenas representadas no escudo, desde as cenas da história de Roma até à própria batalha de Áccio, apresenta momentos ou acontecimentos que colocaram em perigo a cidade de Roma, e que esta havia ultrapassado com êxito. Deste modo, o escudo vai caracterizando o sucesso militar e político de Roma e, ao mesmo tempo, do seu povo face aos perigos. É certo que estas cenas alcançam, por vezes, o patamar do divino e do alegórico, afastando-se de um entendimento mais historicista. Apesar disso, todas as cenas esculpidas no escudo têm uma mensagem de carácter político-social. Entre elas 9
destacamos a Loba a amamentar Rómulo e Remo , os supostos fundadores de Roma. Esta cena é de clara relevância para a concepção mental dos Romanos, pois, ela imprime quase obrigatoriamente um sentimento de sobrevivência perante a necessidade e a adversidade extrema. Esta ideia faz-me lembrar a construção da sociedade espartana da época arcaica, a qual, através da Agogê, submetia os filhos dos cidadãos a um processo educacional rigoroso e por vezes violento, com o objectivo de formar homens robustos e aptos inteiramente para a guerra. No fundo, esta cena e o mito a ela associado procuram mostrar o mesmo: Roma sobrevive até nas piores condições. O Rapto das Sabinas é outro exemplo onde o tema da sobrevivência e da robustez dos Romanos é explorado, na medida em que, esta cena representa a introdução de ideais religiosos e sociais na dura valentia dos homens de Rómulo. Na verdade, este episódio consagra elementos característicos e comuns a toda a História de Roma, designadamente a capacidade de adaptabilidade e de miscigenação do povo romano. Esta cena poderá ser dividida em três partes: a celebração dos jogos, o deflagrar da guerra entre Sabinos e 10
Romanos e a sua posterior reconciliação . Fig. Vénus entrega o Escudo a Eneias, Pompeo Batoni (1775=). Fonte: http:// www.wga.hu/art/b/batoni/venus1.jpg
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Vergílio continua com a narração do passado lendário de Roma, referindo o terrível castigo de Meto Fufécio, o qual, sendo chefe dos Albanos, embora aliado de Roma, se mantivera à distância numa batalha entre os Romanos e os Fidenates, à espera de ver quem seria o vencedor. O rei romano, Tulo Hostílio, vencidos os Fidenates, castigou-o atando-o a duas quadrigas que, arrancando em sentido contrário, o fizeram em pedaços. Este episódio ilustra o castigo do 11
perjúrio, pois Meto Fufécio, ditador de Alba Longa, traíra o povo romano .
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Vide idem, ibidem, VIII, 630 - 654, p. 219 e 220.
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Vide WILLIAMS, R.D.; The Shield of Aeneas, Virgilius 27, 1981, p. 8.
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Vide VERGÍLIO, op. cit., VIII, 653 – 663.
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A cena que diz respeito à invasão de Porsena e aos feitos heróicos de Horácio Cocles e de Clélia
Vide HARRISON, S. J.; op. cit., p. 72
representam por um lado a resistência à tirania de Porsena, por outro a devoção à pátria e aos valores romanos. No fundo, este episódio imprime a simbologia de um heroísmo exibido em função da defesa da liberdade. Na verdade, Vergílio centra a sua narrativa nos acontecimentos lendários do século VI a.C., os quais representariam um período crucial da História Romana, relacionado ainda com o período fundacional da Urbe. Todos os seguintes episódios têm o Capitólio como elemento comum. As cenas esculpidas por Vulcano podem ser divididas em três grupos distintos: o primeiro, no meio, na parte superior do escudo, a rocha Tarpeia que se encontrava de um dos lados do Capitólio; um segundo, de um dos lados, mostrava os gansos sagrados e o ataque dos Gauleses; o terceiro, do outro lado, as 12
celebrações religiosas decorrente da salvação da cidade face ao inimigo externo . Naturalmente, Vergílio pretende mostrar que Júpiter, o pai dos deuses romanos, protege a sua cidade, uma vez que esta era a principal divindade cultuada no maior dos templos romanos, erguido precisamente na colina do Capitólio. Além disto, todas estas cenas tendem a apontar, apesar de Vergílio nunca o referir optando por centrar a sua atenção em Mânlio Capitolino, para uma personagem histórica: Marco Fúrio Camilo. Esta personagem terá, segundo os escritos de Tito Lívio, salvado Roma em duas ocasiões diferentes, mas decisivas para o futuro da cidade: na primeira, Marco Fúrio Camilo terá protegido Roma e o Capitólio do saque e destruição por parte dos Gauleses no século IV a.C., trazendo-lhes a derrota e impedindo o pagamento e a fuga de 13
bens materiais e imateriais dos Romanos ; na segunda, Camilo terá dissuadido os Romanos, desanimados pela devastação do seu território provocada pela guerra, de emigrar e de transferir a capital do estado romano para Veios, convencendo-os a reconstruirem a cidade. E, de facto, esta última acção de Camilo foi particularmente lembrada na época de Augusto, a julgar pelos fragmentos do elogium a Camilo do Forum Augustum: “Veios post urbem captam commigrari 14
passus non est” . Naturalmente, estes episódios encaixam-se no padrão paradigmático da concepção do escudo: eles procuram mostrar como exemplo a sobrevivência dos Romanos face ao perigo, por vezes, extremo. De facto, estes episódios imprimem aos Romanos, mais uma vez, o ideal simbólico da sobrevivência do próprio estado e da cidade em condições desfavoráveis, pois, de certo modo, estes acontecimentos ameaçaram directamente o centro religioso e ideológico da cidade de Roma, o Capitólio, espaço sagrado consagrado ao templo de Júpiter Óptimo Máximo.
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Vergílio termina este conjunto de cenas representando danças tradicionais e rituais dos Sálios e dos Lupercos. Estes cultos prefiguraram no escudo como que o elemento de crença e de culto
15 Vide idem, ibidem, p. 73.
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Vide VERGÍLIO, op. cit., VIII, 666 – 667.
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Vide HARRISON, S. J.; op. cit., p. 73 - 74.
mais antigo da cidade de Roma, assumindo uma importância ideológica e na topografia simbólica do escudo. Ideologicamente, ambos estão vinculados com a fundação e com a supremacia de Roma: o festival dos Lupercais estava intimamente relacionado com o local onde Luperco, deus protector dos rebanhos, descobrira os gémeos Rómulo e Remo junto à Loba, ao mesmo tempo que remetia o leitor, de novo, para a fundação da cidade; os ancilia dos Sálios está estreitamente relacionado com o ideal do papel imperial de Roma, no fundo, como imperii pignora certa. Topograficamente, os dois cultos estão ligados a lugares exclusivos e emblemáticos de Roma: os Lupercos e os seus festivais, supostamente criados por Evandro antes da fundação de Roma, estão associados ao Palatino, enquanto os Sálios, fundados por 15
Numa Pompílio, estão ligados ao Palatino, bem como ao Quirinal . Deste modo, o simbolismo destes episódios é evidente: Roma não deixara de existir após a sua quase total destruição pelas forças gaulesas no século IV a.C.; as festividades Sálicas e dos Lupercais provavam que o “local de Roma” fora novamente ocupado pelos “Romanos” e que os seus antigos cultos e templos tinham sido restaurados, evidentemente sob a liderança de Marco Fúrio Camilo. Quer isto dizer que Roma sobreviveria sempre, mesma na destruição. Vergílio, no término deste conjunto de episódios, descreve ainda um grupo de castas matronas a 16
transportarem pela cidade imagens sagradas numa espécie de carroças . Esta cena alude uma vez mais à crise do século IV a.C., onde foi exigido ao povo romano, representado pelas matronae, um sacrifício para a salvação da cidade e dos seus “homens”. Este sacrifício resumiase à abdicação de materiais de joalharia e de luxo, bem como de imagens e objectos sagrados de grande valor, em favor do estado romano. É-nos impossível determinar com clareza qual o motivo deste apelo, todavia, é possível apontar pelo menos duas situações que se coadunariam bem com o acontecimento: primeira, após a queda de Veios, onde foi exigida uma quantia considerável de bens em honra de Apolo, ao ponto de o senado outorgar às matronae o privilégio de “ut pilento ad sacra ludosque, carpentis festo profestoque uterentur” (de que usassem o pilentum – espécie de carruagem – para ir aos cultos sagrados e aos jogos e os carpenta – outra espécie de carruagem – nos dias feriados e nos dias profanos.); a segunda, quando do ataque e saque dos Gauleses, quando foi imposta uma espécie de pagamento de 17
resgate pela cidade e pelo povo romano, naturalmente ainda antes da intervenção de Camilo . Deste modo, para Vergílio, esta “oferta” é o símbolo do patriotismo e da dedicação feminina à cidade de Roma numa época crucial da sua história. A écfrase salta depois, rapidamente, para a história contemporânea do autor, viajando através de Catilina e de Catão para a batalha de Áccio e suas consequências, cujas cenas se incluem no paralelismo esboçado acima com a Cidade em Guerra e com a Cidade em Paz, de Homero.
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A representação do Submundo parece retirar coesão à narrativa da sequência da História de Roma, pois existe um salto de quase três séculos de História sem qualquer referência no escudo. No entanto, a cronologia é preservada. Julgo que esta adulteração narrativa acontece por causa do canto VI da Eneida, livro onde se relata a catábase do herói. Aqui, Vergílio, na pessoa de Anquises, pai de Eneias, relata a História de Roma, expondo as vitórias e as derrotas que a 18
cidade teria que passar para se afirmar como um “império” . Além disto, esta referência de Vergílio ao Submundo no escudo do seu herói, tem um valor pragmático: o Tártaro, onde se
18
Vide VERGÍLIO, op. cit., VI, – 901.
19
Vide TAPLIN, Oliver; op. cit. p. 42.
20
Vide VERGÍLIO, op. cit., VIII, 677 – 728.
21
Vide idem, ibidem, VIII, 702 – 728.
encontrava Catilina, representa o castigo pela rebelião, enquanto os Campos Elísios, onde se achava Catão, mostra o triunfo da justiça. Por fim, Vergílio descreve o acontecimento mais importante do seu tempo, a batalha de Áccio de 31 a.C., que é a cena central do seu escudo. Este episódio segue os paradigmas anteriores, uma vez que, mais uma vez, a cidade de Roma se encontrava em perigo: esta batalha poderia decidir o futuro de uma cidade, mas também de toda uma civilização. Nesta cena estão representadas simultaneamente as forças do próprio Augusto e as de Marco António e de Cleópatra. E, de facto, a disposição das forças pressupõe uma ideologia, na medida em que Augusto representa o Ocidente e a cidade de Roma, enquanto Marco António afigura-se como o representante do 12 Oriente e da cidade de Alexandria. Curiosamente, esta batalha poderá ter um paralelismo com a
Guerra de Tróia, porque, de certo modo, a guerra de Agamémnon representava também um 19
confronto entre o Ocidente e o Oriente, tal como era agora encarada a batalha de Áccio . Inevitavelmente, Vergílio narra o confronto entre forças militares, que, como já vimos, representam de facto o confronto entre dois blocos civilizacionais e culturais.
Assim, a descrição da batalha de Áccio por Vergílio permite identificar o ideal romano, na medida em que Augusto surge como representante e defensor da civilização, enquanto Marco António e Cleópatra representam a barbárie. É por isso também que a batalha é transportada para o patamar divino, resultando numa luta épica entre os deuses teriomórficos do Egipto e os 20
deuses antropomórficos dos Romanos . Por fim, Vulcano esculpe no escudo o desfecho da batalha, a qual terminara com a vitória da armada de Augusto. Por um lado, para Vergílio, Augusto afirmara em Áccio a importância de Roma e da sua cultura face à cultura oriental, particularmente em relação à cultura alexandrina. Por outro, Áccio fora o maior e o último teste à sobrevivência de Roma, como batalha onde a Urbe afirmara o seu destino como a maior e a mais importante cidade no mundo mediterrâneo. Na verdade, este confronto permitiu reafirmar a centralidade política de Roma face a outros polos alternativos políticos e militares. Esta centralização será evidente após o ano de 29 a. C., e aqui se inclui todo o programa político, social e cultural de Augusto. Em relação a este ponto, Vergílio, na Eneida, descreve a campanha cultural de Augusto com a construção e o embelezamento da cidade com templos21.
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22 VVide idem, ibidem, VIII, 702 – 728.
23
Vide idem, ibidem, I, 254 - 296.
24
Vide idem, ibidem, VI, – 901.
