REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PARA ESTUDOS HISTÓRICOS INTERDISCIPLINARES Revista nº7 Outubro-Dezembro
Algumas Situações Temidas pelos Antigos Egípcios O Crato de Hoje e o Crato de Ontem
Ilhas Afortunadas - Espólio do Naturalista Francisco Furtado
Editorial Com a edição de mais uma Férula, o Instituto Prometheus pode congratular-se com um contributo importante para a Cultura, Educação e as Ciência Sociais. Independentemente do contributo ser maior ou menor, é fundamental aos interessados e investigadores destas áreas continuarem a criarem, desenvolverem, divulgarem novas investigações nas diversas áreas das Ciências Sociais e Humanas. Como poderão ver nesta edição da Férula temos a participação de diferentes investigadores que apresentam análises, problemas e paradigmas interessantes. O artigo da autoria de João Camacho sobre “Algumas situações temidas pelos antigos Egípcios” faz uma análise a medos e receios patentes na memória histórica do Egipto faraónico. No estudo de Hélio Pires, “Palavras Animadas – Animais em Pedras Rúnicas”, podemos observar um estudo profundo sobre a participação dos animais (seja pelas qualidades ou simbolismo dos mesmos) nas Runas. Raúl Teixeira torna a participar nesta revista com um artigo pertinente sobre Domiciano, imperador de Roma e as questões por detrás do seu assassinato. Alda Namora (com o apoio e participação de mais cinco investigadores) apresenta um artigo importante sobre Francisco de Arruda Furtado e o espólio deixado pelo inesquecível naturalista português. Para além destes artigos o Cinema, Roteiro Histórico e a Recriação Histórica continuam a fazer parte da nossa panóplia de estudos e textos, destacando, desde já, a viagem pelo Crato do Ontem e o Crato de Hoje. Esta composição da Férula permite a que todos tenham o “seu” espaço dentro da nossa publicação, divagando quer por diferentes épocas da História quer observando as diferentes perspectivas dos investigadores que aqui participam. O nosso objectivo passa exactamente por fazer chegar estes temas, estudos, artigos a todos os que se interessam por História, Cultura, Política, Religião, Cinema, Turismo, entre outras áreas. Se questionarem qualquer um dos investigadores, que compuseram ou compõe quer a(s) Férula(s) ou o Instituto Prometheus, se estamos ou não a contribuir para uma mudança na difusão, promoção e valorização da Cultura e História por entre a sociedade, diria desde logo que sim, e que é possível mudar o espectro actual em que subsistimos. Quem não acreditar e não quiser participar na mudança de paradigma e na resolução de problemas estruturais da sociedade, excluí-se desde logo como parte da solução passando a ser par-do te do problema. Devemos, e temos, de impulsionar e valorizar este tipo de publicações, quer sejam de pequena dimensão, média ou grande dimensão. É a lembrar o Passado, que pensamos no Futuro. O meu agradecimento a todos que mantêm o interesse em nós, e um agradecimento mais especial a todos os colegas que não desistem desta árdua missão, 2
Francisco Isaac
Índice Agenda Cultural Externa
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9 Algumas Situações temidas pelos Antigos Egípcios 23 Palavras Animadas: Animais em Pedras Rúnicas
Por que razão foi Domiciano assassinado? - uma perspectiva histórica
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Ilhas Afortunadas: o espólio do naturalista Francisco de Arruda Furtado Comentário Crítico ao Filme: La Voie Lactée (1969) O Crato de hoje e o Crato de ontem
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Os 700 anos da Batalha de Bannockburn
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Director da Publicação Francisco Isaac Redactora Chefe Catarina Almeida Conselho de Redacção Francisco Isaac, Amanda Coelho, João Camacho, Carolina Soares, André Silva, Ricardo Martins, José Magalhães e Catarina Almeida. Edição Laura Saldanha Laura Saldanha e Gonçalo Ribeiro
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Agenda Cultural Externa
Agenda Cultural Outubro a Dezembro de 2014 Esplendores do Oriente 24 de Setembro de 2014 a 4 de Janeiro de 2015 Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa Um dos mais ambiciosos projetos do MNAA, a exposição ilustra o esplendor artístico da corte de Lisboa no século XVIII e espelha o protagonismo de vários artistas excecionais, como os arquitetos João Frederico Ludovice e Mateus Vicente de Oliveira, o escultor Joaquim Machado de Castro ou os joalheiros da Coroa, Adão e Ambrósio Pollet. Obras como A Custódia da Bemposta, a Custódia da Sé Patriarcal (Lisboa), o Resplendor do Senhor Jesus dos Passos (Lisboa), o Resplendor do Senhor Santo Cristo dos Milagres (Ponta Delgada) e o Hábito Grande das Três Ordens Militares (Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa) são as peças de exceção, reunidas pela primeira vez. A mostra visa consolidar os avanços da mais recente historiografia, já abordados no quadro de “A Encomenda Prodigiosa. Da Patriarcal à Capela Real de São João Batista” (núcleo do Museu de São Roque), exposição que o MNAA e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa-Museu de São Roque organizaram em 2013.
Call for Papers 30 de Novembro Congresso Internacional Pluridisciplinar «Proporção, (des)harmonias e identidades–PHI » Este Congresso terá lugar entre 19 a 21 de Março de 2015 na Fundação Oriente. Uma iniciativa do CIAUD,CHAM, SGL and SPESXVIII. Tomando como referência o ensaio de Colin Rowe, propõe uma reflexão pluridisciplinar, aberta a toda a comunidade académica e científica acerca da harmonia e proporção com o intuito de avaliar a pertinência da temática e a sua compreensão nas diversas áreas em que se projeta As propostas devem ser enviadas até 30 de Novembro de 2014 para o e-mail: disharmonies@fa.ulisboa.pt.
Para
mais
harmonies.fa.ulisboa.pt/index.php/pt/
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informações
aceder
ao
site:
http://dis-
Agenda Cultural Externa
Colóquio Internacional «Community-Formation Across the Early-Modern Iberian World» 6-7 de Novembro de 2014 No período moderno as áreas sob a influência das monarquias espanhola e portuguesa eram vastos espaços colectivos em que pessoas, bens e ideias circulavam rapidamente. Em cada espaço havia um intenso debate sobre a ordem comunitária, e, paralelo a isso, diferentes tipos de comunidades desenvolvidas através das fronteiras políticas e barreiras naturais, por uma variedade de títulos não necessariamente ligados a unidades territoriais distintas. Abrangendo uma ampla gama de perspectivas e reunindo alguns dos maiores especialistas na história ibérica moderna, este simpósio de dois dias irá analisar as línguas de formação da comunidade através das monarquias espanhola e portuguesa transcontinentais. Além disso, também irá concentrar-se em comunidades que se disseminam para além das fronteiras e territórios. Este colóquio conta com a intervenção de Pablo Fernández Albadalejo (Universidad Autónoma de Madrid); Nuno Gonçalo Monteiro (Universidade de Lisboa); Fernando Bouza (Universidad Complutense de Madrid); Antonio Feros (University of Pennsylvania); Jean-Frédéric Schaub (École des Hautes Études en Sciences Sociales – Paris); Mafalda Soares da Cunha (Universidade de Évora); Nuno Senos (Universidade Nova de Lisboa); Jon Arrieta Alberdi (Universidad del País Vasco); Stuart Schwartz (Yale University); Tamar Herzog (Harvard University); Alejandro Cañeque (University of Maryland); Gabriel Paquette (The Johns Hopkins University) e Gabriel Rocha (NYU). Visite a sua página: http://www.cham.fcsh.unl.pt/ac_actividade.aspx?ActId=194
Call for Papers | IV EJIHM 2015 PORTO 30 de Novembro de 2014 A Comissão Organizadora do IV Encontro de Jovens Investigadores de História Moderna (EJIHM), que terá lugar nos dias 4, 5 e 6 de Junho de 2015, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, apela ao envio de propostas que abordem temáticas ligadas à História Moderna Ibérica e territórios Ultramarinos. As propostas deverão ter até 200 palavras (com palavras chave) e, deverão ser enviadas até 28 de Novembro de 2014 para o correio electrónico ejihm2015@gmail.com, acompanhadas de um CV resumido (50 palavras). Os resultados serão divulgados no dia 13 de Fevereiro de 2015. Para mais informações dirija-se ao site: http://ejihm2015.weebly.com/call-for-papers.HTML
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Agenda Cultural Externa
Call for papers | III Simposio Internacional de Estudos Inquisitoriais: novas fronteiras 31 de Dezembro de 2014 Este Simpósio propõe-se empreender um renovado caminho de interpretação do fenómeno inquisitorial. A intenção é ampliar os espaços geográficos da investigação sobre a Inquisição; desenhar novas fronteiras e definir as diretrizes do diálogo entre centro e periferia e, ao mesmo tempo, entre periferia e os centros que elaboraram e criaram o discurso inquisitorial. O desafio é desenvolver uma análise global de uma instituição que influenciou enormemente a vida das sociedades onde se implantou, mas que também se viu afetada por muitos elementos das realidades dentro das quais se foi difundindo, obrigada a negociações múltiplas, seja nos espaços peninsulares, seja nas regiões extra europeias. Este simpósio está a ser organizado pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (Brasil); pela Universidade do Estado da Bahia (Brasil); Universidad de Alcalá (España); pelo Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa (Portugal) e pela Cátedra de Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste» da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (Portugal) Irá ser realizado em Espanha, na Faculdade de Direito da Universidade de Alcalá entre os dias 10 e 12 de Junho de 2015. O envio de resumos deverá realizar-se para o correio electrónico do Simpósio até 31 de Dezembro de 2014, de acordo com as normas de inscrição indicadas no site http://www.ufrb.edu.br/simposioinquisicao/. E para o correio electrónico: 3simposioinquisicion@gmail.com
O Século dos Nanbajin. A presença portuguesa no Japão (1543-1640) 24 Janeiro a 21 Março de 2015 Museu do Oriente, Lisboa Durante um século (1543-1640), os Portugueses mantiveram uma intensa relação comercial com o Japão. Os missionários jesuítas abriram aí uma das mais florescentes missões da sua história e o Cristianismo cresceu extraordinariamente até ser proibido e perseguido pelas autoridades imperiais. Ao longo de oito sessões, com datas de 24 e 31 Janeiro, 7, 21 e 28 de Fevereiro, 7, 14 e 21 Março, irão ser analisadas as características gerais e alguns particularismos dessas relações luso-nipónicas. Entre as 10h e as 13h e com um custo de €90,00. Programa: Sessão 1 - O encontro luso-nipónico/ Sessão 2 - O século que mudou o Japão/ Sessão 3 - O jogo das trocas: negócios e exotismo Sessão 4 - Descobertas: o mundo no Japão e o Japão na Europa /Sessão 5 - Os senhores da guerra e os Portugueses Sessão 6 - A miragem de um Japão cristão/ Sessão 7 - Rivalidades europeias no Japão/ Sessão 8 - Nagasaki, uma cidade intercultural
Para mais informações dirija-se a: http://www.museudooriente.pt/2148/o-seculo-dosnanbanjin.htm#.VD7aqvmSy8C
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Palavras Animadas: Animais em Pedras Rúnicas
Palavras Animadas Animais em Pedras Rúnicas
Hélio Pires
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Quem visite a região sueca de Uppland, a norte de Estocolmo, vai encontrar centenas de pedras com inscrições em runas. À beira das estradas, nos jardins, nos campos agrícolas, junto a túmulos ou igrejas, nos bosques ou no meio dos prados. Algumas foram gravadas directamente na rocha viva e outras foram usadas como material de construção, encontrando-se embutidas nas paredes ou fundações de edifícios medievais. Por vezes, contêm apenas texto, mas a maioria inclui gravuras de um ou mais animais. E sempre com um sentido simbólico… supõe-se. Dado
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Investigador do IEM-UNL; Investigador do IPAEHI; Todas as pedras e inscrições rúnicas escandinavas estão catalogadas na Samnordisk runtextdatabas, onde lhes é atribuída uma ou mais letras e um número. A transliteração e tradução dos textos citados neste artigo provêm da versão online dessa base de dados.
que as pedras rúnicas não vêm com legendas explicativas, é difícil saber ao certo que significado teria este ou aquele animal neste ou naquele caso. O que não quer dizer que não se possa sugerir interpretações e tentar descortinar sentidos, que é precisamente o objectivo deste artigo. O ABC germânico Comecemos por esclarecer o básico: uma pedra rúnica é um bloco de pedra ou um rochedo no qual foi gravada uma inscrição em runas. E estas, ao contrário do que por vezes se diz, não são um alfabeto mágico. É certo que o movimento neopagão popularizou a ideia de magia rúnica, mas isso é uma perspectiva redutora que ignora parte do registo histórico. Porque, na verdade, as runas são um alfabeto germânico como qualquer outro, idêntico ao grego e ao latino, e que podia ser usado para qualquer fim. Para escrever feitiços e inscrições de teor religioso, sem dúvida, tal como os romanos e os gregos o faziam com os seus alfabetos, mas também para redigir pequenas notas, textos memorialistas e até poemas. Aliás, é de realçar que, não obstante a aparência “mística” e o aspecto pagão da decoração, a maioria das pedras rúnicas são 2
monumentos cristãos. A título de exemplo, veja-se a U 201 :
• þiagn • uk • kutirfR • uk sunatr • uk • þurulf • þiR • litu • risa • stin • þina • iftiR • tuka • faþur • sin • on • furs • ut i • krikum • kuþ • ialbi ot ans • ot • uk • salu Þegn e Gautdjarfr(?) e Sunnhvatr(?) e Þórulfr, eles fizeram erguer esta pedra em memória de Tóki, o seu pai. Ele morreu no estrangeiro, na Grécia. Que Deus ajude o seu espírito, espírito e alma. Se, aos nossos olhos e para quem não saiba ler o texto, a aparência pode ser misteriosa, o conteúdo, uma vez traduzido, não é nem mágico,
nem
pagão.
É
apenas
uma
inscrição em memória de um defunto e, para mais, com uma mensagem cristã, algo que é igualmente indicado pela cruz no lado direito da gravura. E há muitos mais exemplos do género.
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Palavras Animadas: Animais em Pedras Rúnicas
Mitologicamente, as runas nasceram do sacrífico de Odin na Árvore do Mundo, episódio ao qual aludem as estrofes 138 e 139 do poema Hávamál. Historicamente terão origem no alfabeto latino, pelo menos em parte, e os primeiros exemplares de inscrições terão sido produzidos no século II (Larsson 2007: 403). Mas as pedras rúnicas conhecidas datam de duzentos ou trezentos anos depois, com a laje de Kylver (G 88), do século V, e a pedra de Möjbro (U 877), erguida por volta do ano 500, a figurarem como alguns dos casos mais antigos (Jansson 1987: 12 e 16). E tanto podiam ter imagens como ser completamente cobertas de texto, algo de que é exemplo a chamada pedra Rök (Ög 136), datada do início do século IX (Jesch 2010: 294). Inicialmente, usava-se o chamado futhark antigo, um alfabeto rúnico de vinte e quatro caracteres que era comum à generalidade dos povos germânicos, mas a partir do século VIII, na Escandinávia, começou a ganhar forma uma versão simplificada de apenas dezasseis caracteres, o futhark novo, que se tornou comum a partir de c. 800 (Page 2001: 19-20). É esse o alfabeto usado na esmagadora maioria das pedras rúnicas, que são também um fenómeno eminentemente escandinavo: existem quase duzentas na Dinamarca, cerca de trinta na Noruega e mais de duas mil e setecentas na Suécia, mil e duzentas das quais na Uppland. Há ainda algumas pedras rúnicas em futhark novo fora da Escandinávia, nomeadamente cerca de quarenta nas Ilhas Britânicas, uma na Ucrânia e outra na Gronelândia, fruto da expansão nórdica durante a Idade Viking (Jesch 2008: 13-4). E, à semelhança da arquitectura gótica e ao contrário do que hoje tendemos a pensar, as pedras rúnicas tinham várias cores, como no caso da U 489 (Figura 2).
O
A pedra rúnica U 489. Em cima, o aspecto actual; em baixo, a reconstrução que seriam cores originais. Figura 2: A pedra do rúnica U 489.asEm cima, o aspecto actual; em baixo, a reconstrução do as coresSe originais. domínio escandinavo, em especial sueco, nãoque é seriam por acaso. é verdade que as runas foram
usadas um pouco por todo o mundo germânico desde os primeiros séculos da Era cristã, sendo gravadas numa variedade de materiais, a prática de erguer um bloco rochoso com uma inscrição
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e decoração animal ganhou um novo folego na década de 960.
Palavras Animadas: Animais em Pedras Rúnicas
Foi nessa altura que Haraldr Dente Azul, rei da Dinamarca, converteu-se ao cristianismo e fez questão de o declarar de uma forma pública e perene. Para tal, recorreu à prática tradicional de pedras rúnicas e ordenou que fosse gravada uma inscrição onde ele declarava não só os seus domínios, mas também a sua
http://www.theoi.com/Ther/LeonNemeios.html
nova religião. O resultado foi uma das pedra de Jelling (DR 42), de que falaremos mais à frente, e esse gesto do rei Haraldr teve o efeito que os gostos da realeza por norma têm nos da corte em particular e da população em geral: fez escola, criou uma moda, deu o mote para a disseminação de uma prática. De tal forma que, uma vez erguida
a
pedra
de
Jelling,
seguiram-se
outras
semelhantes nas regiões sob o controlo directo de Harald e do seu filho Sven (Sawyer 1993: 15). Mas foi na Suécia, em especial no centro, que se assistiu a um crescimento explosivo da prática, potenciado, por um lado, pela presença de comunidades cristãs e, por outro, pelas dificuldades de enraizamento da Igreja Católica na região sueca de Uppland. Basta pensar que o templo pagão de Uppsala só terá sido encerrado na década de 1070 (Christiansen 2006: 195) e que mesmo esse momento não significou o fim de resistências politeístas. Fig.: Um monge, Popo, baptiza Haroldo Dente Azul
Motivo pelo qual, perante o que terá sido um processo de envangelização lento e a impossibilidade de recorrerem a mecanismos próprios do catolicismo medieval para manifestarem a sua fé, os cristãos suecos terão seguido o exemplo do rei dinamarquês e adaptado a prática tradicional, originalmente pagã, de erguer pedras rúnicas. Daí os milhares de exemplares datados dos século XI e das primeiras décadas da centúria seguinte, a desproporção enorme de inscrições cristãs face às pré-cristãs e o número elevado de pedras rúnicas produzidas na região sueca de Uppland. E embora a prática tenha caído em desuso mais tarde, à medida que a Suécia assumia os contornos de um reino católico medieval, o uso de runas persistiu: há inscrições em igrejas e sepulturas cristãs datadas do século XVI e ainda um calendário rúnico em ripas de madeira que terá sido gravado em 1766 por uma comunidade sueca radicada na Estónia (Jansson 1987: 172-4). A fusão de elementos antigos com a nova religião resultou numa prática sincrética, algo que é característico dos períodos de mudanças culturais profundas e que se reflecte também na simbologia ou, pelo menos, nas possibilidades de interpretação dos elementos pictóricos que figuram em muitas pedras rúnicas.