Fig. Batalha de Áccio, Lorenzo Castro (1672). Fonte: www.wikipedia.com
Vergílio consegue ser ainda mais arrojado na descrição dos feitos de Augusto ao relatar o seu triplo triunfo, não só pela batalha de Áccio, mas também pela vitória sobre a Dalmácia e pela 22
conquista de Alexandria . Simultaneamente é acrescentado a este relato o tributo prestado a Augusto pelo orbe conquistado, como referi acima. Aqui, o escudo de Eneias atinge o seu clímax, uma vez que Vulcano esculpe Augusto sentado no trono do templo de Apolo, cujo templo, inaugurado no ano de 28 a. C., representava a prova física e divina da vitória de Áccio. Vulcano termina então o seu trabalho representando povos e rios a prestarem tributo ao novo César, tal como o Tibre fizera anteriormente a Eneias, no sonho com que é iniciado o canto VIII da Eneida. De facto, a última imagem do escudo de Eneias é a rendição e o tributo de tribos e povos estrangeiros a Augusto, a maioria dos quais teria apoiado directa ou indirectamente as forças de M. António e de Cleópatra: os Nómadas e os Africanos, os Léleges e os Cários, que representavam a Ásia Menor, os povos da zona do Eufrates, e, por último, os Gélones, os povos do Reno e do Araxes e os “indómitos Daas”, que representavam os povos e tribos distantes e hostis a Roma, que viviam nas fronteiras dos seus territórios. Todo este conjunto de povos, embora alguns não estejam ainda sob a alçada do poder romano, contribuíam para enaltecer e ampliar a supremacia da cultura romana no mundo mediterrâneo. Curiosamente, a écfrase do escudo de Vergílio é o culminar de dois dos 16 três acontecimentos mais importantes da Eneida. É, antes de mais nada, um claro elemento de propaganda a Augusto, a qual, começou no canto I quando Júpiter profetizou o futuro de Roma e a sua relação 23
com Vénus e com o filho desta, Eneias . Além disto, este escudo, de certo modo, completou toda a informação transmitida a Eneias por Anquises, seu pai, no canto VI, onde este apresentara uma espécie de catálogo de Romanos que teriam, de certa forma, contribuído para a ideologia 24
“imperial” de Roma, mas também para o seu próprio enaltecimento . Por fim, o escudo é o término do panegírico a Augusto, pois este torna-se o novo César após a batalha de Áccio, cumprindo, deste modo, a profecia de Júpiter. Além disto, Augusto, através do mos maiorum, poderá ser incluído naquela lista dos “grandes romanos” do passado do canto VI: no mundo inferior ele já surgia à cabeça das almas que aguardavam o seu nascimento, como o primeiro dos Romanos. Na verdade, a Eneida responde à ideologia augustana, apresentando o príncipe como uma espécie de segundo fundador de Roma, ou seja, o segundo e novo Rómulo. Sendo assim,17o escudo de Eneias assume na Eneida um carácter e elemento profético, pois, nele está representado o cumprimento da profecia de Júpiter, e a conclusão da História Romana iniciada por Anquises. A écfrase salta depois, rapidamente, para a história contemporânea do autor, viajando através de Catilina e de Catão para a batalha de Áccio e suas consequências, cujas cenas se incluem no paralelismo esboçado acima com a Cidade em Guerra e com a Cidade em Paz, de Homero.
35
No escudo de Eneias confirma-se ainda um
25
Vide idem, ibidem, I, - 7.
claro paralelismo entre Eneias e o próprio Augusto, embora Vergílio nunca o tenha expressado
abertamente
na
sua
opus
magnum. No fundo, o que o autor tenta imprimir na sua obra é a intrínseca união de Eneias com Augusto. De algum modo, Eneias é o próprio Augusto, é o ascendente do povo romano, é o símbolo de toda a história por desenrolar, que terá em Áccio o seu ponto máximo, pois, segundo o ideal romano, a civilização e a justiça acabará sempre por triunfar sobre a barbárie. Deste modo, posso afirmar que o escudo de Eneias tinha a função de propagandear o “regime” de Augusto, o próprio Augusto, mas também o próprio povo
25
romano, os seus ideais e os valores, como “ luz num mundo de bárbaros”. Não
nos
devemos
espantar
com
estas
conclusões: o próprio Vergílio aponta, no primeiro parágrafo da sua obra, as suas pretensões: “Canto as armas e o varão que nos primórdios veio das costas de Tróia para Itália e para as praias de Lavínio, fugitivo por força do destino, e muito padeceu na terra e no mar por violência dos deuses supernos, devido ao
Fig. Augusto Jupiter Capitulinus,
ressentimento da cruel Juno; muito sofreu
Museu Nacional de Arqueologia de
também na guerra, até fundar uma cidade e
Nápoles; Fonte: ancientrome.eu
introduzir os deuses no Lácio; daqui provêm a raça latina, os antepassados albanos
e as muralhas da grandiosa Roma.” .25Será que poderia existir alguma dúvida quanto ao que seria a Eneida ?
Bibliografia: HARRISON, S. J.; The Survival and Supremacy of Rome: The Unity of the Shield of Aeneas in http://www.classicalresourcecentre.com/legacy/shield_of_aeneas.pdf [acedido a 20 de Fevereiro de 2014] HOMERO, A Ilíada, [s.l.], Publicações Europa – América, [s.d.]. TAPLIN, Oliver; The shield of Achilles within the Iliad, Greece and Rome 27, 1980 VERGÍLIO, Eneida, 4º edição, Lisboa, Bertrand Editora, 2013 WILLIAMS, R.D.; The Shield of Aeneas, Virgilius 27, 1981.
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Sabores com História ... A primeira referência história à pesca do atum no nosso país data do ano 151 da nossa era, no actual território do Algarve, sendo os cónios (povo ibérico submetido pelos romanos) quem se encarregavam da pesca. com vísceras de vários peixes e mariscos, depois de rigorosamente confeccionado, constituindo um manjar muito apreciado no entanto apenas acessível aos mais abastados. Esta pesca foi prosseguida pelos romanos e pelos árabes (responsáveis pela evolução tecnológica das pescas posteriormente),que nos legaram alguma da tecnologia e terminologia. Em 1249, data da conclusão da conquista do território nacional aos mouros, o rei D. Afonso III decide reservar para a coroa todos os direitos sobre a pesca do atum, sob a chancela das "Pescarias Reais". Com D. Fernando (meados do séc. XIV, cerca de um século depois) estabeleceram-se no Algarve os primeiros sicilianos e genoveses. Foram estes povos italianos que iniciaram os portugueses na arte da pesca do atum, com grande sucesso, uma vez que se tornou imediatamente numa actividade extremamente próspera, matendo-se assim até ao séc. XVII.
... A História com sabor
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Outras conversas Com Ana Leal de Faria 1 Investigadora do IPAEHI e CHUL; Licenciada em História;
Carolina Soares1 Na tarde de 20 de Fevereiro, numa conversa de cerca de quase duas horas com a professora Ana Maria Homem Leal de Faria, procurámos, numa primeira parte, desenhar o seu percurso profissional, destacando momentos e pessoas que actuaram na sua carreira e, numa segunda, reflectir sobre a organização do curso de História pós-Bolonha, ponderando possíveis vias de prosseguimento de estudos e formação profissional. Em perspectiva, a professora deu destaque a três etapas da sua carreira e que influenciaram e distinguiram o seu trabalho. Apelidou o primeiro momento de “Iniciação”, salientando a realização da sua tese de licenciatura, orientada por Jorge Borges de Macedo. Este foi um dos grandes marcos da sua formação que lhe proporcionou a entrada no Estágio Pedagógico, onde foi acompanhada por Maria Emílio Cordeiro Ferreira, terminando com o exame de Estado, como era prática na altura. Ambas as orientações marcaram intensamente o seu percurso profissional em “termos de exigência para comigo e para com os alunos, a qual foi abrandado ao longo dos anos, neste último caso”. Ensinou História no Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, onde esteve durante cerca de dezassete anos. Colaborou na formação de professores, quando foi introduzido o modelo de profissionalização em serviço, sendo simultaneamente responsável pela disciplina de História, como delegada de grupo. Guarda como uma boa experiência a colaboração com o Ministério da Educação, logo a seguir ao 25 de Abril - na concepção dos novos programas de História e na elaboração de materiais de apoio fornecidos às escolas - com uma equipa de trabalho muito boa e com quem continuou a colaborar na elaboração de manuais escolares. Esta foi a sua primeira fase, procurando conciliar a docência com uma intervenção didáctica projectada para além da escola. Armada com esta preparação, iniciou a segunda etapa ao entrar como assistente convidada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa onde foi desenvolvendo a docência e a investigação com vista ao doutoramento. Actuou maioritariamente na formação de professores, leccionando Didática da História e orientando estágios. Foi também convidada para assistente do professor Joaquim Veríssimo Serrão, na cadeira de Cultura Portuguesa Moderna. Foi ele quem a entusiasmou a fazer o doutoramento. Nas aulas práticas comentavam-se textos que suportavam e fundamentavam a parte teórica da cadeira. Apesar da conclusão do doutoramento
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se ter atrasado, acabou por o e defender “à moda antiga”, com dois dias de provas.
Embora, na altura, não se tenha apercebido disso, lembra que o envolvimento na vida institucional era diferente para um assistente convidado, que acabava por ser encarado como um “outsider”, muito devido à rígida hierarquia da carreira académica. Começava-se como assistente estagiário, passando a assistente com o mestrado ou provas de habilitação pedagógica e científica e depois, com o doutoramento, podia-se ser contratado como professor auxiliar. Concluindo o doutoramento, entrou na terceira fase da sua carreira. Nesta, conseguiu conciliar as suas duas grandes paixões, a investigação e o ensino, considerando que ambas estão intimamente ligadas. Acredita que “é na investigação que encontramos o alimento para o desenvolvimento dos estudos historiográficos e, ao mesmo tempo, para as nossas aulas (...) É a única forma de se renovar o conhecimento”. Tanto no primeiro como no segundo ciclo, tem procurado chamar à atenção dos alunos para “o aspecto crítico e criativo, o tentar pensar por nós e alimentarmo-nos na pesquisa, na procura e na indagação”. Daqui a conversa partiu por outros caminhos e reflectimos sobre o ensino universitário actual, não em comparação com a sua licenciatura, até porque acredita que devemos usar as memórias do passado para avançarmos, pois não é “partidária do regresso ao passado”, lembrando que “se alguma coisa a História nos ensina é que não nos ensina nada”. Ainda assim, percebemos com ela que a constante é a mudança. Contudo, se tiver de comparar a sua licenciatura com a actual, a mais óbvia diferença é a do tempo, já que a sua licenciatura tinha cinco anos. Os primeiros quatro anos de curso eram curricularmente intensos. No último, tinham duas cadeiras e um seminário de investigação de onde saía a tese, mas como nesse ano ainda havia exames, um plano de tese a ser aprovado e o início da recolha da documentação, “era impensável entregar a dissertação no fim desse ano, talvez fosse possível no fim de um sexto ou de um sétimo ano, ou nunca, porque nem toda a gente tem aptidão, gosto, qualidades para escrever uma monografia baseada em investigação autónoma. Com o 25 de Abril, acabaram as teses de licenciatura e os alunos que não as tinham ainda realizado ficaram, automaticamente, com esse grau académico. Acho que a tese faz toda a diferença.” Depois disso, o curso foi reduzido para quatro anos, uma vez que sem a tese não fazia sentido o quinto ano. Agora, se somarmos os três anos de Bolonha com o ano curricular do mestrado mais o outro ano, destinado a finalizar a tese, em termos de tempo e de maturação das matérias, o conjunto do primeiro e do segundo ciclo actuais corresponde ao que a professora fez em licenciatura. Todavia, considera que as ciências históricas têm feitos progressos notáveis e relembra que tanto a Professora Virgínia Rau, como o Professor Jorge Borges Macedo e o Professor Joaquim Veríssimo Serrão, se mostraram extremamente actualizadas para o tempo, e que a qualidade do professor depende sempre da sua envergadura intelectual e humana. Na sua opinião, “a hierarquia na carreira fazia sentido; hoje temos um conjunto de doutores mas não temos ninguém a colaborar com eles, e a hierarquia com sentido académico e científico quebrou-se; actualmente, os critérios da carreira académica talvez já não sejam tão pautados pelos critérios científicos e pedagógicos mas mais centrados nos interesses de gestão”.