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Palavras Animadas: Animais em Pedras Rúnicas
Os Animais A representação artística de animais tem uma longa tradição na cultura germânica e está enraizada em crenças e práticas pré-cristãs. Vários objectos encontrados numa das sepulturas anglo-saxónicas de Sutton Hoo, datada do início do século VII, incluem representações de, por exemplo, corvos e javalis, no que seria um modelo artístico partilhado com a Escandinávia, dadas as afinidades culturais e mesmo familiares entre as elites anglo-saxónicas e nórdicas de então (Hedeager 2010: 12). Nas fontes mitológicas islandesas do século XIII, o simbolismo de alguns animais é perceptível, algo que talvez possa ser extrapolado para artefactos de períodos anteriores, mas com cautela, uma vez que a data tardia e natureza limitada dos textos impede que se possa ter a certeza sobre o simbolismo deste ou daquele animal num objecto em concreto. Para mais, como as gravuras não têm legendas explicativas, nunca nos devemos esquecer que as representações artísticas têm, muitas vezes, uma dimensão íntima. Porque os artefactos com que tentamos descortinar as crenças dos povos antigos foram feitos por ou a pedido de indivíduos, os quais podiam atribuir a um determinado animal um significado pessoal que não correspondia ao que julgamos ser o seu simbolismo geral. Por exemplo, um corvo pode representar profecia, conhecimento ou morte, mas para alguém em particular ele podia ter outro significado, por ventura derivado de uma qualquer experiência individual. Em qualquer caso, havia sem dúvida uma crença em atributos simbólicos e religiosos. A prová-lo está a quantidade de nomes próprios que mais não são do que nomes de animais: Orm (serpente/dragão), Hrafn (corvo), Björn (urso), Svanr (cisne), Úlfr (lobo) ou Örn (águia). Neste aspecto, haverá até um elemento mágico profundamente pagão, na medida em que se pretende identificar uma pessoa com um animal e, desse modo, transferir para o primeiro os atributos ou as forças do segundo. E isto é algo que se pode tornar ainda mais óbvio quando nos deparamos com os elementos pictóricos de algumas pedras rúnicas. Todos estes elementos devem ser tidos em conta quando tentamos perceber o simbolismo dos animais representados em pedras rúnicas. As crenças e práticas religiosas, o sincretismo próprio da transição de um politeísmo tradicional para um monoteísmo ortodoxo, os riscos de extrapolar o conteúdo de fontes de século XIII para elementos artísticos de períodos mais recuados, as experiências de vida das pessoas que fizeram, encomendaram ou foram homenageadas pela inscrição e ainda a fauna nativa da região onde a pedra rúnica se encontra. O tema é complexo, pejado de incertezas, mas é, não obstante, um exercício fascinante que vale pela tentativa de compreensão da mentalidade dos nórdicos antigos.
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Palavras Animadas: Animais em Pedras Rúnicas
Serpente/Dragão O animal que surge mais vezes nas pedras rúnicas é a serpente ou o dragão. A distinção entre os dois não é fácil, se é que é sequer possível, porque se hoje tendemos a pensar num dragão como uma espécie de
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dinossauro com asas, no mundo antigo ele era entendido como uma serpente grande, por ventura com pernas. Mas em termos artísticos, é uma criatura bastante versátil: na poesia tradicional nórdica, as embarcações são equiparadas ou mesmo chamadas de serpentes ou dragões (Jesch 2008: 127 e 136-7); nas pedras rúnicas, podem envolver ou acolher a inscrição, dado o corpo longo e esguio do animal. Se no primeiro aspecto o sentido é mais ou menos óbvio (supõe-se!), na medida em que, tal como uma cobra, um navio move-se pela água e ataca as suas presas com rapidez, é mais complicado perceber o simbolismo das serpentes nas pedras rúnicas, levando 3: a pedra Sö 111 numa Sö fotografia Figura 3: arúnica pedra rúnica 111 de a uma multiplicidade de hipóteses. Podem ter uma Figura
Serpente/Dragão
lógica apotropaica, destinada a proteger a inscrição do
1916.
numa fotografia de 1916.
azar ou do vandalismo humano. Talvez seja uma manifestação do culto doméstico, com uma associação aos antepassados e aos espíritos da terra à semelhança das serpentes nos lararia romanos ou nas representações do agathos daimon da cultura helénica. Também já se sugeriu uma ligação com Isidoro de Sevilha e a ideia de serpentes boas contras serpentes más (Gräslund 2006: 126), o que é uma teoria problemática, dado que se conhecem pedras rúnicas de conteúdo pagão onde já figuram cobras. É o caso da Sö 111, datada talvez do início do século XI e cujo texto está parcialmente contido no corpo do animal, que é encimado por um martelo de Thor (Figura 3). Há que considerar ainda a possibilidade de uma ligação mitológica, nomeadamente com Odin, a Serpente de Midgarðr ou o próprio Thor, se bem que a decoração da maioria das pedras rúnicas parece ser demasiado genérica para se poder relacionar com um mito em concreto. Talvez as serpentes fossem usadas apenas por motivos estéticos ou práticos, na medida em que, conforme referido, o corpo do animal presta-se a servir de “linha” sobre a qual o texto pode ser escrito. Quando é representada mais do que uma serpente, é possível que seja uma forma de simbolizar o conflito entre seres humanos, as virtudes guerreiras, pela metáfora do conflito animal. E também não devemos pôr de parte a hipótese de motivos mistos, isto é, que combinem duas ou mais destas possibilidades. Assim, por exemplo, representar uma serpente podia ser algo ao mesmo tempo prático, estético e apotropaico. Ou podia haver uma relação com o culto dos antepassados que, no ambiente sincrético do período de transição de religião, foi cristianizada, pintando-se a serpente da mesma cor que a cruz (Cristo) e a lutar com outra em tons negros (Diabo). Veja-se, uma vez mais, a U 489, que pode ser uma reinterpretação cristã de um culto doméstico e do simbolismo guerreiro da luta entre animais (Figura 2).
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Palavras Animadas: Animais em Pedras Rúnicas
No meio da multiplicidade de hipóteses, há alguns casos particularmente interessantes. Um deles é a pedra de Ramsund (Sö 101), datada do início do século XI e gravada directamente na rocha viva na região sueca de Södermanland:
Figura 4: A pedra de Ramsund (Sö 101) num desenho do século XIX. Representa parte da lenda de Figuraa morte 4: A pedra de Fafnir, Ramsund (Sö 101)o coração num desenho do eséculo Representa parte Sigurðr: do dragão o herói a cozer do monstro a levar oXIX. polegar à boca depois de sedaqueimar, os pássaros que avisam Sigurðr sobre os planos de Regin, o ferreiro, e a morte deste, lenda de Sigurðr: a morte do dragão Fafnir, o herói a cozer o coração do monstro e a decapitado junto das suas ferramentas.
levar o polegar à boca depois de se queimar, os pássaros que avisam Sigurðr sobre os planos de Regin, o ferreiro, e a morte deste, decapitado junto das suas ferramentas. siriþr : kiarþi : bur : þosi : muþiR : alriks : tutiR : urms : fur * salu : hulmkirs : faþur : sukruþar buata * sis *
Sigríðr, mãe de Alríkr, filha de Ormr, fez esta ponte pela alma de Holmgeirr, pai de Sigrøðr, o seu marido. A gravura representa diferentes momentos da saga dos Nibelungos, mas a relação entre o elemento pictórico e o texto é residual. O único elo de ligação óbvio parecem ser os nomes das pessoas referidas na inscrição em runas: Sigrøðr e Sigríðr, que remetem para o herói Sigurðr, e Ormr, que quer dizer serpente ou dragão. Será talvez um caso de gosto ou de relevância pessoal, de fascínio pelo ciclo mitológico dos Nibelungos, e não de simbolismo geral das figuras representadas. E a exemplificar o sincretismo de que se falou, eis um conto de origem pagã a decorar uma declaração de piedade cristã com a qual a imagem não tem qualquer relação teológica. Piedade essa que assume uma forma para nós estranha, mas que era comum na Escandinávia do início do século XI: a construção de pontes, que podiam ser apenas passadiços sobre terrenos pantanosos, mas que eram consideradas um sinal de devoção, talvez por facilitarem a circulação de missionários ou de crentes (Gräslund 1999: 59-60). E assim, a inscrição foi feita num penedo à beira rio, junto a um ponto de passagem sobre a água que foi construído para sufragar a alma de alguém chamado Holmgeirr. Conforme se disse, as dificuldades de enraizamento do catolicismo na Suécia geraram formas singulares de manifestação da fé cristã.
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Palavras Animadas: Animais em Pedras Rúnicas
Outro caso curioso, mas muito mais enigmático, é a pedra de Hulterstad, em tempos localizada numa igreja na ilha sueca de Öland, mas hoje infelizmente perdida. Sobrevive apenas num desenho feito no século XVIII e apresenta o que parece ser uma mulher a dar à luz serpentes ou dragões (Figura 5). A relação com o texto é nula, pelo menos à primeira vista: estriþ • lit • raisa • stain • þina • iftiR • biurn • bounta • sin• kuþ • ialbi • has • sial • Ástríðr fez erguer esta pedra em memória de Bjôrn, o seu marido. Que Deus ajude a sua alma. Uma vez mais, trata-se de um texto cristão e um exemplo de sincretismo, de transição entre a antiga e a nova religião, uma vez que a gravura não tem qualquer relação óbvia com o texto, nem parece representar um momento de uma narrativa cristã. Não inclui sequer uma cruz, sendo, com toda a probabilidade, uma imagem de origem pagã. Talvez seja a mesma figura que surge noutra pedra, esta apenas pictórica e anterior ao século IX, mas que foi encontrada na ilha sueca de Gotland e onde se pode ver o que parece ser uma figura feminina a segurar duas cobras. Quem seria essa mulher e o que é que ela representa são, no entanto, perguntas sem resposta. E é ainda menos claro o que faz ela numa pedra rúnica cristã. Não é impossível que nas ilhas do Báltico existisse um culto religioso
em
torno
de
uma
“mãe
de
dragões”,
principalmente entre as mulheres, e que essa devoção Figura 5: a pedra de Hulterstad (Öl 19) com a
tenha persistido durante algum tempo após a conversão enigmática “mãe de serpentes/dragões”. Figura 5: a pedra de ao cristianismo. Ou então há uma tentativa de passar Hulterstad (Öl 19) com a uma mensagem cristã recorrendo à familiaridade da iconografia pagã, transformando-se o nascimento de
enigmática “mãe serpentes/dragões”.
de
serpentes, animal que renova a sua pele, num símbolo de renascimento na nova fé. Por fim, há a já referida pedra de Jelling, em particular a de Harald Dente Azul, onde surge a figura de Cristo e uma luta entre dois animais (Figura 6). O simbolismo do primeiro é óbvio, embora a figura de Jesus apareça enrolada num emaranhado de nós e não cruxificada, apesar da posição dos braços. Não é impossível que seja uma reminiscência pagã e isto apesar da declaração de fé no texto em runas: §A : haraltr : kunukR : baþ : kaurua ¶ kubl : þausi : aft : kurm faþur sin ¶ auk aft : þourui : muþur : sina : sa ¶ haraltr (:) ias : soR • uan • tanmaurk §B ala • auk nuruiak §C (*) auk t(a)ni (k)(a)(r)(þ)(i) kristno §A O rei Haraldr ordenou que se fizesse este monumento em memória de Gormr, o seu pai, e em memória de Þyrvé, a sua mãe; aquele Haraldr que ganhou para si toda a Dinamarca §B e Noruega §C e fez os Dinamarqueses cristãos.
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Palavras Animadas: Animais em Pedras Rúnicas
Figura 6: dois dos três lados da pedra de Haraldr, em Jelling (DR 42), com o que seriam as cores originais.
Figura 6: dois dos três lados da
Eis, então, o modelo que fez escola no território dinamarquês e que inspirado cristãos pedra de terá Haraldr, emosJelling
(DR 42), com oooutro que mostra seriam uma as suecos décadas depois. Mas se um dos lados da pedra representa Cristo, originais. luta entre dois animais, um deles uma serpente. Com que cores sentido, é uma boa pergunta. Não é impossível que seja uma metáfora para as lutas entre homens, até porque Harald diz ter ganho, de onde se depreende conquistado, a Dinamarca e a Noruega. Talvez a cobra represente os inimigos do monarca e o outro animal seja um símbolo régio. Em alternativa, pode ter um significado cristão, com o rei recém convertido a enfrentar a serpente. Ou então o significado é duplo e abrange as duas possibilidades. Quanto a que tipo de animal está em luta contra a serpente, já se falou num leão (Wilson 2010: 330), mas a extensão dourada que se eleva do topo da cabeça sugere antes um veado. O que, de resto, não estaria desfasado da simbologia régia. E não, não se pode argumentar que um leão é impossível dado que não é nativo à Escandinávia: as viagens que os nórdicos levaram a cabo durante a Idade Viking puseram-nos em contacto com fauna e arte inicialmente ausente do
Figura 6: dois dos três lados da Jelling (DR 42), com o que seriam as Leão cores originais. extremo da Europa.em pedra norte de Haraldr,
Um exemplo desse contacto com outras latitudes está talvez patente na pedra de Frugården, na Suécia, datada do início do século XI (Figura 7). O texto é religiosamente neutro, mas a gravura inclui uma cruz, pelo que pelo menos alguns dos envolvidos seriam cristãos. Mais revelador é a referência à Estónia na inscrição em runas: kufi : rsþi : stin : þesi : eftR : ulaf : sun : sin • trk • hrþa • kuþan • hn • uarþ • trbin • i • estlatum • hu(a)rþ(r) • iuk • s---
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Gufi ergueu esta pedra em memória de Ólafr, o seu filho, um homem muito bom e valente. Ele foi morto na Estónia. Hávarðr(?) cortou/gravou esta pedra.
Figura 7: a pedra de Frugården (Vg 181). Note-se na cruz no topo e nas extensões em torno da cabeça 7: do animal. Figura a pedra de Frugården
Palavras Animadas: Animais em Pedras Rúnicas
Durante as primeiras décadas do século IX, os nórdicos desceram os rios russos rumo ao mar Negro e a Bizâncio, ao ponto de integrarem uma embaixada bizantina que chegou à corte carolíngia em 839 (Nelson 1991: 44). E durante os séculos seguintes, com os nórdicos já estabelecidos no que é hoje a Ucrânia, a Rússia, a Bielorússia e os países Bálticos, muitos terão sido os que visitaram a cidade herdeira da Roma imperial. Caso em que teriam certamente visto animais ou representações de animais que não existiam na Escandinávia, como leões, abrindo assim caminho à sua representação artística no norte. A pedra de Frugården pode ser um desses casos, dado que a pessoa homenageada morreu na Estónia, e se as extensões em torna da cabeça da figura forem interpretadas como uma juba. E a ser de facto um leão, resta saber com que simbolismo. Porque tanto pode representar as virtudes guerreiras de Ólafr, nomeadamente a valentia que a inscrição diz que ele tinha, como ser apenas um caso de gosto pessoal, de alguém que viu figuras do animal durante uma ou mais viagens e quis reproduzi-las num monumento fúnebre.
Aves Também as aves surgem entre os animais representados em pedras rúnicas. No caso da de Sparlösa, talvez datada do século IX (Christiansen 2006: 51), figuram ao todo quatro (Figuras 8a e 8b). O lado norte exige o que parece ser uma luta entre animais: uma coruja, dada a forma da cabeça, assim como as garras e a cauda no topo da pedra; um cisne ou ganso devido ao pescoço alongado e o que parece ser parte de uma asa; e ainda duas cobras, uma a morder a cabeça da coruja e outra enrolada no pescoço da outra ave. O significado da imagem é incerto e tanto podia ter um sentido específico hoje perdido, como poder ser uma representação do conflito entre animais como metáfora das guerras humanas. Até porque a inscrição, extensa e fragmentada, alude a vitórias e batalhas: §A a¤iuls kaf ÷ airikis sunR kaf alrik- - §B ---t---la kaf rau- at kialt(i) • ...a sa- faþiR ubsal faþiR suaþ a-a-u--ba ...-omas notu auk takaR ÷ aslriku lu--R ukþ-t a(i)u(i)sl §C ...s---n(u)(R)-a-- þat sikmar aiti makuR airikis makin(i)aru þuno • aft aiuis uk raþ runoR þaR raki-ukutu iu þar suaþ aliriku lu(b)u faþi ' §D ui(u)-am ...-ukrþsar(s)k(s)nuibin- ---kunR(u)k(l)ius-- ...iu §E : kisli : karþi : iftiR : kunar : bruþur [:] kubl : þisi §A Eivísl, filho de Eiríkr deu, Alríkr deu ... §B ... deu ... como pagamento. Depois (?) o pai sentou-se (?) (em) Uppsala(?), o pai que ... ... dias e noites. Alríkr <lu--r> não temia (?) Eivísl. §C ... que o rapaz de Eiríkr's chamase Sigmarr/celebrado por vitórias. Forte batalha(?) ... em memória de Eivísl. E interpretou as runas de origem divina ali ... , que Alríkr <lubu> coloriu. §D ... ... ... §E Gísli fez este monumento em memória de Gunnarr, (o seu) irmão. De notar a referências às runas como sendo de origem divina, no que pode ser uma alusão ao sacrifício de Odin e, como tal, a indicação de que estamos perante uma pedra rúnica de conteúdo pagão.