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Paralelamente, a actual estrutura do curso de História e dos métodos de avaliação aplicados, centram-se cada vez mais no professor, que trabalha isoladamente, “pois faz o programa, avalia os alunos, dá as notas, faz os exames”. Num tom alegre acrescenta “o professor é senhor da vida e da morte dos súbditos” e acrescenta que “num sistema de avaliação contínua isso faz sentido, o pior é misturarem-se dois sistemas diferentes, pois o conceito de exame implica a constituição de um júri e a aplicação dos mesmos critérios de avaliação para todos os alunos daquela unidade curricular o que, por sua vez, exigiria também um programa comum às várias turmas, o que não se verifica”. O modelo aplicado antes de 1974 colocava os alunos numa posição mais justa e equitativa. Ora, hoje cruzam-se vários sistemas criando, consequentemente, alguma incoerência. Por vezes, “procura-se parecer e não se tem o cuidado de ser. Ora é fundamental ser e de facto sendo, a questão das aparências deixa de ser um problema. O nosso testemunho científico e pedagógico está verdadeiramente nos nossos alunos e nos nossos trabalhos de investigação.” Para a professora “a aplicação do processo de Bolonha tem sido uma desilusão”. Acredita que seria possível fazer muito melhor mas para isso era necessário ter tido a coragem da realização de uma verdadeira reforma. “O que se fez foi um ajustamento do que já havia”. Acrescenta que se “fizeram reestruturações curriculares sobre reestruturações curriculares e ninguém está satisfeito. Acho que os alunos sentem que lhes falta qualquer coisa, e de facto falta. Como é que um professor consegue orientar dezenas de trabalhos num semestre?” Por outro lado, sabe que “há alunos óptimos e tão boas cabeças como havia há cinquenta anos, mas existem meios muito melhores, que permitem um desenvolvimento imenso. Então porque é que a qualidade não é muito melhor? Se não são as pessoas e se houve uma imensa melhoria dos meios, o que é que está mal? Talvez tenham sido as elites que perderam o sentido do dever, o sentido da exigência e da responsabilidade”. Perante isto sugere: “Sabe como é que eu gostava de ver? Gostava de ver aulas teóricas de uma hora expostas por professores especialistas e depois grupos mais pequenos para aulas práticas, num esquema tutorial. Para isso a composição do corpo docente também teria que ser diferente, havendo uma maior possibilidade de contratação e de iniciação da carreira académica para docentes mais jovens”. Para além disso, conclui que seria desejável uma maior articulação do primeiro ciclo com o segundo, encaminhando os estudantes para estudos pós-graduados, organizados em duas vias, uma de investigação e uma outra mais prática e profissionalizante, como por exemplo, a via ensino, de turismo, arquivística, etc. “Sendo as universidades públicas suportadas pelas famílias dos estudantes e pelos contribuintes (…) compete às mesmas mostrar à sociedade que servem para alguma coisa e fazem-no ao formar profissionais competentes nas várias áreas. Tenho pena que Bolonha acentue demasiadamente os critérios quantitativos, através das unidades de crédito e que, por sua vez, isso não seja levado a sério, nem poderia ser de outra maneira, pelo menos no caso de muitas cadeiras na área das humanidades. Para tal, os cursos tinham de estar organizados de outra maneira, havendo uma maior distinção entre as aulas teóricas e as
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práticas”.
Foi com esta reflexão que terminámos a nossa conversa, deixando vincada a sua opinião, construída e baseada numa imensa experiência pedagógica e de investigação. Uma conversa com a professora Ana Leal de Faria, que possivelmente poderá inspirar e motivar jovens historiadores.
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Os Aventureiros e o Mar Tenebroso Amanda Coelho 1
1 Investigadora do IPAEHI e IAH; Licenciada em Estudos Europeus pela FLUL; 2 Esta designação torna notória uma perspectiva diferente, centrada obviamente no Oriente. De igual modo é de notar que já no século XII, tempo em que o presente texto é escrito, existia a noção do Mediterrâneo como um ‘derivado’ do Atlântico.
3 De facto este mar Oceano tem várias dimensões na acepção medieval; existem neste sentido vários ‘mares’, como nos revela Pedro Gomes Barbosa: “Aquele sobre o qual se navega (…)”, “Um outro (…) para além deste, mas cujas fronteiras são vagas e se interpenetram ; mar misterioso que cerca o mundo habitado (…)” e, por fim, “[…] o que está abaixo da superfície do mar: o covil dos monstros (…)”. Vide Pedro Gomes Barbosa, “Os mitos e os medos do mar Oceano”, Clio. Revista do Centro de História da Universidade de Lisboa, Nova série, vol. 4, Lisboa, Centro de História, 1999, pp 58.
Neste pequeno trabalho debruçamo-nos sobre um excerto da Description de L'Afrique Et de L'Espagne, tradução francesa do árabe por parte de M. Dozy e M. J. de Goeje e que faz parte do famoso Livro de Rogério, da autoria do geógrafo árabe Abu Abd Allah Muhammad al-Idrisi al-Qurtubi al-Hasani al-Sabti ou, simplesmente, al-Idrisi. Al-Idrisi foi um geógrafo, cartógrafo e viajante, descendente de andaluzes muçulmanos, nascido em Ceuta por volta do ano de 1100 e que frequentou a corte siciliana do rei normando da ilha, Rogério II. Viajou desde tenra idade pelos mais variados territórios de domínio islâmico (e não só), o que contribuiu para o detalhe que caracteriza as suas obras, nomeadamente o Livro de Rogério. O Livro de Rogério é datado do ano 1154 e foi especialmente feito para o já referido rei Rogério II, que reinou a ilha da Sicília sob domínio normando entre 1130 e o ano de 1154. O reino normando da Sicília era um dos territórios, à semelhança da Península Ibérica (o Al-Andalus), caracterizados pela presença, em conflito e ao mesmo tempo em cooperação de culturas diferentes e divergentes (o cristianismo e o islão). Assim, é neste território único e multicultural que Idrisi escreve talvez a sua obra mais conhecida e, portanto, que mais impacto teve também para gerações seguintes, não só do domínio normando e islâmico, mas também em exploradores cristãos do ocidente europeu como é exemplo de Colombo ou Vasco da Gama. A obra geográfica compreendia uma detalhada descrição de vários territórios conhecidos pelo geógrafo numa perspectiva do viajante e continha de igual modo mapas muitíssimo pormenorizados das terras descritas. O geógrafo começa a sua narrativa a partir do extremo ocidente da Península Ibérica (território hoje ocupado por Portugal), que é banhado pelo “Oceano Tenebroso”, ou seja, o Oceano Atlântico. É deste que provém (como braço) o Mar Mediterrâneo, também referido no texto 2
como Mar da Síria . Ao lermos o texto deparamo-nos com uma ideia do Oceano Atlântico muito específica e que será repetida várias vezes ao longo do excerto da obra que utilizamos para o nosso pequeno estudo: a ideia de um oceano como fonte de desconhecido e de medos 3
infindáveis . É deste modo, banhado por esta verdadeira fronteira do extremo ocidental, que Idrisi situa o Al Andalus (também referido como Ichbâniya, termo de origem grega).
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O autor descreve a Península ao mesmo tempo como uma ilha e um triângulo e faz a contagem das distâncias dentro desta na forma de jornadas até chegar à maior costa desta ‘ilha’, ou seja, a costa ocidental, o Gharb. Idrisi reforça a noção de ‘finis terra’, já que é aqui que termina a porção de terra habitada e habitável, para além deste território, desta última fronteira, existe apenas o imenso Mar Tenebroso. Surge novamente a ideia do mar, especificamente o Atlântico, como um território de trevas: Idrisi descreve-o pelas suas grandes ondas, as suas tempestades frequentes, os seus ventos violentos e pela presença de animais monstruosos. Esta descrição é extremamente interessante, na medida em que demonstra claramente os medos suscitados por este estranho território marítimo, especialmente no que toca à referência aos animais monstruosos. Será que o autor refere-se simplesmente à presença de animais, como baleias, focas e outros animais de grande porte, que não seria habitual avistarem-se também no Mar Mediterrâneo pelos navegadores e viajantes de origem islâmica? Parece pouco provável que o autor faça esta descrição de uma perspectiva puramente ‘intelectual’ (ou seja que se refira apenas à caracterização de animais não antes vistos e não a uma dimensão imaginária tanto destes animais como do seu domínio, o mar), já que, se, como anteriormente admitimos, Idrisi se refere a baleias ou focas, o Mar Mediterrâneo também teria a presença deste tipo de animais à altura em que o geógrafo escreve. Ainda hoje existem colónias de lobos-marinhos (e outro tipo de focas, apesar da ameaça de extinção) no Mediterrâneo, já em relação às baleias, nomeadamente as de maior porte como os cachalotes, também habitam e viajam no 4
Mediterrâneo, comportamento que já teriam anteriormente à época medieval .
No entanto o Mediterrâneo não é descrito como tenebroso, apesar das grandes baleias que 5
também contém. Não podemos evitar especular se esta diferenciação entre os dois corpos de água terá que ver com o Oceano Atlântico estar “aberto” ao contrário do “fechado” Mar Mediterrâneo (já Aires A. Nascimento refere que “Atende-se no carácter de espaço aberto que o 6
Atlântico apresenta por oposição ao espaço cerrado representado pelo Mediterrâneo.”) .O autor
4 Sobre a distribuição de cachalotes vide http:// www.iucnredlist.org/ details/16370739/0 [consultado a 17 de Fevereiro de 2013]. Em relação à foca-~ -monge do Mediterrâneo vide http://www. monachus-guardian.org/ factfiles/medit01.htm [consultado a 22 de Fevereiro de 2013]. 5 No entanto, “Alguns autores mediterrânicos (…) pareciam mais deslumbrados e até assustados pelas grandes baleias que observavam (…) ” in Cristina Brito, “Baleias e Monstros, Iconografia e Repetições na História da História Natural: Representações visuais de animais marinhos na época medieval e renascentista”, Anais de História de Além-Mar, vol. XI, 2010, pp 15. 6 in Aires A. Nascimento, Navegação de S. Brandão nas fontes portuguesas medievais, Lisboa, Edições Colibri, 2002, pp 53. 7 Vide Pedro Gomes Barbosa, op. cit, pp 57. 8 É evidente de novo a perspectiva islâmica com a referência à cidade de Toledo, perdida para os cristãos havia pouco tempo (1085), mas que no entanto ainda faria parte da ‘consciência’ islâmica.
prossegue com a descrição de um Oceano pejado de ilhas, tanto habitadas como desertas, mas que no entanto só pode ser navegado à vista e nunca por alto mar, pois existia sempre o perigo de ‘ser engolido pelo mar’. O mar, símbolo de vida e de criação, de transformação e renascimento, é também um território de “[…] ambivalência, de incerteza, da indecisão que 7
pode terminar no Bem ou no Mal” .
De igual importância para compreender a caracterização do Oceano Atlântico aos olhos muçulmanos da altura é o relato sobre os Aventureiros. 8
O geógrafo começa por situar a cidade de Lisboa em relação ao rio Tejo (ou rio de Toledo ), cujas marés são descritas como muito acentuadas. Existe a sugestão pelo autor de que a cidade estaria distribuída ao longo da margem do Tejo e não só centrada à volta do forte. O aspecto militar é novamente referido, ao mencionar a muralha da cidade e o castelo. Idrisi reafirma ainda a presença de águas dentro da cidade, seja pela existência de fontes, banhos ou termas.
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9 Vide Edrîsî, op. cit., pp. 223. 10 Há quem especule se esta ilha seria a actual Ilha da Madeira, como Christophe Picard: “[…]le récit dit des « Aventuriers de Lisbonne » qui fut organisé au Xe siècle par huit marins, ayant probablement débarqué à Madère(…)” e “Il aborda tout d'abord l'« île des Moutons » (Madère), comme plus tard, les huit Aventuriers (…) ” in Christophe Picard, “Récits merveilleux et réalité d'une navigation en Océan Atlantique chez les auteurs musulmans”, Actes des congrès de la Société des historiens médiévistes de l'enseignement supérieur public. 25e congrès, Orléans, 1994. pp. 77 e pp 79. 11 Vide Edrîsî, op. cit., pp. 223. 12 “ […] não na acepção de desordem (…) mas sim no da plenitude do Sagrado ainda não formado, de onde tudo pode ser criado.” In Pedro Gomes Barbosa, op. cit., pp 57.
13 Em relação à qualidade paradisíaca do fruto e por conseguinte da árvore que o produz: “Muhammad is reported to have recommended that the believers eat figs and to have stated that had He chosen a fruit to have descended from Paradise it would have been the fig.” Vide http: //bahai-library.com/alkan_ fig_olive, [consultado a 19 de Fevereiro de 2013]. 14 Pedro Gomes Barbosa, “As Utopias do Mar”, IV Jornadas da cultura marítima. 17 e 18 de Outubro de 2002, Coordenação de Joaquim Manso, Câmara Municipal da Nazaré, 2005, pp 170.
A proximidade do oceano Atlântico é de uma importância extrema para esta parte da narrativa geográfica. É a partir deste momento que Idrisi repentinamente pára a descrição da cidade de Lisboa e começa com a narrativa sobre os Aventureiros, ao referir uma certa rua com o nome dos mesmos algures na cidade. Fig. Lisboa Medieval 3D - Retirado de Google Images 9
Os Aventureiros teriam sido um grupo de oito parentes (“[…] tous proches parents(…)” ) islâmicos que partiram de Lisboa numa embarcação carregada com água e víveres para alguns meses, a fim de conhecer o Oceano e os seus limites. Os Aventureiros navegaram durante onze dias até que chegaram a águas que cheiravam fetidamente e que escondiam recifes. Perante este 10
perigo os navegantes mudam de direcção para sul, onde encontram uma ilha. Esta ilha estaria 11
repleta de carneiros (“[…] l’île de Moutons(…)” ) e teria uma fonte de água junto a uma figueira selvagem. Olhemos para esta ilha de outra maneira: é impossível não atribuir significado a esta descrição dos elementos da ilha, em particular em relação à presença da figueira. A figueira poderá aparecer na narrativa simbolizando um elemento do sagrado ou do caos12, especificamente pode representar a qualidade do paradisíaco, no entanto esta árvore não produz 13
frutos . Tal como a árvore que não dá frutos, os carneiros existentes nesta ilha não alimentam (os Aventureiros tentaram comê-los, porém a sua carne não era de todo comestível). Seriam os Aventureiros então não merecedores? Seria por este motivo que a ilha não lhes serve de porto de abrigo e quase que propositadamente não os alimenta ou restitui as forças, como se de uma prova se tratasse? Podemos apenas especular sobre o assunto. No folklore marítimo não nos faltam histórias de ilhas que só se apresentam aos merecedores (e os protegem), que por isso têm uma dimensão mágica. É como se toda a ilha fosse ‘selvagem’, onde ao mesmo tempo todo o potencial do sagrado está presente (e a possibilidade do bem e ao mesmo tempo do mal), assim a ilha “[…] é um universo fechado sobre si próprio, voltado para dentro, que escapa ás leis correntes das terras continentais. Um lugar onde podemos encontrar, confinado, o 14
maravilhoso”. É este maravilhoso que cremos encontrar espelhado nesta narrativa de Idrisi e, especificamente, nesta primeira ilha. A história continua com os companheiros a deixarem a ilha levando apenas peles de carneiro e navegando durante mais doze dias. Após estes doze dias de viagem os Aventureiros deparam-se com uma outra ilha, mas esta, verificaram, estava habitada e cultivada. Os companheiros foram seguidamente capturados e levados para terra onde encontraram homens altos e ruivos e mulheres de rara beleza (a alusão à beleza das mulheres não é pouco frequente em situações
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deste género, em que homens após um período mais alargado de tempo em mar, ao verem finalmente elementos do sexo feminino ficam facilmente deslumbrados).
Os Aventureiros, feitos prisioneiros por três dias, foram levados à presença do rei da ilha ao quarto dia e comunicaram ao soberano os motivos pelos quais partiram nessa viagem. O rei, 15
através do seu intérprete , informou-os que já o seu pai ordenara escravos a fazerem exactamente o mesmo e estes navegaram as águas do Atlântico durante um mês até que faltou a luz dos céus e só havia negrume. Desta maneira os escravos desistiram e voltaram para trás com a certeza de que não se poderiam determinar os limites do Oceano e que no fim deste estão as trevas16. Reitera-se a ideia perpetuada no imaginário islâmico de um Oceano Atlântico que é verdadeiramente tenebroso e cheio de perigos mortais. Após esta conversa os companheiros voltam para a prisão temporariamente com a graça do rei. Pouco depois são colocados numa embarcação de olhos vendados e durante três dias navegam até que dão à costa numa praia. Nesta praia são encontrados por habitantes berberes, que os
15 Este mar Oceano é apresentado como um limite, como nos diz Pedro Barbosa: “O Mundo era um disco, cercado pelo mar Okeanos, que o limita e delimita e que os homens dificilmente podiam ultrapassar.” Vide Pedro G. Barbosa, op. cit. pp 54. 16 Um falante da língua dos Aventureiros, ou seja, o árabe, o que sugere que estes habitantes poderiam ser berberes possivelmente provindos do Magrebe (guanches). Assim sendo, esta ilha seria provavelmente uma da Canárias. 17 “[…]voilà pourquoi le nom de ce lieu est encore aujourd’ hui Asafî ” in Edrîsî, op. cit., pp. 225.
libertam e os informam de que estão a dois meses da pátria (Lisboa). O líder do grupo dos Aventureiros, na sua condição de náufrago abandonado à sorte, lamenta a sua situação dizendo repetidamente “wa asafi” (ai de mim). Idrisi informa-nos que o porto Safim ficou conhecido por 17
esse nome por causa deste episódio .
A história dos Aventureiros (e o tratamento dela pelo geógrafo) é muito interessante. O mais provável é que Idrisi teria travado conhecimento desta aventura através de fontes orais, testemunhos adquiridos na cidade de Lisboa ou através de viajantes ou navegantes que lá estiveram e os recolheram. Nesta narrativa o Oceano Atlântico apresenta-se-nos como um domínio tenebroso, repleto de perigos, um local onde reina o caos (no sentido que já anteriormente expomos da palavra) e onde, consequentemente, poder-se-á manifestar o sagrado no seu pleno. Esta possibilidade seria o suficiente para afastar deste meio aquático os mais intrépidos e corajosos homens, no entanto oito parentes revelam-se audazes (ou iludidos) o suficiente para o fazer. A história dos Aventureiros de Lisboa é uma de coragem e ao mesmo tempo de loucura, mas revela essencialmente essa ânsia de (re) descoberta já presente nesta altura na mesma região de onde, séculos mais tarde, sairiam as primeiras naus portuguesas. O espírito dos Descobrimentos já estaria bem vivo (e o Velho do Restelo também).
Fig. Mapa de Idrisi do século XII incluido no Livro de Rogério - Retirado de Google Images
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VI. Fontes e Bibliografia Básica I. Fontes Edrîsî, Description de L'Afrique Et de L'Espagne, tradução e notas de M. Dozy e M. J. Goeje, Paris, Leyde, E. J. Brill, 1866, pp 197-198 e pp 222-225 A Conquista de Lisboa aos Mouros. Relato de um Cruzado, edição de Aires A. Do Nascimento, Lisboa, 2001
II. Bibliografia Geral 2.1) Obras de Referência TRESIDDER, Jack,The Watkins Dictionary of Symbols, Londres, Watkins Publishing, 2008
2.2) Obras gerais KENNEDY, Hugh, Os muçulmanos na Península Ibérica : história política do al-Andalus , EuropaAmérica, Lisboa, 1999 LE GOFF, Jacques, A Civilização do Ocidente Medieval, vol I e vol II, Editorial Estampa, Lisboa, 1995 LE GOFF, Jacques, O Imaginário Medieval, Editorial Estampa, Lisboa, 1994 LEWIS, Bernard, The Arabs in History, Oxford University Press, 1993
2.3) Bibliografia Específica BARBOSA, Pedro Gomes, “Os mitos e os medos do mar Oceano”, Clio. Revista do Centro de História da Universidade de Lisboa, Nova série, vol. 4, Lisboa, Centro de História, 1999 BARBOSA, Pedro Gomes, “As Utopias do Mar”, IV Jornadas da cultura marítima. 17 e 18 de Outubro de 2002, Coordenação de Joaquim Manso, Câmara Municipal da Nazaré, 2005 BRITO, Cristina, “Baleias e Monstros, Iconografia e Repetições na História da História Natural: Representações visuais de animais marinhos na época medieval e renascentista”, Anais de História de Além-Mar, vol. XI, 2010 GASCÓN, Roberto Matesanz, “¿Dónde está la mitología fenicia?: Al-Idrisi y los Aventureros de Lisboa”, Gérion. Revista de Historia Antigua, Vol. 20, num. 1, Publicaciones Universidad Complutense de Madrid, 2002, pp. 93-94 NASCIMENTO, Aires A., Navegação de S. Brandão nas fontes portuguesas medievais, Lisboa, Edições Colibri, 2002 PICARD, Christophe, “Récits merveilleux et réalité d'une navigation en Océan Atlantique chez les auteurs musulmans”, Actes des congrès de la Société des historiens médiévistes de l'enseignement supérieur public. 25e congrès, Orléans, 1994
Links da Internet http://www.press.uchicago.edu/books/HOC/HOC_V2_B1/HOC_VOLUME2_Book1_chapter7.pdf
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[consultado em 21-02-13] http://bahai-library.com/alkan_fig_olive, [consultado a 19 de Fevereiro de 2013]
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Matrix, Herança Clássica num êxito Cinematográfico José Malheiro Magalhães 1
Matrix é o título de um famoso blockbuster de ficção científica estreado em 1999. Foi escrito, produzido e realizado por os irmãos Lanna e Andy Wachowski, tendo duas sequelas, Matrix Reloaded e Matrix Revolutions, filmadas em paralelo mas estreadas em duas partes em 2003. Os filmes tornaram-se numa das trilogias de maior êxito nas bilheteiras de todo o mundo. Destacaram-se pelos efeitos especiais de ponta e combinação de um variado leque de artes 1
Investigador do CHUL e do Instituto PAEHI Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
marciais. e especialmente por um background temático bastante original e bem desenvolvido, muitas vezes deixado de parte pelo carácter blockbuster da saga mesmo até aos olhos da academia, visto terem preterido o enredo em favor dos efeitos especiais na atribuição do máximo galardão do cinema. Sendo um bom trabalho do imaginário contemporâneo acaba por não ser surpresa a consciencialização de que, tomando os filmes como objecto de estudo, se encontram repletos de pormenores que provêm, pelo menos numa fase original, de culturas Clássicas e Pré-Clássicas, desde a religião até à filosofia. Sendo o nosso objectivo explorar os elementos clássicos presentes na trilogia é obrigatório, em primeira instância, compreender a temática geral que os irmãos Wachowski transpuseram para a tela, e para tal efeito não existe melhor explicação do que aquela dada por uma das personagens principais.
What is the Matrix? Control. The Matrix is a computer-generated dream world, built to keep us under control in order to change a human being into this 48
As palavras de Morpheus, encarnado na tela por Laurence Fishburne, são o resumo mais sintetizado do título da saga. Matrix no seu conceito original não é nada mais do que uma fantasia, um universo imaginário baseado na civilização do final do século XX, criado para gerar a ilusão de um mundo para os seres humanos, que na realidade não passavam de prisioneiros. No entanto, este simulador integrava-se numa realidade bastante diferente do mundo que nós conhecemos, um hipotético futuro da história da humanidade centrada no ano de 2199. A precaridade da situação que o Homem vivia nessa época devia-se a um longo conflito em que estava envolvido, uma dura batalha contra as máquinas. A invenção da inteligência artificial teria sido aperfeiçoada de modo a ser possível atribuir características próprias do ser humano à tecnologia, nomeadamente a capacidade de raciocínio e acção, totalmente autónomas, completamente independentes da necessidade de intervenção do Homem. A história da civilização humana de certa forma repete-se, desta vez com as máquinas como actores principais, que se agrupam e desenvolvem, formando a sua própria civilização centrada numa cidade (déjá vu Roma), tendo conseguido conquistar a hegemonia mundial num mundo em ruínas eternamente imerso em sombras. Esta noite permanente devia-se ao facto de, numa tentativa de cortarem o fornecimento de energia à nova civilização, a resistência humana ter “queimado” o céu, ao ponto de a luz solar não penetrar para lá das nuvens. Esta opção radical não obteve resultados, visto o inimigo obter energia por outros meios, essencialmente alimentando-se de pessoas. Na sua cidade as máquinas possuíam campos imensos onde literalmente criavam humanos, muito semelhante ao cultivo de um espaço rural, que se encontravam desde o nascimento presos num sono eterno, cujas mentes deambulavam pelo Matrix, sendo alimentados pelos restos orgânicos daqueles que já tinham morrido. Como na generalidade das histórias que envolvem uma entidade agressora e uma agredida, existe a necessidade de a sociedade humana, que pela primeira vez em milhões de anos não é a força dominante do planeta, assumir o papel de underdog e embarcar numa batalha desigual pela sobrevivência. Tornava-se então missão dos homens livres fazer incursões ao interior do Matrix, procurando resgatar os prisioneiros desse sonho permanente, na esperança de salvar uma pessoa em especial, um escolhido, segundo uma profecia, que destruiria as máquinas e libertaria a raça humana. Mesmo em tão breve exposição parece-nos simples, para o olhar conhecedor do classicista, observar certos elementos, certas temáticas, que se salientam em termos de inspiração clássica, tais como o encarceramento do ser humano, a guerra aberta entre o criador e os seres criados, especificamente iniciada pela revolta do segundo, messianismo ou simplesmente a denominação de certas personagens, ainda que outras temáticas caras ao mundo clássico sejam indubitavelmente abordadas.
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O mundo Comecemos do geral para o particular. O conceito base do filme, o aprisionamento da mente do ser humano, remonta a uma famosa teoria originalmente tratada na antiguidade por Platão, que havia explorado a ideia do aprisionamento da humanidade na sua famosa alegoria da caverna.
Arranhando as suas linhas mestras, Platão propõe um cenário no qual um conjunto de homens estaria preso, acorrentado numa caverna, completamente imóvel não existindo possibilidade de comunicar com os companheiros de encarceramento.