17 Figura 8a: o lado norte da pedra de Sparlösa (Vg 119).
Figura 8a: o lado norte da
Palavras Animadas: Animais em Pedras Rúnicas
Uma natureza religiosa que talvez se reflicta na gravura do lado sul, onde surge um cavaleiro de espada em punho ladeado talvez por dois cães ou lobos (há apenas vestígios do animal do lado esquerdo), dois outros animais, uma embarcação encimada por duas aves e, no topo, uma estrutura incerta. Se é verdade que podemos estar perante cenas de guerra, é igualmente possível que a gravura represente o funeral do homenageado. Afinal, temos um herói, canídeos, outros dois animais, um barco com duas aves e, na parte superior da pedra, aquilo que pode ser um destino post-mortem, um Valhalla. E há ainda os traços ondulados ou circulares do lado direito, traços esses que podem representar as chamas da pira fúnebre. O que é reminiscente da descrição de um funeral viking feita por Ibn Fadlan nas primeiras décadas do século X: o sacrifício de um cão, dois cavalos, duas vacas, um galo e uma galinha e a cremação dos respectivos restos mortais num navio onde também é queimado o corpo do defunto (Lunde e Stone 2012: 51). Claro que isto é apenas uma hipótese, mas dado que a pedra de Sparlösa é um monumento em memória de alguém e tendo em conta
Figura 8a: o lado norte da pedra de Sparlö-
sa (Vg 119).8a: o lado norte da Figura os elementos retratados, podemos estar perante uma pedra de Sparlösa (Vg 119).
representação pictórica de tradições fúnebres semelhantes às descritas por Ibn Fadlan.
Mais ambíguo é o caso da pedra rúnica de Tyresta, na Suécia, datada de meados do século XI e onde surge uma ave no topo de uma cruz (Figura 9). Apesar do símbolo cristão, o texto é religiosamente neutro: far(e)biarn : lit : hagua : stain : et : haulf : sun • si- : hal(t)an : hiak : runa Farbjôrn/Freybjôrn fez gravar esta pedra em memória de Háulfr, o seu filho. Halfdan gravou as runas. Talvez a ave seja um galo, a julgar pela forma da causa, simbolizando assim o renascimento de Háulfr na nova fé. Em alternativa, pode ter o mesmo significado pagão que o galo sacrificado no Figura 9: a pedra rúnica de Tyresta (Sö 270).
Figura 9: a pedra rúnica de Tyresta (Sö 270). 18
funeral descrito por Ibn Fadlan. Ou então pode ser outro caso de sincretismo, com o simbolismo cristão e pré-cristão da ave a sobreporem-se de alguma forma.
Palavras Animadas: Animais em Pedras Rúnicas
Cavalo Outro caso enigmático é o da pedra de Norra Stutby, gravada no início do século XI e onde surge um cavalo (Figura 10). Não há indicação das crenças das pessoas referidas no texto, que é também neutro no que a religião diz respeito: + biairn + auk + uibiarn × auk : hrafni + auk + ketilbiarn + r---(t)(u) × (s)[t]ain : at + kairbirn faþur Bjôrn e Vébjôrn e Hrafni e Ketilbjôrn ergueram esta pedra em memória de Geirbjôrn, o seu pai. Sabe-se que, no politeísmo nórdico, o cavalo era um animal de grande importância, de tal forma que o consumo da sua carne era visto como um traço identitário pagão.
Figura 10: a pedra rúnica de Norra Stutby (Sö 226). 10: a pedra rúnica de Figura
Norra Stutby (Sö 226).
O relato de Ibn Fadlan refere o sacrifício de dois cavalos e o registo arqueológico confirma a relevância religiosa do animal (Gräslund 2010: 250). Assim sendo, talvez a Sö 226 seja uma pedra rúnica pagã, com uma decoração em linha com as crenças e práticas rituais pré-cristãs. Mas também pode ser apenas um caso de predileção pessoal, de alguém que gostava de cavalos e foi assim homenageado com a representação de um.
Cão/Lobo A mesma dimensão pessoal pode estar presente numa das pedras rúnicas de Skårby, onde surge um cão ou um lobo (Figura 11). Tal como na Sö 226, não há qualquer elemento religioso, tanto na decoração como no texto:
× kaulfR × auk × autiR × þaR × sautu × stain × þans(i) × aftiR × tuma × bruþur × sia × ¶ i(R) ati × ku¶þis×snab¶n × Káulfr(?)/Kalfr(?) e Autir, eles colocaram esta pedra em memória de Tumi, o seu irmão, que foi o proprietário de Guðissnapi. Uma vez mais, não se sabe se a figura animal está relacionada com as crenças das pessoas envolvidas ou se se trata de uma gravura baseada apenas em gostos, senão mesmo
Figura 11: a pedra rúnica DR 280, em Skårby, na Suécia.
Figura 11: a pedra rúnica DR 280, em Skårby, na Suécia.
sentimentos pessoais por um animal em especial.
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Palavras Animadas: Animais em Pedras Rúnicas
Dada a referência a uma propriedade, há ainda a possibilidade de se tratar da imagem de um cão de guarda, talvez à semelhança de vários que Tumi teria. Neste como em muitos outros casos, as hipóteses são várias e a informação é demasiado escassa para permitir certezas. Por último, refira-se ainda a pedra rúnica de Svartsjö, datada da segunda metade do século XI (Figura 12). A espécie animal nela retratada é incerta: se os dentes e a forma da cabeça sugerem um canino, o mesmo não se pode dizer a respeito da cauda. E também não é claro se se trata de uma cena de caça ou de uma progenitora com a cria, dada a semelhança entre as duas figuras. O texto nada indica a este respeito: aþisl : auk : ays- : auk : ---fr : þaiR : litu : raisa : stain : þinsa : at : uikisl : faþur : sin : boanta : irfriþaR Aðísl e Ásl/Ôsl e Ólafr, eles fizeram erguer esta pedra em memória de Végísl, o seu pai, marido de Ernfríðr. Não é impossível que as figuras animais sejam baseadas em representações de fauna conhecida mais a sul, nomeadamente em Bizâncio. Ou então trata-se de uma espécie específica de canino, de cauda lisa e longa. Quanto ao seu significado, repetese a incógnita de outras pedras rúnicas. Talvez seja uma tentativa de representar a protecção ou cuidado dos progenitores para com as suas crias, tendo em conta que a pedra é uma homenagem de três filhos ao seu pai. Mas isto é apenas uma hipótese e nada mais. À falta de uma legenda explicativa, é impossível ter a certeza que sentimentos pessoais, se alguns, estão na origem dos elementos decorativos. Figura 12: a pedra rúnica de Svartsjö (U 35).
Conclusão
Figura 12: a pedra rúnica de Svartsjö (U 35).
Embora, regra geral, não haja certezas quanto ao simbolismo ou sentido da iconografia presente nas pedras rúnicas, há algumas coisas que são ainda assim seguras: que a representação artística de animais tem raízes profundas nas crenças e práticas pré-cristãs; que, apesar disso, a maioria das pedras rúnicas são manifestações de fé cristã e não monumentos pagãos ou místicos; que há uma lógica sincrética subjacente a muitas delas, na medida em que fazem uso de uma prática e mesmo da imagética pré-cristã para manifestarem um vínculo ao cristianismo; que os animais retratados nas pedras podem representar mais do que uma coisa, inclusive gostos e preferências meramente pessoais; que há casos possíveis de influência estrangeira, como no exemplo do leão; e que algumas gravuras podem mesmo ser alusões a práticas fúnebres pagãs. Conforme se disse no início, o tema é rico em incertezas. Mas aquilo que se consegue descortinar é, ainda assim, suficiente para termos uma ideia da complexidade de ideias que circulavam no mundo nórdico antigo.
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Palavras Animadas: Animais em Pedras Rúnicas
Bibliografia Fontes primárias Lunde, Paul e Stone, Caroline, eds. 2012. Ibn Fadlan. Ibn Fadlan and the Land of Darkness: Arab Travellers in the Far North, Londres: Penguin Books. NELSON, Janet L., ed. 1991. The Annals of St-Bertin, Ninth-century Histories, volume I, Manchester: Manchester University Press. Samnordisk runtextdatabas: http://www.nordiska.uu.se/forskn/samnord.htm
Fontes secundárias CHRISTIANSEN, Eric. 2006. The Norsemen in the Viking Age, 2ª edição, Peoples of Europe, Oxford: Blackwell. GRÄSLUND, Anne-Sofie. 1999. “Woman on the bridge to conversion” in Runestones: a colourful memory, ed. Eija Lietoff, Uppsala: Museum Gustavianum, 55-61. ______ 2006. “Wolves, serpents, and birds: their symbolic meaning in Old Norse belief” in Old Norse religion in long-term perspectives: origins, changes, and perspectives, eds. Anders Andrén, Kristina Jennbert, Catharina Raudvere, Lund: Nordic Academic Press, pp. 124-129. ______ 2010. “The material culture of Old Norse religion” in The Viking World, eds. Stefan Brink e Neil Price, 3ª edição, Londres e Nova Iorque: Routledge, pp. 249-256. HEDEAGER, Lotte. 2010. “Scandinavia before the Viking Age” in The Viking World, eds. Stefan Brink e Neil Price, 3ª edição, Londres e Nova Iorque: Routledge, pp. 11-22. JANSSON, Sven B. F. 1987. Runes in Sweden, trad. Peter Foote, [S. I.]: Gidlunds. JESCH, Judith. 2008. Ships and Men in the Late Viking Age. The Vocabulary of Runic Inscriptions and Skaldic Verses, 2ª edição, Woodbridge: Boydell Press. ______ 2010. “Poetry in the Viking Age“ in The Viking World, eds. Stefan Brink e Neil Price, 3ª edição, Londres e Nova Iorque: Routledge, pp. 291-298. LARSSON, Patrik. 2007. “Runes” in A Companion to Old Norse-Icelandic Literature and Culture, ed. Rory McTurk, 2ª edição, Oxford: Blackwell, pp. 403-426. PAGE, R. I. 2001. Runes, 10ª edição, Londres: British Museum Press. SAWYER, Birgit & Peter. 1993. Medieval Scandinavia: from conversion to Reformation, circa 800-1500, Londres e Minneapolis: University of Minnesota Press. WILSON, David M. 2010. “The development of Viking art” in The Viking World, eds. Stefan Brink e Neil Price, 3ª edição, Londres e Nova Iorque: Routledge, pp. 323-338.
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Algumas Situações Temidas Pelos Antigos Egípcios
Algumas situações temidas pelos antigos Egípcios João Camacho
1
Fig.1:Paleta dos Abutres. http://xoomer.virgilio.it/francescoraf/
1
No quotidiano dos antigos Egípcios, vários momentos podiam gerar situações de ansiedade e, consequentemente, fortes desejos de que tais acontecimentos não se viessem a verificar. Esses
2
eventos podiam surgir em dimensões distintas, como em cobranças difíceis ou em guerras; podiam estar previstos no ordenamento do tempo, como os rituais de circuncisão ou as doenças
3
sazonais, mas também irromper de forma imprevisível, como em situações de graves secas ou cheias. A existência humana sempre procurou prever os acontecimentos que trouxessem desafios à sua integridade ou existência, fosse por meio de meticulosas e prosaicas observações dos fenómenos ambientais, da relação privilegiada com divindades, da perscrutação oracular, ou pela
4
5
subordinação dos eventos a uma flutuante ordem cósmica, em que estes participavam, de forma activa, num equilíbrio (ou restabelecimento de um equilíbrio) expresso amiúde na dicotomia Bem/ Mal. Independentemente da significação atribuída, as circunstâncias que propomos descrever de forma sumária surgiam muito objectivamente na vida de alguns habitantes da «Terra Negra», agudizando-se em instantes ou conjunturas prolongadas de dor e sofrimento físicos. É sabido que os Egípcios praticavam a circuncisão2 desde o Império Antigo, pelo menos3. Ainda que as referências ao acto sejam escassas, muito «por decoro e respeito pela intimidade»4,
6
Mestre em História Antiga pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Membro do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa; investigador associado do Centro de História da Universidade de Lisboa; investigador do Instituto Prometheus
John Wilson refere que a palavra egípcia sab, exprimia também «circuncisão».
A prática será referida séculos mais tarde nas Histórias de Heródoto, afirmando mesmo que se tratava de um hábito originário do Egipto.
Em MACHADO, «Circuncisão», Dicionário do Antigo Egipto, pp. 204-205.
Ver FILER, «Hygiene», Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt, vol. II, p. 135. Em diversas sociedades (sobretudo africanas), consiste num ritual de passagem que marca a transição para a vida adulta. A temática é abordada, por exemplo, em diversas obras do cineasta-etnógrafo francês Jean Rouch.
Em WILSON, «Circumcision in Egypt», Ancient Near Eastern Texts: relating to the Old Testament, p. 326.
aparecem mencionadas em alguns textos e representações artísticas. A prática, vista como uma importante medida de higiene, era seguida por grande parte da população e teria uma dimensão ritualística5 . Num texto do Primeiro Período Intermediário é dito: «When I was circumcised, together with one hundred and twenty men, there was none thereof who hit out, there was none thereof who was hit, there was none thereof who was scratched»6. A referência a um grupo tão grande de indivíduos que se juntam para o momento suporta a concepção ritualística. Porém, a interpretação do generalizado consenso anunciado durante esse delicado momento, não pode ser tão literal para James Pritchard. No túmulo de Ankhmahor, da VI dinastia [figura 2], podemos observar aquela que é uma das primeiras referências à circuncisão da História: enquanto um indivíduo se prepara, agachado, para proceder ao corte do prepúcio com uma faca (de sílex, possivelmente), outro agarra a amedrontada figura.
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Algumas Situações Temidas pelos Antigos Egípcios
7
Idem, ibidem.
8
9
Pascal Vernus refere que a palavra designa um objecto (de madeira, provavelmente) que era usado para punir a indolência. Em Sagesses de l‘Égypte Pharaonique, p. 380.
Em VERNUS, «Recommendations à l’apprenti scribe», op. cit., pp. 377-389.
10
Em LICHTHEIM, «Papyrus Lansing: a Schoolbook», Ancient Egyptian Literature, vol. II, pp. 168-174.
Fig.2: Cena de circuncisão proveniente do túmulo de Ankhmahor (Império Antigo). Na cena da esquerda um ajudante segura as mãos do jovem que vai ser submetido à dolorosa operação (imagem: Classwiki.matrix.msu.edu).
O medo da dor parece efectivamente presente, pois o sacerdote que efectua a operação diz ao seu ajudante: «Hold on to him; do not let him faint». Depois de concluída, o jovem circuncidado diz ao assistente para «rub off what is (there) thoroughly», ao que este responde: «I shall make (it) heal»7.
Aprendizagem para escriba
Durante o processo de aprendizagem nas escolas de escribas podia-se recorrer, em alguns momentos, a pesadas sovas punitivas. É recomendado, em tom ameaçador, aos candidatos ao ofício: «Ne laisse pas entendre un son…de ta bouche. L’écrit est dans ta main; lis-le à voix haute! Interroge, à toi de ne pas rester inactif! À toi de ne pas passer un jour à paresser; malheur à toi! Pénètre-toi des directives de ton professeur, écoute ses instructions!» Caso contrário: «tu seras battu avec la (force) d’un hippopotame». Era um procedimento que fazia parte da pedagogia de então: «Et tu m’aurais vu moi-même, Quand j’étais de classe d’âge. J’ai passé mon temps avec l’entrave8. C’est elle qui a dompté mon corps.» 9
24
O mesmo é confirmado noutro relato: «Another message to my lord. I grew into a youth at your side. You beat my back; your teaching entered my hear»10.
Algumas Situações Temidas Pelos Antigos Egípcios
Cobranças de impostos
11
Palavra para o verbo «governar» que também remetia para as diversas hierarquias de poder, desde o chefe da aldeia ao faraó. Ver GARDINER, Egyptian Grammar, p. 583.
Algumas das condições vividas na sociedade do antigo Egipto continuam a suceder-se na contemporaneidade, como por exemplo as cobranças difíceis, relativas a impostos. No Papiro Sallier vemos uma expressiva descrição de um acontecimento semelhante, do qual se releva a acção dos temidos agentes
11
HqA. A prática insere-se simultaneamente no ciclo fiscal e na
concepção do funcionamento do mundo dos Egípcios. Teoricamente o faraó era não só o responsável pelo normal funcionamento dos fenómenos naturais e do fornecimento dos meios de subsistência, como também o proprietário de toda a terra do Egipto. Afinal, ele era um «deus grande» (ou netjer aá, epíteto mais comum durante o Império Antigo), descendente de Ré (sol), Chu (ar), Geb (terra) e Osíris (vegetação e Além), detentor de um grande poder que proporcionava a vida12 e a prosperidade, algo que ia, posteriormente, legitimar a cobrança de uma percentagem dessa fortuna.
Esta alargada jurisdição confere um enorme poder ao faraó. Elemento central ao movimento dos ciclos, cujo funcionamento garantia a existência da vida, o faraó era possuidor de um poder que, teoricamente, tinha decisiva influência na manutenção e propagação da espécie.
13
Em SHAW e NICHOLSON, The British Museum Dictionnary p. 95.
14
Em BREASTED, Ancient Records of Egypt, vol. I, §355, p. 161-162.
15
Em CANHÃO, «As Admoestações de Ipu-Uer», Doze Textos Egípcios, pp. 125-146.
Fome A fome (
12
Hqr) era uma situação que podia ocorrer com maior ou menor intensidade no
Egipto. Sendo uma sociedade totalmente agrícola, a subsistência dependia de um ciclo fluvial anual e, naturalmente, era um problema indesejado não só pela população como pela estrutura governante, já que «prolonged periods of famine, caused by poor inundation, may indeed sometimes have led to a political turmoil and helped to bring about a temporary end to an established order»13. Esta situação podia ser uma das mais temidas por todos os Egípcios em geral, uma vez que ela influenciava o respeitado equilíbrio maético que regulava a sua mundividência. Prolongados períodos de fome enfraqueciam a autoridade central e emulavam o desrespeito societário, como ocorreu no período final da XX dinastia que ficou conhecido como o «tempo das hienas, o tempo em que havia fome», fase em que muitos túmulos foram alvo de depredações. A generalizada preocupação teve eco em diversos textos funerários (sobretudo autobiográficos). Num pequeno texto onde Pepinakht (alto funcionário do tempo de Pepi II), fala de si («bom», «amado» pela sua família) e do seu carácter («never did I say anything evil», ou «never did I judge two brothers in such a way»), ele refere também que «I gave bread to the hungry, and clothing to the naked»14. A expressão possui um carácter formalista e é vincada por outros indivíduos, como por exemplo Ibi, um hatiá (governador) do mesmo reinado. A fome generalizada era um dos sintomas da calamitosa e dramática época de finais do Império Antigo descrita por Ipu-uer: «Na verdade, (comem-se) pastos, Palavra para o verbo «governar» que também remetia para as diversas hierarquias de poder, desde o seao ingerem com água, chefe da que aldeia faraó. Ver GARDINER, Egyptian Grammar, p. 583. 2 Esta alargada jurisdição confere um enorme ao faraó. Elemento central ao movimento dos ciclos, pois não se encontram mais grãos,poder vegetais ou aves. cujo funcionamento garantia a existência da vida, o faraó era possuidor de um poder que, teoricamente, Roubam-se (até) frutos dase bocas dos porcos; tinha decisiva influência na os manutenção propagação da espécie. não se dirá mais: “Isto é mais agradável para ti do que para mim”, por causa da fome.»15 1
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Algumas Situações Temidas pelos Antigos Egípcios
Com a fome e uma deficiente nutrição, não há sorrisos ou expressões de contentamento: 16
Em GARDINER, Admonitions, p. 46.
«Forsooth, grain has perished on every side. (People) are stripped from clothes, spices (?) and
Citado por ARAÚJO em «Antropofagia», Dicionário do Antigo Egipto, p. 80.
ground. It is no(?) happy thing for my heart (…) Would that I had made my voice (heard) at that
17
18
19
oil. Everybody says: there is none. The storehouse is ruined. Its keeper is stretched on the moment, that it might save me from the pain in which I am»16.
Em WINLOCK, Scribners Magazine 73, 1923, p. 295. Porém, o autor refere o carácter metafórico desta referência.
Como bem observa John Gwyn Griffiths, «when the Greek historian Herodotus referred to Egypt as “a gift of the river”, he had in mind only the part of Lower Egypt to Lake Moeris, which he regarded as formed by sedimentation trough the action of the Nile. Popular misinterpretation often applied this remark to the whole of Egypt, in a wider sense, and this view is not intrinsically wide of the mark», em «Myths: solar cycle», Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt, p. 476.
20
Em GARDINER, «New literary works from Ancient Egypt», Journal of Egyptian Archaeology 1, p. 103.
Fig. 3: A «fome» representada num relevo do complexo funerário do faraó Unas (V dinastia, Império Antigo), em Sakara (imagem: Wikipédia).
Podemos observar alguns homens, mulheres e crianças, com aspecto esquálido, afectados pela fome, nos relevos da rampa processional do complexo funerário do faraó Unas (V dinastia). Sentados, alguns apresentam claros sinais de desespero, enquanto outros precisam de apoio para se segurarem [Figura 2]. A fome extrema podia mesmo conduzir a prácticas antropofágicas, já durante o Egipto histórico. Num certo documento é referido: «vede, aqui já começaram a comer homens; ora isto não é um alimento normal para os seres humanos onde quer que seja! Mas todo o país morre de fome.»17 Numa das cartas do Papiro de Hekanakht é dito: «“Half life is better than dying altogether”, and they say “the hungry must hunger”. Why, they have begun to eat men and women here.»18 Heródoto de Halicarnasso escreveu, no século V a. C., «o Egipto é um dom do Nilo»19. A validade da asserção comprova-se ainda nos dias de hoje, pois o país continua a ser um verdadeiro «oásis nilótico» (expressão de Jean Vercoutter). Sem o rio Nilo e as suas cheias anuais o território não possuiria a fértil «terra negra» que possibilitava várias colheitas por ano: inundações acima dos 16 côvados ou inferiores a 12 côvados (em média), podiam originar dramáticas situações e fome generalizada (de resto, os Egípcios não entendiam a origem e a «mecânica» das cheias, atribuídas à acção de Nun que enchia o caudal e os poços a partir da sua caverna subterrânea. Tal só foi totalmente compreendido no século XIX da nossa Era). No Papiro de Petersburgo 1116b, é dito: «the river is dry, (even the river) of Egypt. Men cross over the water on foot. Men shall need water for the ships and for the sailings thereof. Their course has become a sand-bank. And the sand-bank shall be stream»20. 1
26
Em GARDINER, Admonitions, p. 46.
Algumas Situações Temidas Pelos Antigos Egípcios
O rio Nilo é o fenómeno mais importante para a vida no país, era considerado o «Senhor dos peixes», «Criador de cevada e produtor de trigo». É por isso natural que se lhe dedicassem hinos e se lhe dirigissem preces para que o seu ciclo fosse constante e satisfatório, pois «se ele tarda, 21
então o nariz fica obstruído, todos os homens ficam na miséria (…) e perecem aos milhões» , e «os rekhit [massa de camponeneses, em geral] diminuem, as tempestades do ano matam-nos e Tebas fica um pântano»22. O rio Nilo (ou o deificado Hapi) era por isso origem de felicidade: «aquele que come esqueceu [a fome], a felicidade tombou sobre as habitações, todo o país vibra de felicidade»23 e «ele é alimento e todos os corações estão doces»24. Por outro lado, uma cheia excessiva também era negativa para as «duas margens». Um desses momentos deu-se durante o reinado de Osorkon II (no Baixo Egipto): «this land was in its power like the sea, there was no dyke of the people to withstand its fury. All the people were like birds upon its (…) all the temples of Thebes were like marshes»25. Como consequência, o ano subsequente podia trazer não apenas a fome, mas também outros problemas ligados à destruição de casas e bens.
Doenças
21
Em ARAÚJO, «Hino ao Nilo», Mitos e Lendas, pp. 103-110.
22
Idem, ibidem.
23
Idem, ibidem.
24
Idem, ibidem.
25
26
Em BREASTED, Ancient Records of Egypt, vol. IV, §743, p. 369.
Em FAULKNER, Coffin Texts, fórmula 21, pp. 12-13.
27
Em Edwyn Smith, vol. I, p. 473.
28
Ver GARDINER, Egyptian Grammar, p. 485.
29
Telo Canhão interpreta a palavra neste texto como uma metáfora, em que a «praga» se refere à violênci a generalizada num país em decadência. Ver «As admoestações de Ipu-uer», Doze Textos Egípcios, p. 128.
30
Situações muito temidas pelos Egípcios, as doenças eram entendidas em primeira instância como resultado das acções de poderes hostis, e por esse motivo os tratamentos para a maioria das enfermidades consistiam tanto em crenças mágicas, como em procedimentos concretos. Os Egípcios eram assolados por diversas doenças. Algumas eram identificadas correctamente quanto à origem, outras nem tanto, mas na maioria são enfermidades que ainda hoje apoquentam a Humanidade. Por evidente falta de meios, os antigos Egípcios não conseguiram identificar bactérias ou vírus. No entanto, lograram compreender que algumas doenças se
Em FAULKNER, A Concise Dictionary, p. 222.
31
Dado o grande relevo dado ao coração (ib), os Egípcios entendiam que o medo expressava-se, também, a partir deste órgão.
32
Em CANHÃO, Doze Textos Egípcios, p. 76.
propagavam pelo ar, outras pelo consumo de água: «the ladder to the side of Re is put together for you among the gods, who remove the pestilance of the streams so that you may drink water from them.»26. Alan Gardiner traduz
iadt rnpt, por «praga anual»27. Apesar de se
desconhecer a que doença se reportava especificamente, a periodicidade era conhecida e os Egípcios relacionavam-na com o aparecimento de um vento, ou com o começo de determinado período do ano que trazia ventos. O determinativo
era usado para «chuva», ou
«tempestade»28 e aludia à multiplicidade de pontos onde caíam as gotas de água. Metaforicamente, é usado nesta doença conferindo-lhe o sentido de «praga»29, ou «pestilência»30 (associável por essa via às saraivadas da belicosa deusa Sekhmet?) Era esta deusa felina que enviava as pragas para o território. 1
Em ARAÚJO, «Hino ao Nilo», Mitos e Lendas, pp. 103-110. História Idem, ibidem.de Sinuhe, depois do personagem principal contar ao governador do Retenu o 3 Idem, ibidem. 4porquê de ter saído do Egipto (admitindo o medo avassalador que sentira do monarca: «o meu Idem, ibidem. 31 5espírito vacilou, e o meu coração , que não estava mais no meu corpo, lançou-me para os Em BREASTED, Ancient Records of Egypt, vol. IV, §743, p. 369. 32 caminhos da fuga» ), o estrangeiro questiona: 2Na
27
Algumas Situações Temidas pelos Antigos Egípcios
«Como será esse país sem ele, 33
esse deus poderoso,
34
cujo terror se estendia a todos os países estrangeiros,
Idem, ibidem.
Em ARAÚJO, «A batalha de Kadech», A Guerra na Antiguidade, I, pp. 98-99.
35
Não é certo quantos demónios seriam.
36
Em BORGHOUTS, Egyptian Magical Texts, 1978, p. 15.
37
Em SALES, As Divindades Egípcias, p. 284.
38
Em BORGHOUTS, Egyptian Magical Texts, p. 15.
como Sekhmet num ano de peste?»33 Sekhmet, para além da força e furtividade leoninas que possibilitavam ao faraó «espalhar o medo no coração dos estrangeiros, como um leão selvagem no meio de cabras», «emprestava» ao monarca o bafo quente, elemento imaterial que utilizava para difundir as pestilências: «Cuidado, atenção, não se aproximem dele, Sekhmet, a grande, está com ele, está com ele nos seus cavalos, a sua mão está com ele; se alguém se aproximar dele, o seu corpo será queimado por um bafo de fogo!»34 Existiam fórmulas mágicas para tentar desviar o «breath of the plague (iAd.t) of the year». Uma 35
delas dirige-se aos emissários de Sekhmet contidos no seu bafo quente: «Retreat murderers! No breeze will reach me so that passers-by (swAw) would pass on, to rage against my face. I am Horus who passes along the wandering demons (SmAy.w) of Sakhmet. (…) I will not die on account of you!»36 Mas Sekhmet era, simultaneamente, senhora da doença e da cura. Os médicos podiam ser «sacerdotes de Sekhmet» ou «curandeiros»37, tentando-se desta forma homeopática («fighting like with like»), apaziguar os poderes destrutivos com uma forma de devoção. O mesmo é tentado noutra fórmula para a própria emoção de medo que era instilada pela vinda da praga: «Another protection (sAw) against the plague of the year: I am the Horror (bw.t) that has come forth (…) from Heliopolis. Men, gods, spirits (Ax.w) and dead ones keep away from me! I am the horror!»38
Guerra Há uma grande quantidade de retratos literários e artísticos que ilustram o medo que se sentia em situações de guerra. Como bem observa José das Candeias Sales, os Egípcios não possuíam a feição vincadamente militarista que caracterizou diversas civilizações do Próximo Oriente Antigo. O seu posicionamento geográfico (que lhes conferia um acentuado isolamento face ao perigo de tribos vizinhas instáveis e às potências estrangeiras, sobretudo as asiáticas), e uma auto-suficiência considerável, permitiu o desenvolvimento de um carácter socioeconómico menos belígero, e de uma agressividade para com o «outro» colocada a um nível mais arquetípico e retórico, do que em belicosidade activa e efectiva. Porém, a guerra era uma dimensão presente na sociedade egípcia. Ainda que com maior 1 Idem, ibidem. 2incidência em certos momentos de periclitante estabilidade política, os horrores das chacinas Em ARAÚJO, «A batalha de Kadech», A Guerra na Antiguidade, I, pp. 98-99. 3 Nãoamiúde é certo gravados quantos demónios seriam. são pela arte e pela literatura. É o caso do cabo de faca de Guebel el-Arak da 4 Em BORGHOUTS, Egyptian Magical Texts, 1978, p. 15. Época Pré-dinástica [figura 3].
28
Algumas Situações Temidas Pelos Antigos Egípcios
Produzida numa fase anterior à formação de um governo central, a parte da frente descreve uma luta: os indivíduos sem cabelo surgem armados com maças piriformes e bastões, enquanto os do outro grupo, de cabelo comprido, aparentam estar desarmados. Tratou-se de uma luta desigual entre dois grupos que pode ter relação com os dois
39
Em NEDERHOF, «The Poetical Stele of Tuthmosis III», pp. 1-3.
40
Em BREASTED, Ancient Records of Egypt, vol. II, §792, pp. 310-311.
41
Em SPALINGER, War in Ancient Egypt, p. 102.
tipos de embarcações também representadas. A Paleta da Batalha apresenta expressões bem mais eloquentes dos efeitos de conflitos, com vários corpos caídos, à mercê do poder (animalizado) de um futuro monarca, e com destaque para a sevícia felina. Para os outros cadáveres que, aparentemente, jazem inânimes em Fig. 4: Reresentações de combates durante a fase de unificação do Egipto, no cabo da faca de Guebel el-Arak (Período Pré-Dinástico; imagem: Wikipédia).
volta, a batalha não termina aí: abutres atacam à bicada os olhos e os membros dos derrotados, enfatizando o suplício e a tortura.
Efectivamente, nas lutas e nas batalhas não era só a vitória que interessava, mas também a destruição total e a humilhação do inimigo. Os feitos, reais ou não, eram posteriormente cantados para exultar o enorme poder do rei, irresistível, avassalador, invencível. Tamanho poder não tinha limites concretos quanto ao número de inimigos derrotados ou localidades destruídas. De resto, era um poder que se sentia não só pela força (de proporções divinas), mas também pelo medo que atacava o coração dos adversários. Na «Estela Poética de Tutmés III» é dito: «I put your authority and fear of you in all lands, and dread of you as far as the four supports of heaven. I increased awe of you in every body. I tied up the Nubian nomads by tens of thousands and thousands, and the northerners by hundreds of thousands of captives. I made your enemies fall under your feet so that you could crush the contentious and deceitful, (…) They heard your battle-cry and hid in holes. (…) 39
There will be no rebel against you in what heaven surrounds.»
O poema consiste numa «narração» de Amon-Ré, que se dirige a Tutmés III como seu aliado: «there is no one who can draw his bow among his army, (…) because his strenght is s o much greater than (that of) any king who ever existed» e «there is no one that saves himself from 40
him; he makes a slaughter among his enemies, the Nine Bows likewise» . Como refere Anthony Spalinger, «mystification is the necessary cement that is employed by great generals in order to bond the twin-opposed factors of love and fear in his warriors. Fear through harsh sanctions, 41
including death» .
29
Algumas Situações Temidas pelos Antigos Egípcios
Uma impressionante representação de guerra pode ser vista no túmulo do funcionário Anti (Império Antigo), em Dechacha [Figura 4]: as figuras com cabelo comprido sucumbem frente a um grupo armado. Uma está prestes a tombar com sete setas cravadas no corpo, às quais se junta um golpe no pescoço do que parece ser uma maça piriforme composta. Diversas figuras caem impotentes ao longo das linhas, excepto na última, onde numa fila de cativos se encontram diversos elementos imobilizados (incluindo uma criança) e guardados por uma figura armada. A violência (e a sua representação) tinha uma presença relevante na Antiguidade pré-clássica. Segundo Margaret Ann Judd, que efectuou um estudo sobre violência traumática em sociedades núbias, a grande maioria dos vestígios de humanos adultos estudados (sobretudo masculinos, mas não só), apresentavam indícios de múltiplos traumas provocados por violência letal e não letal, ilustrando a forte 42
presença que esta deveria ter na vida das pessoas .
Fig. 4: Aspectos da violência vivida num contexto de guerra. Imagem retirada De Flinders Petrie, Deshashah, London: The Egypt Exploration Fund, 1897, figura 4.
Algumas das mais espantosas cenas de batalhas podem ser vistas nos relevos dos templos de
42
Em Trauma and Interpersonal Violence in Ancient Nubia during the Kerma Period (ca. 2500-1500 BC), Tese submetida à Faculty of Graduate Studies and Research, Alberta, 2000, pp. 56-68.
Karnak, Lucsor, Abu Simbel ou Medinet Habu. A batalha de Kadech, por exemplo, foi registada nas suas diversas fases, numa escala épica, com uma grande ênfase dada a representações de mortos e feridos, relevando dessa forma o aspecto cruel dos confrontos. As figurações de massacre ritual do inimigo, como a que vemos na parede sul do vestíbulo do templo funerário de Pepi II (Império Antigo), fazem parte do corpus de representações mais comuns em toda a história do antigo Egipto [figura 5]. Os
inimigos
podiam
também
ser
desmembrados, inclusivamente depois da morte, com o corte de mãos e de falos a integrar,
para
fins
contabilísticos,
e
juntamente com os restantes prisioneiros, o
espólio
da
batalha
(tipo
de
representações que surgem logo na Paleta de Narmer). Numa representação em Medinet Habu [figura 6] vemos um grupo de
líbios
capturados
que
aguarda,
enquanto um funcionário vai contando as mãos e os falos cortados, colocados em pilhas, perante Ramsés III. Fig. 5: Pepi II a massacrar ritualmente um grupo de inimigos (imagem: Wikipédia).
30
Algumas Situações Temidas Pelos Antigos Egípcios
Fig. 6: Ramsés III assiste à contabilidade de inimigos mortos através do registo das mãos decepadas e falos cortados. Imagem retirada de James Breasted, Medinet Habu, Chicago: The University of Chicago Press, vol. I, figura 12.
Por vezes os cadáveres eram publicamente expostos: «He (faraó) slew with his own weapon the seven princes, who had been in the district of Tikhsi, and had been placed head downward at the prow of his majesty’s barge (…). One hanged the six men of those fallen ones, before the wall of 43
Thebes; those hands likewise.»
43
Em BREASTED, Ancient Records of Egypt, vol. IV, §797, pp. 407-408.
44
Em BREASTED, idem, §137, pp. 80-81.
45
Uma das batalhas contra os Núbios ficou gravada numa das paredes do templo funerário de Medinet Habu. Estes são exortados a cederem o seu país ao faraó: «thou givest to me the land of 44
Kush» . Mas a incitação é na realidade uma inexorável exigência perante o castigo faraónico. E este podia ser pesado:
46
Em BREASTED, Ancient Records of Egypt, vol. I, §658, p. 296.
47
«Woe to Libyans, they have ceased to live (…) In a single year were the Tjehenu burned! (…) 45
By his word their villages were ruined»
A derrota do inimigo, por vezes, não podia ser apenas no campo militar. Para recuperar o domínio sobre a Núbia, e torná-lo duradouro, Senuseret III levou a cabo pelo menos quatro campanhas militares ao local, construindo fortalezas em Buhen e em Semna (ficou reconhecido, na posteridade, como o grande «pacificador» do local). Numa dessas incursões, ficou registado: «I captured their women, I carried off their subjects, went forth to their wells, smote their bulls; 46
I reaped their grain, and set fire thereto» . Não era suficiente vencer, era necessário destruir laços familiares, estruturas de habitação, alimentos e reservatórios de água, enfraquecendo as sociedades e dando terríveis e temíveis exemplos a outras comunidades recalcitrantes. Os «afortunados» sobreviventes tornavam-se
Em LICHTHEIM, «The Poetical Stela of Merneptah», Ancient Egyptian Literature, vol. II, pp. 73-78.