A única noção de realidade que possuem é das suas próprias sombras, projectadas na parede pela luz que emanava de uma fogueira que nunca se apagava, das sombras de estátuas que homens transportavam por um caminho que dividia o espaço entre os prisioneiros e a fogueira, para além das conversas que ouviam provenientes desses transportadores. (Busto de Platão. Museu do Vaticano. Disponivel online em: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/d/da/Plato_Pio-Clemetino_Inv305.jpg/395px-Plato_PioClemetino_Inv305.jpg)
Esta era a condição geral e inalterável para aqueles homens, cuja única realidade que podiam conhecer era constituída por um conjunto de sombras que pensavam que falavam, sendo tal realidade contestada apenas quando um dos prisioneiros é solto, e obrigado a encarar o mundo real para além das sombras (Pl.R.VII 515d). Esse homem teria dificuldade em aceitar uma visão completamente inovadora do mundo em que estava inserido, sendo necessário um período de adaptação. Só depois conseguiria ter uma visão clara sobre a beleza real do mundo, querendo partilhá-la com os seus antigos companheiros. Desce de novo à caverna, encarando novamente as trevas depois de os seus olhos já se terem habituado à luz do sol, no entanto, a reacção dos ainda prisioneiros não seria de abraçar os relatos do mundo superior, visto ser a negação absoluta da única realidade que conheciam (Pl.R.VII 514a-517a).
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Platão pretendia deste modo explicitar a resistência ao conhecimento proporcionado pelos homens que se baseavam apenas naquilo que os seus sentidos físicos podiam percepcionar, sendo que a sabedoria só podia ser alcançada por aquele que conseguisse o domínio do mundo sensível e do inteligível. Nos filmes este tema é retratado quase a par do exemplo platónico, onde as personagens lideradas por Morpheus procuram libertar as pessoas das amarras que os seguram a um mundo que não é real, mas que consiste na única realidade que podiam percepcionar. Além disso, é um cenário imensamente sedutor em relação à triste realidade que o mundo vivia na época ao ponto de termos o caso de uma personagem, Cypher, um humano que tinha sido libertado mas que preferia voltar a viver na ignorância. Em ambos os casos a verdade não podia ser forçada a ser aceite, tinha de partir da mente aprisionada a escolha de se soltar das suas amarras, uma escolha bem exemplificada pela famosa cena dos comprimidos azul e vermelho oferecidos por Morpheus a Neo. O primeiro significava a negação em conhecer outra realidade sem ser a que a personagem já vivia e o segundo, obviamente, a escolha de se libertar, pondo em causa a percepção que tinha do mundo.
Ainda mais curioso, e um factor inegável da intencionalidade dos realizadores, é a proximidade avassaladora, em certos momentos, do diálogo do filme com o texto original do filósofo ateniense. Destaca-se por exemplo a especulação de Sócrates quanto à reacção dos prisioneiros:
“ E a quem tentasse soltá-los e conduzi-los até cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam?” (Pl. R .VII,517a) Morpheus explica exactamente o mesmo a Neo, quando lhe tenta ensinar os perigos que existem na rede: Most of these people are not ready to be unplugged, and many of them are so inert, so hopelessly dependent on the system that they will fight to protect it.
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Outro caso claro de intencionalidade de intertextualidade acontece logo após o resgate de Neo, quando Apoc e Morpheus passam horas a tentar restaurar a funcionalidade do corpo do herói, visto estar atrofiado por nunca ter sido usado. Quando acorda, Neo questiona o facto de os seus olhos lhe doerem, ao que Morpheus responde que tal acontece porque nunca antes tinham sido usados. Platão descreve exactamente a mesma reacção para o homem que se consegue libertar, que inicialmente não conseguia encarar a luz solar, precisando de uma fase de adaptação (Pl.R.VII, 516b). Neste caso o filosofo explicita, com o recurso a uma metáfora, a dor de nos libertarmos da realidade física do mundo. Ainda na temática envolvente do enredo, toda a trilogia é marcada pela guerra avassaladora entre máquinas e humanos. A origem do conflito dá-se na cisão entre os seres criadores, os seres que controlavam o mundo, e os seres por eles criados, controlados e usados de acordo com a opção humana. Esta temática encontra-se presente de forma vincada na base da mitologia grega. Na Teogonia, Hesíodo narra a cosmogonia de acordo com a visão grega, contando-nos a união de Úrano e Gaia e o nascimento da sua prole, a geração titânica. Esta geração odiava profundamente o pai, pois Úrano aprisionava os recém-nascidos no corpo de Gaia, privando-os da luz. Crono, o de pensamentos tortuosos, o mais novo dos filhos de Úrano, entra num complô com Gaia com vista a destronar o seu pai, e munindo-se de uma foice de aço brilhante castra Úrano, e toma o seu lugar como divindade suprema. Quando Crono sobe ao poder é-lhe confidenciado, pelos seus progenitores (Hes.Th. 463-465), que um dos seus filhos seria o seu fim, tal como ele o havia sido para seu pai. Alertado por esta profecia, Crono adoptou uma acção semelhante à de Úrano, engolindo os seus filhos ainda recém-nascidos. Sentindo a dor pela perda da sua prole, Reia planeia com Gaia e Úrano esconder Zeus, o mais novo, guardando-o em Creta, enganando Crono que engole uma pedra pensando tratar-se do seu filho. Já adulto, Zeus consegue endrominar o seu pai, fazendo-o beber uma poção que o faz vomitar os seus irmãos. Este é o momento inicial da batalha entre os titãs e os deuses olímpicos, a titanomaquia, que é vencida por estes últimos que recorrem aos irmãos que o pai tinha acorrentado, os titãs de cem braços, que entregaram o trovão ao novo rei dos deuses.
A guerra que perpassa a trilogia ocorre exactamente nas mesmas linhas que o mito grego com a necessária actualização dos protagonistas em questão, sendo os deuses do olimpo representados pelas máquinas e os titãs obviamente pelos humanos, os seres criadores que exerciam controlo sobre a sua “prole”, que se revolta, alternando a ordem normal do mundo, tornando-se a força hegemónica no planeta.
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As Personagens No filme são várias as personagens que possuem traços comuns com figuras do imaginário mitológico, mas tendo em conta o carácter reduzido deste artigo debruço-me apenas sobre Neo. A linha da personagem principal é elaborada desde a formação do nome da mesma. Abordandoo à letra, entende-se facilmente o anagrama do termo One, significando Único, ou o Escolhido, utilizado de forma a adquirir um substantivo foneticamente atractivo, um nome que fizesse o espectador relacionar automaticamente a personagem com a importância que tinha para a trama. Esta semelhança é no mínimo curiosa do ponto de vista morfológico, visto ser semelhante ao termo grego Neos, utilizado quando procuramos categorizar as personagens do universo mitológico clássico, para classificar os deuses olímpicos. Do nosso ponto de vista é uma coincidência e não uma intenção deliberada dos realizadores, ainda que em Matrix Reloaded, o segundo episódio da saga, a personagem que se identifica como o arquitecto explicar que Neo é apenas mais um na linha dos “messias”, ou seja, é o sexto escolhido, tendo efectivamente existido cinco antes dele que não lograram o seu hipotético destino. A categoria dos Neoi agrupa o conjunto dos seis deuses olímpicos, Deméter, Hades, Posídon, Héstia, Hera e por último Zeus, sendo o sexto na linhagem e efectivamente aquele que conseguiu ser bem sucedido, tal como o herói da saga. As características que compõem o protagonista da trilogia são transversais a diferentes campos mitológicos, constituindo uma amálgama de pormenores característicos tanto de divindades como de figuras heróicas. Neo incorpora um largo espectro de características típicas do herói grego, tratando-se também de um caso especial de messianismo semelhante ao exemplo cristão, sendo a sua chegada profetizada por uma figura análoga à da pitonisa de Apolo
uma
opção
comprovadamente
deliberada
dos
realizadores que acrescentam uma particularidade, a de uma inscrição na ombreira da porta da cozinha do oráculo com o texto Temet nosce, “conhece-te a ti mesmo”, a versão latinizada do termo γνῶθι σεαυτόν, que se encontrava no pronaos do santuário de Delfos. (Cornelis Cornelisz van Haarlem, The Fall of the Titans (The Titanomachia), 1588-90 National Gallery of Denmark. Disponivel online em: Http://upload. wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/9/93/Cornelis_Cornelisz._v an_Haarlem_002.jpg/774px-Cornelis_Cornelisz._van_Haarlem_002.jpg)
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De entre dessas características derivadas de um sincretismo divino-heróico podemos destacar o facto de ele ter capacidades sobrenaturais para a guerra, de ser uma figura alvo de veneração, tendo por exemplo o momento em que ele chega a Zion, a última cidade humana, sendo esperado por uma multidão com ofertas e pedidos, um exemplo perfeito do teor do ut des característico do sistema religioso clássico. Tal como grande parte dos heróis da mitologia grecoromana, ele é uma figura que vive os momentos chave da sua vida durante a juventude, morrendo igualmente jovem. No seu percurso, Neo tem a necessidade de descer aos infernos, sendo os episódios de catábase um desígnio quase obrigatório na história de qualquer grande herói, tendo por exemplo Ulisses, quando necessitou do conhecimento do adivinho Tirésias ou de Eneias, para se encontrar com o seu pai Anquises, entre vários outros. Em termos de um caso singular, mitológico, a figura que se revela como um paradigma para a construção de Neo é a de Dioniso. Esta opinião assenta bastante no facto de o deus do vinho partilhar de uma relação privilegiada com Zeus, seu pai, questão observada até na própria denominação do mesmo, visto a raiz do seu nome partilhar basicamente a mesma que do pai dos deuses. Analisando, o termo Zeus tem um genitivo bastante irregular, Dios, um elemento que se apresenta contido no termo Dioniso, literalmente o filho de deus. Através do pai, Dioniso é uma figura que recolhe características de dois campos naturalmente opostos, o telúrico e o uraniano, sendo este último aspecto bastante vincado no herói de Matrix.
O deus conhecido na generalidade pela sua ligação com natureza e o teatro, consiste na realidade numa das personagens mais complexas e densamente elaboradas do espaço mitológico helénico. Não querendo alargar-nos na análise singular do deus passo a expressar apenas os aspectos mitológicos envolventes mais relevantes para a comparação com o herói da tela. Essencialmente o facto de Dioniso não ter nascido de forma usual, tendo acabado o tempo de gestação no interior do corpo de seu pai, que acidentalmente teria fulminado a sua mãe, Sémele, sendo um ser metade mortal, metade divino, acompanhado e ensinado por Sileno.
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É obrigado a provar o seu valor entre os homens para depois ascender ao Olimpo, tarefa em que tem sucesso, empreendendo uma campanha militar com o intuito de conquistar a Índia. No seu percurso, Dioniso desce também aos infernos, recuperando a sua mãe. Ainda um último detalhe relevante, segundo uma outra versão mitológica, associada à sua génese, Dioniso foi assassinado devido aos ciúmes de Hera, ressuscitando depois por intercessão de Zeus. Analisando ao pormenor, Neo é um ser que não usufrui de um nascimento normal. Sendo simplesmente mais um produto da civilização tecnológica, ele é salvo e depois tutelado por Morpheus. Neo é a figura guerreira de destaque contra o inimigo, no seu trajecto é morto por o seu rival, ressuscitando de seguida, desce ao inferno com o intuito de terminar a guerra, assumindo neste caso que o centro da civilização das máquinas, a cidade à qual ele vai no último episódio da saga, seria a melhor representação de inferno para a sociedade humana. Nesta procura de elementos dionisíacos em Neo, devemos destacar ainda um último, o da figura feminina que se encontra ao lado de ambos. Dioniso e Ariadne representam uma das grandes hierogamias, uniões sagradas, da cultura greco-romana, união celebrada anualmente no segundo dia do festival das Antestérias. No caso de Matrix, Trinity é uma figura indissociável de Neo, estando inserida até na profecia oracular que previa a chegada do escolhido. São duas figuras que surgem sempre associadas ao percurso do herói, constituindo em ambos os casos a grande união de aspecto amoroso.
Concluindo… A cultura grega constitui inegavelmente um marco na história da evolução do pensamento do homem, e do modo como ele encara os acontecimentos em seu redor. Os séculos sucedem-se, as pessoas mudam ao longo do espaço temporal, as sociedades moldamse a novas correntes de pensamento, que no seu período marcam de forma diferente a história do mundo. No entanto, em cada rio cultural encontram-se sempre gotas de cultura grega. Esses traços culturais que sobrevivem ao tempo, originando nova matéria, chegam aos dias de hoje ainda com força para influenciar e inspirar novas criações. Sendo o cinema um dos principais meios artísticos da sociedade e cultura contemporâneas é normal que se assista na grande tela à sobrevivência do conhecimento passado, ainda que nos chegue disfarçado. A análise que aqui fazemos baseia-se apenas no nosso olhar sobre um produto cinematográfico, que com base no nosso treino de historiador nos faz focar na procura da possível origem de cada acontecimento.
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No entanto, não temos qualquer relato dos realizadores e escritores desta trilogia em que se assumam as possibilidades aqui lançadas como factor real da inspiração dos mesmos. Não acreditamos que o tenham feito de forma deliberada, obviamente não pondo em causa o interesse geral da sociedade norte-americana quanto às temáticas inerentes à cultura clássica. Antes pelo contrário, a comunidade académica americana é prolífera no campo das humanidades, e mesmo em termos gerais existe alguma proximidade com o mundo grecoromano. Basta observarmos os nomes que são dados às repúblicas estudantis universitárias. No entanto o conhecimento e compreensão das temáticas aqui abordadas envolvem um saber além do geral, normalmente adquirido no correr da investigação. Assim sendo resta-nos assumir, e com um tom de agrado perante o pensamento, aquilo já expressado anteriormente e que pensamos ser observável de forma geral; que a cultura clássica, sendo a base do nosso pensamento, consiste numa árvore que deu frutos abundantes ao longo da história, frutos esses que hoje continuamos a colher, mesmo que muitas vezes não tenhamos ideia da árvore de que provém.
Bibliografia Fontes: HESÍODO, Teogonia, tradução de Ana Elias Pinheiro e José Ribeiro Ferreira, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2005, pp. 39-73. PLATÃO, A República, introdução, tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira, 13º edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2012. Bibliografia de Referência: GRIMAL, Pierre, Dicionário de Mitologia Grega e Romana, 5º edição, Lisboa, Difel,2009. Obras Gerais: BURKET, Walter, Religião e Mitologia Grega no Período Clássico e Arcaico, tradução de M.J. Simões Loureiro, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.
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Comentário Crítico ao Filme: Tróia (2004) de Woflgang Peterson Mauro Costa
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Troy de Wolfgang Peterson (2004) vem inserir-se numa Investigador do Instituo PAEHI; Licenciado em História pela Faculdade de Letras Lisboa.
onda de renovação cinematográfica de produções em que os temas clássicos são o foco principal dos seus argumentos e a Antiguidade Clássica, a sua História, a sua cultura (religiosa, literária, et alia) e o seu pensamento se tornam nos seus cenários. Esta nova vaga de produção cinematográfica iniciada no século XXI, com Gladiator de Ridley Scott (2000), insere-se, a nível cultural, na procura de uma identidade que a cultura ocidental, no seu todo, julgava perdida. Troy entra neste movimento, recuperando, nada mais, nada menos, que os temas homéricos, neste caso concreto a narrativa da Ilíada. Não só a narrativa homérica é recuperada, apesar das várias falácias que o argumento do filme junta às personagens homéricas, por outras razões que não seguir a narrativa homérica, mas também o argumento do filme forja a narrativa da Ilíada com a de outras obras da Antiguidade Clássica, como a Eneida de Vergílio ou as Pós-Homéricas de Quinto de Esmirna. O filme gira também em torno de alguns temas pós-modernos, já típicos da dramatização hollywoodesca, como o confronto, muitas vezes físico, por uma relação amorosa, onde os amantes possuem origens socioculturais diferentes. De resto, é um tema que resulta de uma ressonância do tema do amor romântico, que, por sua vez, não é mais do que a recuperação do tema do amor clássico. Assim se explica a abreviatura da duração de duas personagens importantes, os Atridas, Menelau (interpretado por Brendan Gleeson, morto por Heitor) e Agamémnon (interpretado por Brian Cox, morto, surpreendido por Briseida), tidos no prisma do filme como vilões. O argumento gira assim em torno do rapto/relação amorosa entre Páris e Helena e, secundariamente, em torno da relação entre Aquiles e Briseida. Acerca da produção e opiniões em geral de Troy, é possível que seja um dos clássicos mais caros dos últimos anos. De um orçamento de 175 milhões de dólares, os lucros do filme ascenderam até cerca de 500 milhões de dólares. No entanto, as críticas ao filme foram, na sua maioria, negativas. Ainda assim, o clássico que mais críticas negativas recebeu foi The Silver Chalice (1954) realizado por Victor Saville e com Paul Newman numa das personagens principais, tendo sido um dos seus primeiros filmes. Longe de estar brilhante na sua concepção, consideramos que estas críticas são algo exageradas, uma vez que o filme apresenta bons cenários e guardaroupa e a maior parte das interpretações dos actores até é razoável, quando alguns inclusive dão
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bastante vida à sua personagem.
Apesar de o argumento de Troy apresentar falácias quanto às suas fontes, com a agravante de passar a sua narrativa em tempo real, quase histórico, não deixa de incluir pormenores interessantes no seu set. Um dos epítetos de Aquiles que consta dos épicos homéricos é “o de pés velozes”, o que é realçado numa das cenas iniciais do filme. Em adição, os cenários, quer na Hélade, quer em Tróia, são inspirados e ocupados com a arquitectura e arte gregas do período arcaico, quando não mesmo, no caso dos cenários troianos, haver arte e estatuária arcaica com alguns motivos orientais. Um exemplo disto mesmo é a estátua dourada de Apolo que Aquiles decapita, quando este e os Mirmidões entram em combate contra as tropas troianas. Mas além disso, o filme excede claramente a narrativa homérica no seu início, uma vez que a Ilíada começa no décimo ano da guerra, mas o filme não inclui a peste provocada pelo deus Apolo, na sequência do rapto de Briseida e Criseida, filhas do sacerdote desta divindade Crises. No filme, Briseida torna-se prisioneira de guerra dos gregos, mas todos os acontecimentos da narrativa da Ilíada passados para o filme se encurtam no tempo, tornando-se quase imediatos. Quanto às personagens, estas divergem um pouco, não só da concepção homérica, mas também da restante literatura e cultura gregas. Como dissemos, Aquiles (interpretado por Brad Pitt), o protagonista, a partir do qual a trama romanesca e existencial do filme se desenrola, encerra em si parte da inspiração da obra homérica no filme. Neste filme, Aquiles ganha alguma longevidade, alicerçada na restante literatura que dá corpo à vida deste herói. A sua relação ambígua com Pátroclo (interpretado por Garrett Hedlund) é um dos elementos narrativos também abrangido pelo filme, uma vez que Pátroclo aparece como primo do herói. A relação entre Aquiles e a sua mãe Tétis também aparece ilustrada no filme, como no canto I da Ilíada. Esta convence-o a juntar-se ao restante exército grego. Aquiles mantém uma boa relação com Ulisses (interpretado por Sean Bean), que também é o narrador do filme. Orlando Bloom interpreta uma das personagens mais odiosas, não só da literatura, mitologia e cultura gregas, mas praticamente de toda a Antiguidade Clássica. Páris, o príncipe troiano, é na Antiguidade Clássica, o epítome da cobardia. Páris é assim, juntamente com Dario III, Judas Iscariotes, Bruto e Cássio, uma das personagens que representam tudo o que é contrário ao código de honra guerreiro clássico. Como é sabido, Páris viola a hospitalidade de Menelau ao levar a sua esposa, Helena, consigo. Será este o acontecimento que iria iniciar a Guerra de Tróia. Além disso, Páris revela-se um cobarde por delegar em terceiros, leia-se na sua própria nação, o facto de ter de enfrentar as consequências dos seus actos e por ter um arco como arma principal, o que já de si era sinónimo de cobardia, uma vez que para a cultura grega, o combate corpo a corpo era privilegiado. O filme ilustra bem este facto, tal como o canto III da Ilíada.
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Helena (interpretada por Diane Kruger) é a mulher pela qual todos estes acontecimentos se desenrolam e pela qual Menelau, rei de Esparta, decide pedir ajuda ao seu irmão Agamémnon, o poderoso monarca grego, rei de Argos e Micenas, para recuperar Helena. Como se sabe e assim tem sido apontado, Agamémnon apenas concorda e comanda o confronto com os troianos para conquistar a cidade de Príamo (interpretado por Peter O’Toole). Tal como no argumento de Troy este drama pode ser lido em O Corpo de Helena de Paulo José Miranda. Apesar de os autores gregos não referirem como era a beleza de Helena, o seu efeito é descrito no canto III da Ilíada e no final da Helena de Eurípides. Heitor (interpretado por Eric Bana) e Andrómaca (interpretada por Saffron Burrows) tomam também importância no argumento do filme. A Heitor está associada a sua resposta a Arqueptólemo de que não há melhor presságio do que lutar pela pátria, quando este afirma que viu uma águia trazendo uma serpente nas garras, presságio que na opinião do mesmo indicava a vitória dos troianos, tal como está escrito no canto XII da Ilíada. Já a figura de Andrómaca, aparece ao espectador como uma mulher chorosa e frágil, quando a figura conhecida da literatura e cultura gregas mostra-nos uma amante e mãe decidida. Devido à concepção falaciosa do argumento, acima referida, Eneias (interpretado por Frankie Fitzgerald) faz a sua aparição enquanto fugitivo da destruída Tróia. É aqui que o argumento inspirado na Ilíada se junta à Eneida, com Páris a entregar a Eneias uma “espada de Tróia” fictícia. Mesmo quando o argumento do filme excede a narrativa homérica segue uma tendência falaciosa, desta vez em relação aos relatos da Eneida e das Pós-Homéricas de Quinto de Esmirna. Aquiles é morto por Páris quando Tróia é tomada, quando na narrativa das PósHoméricas, esse acontecimento é anterior à tomada da cidade (canto III). Mas então se o argumento do filme mostra como seu terminus a morte de Aquiles e a fuga de Eneias, porque não incluir também a morte de Páris às mãos de Filoctetes (canto X), uma vez que na narrativa de Quinto de Esmirna também acontece antes da destruição da cidade? Apesar de Troy poder beneficiar de alguns ajustes de argumento e realização, não deixa de ser um filme que exibe aquilo que o século XXI potencializa de conhecimento da Cultura Clássica, que, como se sabe, se tornou temática, não só de discussão cultural alargada, como também agora de produção cinematográfica em renovação.
Bibliografia Homero: Ilíada, trad. Frederico Lourenço, Lisboa, Cotovia, 2005 Odisseia trad. Frederico Lourenço, Lisboa, Cotovia, 2003 Quinto de Esmirna: The Fall of Troy, trad. A. S. Way, London, W. Heinemann, Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1913 Finley, M. I., O Mundo de Ulisses, Lisboa, Editorial Presença, 1972
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Recensão Crítica ao Museu Nacional de Arqueologia 1
Pedro Marques Localização: Praça do Império 1400-206, Lisboa Como Chegar: Eléctrico 15; Autocarros 714, 727, 28, 729, 751; Comboios da Linha de Cascais 1
Pedro Marques. Doutorando em Arqueologia na Faculdade de Letras de Lisboa (UNIARQ). Bolseiro da FCT. E-mail: pmcmarques@ hotmail.com.
(estação de Belém); Transportes Fluviais (cais de Belém) Site: http://www.museuarqueologia.pt/?a=18&x=3 O Museu Nacional de Arqueologia foi fundado pela acção de José Leite de Vasconcelos. Criado com o nome de Museu Ethnographico Português, por decreto oficial do dia 20 de Dezembro de 1893, o museu ocupou inicialmente parte da Academia das Ciências de Lisboa. Um decreto de 26 de Junho de 1897 modificou o seu nome para Museu Ethnologico Português. Por decisão governamental de dia 20 de Novembro de 1900, o museu instalou-se definitivamente em parte do Mosteiro dos Jerónimos, onde subsiste actualmente. As duas entradas situam-se ao centro do monumento do Mosteiro dos Jerónimos e no seu lado esquerdo, junto das entradas para os Claustros e para a Igreja. Na entrada central, o visitante é saudado por uma réplica de um guerreiro galaico-lusitano, da mesma forma que os povos pré-romanos eram saudados à entrada dos castros. No átrio de entrada, ao fundo, um busto de José Leite de Vasconcelos dá as boas vindas aos visitantes. Naquele espaço podem ainda observar-se três estátuas romanas, um togado e duas mulheres, um conjunto de materiais etruscos, doados por D. Luís Bramão, primeiro presidente do Grupo de Amigos do Museu (GAMNA) e uma pequena mostra expositiva comemorativa do centenário da República, com objectos relacionados com este marco histórico. Após termos comprado o bilhete ou no domingo de manhã registado a nossa entrada gratuita, atravessemos a porta à direita ladeada pelas duas estátuas femininas romanas e contemplemos Leite de Vasconcelos a tirar notas nas suas várias viagens científicas. Tomemos a esquerda e entremos na sala da exposição permanente das Antiguidades Egípcias. Saúda o visitante um Udjat, o olho esquerdo de Hórus, que Set arrancou e que Tot curou. Poderoso símbolo protector, os Egípcios utilizaram-no como amuleto. Entrando na primeira sala à direita, podemos observar várias peças da Pré-História egípcia. Numa vitrine ao centro da sala, objectos de uso quotidiano, utilizados em vida e após a morte. Na parede existem várias estelas funerárias e elementos arquitectónicos, onde podemos desfrutar da escrita hieroglífica. Observamos, ainda, altares de oferendas, com a representação do pão e da cerveja. Na parede contrária, podemos ver várias estatuetas de madeira pintada, pedra, argila, faiança e terracota,
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pertencentes a várias épocas.