A guerra, sobretudo no Império Novo, era uma das principais vias pela qual chegavam escravos ao Egipto. A prática da «escravatura» só foi realmente difundida neste período, muito por consequência das sucessivas vitórias militares no estrangeiro. Ver CAMACHO, «O escravo egípcio», Revista de la Sociedad Uruguaya, pp. 6-16. Contudo, como vimos em Desheshah, fig. 4, essas situações já se verificavam no Império Antigo.
48
Em GARDINER, «The Carnarvon Tablet», Journal of Egyptian Archaeology 3, p. 107.
sqr.w-anx, (expressão traduzível 47
por «cativos»), que eram encaminhados para o Egipto para se tornarem mão-de-obra servil em obras públicas ou outros serviços. Como se pode constatar no registo de Senuseret III, as mulheres eram igualmente capturadas ou mortas. Kamés, séculos mais tarde, refere isso mesmo: «I overthrow him, I destroyed his wall, I 48
slew his folk, I caused his wife to go down to the river-bank» . Numa inscrição do reinado de Ptolomeu IV, em Tod, ficou gravado, como uma das consequências da acção do deus bélico Montu:
31
Algumas Situações Temidas pelos Antigos Egípcios 49
Em ROQUE, «Notes sur le dieu Montu», em BIFAO 40, p. 41.
«Vos princes seront ses serfs, vos humbles sont destinés à son ergastule. Vos femmes seront ses domestiques [et] vos enfants seront ses sujets qui vos dévoreront.»1 Numa representação de um assalto a uma fortificação, datada da XIX dinastia e oriunda da parede sul da primeira sala
Fig. 7: O desespero numa situação de cerco militar. Imagem retirada de Karl Richard Lepsius, Denkmäler aus Ägypten und Äthiopien, vol. III, Berlin: Nicolaische Buchhandlung, 1849, figura 145c.
hipostila do templo de Karnak [figura 7], observamos uma série de figuras ainda no interior das muralhas. Aparentemente, os soldados defensores abdicaram já de uma acção mais aguerrida estando alguns a pedir clemência aos atacantes ou às divindades. No interior do perímetro defensivo estão algumas mulheres, enquanto outras são ainda erguidas numa desesperada tentativa de as salvar dos atacantes.
Bibliografia essencial Luís Manuel de ARAÚJO, «Antropofagia», em Dicionário do Antigo Egipto, Lisboa: Editorial Caminho, 2001, p. 80. Luís Manuel de ARAÚJO (dir.), Dicionário do Antigo Egipto, Lisboa: Editorial Caminho, 2001. Luís Manuel de ARAÚJO, Mitos e Lendas do Antigo Egipto, Lisboa: Livros e Livros, 2005. James H. BREASTED, Ancient Records of Egypt – From the earliest times to the Persian conquest, volumes I, II e IV, London: Histories and Mysteries of Man, 1988. João CAMACHO, «O escravo egípcio», em Revista de la Sociedad Uruguaya de Egiptología, 2013, pp. 6-16. Telo Ferreira CANHÃO, Doze Textos Egípcios do Império Médio, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013. Georges DARESSY, «Une inundation a Thèbes sous le règne d’Osorkon II», em Gaston Maspero (dir.), Recueil de Travaux Relatifs à la Philologie et a l’Archéologie Egyptiennes et Assyriennes pour server de Bulletin a la Mission Française du Caire, vol. 18, Paris: Librarie Emile Bouillon, 1896, pp. 181-186. Joyce M. FILER, «Hygiene», em The Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt, volume II, Oxford: Oxford University Press, 2001, pp. 133136. Alan H. GARDINER, «New literary works from Ancient Egypt», em Journal of Egyptian Archaeology 1, London: the Egypt Exploration Fund, 1914, pp. 100-106. Alan H. GARDINER, The Admonitions of an Egyptian Sage, Hildesheim: Georg Olms Verlag, 1969. Alan H. GARDINER, The Edwyn Smith Surgical Papyrus, vol. I, Chicago: The University of Chicago Press, 1930. Margaret Ann JUDD, Trauma and Interpersonal Violence in Ancient Nubia During the Kerma Period (ca. 2500-1500 BC), Thesis submitted to the Faculty of Graduate Studies and Research in partial fulfillment of the requirements for the degree of Doctor of Philosophy, Alberta: Department of Anthropology, 2000. Miriam LICHTHEIM, Ancient Egyptian Literature: a book of readings, vol. II, Los Angeles, Berkeley: University of California Press, 1976. Maria João MACHADO, «Circuncisão», em Dicionário do Antigo Egipto, Lisboa: Editorial Caminho, 2001, pp. 204-205. John F. NUNN, «Diseases», em The Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt, volume I, Oxford: Oxford University Press, 2001, pp. 396401. James B. PRITCHARD (ed.), Ancient Near Eastern Texts: relating to the Old Testament, 3ª ed., Princeton: Princeton University Press, 1969. Donald B. REDFORD (dir.), The Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt, 3 volumes, Oxford: Oxford University Press, 2001. Carol REEVES, Egyptian Medicine, Buckingham Shire: Shire Publications, 2001. José das Candeias SALES, «Guerra», em Dicionário do Antigo Egipto, Lisboa: Editorial Caminho, 2001, pp. 395-397. António Ramos dos SANTOS e José VARANDAS (coord.), A Guerra na Antiguidade I, Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2006. Ian SHAW e Paul NICHOLSON, The British Museum Dictionary of Ancient Egypt, Cairo: The American University in Cairo Press, 2002.
1
Pascal VERNUS, Sagesses de sur l‘Égypte Pharaonique, Paris: Nationale Em ROQUE, «Notes le dieu Montu», emImprimerie BIFAO 40, p. 41.Éditions, 2001. Herbert WINLOCK, «Hekanakht writes to his household», em Scribner’s Magazine, LXXIII, 1923.
32
Relembrar, Reviver e Refletir Conversas Históricas na Almedina Coordenação: Instituto PAEHI – Associação para Estudos Históricos Interdisciplinares 24 de outubro, 18h30 Cultos Mistéricos: Realidades Históricas no Cristianismo 27 de outubro, 18h30 Reis Míticos mas Reais; Gilgamesh, Rômulo e Artur 6 de novembro, 18h30 A Queda do Muro de Berlim: Problemas e consequências políticas, económicas e militares 13 de novembro, 18h30 O Romance nas lendas e fábulas: As histórias dos irmãos Grimm na Disney 20 de novembro, 18h30 Video-jogos e Cinema como ferramenta Histórica? 27 de novembro, 18h30 A I Grande Guerra: A memória histórica de um passado sempre presente 4 de dezembro, 18h30 Neopaganismo e Historiografia: Entre Fé e Ciência 11 de dezembro, 18h30 Entre mitologia, lendas e história: O Natal e as suas origens
Porque Razão foi Domiciano Assasinado? Uma Perspectiva Histórica
Por que Razão foi Domiciano Assassinado? Uma Perspectiva Histórica 1
Raúl Teixeira
No ano de 96 d. C., Tito Flávio Domiciano foi assassinado nos aposentos imperiais pelos membros da sua chancelaria pessoal, os quais, por sinal, eram os da maior confiança do governante2. No entanto, esta morte não ficou registada na História como sendo, de certa forma, uma espécie de paradigma; até porque anos antes, principalmente 68 e 69 d. C., Roma tinha assistido a um processo feroz de conquista pelo poder Fig. 1: Busto de Domiciano. http://loslibrosdedanae.blogspot.pt /2014/06/los-asesinos-del-emperador-trilogia-de.html
1
Investigador CHUL; Membro do IPAEHI
2
imperial, ao ponto de, nesse período, terem governado o império quatro imperadores.
Deste modo, o que Domiciano tem de exclusivo? A sua própria figura; nomeadamente o seu legado, uma vez que a sua acção e postura na cidade de Roma contribuíram para marcar a
Vide SUET. Dom. 14.
História de forma exclusiva. Por um lado, a dificuldade na realização de uma análise e estudo
Vide TAC. Hist. 4.38-40.
rigoroso e objectivo da sua personagem; por outro, o adensar do gosto pela investigação
3
histórica, na medida em que Flávio Domiciano reveste, de certo modo, uma aparência enigmática no seio da História Romana. Atributo conseguido, não só pela diversidade e complexidade factual, mas também pelo próprio descrédito dos testemunhos da época. Porém, é possível fazer um jogo especulativo e de suposição sobre este acontecimento, levando em conta as entrelinhas dos documentos da época, mas também outros aspectos da cultura material, tais como a numismática e a epigrafia. Dito isto, é neste jogo que nos propomos escrever este artigo: uma perspectiva histórica do assassínio de Domiciano. Todavia antes de alcançar o âmago da questão que será abordada neste ensaio, propomos retroceder no tempo histórico. No ano de 69 d. C., Tito Flávio Vespasiano, pai de Tito e de Domiciano, sagra-se, por fim, como o grande vencedor da guerra civil, que abalou, mais uma vez, o império romano durante os anos de 68 e 69 d.C. Deste modo, este general conquista o poder imperial de Roma pela força, com o apoio das legiões do Oriente, de que se destacam as legiões da Síria, do Egipto e da Judeia, às quais, posteriormente se irão unir as legiões do Danúbio. Neste mesmo ano, no dia 21 de Dezembro, o Senado reconhece e outorga o poder imperial a Vespasiano. Atribui-lhe, e também ao seu filho Tito, o poder consular, ao mesmo tempo que nomeia Domiciano pretor. No entanto, estes poderes foram conferidos a Gaio Licínio Muciano e a Domiciano, os quais representavam as pretensões de Vespasiano na cidade de Roma3, pois o ainda general permanecia estacionado com as suas legiões no Egipto, um ponto estratégico e financeiro importante no mundo romano.
34
Porque Razão foi Domiciano Assasinado? Uma Perspectiva Histórica
Na verdade, Vespasiano enviou a Roma Tito Flávio Sabino, seu irmão e praefectus urbi, e
4
Vide SUET. Dom. 1. é particularmente interessante reparar na forma como Suetónio trata a adoração de Ísis, pois este autor considera este culto como uma «vã superstição».
Domiciano. Em Roma, estes são recebidos de forma hostil pelas forças e apoiantes de Vitélio, o então imperador de Roma. Neste ambiente, que rapidamente se transformou numa atmosfera bélica, o episódio mais marcante ocorreu na cidade de Roma. Aqui, Tito Flávio Sabino é morto e Domiciano é obrigado a refugiar-se no Capitólio. Inclusive, o local mais emblemático de Roma, o Monte Capitolino, é incendiado, do qual Domiciano consegue escapar vivo porque se disfarça de seguidor do culto de Ísis, o qual receberá uma veneração particularmente intensa de 4
Domiciano . Não obstante, é durante este período que Domiciano é proclamado Caesar pelos soldados. Contudo, esta aclamação, aparentemente seria lógica e legítima face ao cariz do título Caesar, é hostilizada negativamente pelas fontes, inclusive a própria figura de Domiciano; Tácito,
por
exemplo,
afirma
que
Domiciano
entregou-se
aos
adultérios
e
5 6
Vide TAC. Hist. 4.2, tradução de Berenice Xavier, 1937.
Vide TAC. Hist.1.4: …evulgato imperii arcano posse principem alibi quam Romae fieri.
7
Vide SUET. Ves. 25, tradução de João Gaspar Simões.
aos
5
«desvirginamentos» , assim que tomou posse do nome e da habitação de um Caesar. Agora, novamente na cidade de Roma, Domiciano faz-se acompanhar de G. L. Muciano, com o objectivo de afirmarem e, ao mesmo tempo, de consolidarem a posição e as reivindicações de Vespasiano na Urbe, mas também em Itália face às forças de Vitélio. Com efeito, a verdade é que Vespasiano só entrou em Roma, onde naturalmente recebeu os poderes do Senado, em Setembro do ano 70 d.C., terminando assim uma crise que, devido à sua curta duração, se revelou fratricida e atroz e, segundo alguns autores, tinha posto em perigo a continuação do sistema governamental estabelecido por Augusto. Deste modo, Tito Vespasiano iniciou uma nova época, onde se deixou a porta aberta às reivindicações das províncias, às manobras dos exércitos fronteiriços e ao frenesi dos ambiciosos; Vespasiano foi imposto no poder imperial pelos exércitos do Oriente; assim, como bem observou Tácito, um imperador 6
podia, agora, fazer-se em outras partes além de Roma . Além disso, Vespasiano restaurou igualmente a ordem: saído da aristocracia itálica, o novo imperador restabeleceu o poder imperial, com uma faceta ainda mais monárquica, a lex de imperio Vespasiani. Tito Vespasiano, sem orgulho pessoal, mas preocupado com a estabilidade, teve a audácia, diante da qual recuara Augusto, de fundar uma dinastia, associando bem cedo ao poder o seu filho Tito, ao mesmo tempo que assentava os alicerces do poder imperial sobre a aristocracia provincial e exércitos fronteiriços, nomeadamente os exércitos do Oriente e os da região do Danúbio. Deste modo, tornou-se desde logo evidente que, a partir de 21 de Dezembro de 69 d. C., os deuses não haviam designado apenas um homem, mas sim toda uma família, a de Vespasiano e seus dois filhos, Tito e Domiciano. Quando, no início do seu principado, Vespasiano afirmou que «teria por sucessores os filhos ou 7
então ninguém» , aparentemente não existiu qualquer tipo de objecção, nem mesmo da parte da aristocracia romana. O princípio da hereditariedade permanecia vivo na mentalidade romana. A 1 Vide SUET. Dom. 1. - é particularmente interessante reparar na forma como Suetónio trata a adoração Ísis, pois autor considera este culto como «vã superstição». noção dede família eraeste essencial, tanto no direito comouma na religião doméstica. De facto, o ideal de 2 Vide TAC. Hist. 4.2, tradução de Berenice Xavier, 1937. família assegurara, durante parte de um século, o poder aos Júlio-Cláudios, devido ao laço 3 Vide TAC. Hist.1.4: …evulgato imperii arcano posse principem alibi quam Romae fieri místico que os unia a Augusto. No fundo, Vespasiano inaugurou um período pautado pela imposição de um sistema hereditário no governo de Roma, ao mesmo tempo que institucionalizava os próprios poderes do imperador através da lex de imperio Vespasiani.
35
Porque Razão foi Domiciano Assasinado? Uma Perspectiva Histórica 8
Vide GRIMAL, Pierre, O Império Romano, [s.l.], edições 70, Março de 1999, p. 93 e 94.
9
Vide CAMPBELL, Jonh Brian, “Domitian (Titus Flavius Domitianus)”, in Simon Hornblower & Antony Spawforth, eds., The Oxford Classical Dictionary, third edition, Oxford – New York, Oxford University Press, 1 996, p. 491.
10
Vide GRIFFIN, Miriam; “Chapter 1 – The Flavians” in Alan K. Bowman, Peter Jarnsey, Dominic Rathbone, eds., The High Empire, A.D. 70 – 192, The Cambridge Ancient History, second edition, volume XI, [s.l.], Cambridge University Press, 2007, pp. 54 – 60 - Talvez o melhor exemplo aqui utilizado seja o de Tácito, mas Plínio, o Jovem, poderá ser também visto na mesma perspectiva. Ambos são contemporâneos do imperador e, ao mesmo tempo, testemunhos oriundos da aristocracia romana, os quais, por sinal, foram os mais penalizados pela administração de Domiciano. Esta temática é consideravelmente bem explorada por Miriam Griffin no ensaio já citado.
11
Vide SUET. Dom. - Embora este autor seja reconhecido pelos investigadores como o menos hostil à figura de Domiciano, a verdade é que a ideia de um princeps pervertido e libertino subsiste ao longo do seu escrito. Algo que, de certa forma, permite induzir como a ordem senatorial encarava este principado.
12
Vide CASTILLO, Arcadio del, “Capítulo V- La dinastía Flavia” in José Manuel Roldán, José María Blázquez e Arcadio Del Castillo, eds., Historia de Roma – Tomo 2: El Imperio Romano (siglos I – III), Madrid, Cátedra, 1989, p. 190.
No dia 23 de Junho de 79 d. C., morre Vespasiano, tendo conseguido efectivamente solucionar alguns dos problemas que então existiam quando conquistou o poder imperial. O regime estava consolidado. Tito Vespasiano tinha conseguido defender e, em simultâneo, manter com grande energia a sucessão na pessoa de Tito, seu filho. Desde muito cedo, Tito fora associado ao governo e à administração de Vespasiano. De facto, pode-se afirmar que Tito foi um verdadeiro corregente de seu pai, de forma que a sucessão de tipo hereditária tinha acabado, assim, por se impor finalmente. Na verdade, a sucessão de Vespasiano por Tito ocorreu sem qualquer tipo de problemas, como se fosse um acto natural no quadro da mentalidade romana. Quando Tito morre, a 13 de Setembro de 81 d. C., repetiu-se a história com Domiciano, a quem, nesse dia, os pretorianos aclamaram imperator. No dia seguinte, os senadores conferiam-lhe o imperium, confirmando assim o gesto dos soldados, bem como o poder tribunício e o nome de 8
Augusto . A sucessão de Tito por Domiciano era, mais uma vez, uma acção natural e previsível, na medida em que Tito tinha também, tal como o seu pai, progressivamente associado Domiciano ao seu governo e administração. No fundo, Domiciano assumiu-se como o natural herdeiro de Tito. Com apenas trinta anos de idade, Domiciano passava assim a ocupar-se do governo do império. A personalidade de Domiciano aparece com grandes contradições, com uma inegável aptidão intelectual e uma enorme capacidade de trabalho. A este carácter unia-se igualmente um temperamento orgulhoso e autoritário, tendo sido transformado, por vezes, em violência. Com efeito, é possível que Domiciano tivesse, de certa forma, acumulado uma genuína dose de ressentimento pela posição secundária que sempre ocupou em relação ao seu irmão, e até mesmo face aos representantes legais de seu pai durante os anos de 69 e 70 d. C., em Itália. De facto, Domiciano nunca fez parte nem exerceu formalmente o poder, embora, naturalmente, completasse os planos dinásticos de Vespasiano. No fundo, Domiciano até então não tinha tido uma participação real no poder imperial9. 10
A figura de Domiciano é apresentada pelas fontes, as quais são de inspiração aristocrática , 11
como um claro exemplo de um princeps de perversidade . A sua personalidade é inclusive comparada à de Tibério. Não obstante, no início da governação, Domiciano seguiu o caminho dos seus antecessores, conservando as prerrogativas destes; porém, o esquema de governo de Domiciano não permitia nem tolerava nenhuma oposição à sua “absoluta supremacia”. Na verdade, Domiciano, sem romper com a política tradicional de colaboração com o Senado, marchou insensivelmente para uma política de centralização e de “monarquia absoluta”. No fundo, Domiciano pretendia seguir o modelo político oriental; o modelo monárquico 12
orientalizante, tal como também o tinha tentado seguir Calígula e Nero . É precisamente com esta concepção de poder que existe o choque entre a aristocracia senatorial e o imperador. Na verdade, é este ideal político que permite a análise e a compreensão da acção política de 1 Domiciano em Roma. Apesar de se Romano, considerarem os últimos anos de do1999, seu p. governo Vide GRIMAL, Pierre, O Império [s.l.], edições 70, Março 93 e 94.como um dominus crudelis, a verdade é que o gosto de Domiciano por vestir púrpura, ornamento
característico da realeza helénica, contribuiu para o mal-estar da elite política e económica de
36
Roma.