Na segunda sala, ao centro, encontra-se uma múmia humana dentro do seu sarcófago. Recentemente, todas as múmias humanas e de animais do Museu foram submetidas a exames médicos não intrusivos. O defunto chamou-se Pabasa e foi sacerdote do deus Min. À sua volta, estátuas do deus Ptah-Sokar-Osíris, chauabtis, estátuas de servos e amuletos. Na terceira sala, igualmente ao centro, repousa outra múmia humana, envolta apenas em ligaduras e com uma máscara funerária. Os exames revelaram ser a múmia egípcia mais antiga com vestígios de cancro da próstata. Encostadas às paredes existem várias vitrines, onde podemos observar a terceira múmia humana, múmias de animais, vasos de vísceras, máscaras, um barco votivo e vários objectos de bronze a representar deuses, entre outros. No corredor, subsistem objectos do Egipto greco-romano, nomeadamente representações de deuses egípcios segundo modelos gregos. No final da exposição, contemplamos alguns objectos do Egipto copta, cristão. Saindo da exposição, seguimos pelo corredor à esquerda até encontrarmos a sala dos Tesouros da Arqueologia Portuguesa, também de carácter permanente. Nesta sala, podemos observar a evolução do trabalho dos metais em Portugal, nomeadamente o ouro e a prata, desde o Calcolítico até à Antiguidade Tardia (Época Visigótica). Percorrendo a exposição pela direita, as primeiras oito vitrines mostram-nos peças do Calcolítico e da Idade do Bronze, especificamente pendentes, diademas, um braçal de arqueiro, espirais, braceletes e uma adaga em cobre. Na vitrine 5 destacamos dois elementos do cabo de um punhal, uma lúnula para adornar o pescoço, botões e uma bráctea para prender um manto no peito. Nas três vitrines seguintes - 6, 7 e 8 -, as braceletes e os colares revelam-nos o carácter maciço da ourivesaria do final da Idade do Bronze em Portugal. Orlando interpreta umacom das os personagens mais odiosas, não só literatura,(vitrines mitologia Na IdadeBloom do Ferro, o contacto Fenícios provocou alterações nada ourivesaria 9e cultura gregas, masospraticamente toda a Antiguidade Clássica. o príncipe troiano, é na 10). Convidamos visitantes a de descobrirem as diferenças nasPáris, braceletes, brincos, botões, Antiguidade Clássica, o epítome da cobardia. é assim, juntamente com Dario III,e Judas arrecadas, colares e placas oculadas. As peçasPáris são ocas, fabricadas por ligas de ouro outro Iscariotes, Bruto decorações e Cássio, uma das personagens quee representam tudo Surgem o que éascontrário ao metal e possuem vegetalistas, zoomórficas antropomórficas. técnicas da código deehonra guerreiro Algumas clássico. Como sabido, Páris violasemelhanças a hospitalidade ao filigrana do granulado. destas épeças apresentam comdea Menelau ourivesaria levar suaNorte esposa, Helena, consigo. Será este o acontecimento que iria iniciar a Guerra de Tróia. actualado de Portugal. Além disso, Páris revela-se um cobarde por delegar em terceiros, leia-se na sua própria nação, o factoseguida, de ter de enfrentar as consequências seus e por umuma arcotaça como arma principal, Em estão expostos objectos da 2ª dos Idade doactos Ferro. Um ter vaso, e um bracelete de o queejá de sitorques era sinónimo de pelos cobardia, uma vez que para a cultura grega, combate galaicocorpo a ouro prata, utilizados chefes e representados nas estátuas dos oguerreiros corpo era privilegiado. O filme ilustra facto,atal como o canto III daum Ilíada. lusitanos, um dos quais deu-nos as bem boaseste vindas este Museu. Existe desenho de um guerreiro, pelo qual os visitantes podem compreender o uso de vários objectos expostos nesta exposição.
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Do Período Romano temos moedas, introduzidas pelos mesmos, brincos, braceletes e páteras com representações de deuses e mitos. Nesta época, os anéis tinham incrustadas pedras preciosas, com vários tipos de decorações gravadas. Destaca-se o uso de anéis de noivado e casamento e de sinete. Na última vitrine, peças da Antiguidade Tardia. Salientamos fivelas para prender o manto, uma das quais decorada com a figura de um cão, e uma réplica de uma espada de ferro, actualmente no Museu da Rainha D. Leonor em Beja. Após termos saído, prosseguimos pelo corredor que vira à direita. À esquerda, existe a entrada do Museu junto dos Claustros e da Igreja. Continuando, à direita entramos na exposição temporária das Religiões da Lusitânia, baseada na obra homónima de José Leite de Vasconcelos e em sua homenagem. Na primeira sala, o visitante encontra testemunhos dos cultos prestados às divindades indígenas, nomeadamente aos deuses do promontorium Sacrum, a Nabia, a Larauco e a Band. Na parede à direita existe um molde da inscrição rupeste do Cabeço das Fráguas, que pode ser lida num painel à esquerda na sua língua original, lusitano, e na tradução em português. Em frente, três guerreiros galaicolusitanos e os berrões. Passando à segunda sala, várias aras oferecidas a Endovélico, assim como variada escultura, entre a qual a cabeça da divindade. Na transição para os cultos romanos, temos uma herma bifronte a unir os dois mundos, o indígena e o romano. Um busto do imperador Augusto observa os visitantes, acompanhado de Galba. Em seguida, a tríade capitolina, com aras oferecidas a Júpiter e estatuetas de bronze de Minerva. Também aras e escultura de Marte e Vitória, Vénus e Eros, Apolo, Esculápio, Ninfas e Salus, Mercúrio e Fortuna revelam as características dos deuses clássicos e as preces dos dedicantes. No final da sala, árulas de Conímbriga oferecidas a várias divindades romanas e indígenas, pequenos templetes e painéis de um grande mosaico da uilla romana de Torre de Palma. Na sala seguinte, alguns testemunhos dos cultos da Ásia Menor, do Egipto e da Frígia, e na outra um conjunto de objectos com poderes mágicos e protectores. Prosseguindo na exposição, encontramos estatuária, lucernas, páteras e mosaicos, objectos com valor e significado cultural. A seguir, numa vitrine à esquerda, estão expostos vários fragmentos escultóricos que ornamentariam o ninfeu da uilla romana da Quinta das Longas, cuja pedra mármore é muito provavelmente oriunda da actual Turquia. Nesse espaço, em frente, é ainda possível observar outro painel do mosaico da uilla romana de Torre de Palma, única representação do triunfo indiano de Baco.
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Na última sala, o culto dos mortos constituído por estelas, cupas e aras com os seus nomes, retratos dos defuntos, peças de cerâmica, metal e vidro que eram colocadas nas sepulturas, urnas para as cinzas e sarcófagos para os corpos. Destacamos o sarcófago de uma criança e um friso com a representação de filósofos ou escritores e musas. Regressando ao átrio de entrada e atravessando-o no sentido contrário aos espaços que acabámos de descrever, encontra-se a ultimar a montagem da exposição temporária O Tempo Resgatado ao Mar. Nesta exposição será possível observar vários objectos e respectivos contextos, identificados e recolhidos no âmbito da actividade arqueológica subaquática em Portugal, permitindo-nos uma tomada de consciência para a riqueza arqueológica do nosso mar português, assim como a necessidade de o/a preservar. Aguardamos ansiosos pela sua inauguração, cuja coordenação científica, pelo Doutor Adolfo Silveira, é garante de rigor e qualidade. A seguir existe uma passagem para um pequeno espaço – o auditório –, onde amiúde se efectuam outras exposições ou eventos culturais. Regressando ao local que marcará o início da exposição O Tempo Resgatado ao Mar, e entrando nas salas à esquerda, pode-se contemplar um mosaico romano e um menir da PréHistória. Assim terminamos uma viagem pelo tempo e pelo espaço, na companhia dos homens e das mulheres que fizeram o nosso passado. Podemos descansar na pequena sala seguinte, onde existe à nossa disposição café e doces, em máquina, e onde se situam as entradas para as casasde-banho. Descansemos então os nossos olhares e as nossas mentes numa reprodução gráfica de outro painel do mosaico da uilla romana de Torre de Palma, onde estão representadas as nove musas. O Museu dispõe de um programa de actividades regular e variado, assim como o Grupo de Amigos do MNA e o Sector Educativo. Abaixo registam-se os sites, onde é possível consultar estas e outras actividades. MNA: http://www.museuarqueologia.pt/?a=18&x=3 https://www.facebook.com/pages/Museu-Nacional-deArqueologia/308510899048?ref=ts&fref=ts GAMNA: http://www.museuarqueologia.pt/?a=7&x=3 https://www.facebook.com/groups/110436072331531/?ref=ts&fref=ts Sector Educativo: http://www.museuarqueologia.pt/?a=8&x=3 http://museunacionaldearqueologia-educativo.blogspot.pt/
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Roteiro Histórico: Ir a Córdova, Ir a Granada e voltar cedo demais 1
Professor do Ensino Secundário;
Semião Almeida
A crescente capacidade de mobilidade tem destas coisas. Surge a possibilidade de ir a um sítio e, após a elaboração de um “plano de viagem”, aí vamos nós. Dirão alguns que a crise impede muitos de fazer deslocações, mais ou menos turísticas, é verdade. No entanto, sempre se vai conseguindo enganar os que nos querem “entroicar” e, entre um novo imposto e uma nova supressão salarial, lá encontramos maneira de “sair daqui” e conseguirmos alargar horizontes culturais. Ir a Córdova e a Granada num fim-de-semana alargado, partindo de automóvel de Portalegre depois almoço de sexta-feira e regressando domingo depois da meia-noite, exige, entre outras coisas, boa disposição, vontade e razoável forma física e mental. O primeiro objetivo foi Córdova. Definimos a rota e a viagem fez-se sem problemas. Ao longo da viagem lá foram surgindo os locais previstos que se podiam avistar da estrada ou auto-estrada que seguíamos. Como exemplo, destacam-se, pela sua extensão, os olivais de Jaen, um mar de oliveiras a perder de vista. Deu-nos jeito o GPS, aparte os “enganos”, quando se encontrava obras pela frente (o que só aconteceu já dentro de Córdova, a 500 metros do hotel). Em abono da verdade o GPS não se enganou, antes foi enganado.
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1
Fig. Medina Azara Foto do autor
Pela sua importância na História dos povos peninsulares, Córdova dispensa apresentações. Nunca é demais realçar que continua, e continuará, a valer a pena visitar. Foi uma importante cidade romana (nela nasceram os dois Sénecas), e o vestígio mais importante que nos chega dessa época é a ponte sobre o Guadalquivir. Pudemos constatar a robustez da mesma - sem pôr minimamente em perigo os que nela confiavam e atravessavam - ao enfrentar, sem vacilar, a fúria do Guadalquivir, que havia engordado desmesuradamente, devido às fortes chuvadas dos dias anteriores. Mas é no “casco” histórico da cidade que se respira um ar que nos transporta para o AlAndaluz. Lá estão os recantos que nos levam para os tempos de Averrois. Aí encontramos um precioso legado, constituído por construções civis e religiosas, com destaque para a preciosa e universalmente conhecida mesquita/catedral, hoje Património da Humanidade. Mandada erguer por Abderramão I (Abd ar-Rah:man) amir desta cidade de 756 a 788, aproveitando materiais da catedral visigoda de S. Vicente (1). A sua construção prolongou-se para além deste amir, e o seu esplendor acompanhou o desenvolvimento da própria cidade. É Almansor – o vitorioso - (Abu Amir Mohamede bem Abi Amir Almaáfri) (século X) que a amplia. O seu impressionante bosque de colunas continua a ser um dos mais representativos exemplos da arquitectura muçulmana. Os seus 22500 metros quadrados destinavam-se a receber todos os fiéis nas orações das sextas-feiras. A grandiosidade desta construção provocou tal encantamento nos cristãos que estes, quando se apoderaram da cidade, em vez de a destruir, a aproveitaram para a converter ao seu culto, transformando-a em catedral. Mas o mais representativo exemplo de arquitectura civil não está dentro da cidade. Trata-se do Palácio de Medina Azara, actualmente afastado oito quilómetros. Mandado construir por Abderramão III e Al-hAqueme II, foi mais tarde concluído pelo já citado Almansor (século X). É imperioso citar o notável trabalho de arqueologia que tem sido ali realizado. Estes extensos trabalhos continuam, podendo-se também observar alguns excelentes e premiados exemplos de cuidada reconstrução e restauração decorativa. Para apoiar o visitante, dispõe-se de um bem orientado Centro Interpretativo. Com o objectivo de aliviar a pressão do tráfego automóvel junto da estação arqueológica, existem autocarros que transportam os visitantes entre o citado Centro Interpretativo e o referido local arqueológico do antigo palácio de Medina Azara. Os automóveis particulares ficam num parque junto do Centro Interpretativo e os visitantes são transportados. Aqui está um exemplo a seguir.