Porque Razão foi Domiciano Assasinado? Uma Perspectiva Histórica
De facto, este sentimento foi desenvolvido porque a concepção mental romana era adversa a quaisquer indícios de realeza. Além disto, sua ascensão constante ao consulado ordinário – cônsul durante dez anos -, a imposição aos seus súbditos para que o denominassem de Dominus et Deus ajudou igualmente a adensar este sentimento. E, por fim, a sua postura de desafio em relação a um grande número de membros do Senado, os quais tentavam manter cautelosamente os seus privilégios, levou inevitavelmente ao choque com a aristocracia senatorial, numa progressiva espiral de violência. Além disto, o próprio exercício da censura de carácter perpétuo desde o ano de 84 d. C., censor
13
Vide TAC. Hist. 4.
14
Vide SUET. Dom. 23.
15
Vide D. C. 67. 4.4-5 – Segundo a tradução de Earnest Cary, Díon Cássio terá escrito, no que diz respeito a este assunto, a seguinte declaração «All this naturally gave pleasure to the populace, but it was a cause of ruin to the powerful.».
perpetuus, que lhe dava, entre outros, o direito para
determinar
a
composição
do
órgão
senatorial e da própria sociedade romana, cujas directrizes foram inspiradas nos princípios morais da legislação de Augusto, contribui para a proliferação do ódio ao imperador entre a aristocracia
senatorial.
Nesta
nova
função,
Domiciano favoreceu obviamente uma grande maioria dos seus amigos e partidários. Assim, ao mesmo tempo que desenvolvia uma implacável perseguição e controlo sobre todos aqueles que ousavam opor-se aos seus desejos, este cargo contribuiu igualmente para a criação de uma atmosfera de ressentimento, e até mesmo de ódio, por parte do organismo senatorial e das elites romanas. Sentimentos 13 critos sobre Domiciano .
que
ficaram claramente expressos nos testemunhos es-
Na verdade, o próprio imperador, conhecedor da existência de uma oposição não declarada por parte dos senadores, procurou apoio e sustentabilidade do seu governo no exército. De facto, Domiciano era respeitado e admirado pelos exércitos, elementos resultantes provavelmente da política militar desenvolvida por Domiciano. A admiração das legiões pelo imperador é uma afecção visível nas fontes. Suetónio, por exemplo, afirma que os soldados receberam a morte de 14
Domiciano com indignação , motivada certamente pelos êxitos militares nas fronteiras do império, principalmente na do Danúbio e na do Reno. Ao mesmo tempo, este sentimento foi igualmente partilhado pela guarda pretoriana e pela população de Roma e de Itália, as quais admiravam e respeitavam Domiciano. Na verdade, Domiciano teve uma verdadeira preocupação em atrair a população de Roma a si, objectivo alcançado através da distribuição de dinheiro e de alimento, bem como com a celebração de jogos e de espectáculos, munera. Em simultâneo, o imperador promulgava medidas destinadas a garantir os abastecimentos essenciais de trigo e de água à cidade de Roma, annona, elementos fundamentais para a plebe romana, mediante a construção de novos celeiros e de aquedutos15.
37
Porque Razão foi Domiciano Assasinado? Uma Perspectiva Histórica
16
Vide ROLDÁN HERVÁS, José Manuel, “Capítulo XVI I – Los Flavios” in Historia de Roma, Historia “Salamanca” de la antigüedad, [s.l.], Ediciones Universidad Salamanca, [s.d.], p. 319.
Na verdade, Domiciano encontrava-se plenamente convencido da sua capacidade para exercer o governo do Império. Portanto, é natural que tenha tomado a direcção de todos os assuntos estatais nas suas mãos. Com efeito, a administração foi decididamente centralizada na pessoa do imperador, o qual renunciou à influência de libertos ou de “favoritos”. Este novo sistema
17
administrativo apoiava-se exclusivamente num funcionalismo público eficaz, o qual foi
18
desempenhado praticamente por membros da ordem equestre. De facto, esta ordem foi
Vide SUET. Dom. 8.
Vide CASTILLO, Arcadio del, op. cit., p. 190.
19
realmente beneficiada pelo novo funcionalismo administrativo de Domiciano, no qual se verifica
Vide SUET. Dom. 1.
o paulatino afastamento do Senado. Assim, pela primeira vez, os cavaleiros fizeram parte
Vide SUET., Dom. 7.
integrante do conselho e chancelaria imperial, os quais continuaram a substituir, na frente dos
20
departamentos principais da administração, os antigos libertos do imperador e os próprios senadores16. Fig. 3: Denário de Domiciano. http://moneda-clasica .foroactivo.com/viewimage.forum?u= http%3A%2F %2Fi45.servimg.com%2Fu%2F f45%2F16%2F65%2 F62%2F47%2F00110.jpg
Em simultâneo, Domiciano castigava os delatores, os quais, no entanto, aumentaram consideravelmente no final da sua governação devido precisamente à sua própria iniciativa. Ao mesmo tempo, o imperador impunha uma estrita vigilância sobre os governadores das várias províncias, aplicando igualmente um severo e imparcial mecanismo de funcionamento dos tribunais das cidades, na procura de uma melhor aplicação da lex romana. De facto, esta caraterística da governação de Domiciano não passou despercebida nem mesmo a Suetónio, pois o autor afirma: «[Domiciano] Soube tão bem conter os magistrados de Roma e os governadores das províncias, que nunca foram tão moderados e justos como no seu tempo, quando é certo que, depois dele, os temos visto, pela maior parte, acusados de toda a espécie de 17
crimes» . De facto, a regularização e supervisão de todas as tarefas estatais foi total e, ao mesmo tempo, a maneira como Domiciano manejou as finanças imperiais apresentou-se bastante equilibrada, pois a sua política financeira conseguiu inclusive acabar com a desvalorização da 18
moeda, que até então assolava o sistema financeiro romano .
Domiciano desenvolveu uma séria preocupação com a sustentabilidade da agricultura no mundo romano, pois alterou a política seguida por Vespasiano e Tito, ao permitir que as terras do estado romano, expropriadas a particulares, que as exploravam sem nenhum título legal, fossem devolvidas aos seus ocupantes, com o objectivo de incrementar uma maior produção agrícola. Suetónio refere esta política seguida por Domiciano, apesar de não aparecer numa ordem cronológica; porém é facilmente induzida tal conclusão, pois o historiador romano afirma que Domiciano distribuiu vários lugares em Roma e nas províncias, ao ponto de, segundo o autor, Vespasiano ter afirmado que estranhava que Domiciano ainda não lhe tivesse nomeado também 19
um sucessor . De facto, o imperador fez sérios intentos para impedir a crise económica que então ameaçava a Itália. O seu edicto do ano de 92 d. C., do qual Suetónio fala com um certo 20
desdém e de forma superficial , poderá ser, na verdade, avaliado no âmbito das resoluções
38
económicas para a Itália. Este decreto, de difícil interpretação e, em qualquer caso, de breve 1 Vide ROLDÁN HERVÁS, José Manuel, “Capítulo XVII – Los Flavios” in Historia de Roma, duração, parece tratar-se de uma tentativa de proteccionismo das vinhas itálicas, em decadência Historia “Salamanca” de la antigüedad, [s.l.], Ediciones Universidad Salamanca, [s.d.], p. 319. em relação às das províncias. Em compensação, tentava fomentar igualmente a produção cerealífera nos territórios provinciais.
Porque Razão foi Domiciano Assasinado? Uma Perspectiva Histórica
Ao mesmo tempo, o imperador concedeu, tal como o pai e o irmão, o direito de cidadania romana a muitas das cidades e elites provinciais, as quais obtiveram assim acesso ao cursus honorum. Em simultâneo, nestas cidades, e para casos excepcionais de dificuldades financeiras, o imperador intercedeu com a criação dos curatores reipublicae. De facto, Domiciano preocupou-se seriamente com a política de integração e de romanização iniciada por Vespasiano, sobretudo no que é referente ao estabelecimento e afirmação dos estatutos municipais jurídico-romanos: os decretos municipais de Malaca, Salpensa e de Irni foram redigidos durante a sua governação. Além disto, Domiciano aumentou igualmente o número das
21
Vide GRIFFIN, Miriam, op. cit., p. 56 – 58.
22
Vide CASTILLO, Arcadio Del, op. cit., p. 191.
23
Vide Idem, ibidem, p. 191.
24
Vide SUET. Dom. 10 - 12.
cortes pretorianas e urbanas, as quais passaram a ser dez e seis respectivamente. No ano de 83 d.C., Domiciano criou uma nova legião que recebeu o nome de I Flavia Minerva, e que, no ano de 89 d. C., passou a ser chamada de I Flavia Minerva Pia Fidelis Domitiana. Não obstante, os títulos de «Flávia» e de «Domiciana» foram suprimidos depois da sua morte. Em simultâneo, o imperador revelou-se um construtor e embelezador de Roma, continuando a política iniciada por Vespasiano e Tito, de que se destaca a reconstrução do templo Júpiter Capitolino, o de Ísis, do qual Domiciano era um verdadeiro entusiasta, o Panteão romano, o qual será posteriormente substituído por uma construção idêntica no governo de Adriano, as termas 21
de Agripa e o teatro de Pompeio no Campo de Marte, bem como o arco e as termas de Tito . A Domiciano também se deve a construção de dois importantes complexos arquitectónicos em Roma: o novo palácio imperial no Palatino, a Domus Flauia, que incluía num gigantesco complexo a residência privada do príncipe e o palácio oficial, e o novo forum da cidade de Roma, o forum transitorium. Ao mesmo tempo, o imperador apresenta-se também como um 22
verdadeiro mecenas para alguns escritores, de que se destacam Marcial e Estácio . No entanto, a sua incansável ânsia pelo poder contribuiu para que o seu governo se viesse deteriorando progressivamente, num ritmo acelerado, ao ponto de se assumir como um 23
verdadeiro governo de tendência autocrata . No fundo, o principado de Domiciano transformou-se num sistema de tipo despótico, em que as conspirações foram constantes. As repressões por parte do mecanismo imperial resultaram ser muito severas e, devido a este factor, os últimos anos da governação de Domiciano, tal como foi referido, converteram-se num verdadeiro 24
período de terror, no qual sucumbiu uma larga maioria dos seus oponentes . Porém, foi precisamente esta atmosfera que promoveu, neste caso eficazmente, a própria morte do imperador.
39
Porque Razão foi Domiciano Assasinado? Uma Perspectiva Histórica
25
Vide D.C. 67. 6 e 7. – Nestes dois fragmentos, podemos ver que Roma estava em guerra, nas fronteiras referidas, com vários povos em simultâneo. Inclusivamente torna-se perceptível uma possível existência de uma coligação entre essa amálgama de gente. No entanto, naturalmente, Díon Cássio fale de forma pejorativa dos esforços de Domiciano em contê-la.
26
Vide D. C. 67. 7.4.
Domiciano, ao longo da sua governação, mostrou igualmente preocupação com as posições romanas nas várias fronteiras do império, no chamado limes. Na fronteira renana, continuando com a obra de seu pai, que tinha sido iniciada pelo imperador Cláudio, Domiciano prosseguiu com a conquista da orla direita do Reno. Nestas campanhas, o imperador consegue fixar uma zona entre o Reno e o Danúbio, o agri decumates, um triângulo que incluía particularmente a Floresta Negra e a bacia do Neckar. Este espaço prolongava-se também até ao Main e a uma pequena faixa de terra mais ao nascente do Danúbio. Todo este território, no entanto, era protegido com fortificações. Ao mesmo tempo, o imperador fomentou o repovoamento deste território, com agricultores autóctones
e
Gauleses,
os
quais
foram,
inevitavelmente, obrigados a pagar um dízimo ao estado romano. Na fronteira do Danúbio, Domiciano enfrentou um problema mais sério, uma vez que este limes era constantemente ameaçado por Decébalo, o rei da Dácia. Este
monarca
empreendeu
uma
série
de
campanhas sucessivas entre os anos de 85 e 89 d.C., as quais foram pautadas de uma constante incerteza e indefinição. No ano de 85 d.C., foi derrotado e morto G. Ópio Sabino, legado da Mésia.
Fig. 5: Forum transitorium, posteriormente apelidado de forum de Nerva
No ano de 86 d. C., acorreu o desastre de Cornélio Fusco, com a destruição de uma legião, seguramente a da V Alaudae. No ano de 88 d. C., as forças romanas conseguiram uma vitória em Tapae. No ano de 89 d. C., Domiciano viu-se obrigado a enfrentar uma força militar 25
combinado de Dácios, de Sármatas Iáziges, Germanos de Morávia e de Marcomanos .
Finalmente, o imperador, perante a necessidade e a urgência, acabaria por firmar um tratado com o rei dos Dácios, Decébalo. Nesta aliança, Domiciano, segundo as fontes, foi obrigado a comprar a paz com um pesado tributo, em que se incluía, não só o pagamento de grandes somas de dinheiro, mas também a disponibilização de apoios logísticos ao nível económico, artesanal e militar. Em contrapartida, Decébalo receberia o título de vassalo de Roma, denominação meramente nominal. Inevitavelmente, este acordo foi encarado de forma depreciativa pela sociedade romana, principalmente pela elite política de Roma. Este sentimento é perfeitamente visível, por exemplo, nos escritos de Díon Cássio, o qual afirma que o desfecho das campanhas militares na Germânia contribuiu, seguramente, para a própria escravização do império. 26
Acusação que é claramente feita a Domiciano .
Em compensação, a fronteira oriental, na qual assentavam os alicerces do seu poder, as elites e gentes orientais, manteve-se estável. Aqui, o Eufrates assegurava a paz com os Partos, um inimigo ancestral e rival de Roma.
40
Porque Razão foi Domiciano Assasinado? Uma Perspectiva Histórica
Na verdade, estas províncias orientais, durante a governação de Domiciano, encontravam-se em franco renascimento e crescimento económico e cultural. O imperador ocupou-se unicamente em reforçar a fronteira fluvial, onde se conhece a existência durante o seu governo de um curator ripae Euphratis. Ao mesmo tempo, Domiciano dá por finalizada a campanha
27
Vide CASTILLO, Arcadio del, op. cit., p. 192.
28
Vide idem, ibidem, p. 193.
27
conquistadora, que até aí se tinha mantido operacional, na Britânia .
No entanto, a política externa de Domiciano foi severamente criticada, principalmente, e mais uma vez, pela elite política e económica de Roma. Porém se se observar, consegue-se compreender que existiam fortes razões para a forma como Domiciano procedeu, inclusive podem ser muito discutíveis os benefícios da sua posição. No fundo, Domiciano optou por uma política prudente e cautelosa. A ordem de finalização das campanhas militares de Júlio Agrícola, sogro de Tácito, na Britânia, pode ser, plausivelmente, explicada de uma maneira mais objectiva. Apesar de a tradição a ter consagrado ao ciúme do imperador pelos contínuos êxitos militares deste general, a verdade é que o término desta campanha, representou uma forma de evitar as enormes despesas sobre o estado romano. Em detrimento, dos insignificantes lucros das campanhas, quer em termos de pilhagens quer em riqueza material e mineral. No fundo, as campanhas da Britânia já não eram rentáveis nem lucrativas para o estado romano. Simultaneamente, os planos de Domiciano para a defesa do limes germanicus reverteram-se notáveis e operacionais, inclusive, depois do ano 90 d. C. o imperador estabeleceu formalmente duas províncias na Germânia, a Germânia Superior ao Sul e a Germânia Inferior ao Norte, as quais estavam debaixo da autoridade do legati Augusti pro praetore. Contudo, a sua administração financeira permaneceu unida à da Gália Bélgica, a qual estava sujeita à supervisão de um procurator prouinciae Belgicae et utriusque Germaniae. No fundo, Domiciano transformou distritos militares, os quais tinham sido criados por Augusto, em autênticas províncias imperiais de autoridade consular. Não obstante o mau augúrio que representou para a elite romana, o tratado com Decébalo, tópico já referido, a verdade é que Domiciano pretendia assim evitar uma guerra prolongada e cara, a qual teria minado enormemente as reservas estatais. Ao mesmo tempo, a assinatura deste tratado permitia também obter um reino vassalo ou aliado que poderia representar um autêntico baluarte que contivesse qualquer pressão na zona danubiana. Deste modo, o reino da Dácia facilitava a criação de um estado-tampão, porém aliado de Roma, que libertasse o estado romano da 28
pressão financeira e humana na defesa de uma enorme fronteira por sinal instável . Este ideal político-militar foi muito utilizado pelo mundo romano, principalmente nas zonas de maior instabilidade fronteiriça e de conflito, onde se destacam o Reno e o Danúbio, mas também algumas das províncias do Oriente. De qualquer das formas, esta fronteira encontrava-se defendida pelas legiões romanas estacionadas na Panónia e na Mésia, às quais se juntam as repectivas frotas fluviais. Por conseguinte, para possibilitar uma melhor defesa da fronteira do Danúbio, Domiciano promulgou uma nova organização provincial, na qual se destaca a divisão da Mésia em duas: a 1 CASTILLO, Arcadio del, op. cit., p. 192. MésiaVide Superior e a Mésia Inferior, separadas pelo Ciabrus e confiadas à jurisdição de legados consulares.