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Mas Córdova é mais do que aqui destacamos. Não saciámos a nossa sede e ficámos com vontade de voltar a beber nas suas fontes. Talvez num futuro, de “menos aperto e com mais vagar”. Saímos de Córdova, levando connosco aquela incómoda sensação de que muito ficou por ver. Aproveitando o sol do fim da tarde, rumámos a Granada. Os planos que tínhamos para visitar esta cidade atenuaram, naquele momento, o desconforto que tínhamos sentido ao sair assim, tão prematuramente, de Córdova. Aproximávamo-nos de Granada com a Sierra Nevada, olhando de alto, sobranceira, debaixo de uma cúpula de nuvens, a prometer-nos um nevão. Fig. Ponte Romana Guadalquivir Foto do Autor
Esta cidade foi antes a importante Iliber romana e visigótica. Granata nos primeiros tempos da ocupação árabe. Almorávidas e Almóadas marcaram aqui a sua presença e, no século XIII, Mohamede bem Al-Ah : mar, conquistou Granada e, fazendo dela a sua capital, aí manteve o domínio dos Nacéridas, que duraria até ao século XV. Só seria dominada, definitivamente, pelos Reis Católicos Fernando e Isabel a 2 de Janeiro de 1492, pondo fim a uma ocupação que Tarique começara em 711. A Península voltava, na íntegra, ao domínio cristão. Novos enganos no GPS mas lá chegámos ao hotel. Este fica bem próximo de um dos principais objetivos da nossa visita, a Alhambra ( h.amra – a vermelha, devido à cor dominante das suas muralhas).
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Fig. Pátio dos Leões Alhambra, Foto do Autor
A Alhambra é constituída por um notável conjunto arquitectónico, formado por palácios de vários períodos e rodeado por muralhas e torres defensivas. Neste espaço construíram-se ao longo dos séculos vários palácios árabes e cristãos (Mexuar, Alpercas, o dos Leões, o de Carlos V) os próprios Reis Católicos a habitaram e lá mandaram erguer a primeira catedral de Granada, aproveitando a mesquita da Alhambra (mais um exemplo da tal “reciclagem” de que já anteriormente falamos). Só seria abandonada pela corte espanhola nos finais da dinastia dos Borbons. Conheceu então as agruras do esquecimento, tendo entrado num período de abandono e decadência. Esteve então habitada pelos mais pobres e desventurados da sociedade, que adaptaram o seu espaço às suas necessidades. Aqui tratou-se de uma reciclagem diferente e os grandes espaços apalaçados foram transformados em pequenos compartimentos, à medida da pobreza dos seus novos habitantes. Ocupada por poderosos ou por humildes, a Alhambra cumpriu sempre a sua missão, garantindo abrigo aos que ali entravam. A partir do século XIX, de novo se iniciaram obras de restauro, dando a este espaço um novo esplendor, hoje mundialmente reconhecido como Património da Humanidade. Tivemos oportunidade de observar que as obras de restauro continuam e que as construções estão enquadradas por espaços ajardinados, o que torna o conjunto muito harmonioso. Mas falando de jardins, temos o incontornável Generalife (o Jardim do Arquitecto). Tem muitos pontos em comum com a vizinha Alhambra, mas não ostenta a mesma riqueza de materiais. Vinga-se na abundância de jardins e de água, autêntica visão do paraíso para os homens do deserto que para aqui trouxeram o Alcorão. Mas Granada não é só a Alhambra (e já seria imenso).
Ainda tivemos tempo para deambular pela cidade. Ficámos com a perfeita noção que apenas podemos visitar uma parte do espólio artístico que a cidade encerra, mas que está ao dispor do visitante que ali chegue com tempo disponível.
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Dispor de tempo para conhecer pequenos recantos enquadrados por “carmens” ou sentir o esmagamento que a Catedral provoca, quando se está no seu interior, são recordações que também devemos trazer de Granada. Algumas considerações devem ficar registadas sobre a grande Catedral. Para se conseguir aquela imponência trabalhou-se ali durante séculos (desde 1523 até 1704) (2). Os poderosos que a mandaram construir não usufruíram da sua grandiosidade, a ironia tem destas coisas. Mas se o seu objectivo era impressionar os vindouros, então podemos afirmar convictamente que conseguiram atingir plenamente o desiderato. Muito aconteceu na cidade de Granada, e no mundo, durante o imenso tempo de construção desta Catedral (pestes, revoltas, descobertas). Claro que, enquanto se ia construindo o grande templo, foram surgindo várias tendências arquitectónicas, que influenciaram os arquitectos e mestres que ali trabalharam. Mas o resultado final foi uma construção de uma grandiosidade encantatória. Dispondo de tempo, e não só, vale a pena visitar os arredores desta cidade. A Província de Granada está salpicada de inúmeras localidades, tipicamente andaluzas. Em muitas delas encontramos motivos de real interesse histórico. Ao partirmos ficámos com uma vontade plena de voltar a esta magnífica cidade. Num futuro menos sombrio, melhor que o presente que vivemos, havemos de revisitar Granada. Fig. Alhambra vista de Granada; Foto do Autor
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Propostas Bibliográficas Propostas bibliográficas Existem inúmeros Guias Turísticos que têm por finalidade auxiliar o visitante. É um facto que nos fornecem preciosos mapas, pontos de apoio ao viajante, localização de alguns lugares para degustar, hotéis e principais monumentos a visitar. Mas no que toca à informação histórica, ficam-se pela divulgação, mais ou menos superficial. Além do mais, nem todos primam pelo rigor. Por isso, se tiver interesse em se documentar com maior profundidade, aconselhamos outro tipo de literatura. « La España Musulmana hasta la caíd”a del Califado de Córdova” Levi-Provençal, Madrid 1957 “ L`Esprit et la civilisation du royaume nasride », Henri Terrasse Paris 1958 “Património da Humanidade” , Unesco/ Planeta DeAgostini – 1996
1- Como se pode constatar pelos exemplos da História, a “reciclagem” não é propriamente
uma
invenção
recente.
Prática
hoje
impensável,
o
reaproveitamento de materiais de construções anteriores foi uma prática corrente, em todos os continentes e épocas, até ao século XIX e, nalguns casos, até ao século XX. Na parte que nos toca (em Portugal) os exemplos de aproveitamento de materiais de construções mais antigas para edificar outras, são uma constante ao longo dos séculos. A título de exemplo, podemos afirmar, que muita pedra talhada pelos romanos se encontra, em maior ou menor quantidade, em inúmeros monumentos, civis e religiosos, por vezes nos locais mais inesperados, como são os vestígios que vão sendo encontrados em casas de habitação. É o caso concreto de Portalegre e arredores, onde inúmeras construções civis e religiosas ostentam pedra oriunda da cidade romana de Ammaia. Hoje pertença de Fundação Cidade de Ammaia, foi durante séculos apelidada pelo povo daquela região de “A pedreira dos padres”. Outro caso de “reciclagem” sistemática de materiais está relacionado com as muralhas medievais que em grande parte desapareceram das nossas vilas e cidades. Então o que lhes aconteceu? Sabe-se que uma boa parte foi reutilizada e passou a fazer parte das novas muralhas, construídas no século XVII, durante os 28 anos da Guerra da Restauração.
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Quotidianos Medievais: 1º ENCONTRO DE RECRIAÇÃO HISTÓRICA DE ABRANTES Alexandra Duarte
Nos passados dias 12 e 13 de Outubro de 2013 teve lugar no espaço acolhedor do castelo de Abrantes um evento denominado por “Quotidianos Medievais – 1º Encontro de Recriação Histórica de Abrantes”. Este evento, sem paralelo até ao momento a nível nacional, teve como objectivos o convívio e a partilha de conhecimentos entre os diversos recreadores participantes e ao mesmo tempo uma divulgação junto do público de recriação histórica medieval de grande qualidade e levada a cabo por grupos exclusivamente nacionais.
Fig. 1 – Vista geral sobre o acampamento.
Este evento, que contou com o apoio da Câmara Municipal de Abrantes, pretendeu reunir num mesmo espaço e tempo uma selecção dos melhores grupos de recriação histórica medieval de Portugal, num evento que não esteve inserido em qualquer actividade comercial, como as já vulgares “feiras medievais” de qualidade duvidosa e que surgem um pouco por todo o lado em território nacional, tendo sido impostas regras de admissão à participação dos recreadores, nomeadamente a nível da indumentária, eliminando-se à partida todos os grupos que se intitulam de recriação histórica mas que se apresentam habitualmente ao público com indumentárias historicamente incorrectas, como por exemplo, o uso bastante difundido das “leggings” ou calças elásticas ou indumentárias fantasistas. No final desse apuramento
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estiveram presentes os grupos Arqueiros d’el – rei; Portucale Fidelis e Guildas Áureas, com a participação de mais alguns recriadores a título individual.
Durante esse fim- de- semana os visitantes puderam recuar no tempo ao entrarem num acampamento composto por mais de uma dezena de tendas e toldos de modelo histórico, puderam circular entre mobiliário diverso, com cozinhas em pleno funcionamento com as suas panelas suspensas e fumegantes, puderam ver desempenhar tarefas do dia-a-dia, desde o rachar da lenha, ao buscar da água, aos bordados e costura, actividades como a carpintaria, a tecelagem, a execução da cota de malha e o treinar do tiro com arco, entre outras actividades.
Fig. 2 e 3 – Aspecto interior de uma tenda histórica; Aspecto de uma das cozinhas em funcionamento.
Mas tal como na Idade Média havia tempo para alguns momentos de ócio, também neste evento os recreadores tiveram a oportunidade de aprender a cantar músicas em latim, nomeadamente retiradas do cancioneiro denominado “Carmina Burana”, acompanhando-se as vozes ao ritmo de instrumentos de percussão como o tambor e a pandeireta e ainda se estenderam os passos sobre o relvado fofo para danças da época, como a carola, envolvendo-se mesmo a participação dos visitantes. Houve ainda tempo para redescobrir antigos jogos de tabuleiro como o jogo do Moinho e do Alquerque, já descritos por Afonso X de Castela, para além de outros jogos “mais físicos”, como o jogo de puxar a corda.
Fig. 4 e 5 – O trabalho da tecelagem; Enquanto o carpinteiro trabalha, ao fundo as crianças divertem-se.
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De destacar também neste evento, o elevado número de mulheres recriadoras presentes, quase 50% do efectivo total, afastando o visitante por completo do habitual “programa das festas” em que se valoriza essencialmente o papel masculino nos eventos medievais, principalmente o papel militar, como homens-de-armas /combatentes, em detrimento da recriação histórica civil ou religiosa.
Fig. 7 – Trabalhos tradicionalmente femininos: a costura e os bordados.
Como conclusão, foi apresentado aos visitantes um tipo de evento completamente distinto do que o público português está habituado, mas indo ao encontro de uma realidade cada vez mais frequente fora das nossas fronteiras, principalmente nos países do Norte da Europa, onde se valoriza cada vez mais a recriação histórica como evento educativo e onde se estimula uma melhoria constante da qualidade/rigor do que é apresentado ao público recorrendo-se a uma pesquisa cada vez mais apurada. No final pode-se afirmar que tanto os recriadores presentes como os visitantes ficaram agradavelmente surpreendidos com o evento que durante os dois dias acabou mesmo por se tornar alvo da objectiva da fotógrafa nacional Maria João Arcanjo que registou momentos únicos com a mestria a que já habituou os apreciadores do seu trabalho. Para finalizar, não poderia deixar de registar aqui o acesso a um filme produzido por um dos visitantes do evento, que transmite muito bem o que se passou e o que foi possível assistir. https://www.youtube.com/watch?v=470_Qslmv8Y
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Revista nº4 Setembro-Dezembro
D. João da Silva 2.º Marquês de Gouveia O labor da sua embaixada a Madrid Ibn Fadlan e os vikings do Volga
Ibn Fadlan e os Vikings do Volga
Problemas de Interpretação da
A Mitologia Comparada a Índia e as novas iniciativas do IPAEHI
Instituto PAEHI - Prometheus Associação para Estudos Históricos Interdisciplinares Convidamos todos os interessados a participar com artigos para a Revista Férula; Para mais informações: conselho.cientifico@instituto-prometheus.org/inst.prometheus@gmail.com
Revista nº2 Dezembro
REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PARA ESTUDOS HISTÓRICOS INTERDISCIPLINARES
Revista nº3 Março 2013
O Institutionum Disciplinae: uma proposta de análise comparada
Controvérsias sobre a Causa do Prior do Crato
O Itinerário de João dela Câmara
Lisboa Roteiro Histórico do Egipto Breve Resenha Histórica do Fundamentalismo, Fanatismo e Radicalismo
Outras Conversas com Pedro Estácio
da cidade-fronteira à cidade-capital 1147- 1383
A Núbia do Neolítico à XXV Dinastia A CIDADE MEDIEVAL ISLÂMICA
As Ralações da História Uma visita... Museu São João de Deus História e Psiquiatria
Outras Conversas... com Paulo Fontes