41
Porque Razão foi Domiciano Assasinado? Uma Perspectiva Histórica
Igualmente, para se unir aos já existentes acampamentos militares da Mésia (Viminacium, Oescus, Nouae), criaram-se dois novos acampamentos na parte inferior do Danúbio, em Durostorum e em Troesmis. No entanto, apesar da eficácia do sistema defensivo de Domiciano, o imperador Trajano, imperator de 98 d. C. a 117 d. C., movido possivelmente pelo orgulho romano ferido proporcionado pelo pacto de Domiciano com Decébalo, mas também ambicionando riqueza e glória, em 101 d. C., decide declarar guerra abertamente ao reino da Dácia. Esta guerra terminaria no ano de 106 d. C., favorável aos Romanos, os quais conquistaram a sua capital, Sarmizegetusa, e decapitaram o seu rei, Decébalo, resultando na total conquista do reino da Dácia, cujo território foi anexado como província do império. Porém, após a morte de Trajano em 117 d. C., este território é, de certa forma, abandonado pela administração de Adriano – imperador de Roma de 117 d. C. a 138 d.C. -, uma vez que era impossível, à nova administração e funcionalismo romanos, manter este território dentro das suas fronteiras. No fundo, a Dácia não era um território estratégico nem lucrativo, antes pelo contrário, pois todo o excedente militar e financeiro era canalizado para a sua defesa e manutenção. De facto, Adriano percebeu que o império esgotara a sua capacidade de expansão. Terá sido, então, a conquista da Dácia um capricho de um imperador? Contudo, a verdade é que Domiciano legava aos seus sucessores uma situação instável na Europa Oriental. Roma não podia continuar tributária durante muito tempo de um reino bárbaro. A tarefa que coube a Trajano resolveu o problema imediato, mas revelou-se infrutífera. A tendência do governo de Domiciano caminhava progressivamente para um forte despotismo, promovendo, inevitavelmente, a criação de todo um importante grupo contra a sua governação, mas também contra a si próprio. Este grupo era formado fundamentalmente por uma grande parte de seguidores da filosofia grega, também pelos Judeus e muito especialmente pelos senadores, muitos dos quais se encontravam deveras descontentes com a política levada a cabo pelo imperador. As conspirações que se desenvolveram não pretendiam, no entanto, o restabelecimento do antigo poder republicano, mas exclusivamente a mudança de Domiciano por outro imperador menos despótico na sua forma de governar. Inicialmente, as primeiras tentativas não se revestiram de uma excessiva importância, porém a rebelião de Lúcio António Saturnino no ano de 88 d. C., na Germânia Superior, - este general encontrava-se no comando da região e foi rapidamente executado - provocou um grande temor no próprio imperador, o qual deu início imediato a uma série de julgamentos por traição. Este facto provocou igualmente o aumento de delatores, os quais se aproveitaram dos receios e da própria instabilidade de Domiciano. Deste modo, o Senado foi novamente chamado para condenar os seus membros sob a acusação de maiestas. Sendo assim, as execuções de muitos senadores e de outros elementos políticos e sociais importantes de Roma, ajudaram na criação de um enorme clima de insegurança pessoal entre as elites de Roma. O ambiente de terror conseguiu criar novas conjuras e com elas cada vez mais graves repressões.
42
Porque Razão foi Domiciano Assasinado? Uma Perspectiva Histórica 29
Vide SUET. Dom. 10.
30
A espiral de terror estava em marcha. Junto com os senadores, o Senado foi, de facto, praticamente dizimado. Vários filósofos, de que se destacam o célebre retórico Díon Crisóstomo e o estóico Epicteto, caíram também vítimas da repressão, aos quais se juntam igualmente os 29
30
Judeus . Domiciano agiu igualmente contra os Cristãos , cuja acção se revelou pela promulgação de medidas imperiais contra o Cristianismo. Não obstante, neste momento histórico ainda não existia uma clara diferença entre o Cristianismo e o Judaísmo. De facto, essa diferença não aparecia claramente definida para o Estado Romano. Deste modo, tanto Cristãos como Judeus, bem como todos aqueles crentes de novas ideias, eram acusados de ateísmo pelo tradicionalismo da religião oficial romana, encabeçado, naturalmente, pelas próprias instituições romanas. No fundo, a religião oficial romana antagonizava, pelo menos neste momento histórico, todas as outras formas de expressar a religiosidade e a própria divindade. Em qualquer dos casos, a repressão sobre cristãos é palpável se observarmos as condenações de 31
M. A. Glabrião, de Tito Flávio Clemente, primo de Domiciano, e de Flávia Domitila .
Inevitavelmente, a execução de T. Flávio Clemente, assim como a de Tito Flávio Sabino, parentes directos de Domiciano, infundiram um terror na própria esposa do imperador, Domícia Longina, filha de G. D. Corbulão. Este casamento, realizado por volta do ano 70 d. C., foi provavelmente um estratagema político para obter o apoio dos círculos senatoriais. De facto, 32
esta união foi uma tentativa de encontrar uma coligação política . Na verdade, este matrimónio
Vide VIELHAUER, Philipp; “La Primera Carta de Pedro” in Historia de la Literatura Cristiana Primitiva - Introducción al Nuevo Testamento, los Apócrifos e los Padres Apostólicos, Salamanca, Ediciones Sigueme, 1991, p. 607 - o autor afirma claramente que existiu uma perseguição oficial dos cristãos durante o governo de Domiciano, no qual existe uma consciencialização, embora progressiva, da diferença entre o judaísmo e o cristianismo; na verdade, é exclusivamente dos tempos de Domiciano que ocorre uma verdadeira e pragmática perseguição estatal dos cristãos; foi, efectivamente, a primeira perseguição do estado romano. Ora, talvez tenha sido esta política de Domiciano, junto com muitas outras já analisadas ao longo deste ensaio, que terá perpetuado a imagem de terror do imperador na História, uma vez que a cultura ocidental foi assente e construída nos modelos e directrizes do cristianismo.
31
32
Vide ECK, Werner, “Domitianus” in Christine F. Salazar, Cardula Bachmann, et. all., eds., Brill´s Encyclopaedia of the Ancient World, New Pauly, Antiquity volume 4 – Cyr – Epy, Leiden – Boston, [s.n.], 2004, p. 636.
33
de conveniência ficou registado na História de uma forma minimamente caricata . Em simultâneo, também é possível que as execuções referidas anteriormente tivessem criado a Domícia Longina um temor doentio. Apesar de estar junto a Domiciano, ela suspeitava que ainda não teria sido perdoada e que, certamente, cairia vítima do seu carrasco. Algo que neste caso estava personificado na pessoa do seu próprio marido, Domiciano. Portanto, e de forma natural, criou-se ao redor de Domícia Longina a última conspiração, que poria termo à vida de Domiciano. Esta conjura foi dirigida especialmente por Parténio, camareiro de Domiciano, e por Estêvão, administrador de Domitila – sobrinha de Domiciano -, aos quais se uniram vários 34
membros da ordem senatorial, bem como os prefeitos do pretório . Por conseguinte, o primeiro conjurado a desferir um golpe ao imperador foi Estêvão, o qual tinha conseguido aproximar-se relativamente perto de Domiciano, com a desculpa de delatar 35
uma conspiração . No fundo, este episódio mostra, de certa forma, que Domiciano foi vítima da sua própria política delatora. Não obstante, após este primeiro golpe, o imperador debateu-se pela 1sua porém Videvida, SUET. Dom.foi 10.definitivamente silenciado por um conjunto de conspiradores, de que 2 Vide VIELHAUER, “La Primera Carta Máximo, de Pedro” in la Literatura são exemplo Clodiano, Philipp; um militar subalterno, umHistoria libertodede Parténio, Cristiana Satúrio, Primitiva - Introducción al Nuevo Testamento, los Apócrifos e los Padres Apostólicos, Salamanca, 36 decurião cubiculário, e alguns da própria escolaque imperial Ediciones Sigueme, 1991, p. 607gladiadores - o autor afirma claramente existiu .uma perseguição oficial dos cristãos durante o governo de Domiciano, no qual existe uma consciencialização, embora progressiva, da Todos eles, verdade,e contribuíram a perpetração do assassínio de de Domiciano. diferença entrena o judaísmo o cristianismo; para na verdade, é exclusivamente dos tempos DomicianoEste que ocorre uma verdadeira e pragmática perseguição estatal dos cristãos; foi, efectivamente, a primeira trágico acontecimento ocorreu no dia 18 de Setembro de 96 d. C., no qual, previamente, os perseguição do estado romano. Ora, talvez tenha sido esta política de Domiciano, junto com muitas outras conjurados caso conjura obtivesse êxito,deem designar como sucessor de já analisadas tinham ao longoacordado, deste ensaio, quea terá perpetuado a imagem terror do imperador na História, 37 uma vez que a cultura ocidental foi assente e construída nos modelos e directrizes do cristianismo. Domiciano o senador M. C. Nerva, o qual gozava, efectivamente, de um reconhecido prestígio . 3 Vide C.D. 67. 14. Depois da morte de Domiciano, o Senado decretou a destruição das suas imagens e, ao mesmo 38
tempo, condenou a sua memória, a damnatio memoriae .
Vide C.D. 67. 14.
33
Vide SUET. Dom. 13 Aqui, Suetónio apresenta esta união de forma caricatural, pois refere-se a Domícia Longina como um objecto da satisfação imperial. É, inclusive, deste relato de Suetónio que vem a expressão de «leito sagrado», atribuída a Domiciano.
34
Vide SUET. Dom. 23 Suetónio não afirma implicitamente que estes membros estão envolvidos no assassinato de Domiciano. No entanto, dado á euforia sentida por estes, sentimento descrito aqui por Suetónio, poderemos induzir que estes homens talvez fossem coniventes com a conjura. Na verdade, a sua participação é dúbia, inclusivamente o da própria imperatriz.
35
Vide SUET. Dom. 16 e 17.
36
Vide SUET. Dom. 17.
37
Vide D. C. 67. 15 e 16.
38
Vide D. C. 68. 1.1 - Díon Cássio faz um retrato vívido, embora breve e sucinto, da damnatio memoriae aplicada a Domiciano.
43
Porque Razão foi Domiciano Assasinado? Uma Perspectiva Histórica 39
Vide SUET. Dom. 23.
De facto, a governação de Domiciano prolongou-se até ao dia 18 de Setembro de 96 d. C. Mas,
Vide GRIMAL, Pierre, O Império Romano, [s.l.] , edições 70, Março de 1 999, p. 92.
enquanto Vespasiano e Tito haviam recebido, imediatamente depois da morte, as honras da
40
apoteose, o Senado, dizimado pela crueldade do imperador, recusou essas honras a Domiciano. Vespasiano recebera um templo, que subsiste à passagem dos séculos, na colina do Capitólio, voltada para o forum, e Tito recebera outro, mais modesto, inserido no recinto sagrado junto do Campo de Marte, e hoje, no entanto, desaparecido. Condenando, assim, a memória do tirano, vítima dos seus próprios crimes, o Senado punha simultaneamente termo à dinastia flávia, que 39
os deuses haviam, então, abandonado . A experiência mostrara que um imperador devia contar com a dedicação dos soldados, a estima do Senado e uma qualidade indefinível, o assentimento dos deuses. No fundo, uma tripla legitimidade do poder, a qual iria pautar a História de Roma nos próximos séculos e que faltara a Domiciano. Marco Cocceio Nerva, tal como referido, foi escolhido pelos conspiradores para ocupar o cargo de princeps. Este homem era já idoso, sem filhos, várias vezes cônsul, outrora amigo e familiar de Nero, inclusive frequentava o círculo de poetas que rodeava o imperador. Não obstante, Nerva era um indivíduo tranquilo e sensato, o qual se aliara desde muito cedo a Vespasiano, que fizera dele seu colega no consulado, em 71 d. C. Vinte anos mais tarde, Nerva fora colega de Domiciano, na mesma magistratura. No fundo, Nerva simbolizava a continuidade do poder senatorial. Os aristocratas, ao escolhê-lo, parecem ter tido a intenção de estabelecer uma verdadeira diarquia, associando realmente o príncipe ao Senado. Este ideal, na verdade, fora, desde Augusto, uma ficção e uma alegoria; algo que, agora, poderia tornar-se realidade. Em qualquer dos casos, Nerva iniciou a dinastia dos Antoninos/Élios-Úlpios, no ano de 96 d. C. Esta família conservaria o título imperial até Cómodo, até 31 de Dezembro de 192 d. C. Neste ano, mais uma vez, outro imperador é assassinado. Contudo, Domiciano deu a consciência à sociedade romana que existia a necessidade, e até mesmo a oportunidade, de ela própria escolher o seu princeps. De facto, esta ideia pressupõe, de certa forma, a colocação à frente do estado de um homem experimentado, de idade madura. Na verdade, as mais recentes experiências tinham provado que os príncipes, de que se destacam Gaio, Nero e até mesmo Domiciano, suscitavam pouca confiança e, naturalmente, 40
pouco prestígio .
Fig. 6: Domício Longina, mulher de Domiciano
1
44
Vide SUET. Dom. 23.
Porque Razão foi Domiciano Assasinado? Uma Perspectiva Histórica
Bibliografia: BOYLE, A. J. and DOMINIK, W. J., Flavian Rome: culture, image, text, Leiden, Brill, 2003. BRIAN, Jones W. The Emperor Domitian, London, Routledge, 1993. CAMPBELL, Jonh Brian, “Domitian (Titus Flavius Domitianus)” in Simon Hornblower and Antony Spawforth, eds., The Oxford Classical Dictionary, third edition, Oxford – New York, Oxford University Press, 1996, p. 491. CAPPS, E., PAGE, T. E., ROUSE, W. H. D., eds., Cary E. trans., Dio Cassius, Roman History, volume VIII, The Loeb Classical Library, London, William Heinemann, 1925, pp. 317 - 360. CAPPS, E., PAGE, T. E., ROUSE, W. H. D., eds., Cary E. trans., Dio Cassius, Roman History, volume VIII, The Loeb Classical Library, London, William Heinemann, 1925, pp. 361 - 426. CASTILLO, Arcadio del, “Capítulo V- La dinastía Flavia” in José Manuel Roldán, José María Blázquez e Arcadio Del Castillo, eds., Historia de Roma – Tomo 2: El Imperio Romano (siglos I – III), Madrid, Cátedra, 1989, pp. 175 - 193. ECK, Werner, “Domitianus” in Christine F. Salazar, Cardula Bachmann, et. all., eds., Brill´s Encyclopaedia of the Ancient World, New Pauly, Antiquity volume 4 – Cyr – Epy, Leiden – Boston, [s.n.], 2004, pp. 635 - 639. GRIMAL, Pierre, O Império Romano, [s.l.], edições 70, Março de 1999. GRIFFIN, Miriam, “Chapter 1 – The Flavians” in Alan K. Bowman, Peter Jarnsey, Dominic Rathbone, eds., The High Empire, A.D. 70 – 192, The Cambridge Ancient History, second edition, volume XI, [s.l.], Cambridge University Press, 2007, pp. 1 – 83. ROLDÁN HERVÁS, José Manuel, “Capítulo XVII – Los Flavios” in Historia de Roma, Historia “Salamanca” de la antigüedad, [s.l.], Ediciones Universidad Salamanca, [s.d.], pp. 318 - 323. SUETÓNIO, “Tito Flávio Vespasiano” in Os Doze Césares, tradução de João Gaspar Simões, 3º edição, [s.l.], Editorial Presença, [s.d.]. SUETÓNIO, “Tito Flávio Domiciano” in Os Doze Césares, tradução de João Gaspar Simões, 3º edição, [s.l.], Editorial Presença, [s.d.]. TÁCITO, As Histórias; tradução de Berenice Xavier, 2º volume, Rio de Janeiro, Athena Editora, 1937. VIELHAUER, Philipp; “La Primera Carta de Pedro” in Historia de la Literatura Cristiana Primitiva - Introducción al Nuevo Testamento, los Apócrifos e los Padres Apostólicos, Salamanca, Ediciones Sigueme, 1991, pp. 601 - 610.
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Ilhas Afortunadas - O Espólio do Naturalista Francisco de Arruda Furtado
Ilhas Afortunadas: o espólio do naturalista Francisco de Arruda Furtado
1
1
Alda Namora 2 Ana Carneiro 3 Ana Mehnert Pascoal 4 Conceição Tavares 5 David Felismino Vítor Gens6 O Museu de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa (MUHNAC) preserva um conjunto documental valioso para a história das ciências naturais em Portugal. Composto por manuscritos, impressos e um número avultado de desenhos, este espólio resulta da atividade científica do naturalista micaelense Francisco de Arruda Furtado (1854-1877). Nascido em Ponta Delgada, na ilha de S. Miguel (Açores), foi um dos mais destacados naturalistas portugueses da segunda metade do século XIX. Convicto seguidor e importante divulgador da teoria da evolução por seleção natural de Charles Darwin (1809-1882), com quem se Fig. 1: Francisco de Arruda Furtado. http://www.culturacores.azores.gov .pt/ea/pesquisa/Default.aspx?id=7334
correspondeu,
aplicou-a,
em
particular,
nos
domínios
da
malacologia e da antropologia.
O rigor metodológico, baseado no estudo das características externas e internas das espécies, mediante os métodos da anatomia comparada, contribuiu, entre outros fatores, para Arruda Furtado alcançar, em vida, reconhecimento nacional e internacional, tornando-se interlocutor
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Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, pela Universidade Nova de Lisboa, Mestre em Ciências Documentais, especialidade de Arquivo e Sistemas de Informação pela Universidade Autónoma de Lisboa. (Bolseira de Investigação, no MUHNAC, no âmbito do projeto Ilhas Afortunadas: Tratamento, estudo e acessibilidade de manuscritos e desenhos inéditos de Francisco de Arruda Furtado (1854-1887), financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian).
Professora Associada do Departamento de Ciências Sociais Aplicadas, Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e investigadora do CIUHCT (Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia).
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Licenciada em História da Arte e Mestre em Arte, Património e Teoria do Restauro, ambos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Bolseira BGCT do Departamento de História e Cultura Material da Ciência do MUHNAC-UL (SFRH/BGCT/ 51650/2011). 4 Mestre em História e Filosofia das Ciências pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e membro do CIUHCT. 5
regular dos mais reputados naturalistas e colecionadores do seu tempo. Entre 1866 e 1870, frequentou o Liceu Nacional de Ponta Delgada, numa altura em que as ciências da natureza ainda não integravam o programa liceal e, em 1876, iniciou uma colaboração intensa com o naturalista açoriano Carlos Maria Gomes Machado (1828-1901), com quem preparou a criação de um museu de história natural, no liceu de Ponta Delgada. Em princípios de 1885, José Vicente Barbosa du Bocage (1823-1907), diretor da Secção Zoológica do Museu Nacional de Lisboa (atual MUHNAC), sito na Escola Politécnica, convidou-o para trabalhar na reorganização e classificação das coleções malacológicas deste Museu. Morreu de tuberculose, com apenas 33 anos de idade, deixando uma prometedora, embora reduzida obra científica publicada, especialmente nas áreas da malacologia e antropologia física, bem como um conjunto notável de trabalhos inéditos sobre a fauna e flora dos Açores.
6
Licenciado em História – Ramo Científico e Pós-graduado em História Moderna pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Doutorando em História na mesma Faculdade, Bolseiro BGCT do Departamento de Cultura Material e História da Ciência do MUHNAC-UL (SFRH / BGCT / 52032 / 2012).
Licenciado em Antropologia pelo ISCTE- Instituto Universitário de Lisboa, Mestre em em Ciências Documentais, especialidade de Arquivo e Sistemas de Informação pela Universidade Autónoma de Lisboa.
Em 1953, Dulcemina Arruda Furtado, viúva e herdeira de Carlos de Arruda Furtado, filho único do naturalista açoriano, doou à Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, a grande maioria dos manuscritos, correspondência e livros do sogro.
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Ilhas Afortunadas - O Espólio do Naturalista Francisco de Arruda Furtado
7
Correspondência Científica de Francisco de Arruda Furtado, Introdução, levantamento e notas de Luís M. Arruda, Ponta Delgada: Instituto Cultural, 2002; Obra Científica de Francisco de Arruda Furtado, Introdução, levantamento e notas de Luís M. Arruda, Ponta Delgada, Angra do Heroísmo, Instituto Cultural de Ponta Delgada e Instituto Açoriano de Cultura, 2008. 8 Entre outros, António Frias Martins, ‘Arruda Furtado na malacologia açoriana’, Açoreana, 7 (1989), 9-16; Carlos Tavares, Ch. Darwin e a origem da flora dos Açores, separata da Naturalia, VII (1957-58), 1-9; G. F. Sacarrão, ‘Sobre o método em Darwin e a episódica relação com Arruda Furtado’, Prelo, nº11 (1986), 81-88; Luís M. Arruda, Sobre os estudos científico-naturais de Arruda Furtado, separata do Boletim do Núcleo Cultural da Horta, Vol. IX (1992), 69-83; ‘Arruda Furtado, um naturalista açoriano do século XIX’, Air Açores, nº 14 (1992), 21-25; ‘Comentários e Notas à obra científica de Arruda Furtado’, Professor Germano da Fonseca Sacarrão, Lisboa, Museu Bocage, 1994, 354, 357-362; ‘Escalas nos Açores, Povoamentos e Evolucionismo vistos por Arruda Furtado’, Portos, Escalas e Ilhéus no relacionamento entre o Ocidente e Oriente, Ponto Delgada, UA/CNCDP, 1999, 429-437; ‘Evolucionismo e Biogeografia na Obra Científica de Francisco de Arruda Furtado e seu contributo para o conhecimento científico das ilhas dos Açores’, As Ilhas e a Ciência. História da Ciência e das Técnicas, coord. Alberto Vieira, Funchal, CEHA, 2005, 266-275.
Integrados no acervo da biblioteca da faculdade, por essa altura ainda instalada no edifício centenário da antiga Escola Politécnica, todo este espólio aí permaneceu, juntando-se aos papéis de Arruda Furtado, mantidos no antigo Museu Bocage, herdeiro das coleções e documentação da secção zoológica do Museu Nacional de Lisboa, desde a época em que o naturalista açoriano aí trabalhara como adido. Na sua totalidade, o espólio é, atualmente, composto por 2424 documentos manuscritos, 114 documentos impressos (entre os quais, 34 livros), 630 desenhos e 333 cartas. Corresponde a documentação produzida e acumulada, quase exclusivamente, no âmbito da investigação científica ou percurso profissional do naturalista, entre 1880 e 1887. Em 2002, a transcrição da correspondência científica foi publicada na íntegra pelo Instituto Cultural de Ponta Delgada, num volume coordenado por Luís M. Arruda. Em 2008, a obra científica impressa em vida de Arruda Furtado foi organizada e publicada num extenso volume, coordenado e com estudo introdutório, também de Luís M. Arruda7 . Todavia, à exceção de alguns desenhos e documentos, reproduzidos ou/e citados em alguns trabalhos académicos8 , os originais permaneciam por catalogar e desconhecidos da comunidade académica e do grande público. Nesse sentido, desde 2013, o MUHNAC, com o apoio financeiro da Fundação Calouste Gulbenkian, iniciou o projeto Ilhas Afortunadas: Tratamento, estudo e acessibilidade de manuscritos e desenhos inéditos de Francisco de Arruda Furtado (1854-1887), sob coordenação de Marta Lourenço. O projeto reuniu uma equipa pluridisciplinar de 15 investigadores, 1 consultor e 1 bolseiro de investigação, das mais diversas áreas científicas (entre as quais, arquivística, história da ciência, zoologia, botânica e história de arte), oriundos de Portugal continental e dos Açores, com o objetivo de proceder ao tratamento arquivístico e estudo deste vasto acervo documental, com vista à sua disponibilização à comunidade científica e ao público em geral. A conservação, preservação, inventário e disponibilização de um espólio pessoal desta natureza interessa a vários níveis, possuindo, por razões diversas, um importante valor patrimonial e histórico que importa valorizar. Num primeiro nível, tem um interesse local inegável, remetendo diretamente para a história da investigação e do ensino das ciências naturais na antiga Escola Politécnica, bem como para as práticas museológicas do antigo Museu Nacional de Lisboa, do qual o MUHNAC é herdeiro. O incêndio de grandes proporções, ocorrido em março de 1978, no edifício da antiga Faculdade de Ciências contribuiu para um desaparecimento parcial dos arquivos institucionais do Museu Bocage e da quase totalidade das coleções de história natural. A preservação de um conjunto documental, anterior a 1978, consistente e coeso, do ponto de vista numérico e qualitativo, associado ainda a uma pequena coleção de conchas organizada pelo próprio Arruda Furtado não deixa de ser, apesar da existência nos arquivos desta instituição de um conjunto significativo de documentos do século XIX, um caso raro, no 1
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Correspondência Científica de Francisco de Arruda Furtado, Introdução, levantamento e notas de Luís contexto da história da mesma. M. Arruda, Ponta Delgada: Instituto Cultural, 2002; Obra Científica de Francisco de Arruda Furtado, Introdução, levantamento e notas de Luís M. Arruda, Ponta Delgada, Angra do Heroísmo, Instituto Cultural de Ponta Delgada e Instituto Açoriano de Cultura, 2008 2 Entre outros, António Frias Martins, ‘Arruda Furtado na malacologia açoriana’, Açoreana, 7 (1989), 9-
Ilhas Afortunadas - O Espólio do Naturalista Francisco de Arruda Furtado
Por outro lado, a variedade dos temas representados e das metodologias associadas, deixa transparecer uma abordagem plural e abrangente das ciências naturais por parte de Arruda Furtado. Embora as suas investigações mais significativas se situem no âmbito da malacologia e da antropologia, realizou trabalhos em outras áreas da história natural, nomeadamente, a botânica (Fig. 2) e a entomologia; no domínio da antropologia, a sua abordagem integrou áreas tão diversas como a geologia, a Fig. 2: Desenho anatómico da flor do género Fuchsia. MUL/FAF/D/02/0007
climatologia, a etnologia e a linguística.
A relevância deste legado para a história da ciência em Portugal, não se esgota, por isso,
9
Francisco de Arruda Furtado, Materiais para o Estudo Antropológico dos Povos Açorianos. Observações sobre o Povo Micaelense, Ponta Delgada, Tip. Popular, 1884.
10
Entre outros, Arruda Furtado, ‘Pequenas contribuições para o estudo da origem das espécies malacológicas terrestres das ilhas dos Açores. Sobre alguns exemplares de Helix aspersa Müller recolhidas nas paragens elevadas e áridas da ilha de S. Miguel’, Era Nova, 12 (1881), 548-552 ; Idem, ‘Sobre o lugar que devem ocupar nas respectivas famílias os moluscos nus’, Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes, 42 (1886), 88-94.
na simples biografia da vida e obra científica do seu autor. Um dos principais interesses reside, justamente, na interpretação de textos escritos por um naturalista que pertenceu a uma geração nascida num momento de mudança epistemológica nas ciências naturais, em parte impulsionada pelas novas conceções evolucionistas. De um modo geral, Arruda Furtado procurou, no seu trabalho, esclarecer a origem das espécies
nos
Açores.
No
campo
da
antropologia, dedicou-se ao estudo do povo açoriano, concretamente da população da ilha
de
São
Miguel,
resultando
na
publicação, em 1884, da obra Materiais para o Estudo Antropológico dos Povos
Fig. 3: Imagem constante da obra Materiaes para o Estudo Anthropologico dos Povos Açorianos. MUL/FAF/B/01/0012
Açorianos, do qual existem no MUHNAC diversas notas e versões manuscritas (Fig. 3). Tendo em conta a geologia, o meio e o clima, as características físicas da população e o modo de viver, sentir e pensar, conclui, sem encontrar todavia respostas claras, que a população micaelense possui um conjunto de traços distintivos da restante população açoriana9. No campo da malacologia, dedicou-se sobretudo à análise da repartição dos moluscos terrestres e marinhos nas ilhas, verificando um número elevado de endemismos açóricos relativamente à área das ilhas10.
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Ilhas Afortunadas - O Espólio do Naturalista Francisco de Arruda Furtado 11
Arruda Furtado, ‘On Viquesnelia atlantica Morelet & Drouet’, Annals and Magazine of Natural History, 7, 39 (1881), 250-254.
12
Arruda Furtado, ‘On Viquesnelia atlantica Morelet & Drouet’, Annals and Magazine of Natural History, 7, 39 (1881), 250-254.
13
Não obstante, a relevância da figura não se limita ao contexto nacional e local. Por um lado, as relações pessoais e científicas, plasmadas na sua obra e correspondência, colocam Arruda Furtado numa comunidade científica à escala global. Logo muito jovem, mediante a colocação de um anúncio no The International Scientist Directory, procurou estabelecer parcerias para troca de objetos naturais, nomeadamente conchas terrestres e marinhas, para estudos anatómicos comparativos entre as espécies endémicas dos Açores e as de outros locais do globo. Mereceu, rapidamente, a atenção de figuras destacadas que lhe oferecem a sua proteção, entre as quais Louis Compton Miall (1842-1921), Eugène Simon (1848-1924), Maurice-Armand Chaper (1834-1896), que lhe proporcionaram a possibilidade de publicar os seus trabalhos em 11
AH-MUL, Princípios teóricos e práticos de Biologia destinados aos Liceus MUL/ FAF/A/02/0017.
revistas estrangeiras de renome . Num âmbito nacional, manteve ainda, ao longo da vida, um
AH-MUL, Páginas de História Natural ilustrada MUL/FAF /A/02/0034.
de que era diretor, Adolfo Coelho (1847-1919), e José Leite Vasconcelos (1858-1941), entre
14
diálogo regular com algumas das figuras mais destacadas da intelectualidade portuguesa, destacando-se Teófilo Braga (1843-1924), que o convidou a colaborar na revista O Positivismo, outros. O projeto Ilhas Afortunadas tem-se desenvolvido em vários momentos a nível técnico: conservação e restauro; tratamento arquivístico que compreende a identificação inicial, a numeração, a classificação, a descrição e a digitalização; a construção da aplicação informática e disponibilização da documentação. O quadro de classificação foi feito de acordo com as tipologias documentais existentes no espólio, tendo-se ainda pretendido que fossem intuitivas para os futuros investigadores do acervo. A descrição arquivística foi feita ao documento, tendo por base as normas internacionais e as orientações da Direção-Geral do Livro dos Arquivos e das Bibliotecas. A utilização destes instrumentos de trabalho permite “a criação de descrições consistentes da documentação de arquivo e dos seus produtores e colecionadores, que facilitem 12
a pesquisa e a troca de informação, quer a nível nacional, quer internacional”. A descrição teve o apoio de especialistas das diversas áreas envolvidas.
Manuscritos e Desenhos Dos documentos manuscritos fazem parte registos bibliográficos, notas científicas, textos preparatórios para artigos científicos e de divulgação. Muitos deles chegaram à estampa, outros já se encontravam em fase final, não tendo sido publicados devido à morte prematura do autor; outros, ainda, ficaram em fase de projeto. Através do seu estudo ficam patentes os interesses e os objetivos científicos deste naturalista. Verifica-se que os seus primeiros trabalhos eram dirigidos a outros naturalistas com o objetivo de contribuir com investigações originais para o desenvolvimento
do
conhecimento
científico.
Numa
fase
posterior, dedicou-se, sobretudo, a projetos que pretendiam chamar a atenção de um público mais vasto e menos especializado para a importância das ciências naturais, Arruda Furtado, ‘On Viquesnelia Morelet &deDrouet’, Annals and Magazine of Natural estruturando e elaborando obrasatlantica de divulgação, que são History, 7, 39 (1881), 250-254. exemplos os textos inéditos Princípios teóricos e práticos de
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Biologia destinados aos Liceus13 e Páginas de História Natural Ilustrada14 (Figs. 4 e 5).
Fig. 4/5: Páginas do manuscrito e de uma ilustração de História Natural Ilustrada, obra que não chegou a ser publicada. MUL/FAF/A/02/0034
Ilhas Afortunadas - O Espólio do Naturalista Francisco de Arruda Furtado
O desenho científico, realizado com maestria técnica e artística, desempenhou um papel fulcral em todos os aspetos da obra de Arruda Furtado. No âmbito da investigação científica, o desenho era, então, parte integrante do método de investigação, quer na zoologia, quer na botânica, sendo, em determinados casos, possível identificar, no seu espólio, séries completas que documentam o processo criativo, desde o registo de campo, a esboços intermédios até ao desenho final, por vezes reproduzido em publicações (Figs. 6, 7 e 8). Os desenhos associados ao seu projeto de divulgação científica têm, naturalmente, um objetivo diferente
dos
anteriores,
na
medida em que é manifesta a preocupação do autor em tornálos de mais direta apreensão e apelativos ao grande público e aos jovens alunos dos liceus, com o intuito de cativá-los para o estudo das ciências naturais. Na
sua
maioria,
foram
executados a grafite e a tinta-da-china,
coloridos
a
aguarela,
guache ou lápis de cor, no primeiro caso documentando a prática naturalista de Arruda Furtado; no segundo, ilustrando a importância do desenho na divulgação científica de finais de oitocentos. Constituem, por isso, um
património
científico
e
artístico notável. Fig. 5/6/7: Desenhos anatómicos da Helix Azorica (Albers, 1852). MUL/FAF/D/01/0013
Todavia, um tal espólio coloca desafios ao nível da descrição documental, obrigando à decisão entre duas possibilidades: dar primazia aos estudos comparados, para os quais aponta todo o espólio, ou colocar em evidência os estudos de uma determinada espécie, mostrando o processo evolutivo da ilustração. A solução encontrada foi-nos fornecida pelo próprio autor nos seus índices, organizados por espécie, em detrimento dos estudos anatómicos comparados. Sendo a coleção de desenhos parte importante do espólio de Arruda Furtado constitui, além do mais, uma fonte importante para futuras investigações de biólogos, ilustradores científicos e historiadores das ciências.
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Ilhas Afortunadas - O Espólio do Naturalista Francisco de Arruda Furtado
Documentos impressos No acervo de Arruda Furtado, aos impressos correspondem 114 documentos, divididos em dois núcleos: um associado ao espólio manuscrito, com 4 livros, 67 separatas e 14 jornais e recortes de imprensa, preservado no Arquivo Histórico do Museu e outro composto por 27 livros e 2 separatas, preservado na Biblioteca do Museu. A grande maioria, se não perto da totalidade dos exemplares, ostenta marcas de propriedade sob duas formas: ex-libris manuscrito de Arruda Furtado; e/ou assinatura manuscrita, na folha de rosto, ou primeira página, de cada trabalho. Quase todos os impressos apresentam ainda observações, comentários e anotações gráficas de Arruda Furtado, dando conta de métodos e ideias, e de avanços e recuos na sua investigação.
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Francisco de Arruda Furtado, On Viquesne lia atlantica, Morelet & Drouet, sep. dos Annals and Magazine of Natural History, vol. 7, Série 5, 1881, pp. 250-254.; AH-MUL, On Viquesnelia atlantica, Morelet & Drouet, MUL /FAF/B/01/0003.
Prolongamento e complemento dos muitos cadernos e folhas manuscritas, estas notas conferem a estes impressos um valor significativo para uma mais completa e detalhada compreensão do seu pensamento. Destaca-se, por exemplo, um exemplar do estudo On Viquesnelia Atlantica (1881), profusamente revisto, comentado e corrigido pelo próprio Arruda1. Grande parte dos impressos referentes à biblioteca de Arruda Furtado, resultado de trocas e ofertas, ostenta ainda dedicatórias manuscritas dos próprios autores. De destacar, entre muitos, um exemplar de The Geographical Distribution of Animals (2 volumes, 1876) de Alfred Russell Wallace (1823-1913), oferecida por Charles Darwin (1809-1882), em 1881, na sequência do primeiro contacto do jovem açoriano e, ainda, um exemplar do On the Origin of Species (1878, 6ª ed.), com prova fotográfica em albumina do retrato do Darwin, aposto à contracapa (Fig. 9). Arruda Furtado acompanhou, tanto quanto possível, a produção científica nacional e estrangeira e, nesse sentido, procurava obter as obras mais importantes que tratassem dos assuntos do seu Fig. 9: Frontispício da obra de Charles Darwin, On the Origin of Species by Means of Natural Selection, com prova fotográfica em albumina do retrato do Darwin, aposto à contracapa. MUL/FAF/B/02/0090
interesse não raras vezes mediante o envio das suas obras a outros naturalistas, participando, assim, num sistema informal de permuta comum na época, que tinha a vantagem adicional de reduzir os custos de aquisição bibliográfica.
Divulgação do espólio de Francisco Arruda Furtado Dada a importância deste espólio, considerou-se, no âmbito do projeto supracitado, que o modo mais conveniente de promover a sua divulgação e acessibilidade seria a construção de um portal dedicado a Francisco de Arruda Furtado integrado na plataforma digital do MUHNAC, acessível É em 1957, ainda com todas as consequências dos eventos militares bem presentes na geração através da página web http://digital.museus.ul.pt/exhibits/show/arruda-furtado-vida-e-obra, de então (não era preciso ser muito velho para ter «vivido» duas guerra mundiais!), que o jovem onde sãoKubrick, apresentadas as múltiplas dimensões obra deste ao feito mesmo tempo Stanley em fase de afirmação, aceita da o convite de naturalista, Kirk Douglas através daque suaé companhia produção Bryna, paraque dirigir e escrever Paths of Glory, baseando-se no romance facultado o de acesso aos documentos o compõem. homónimo de Humphrey Cobb (de 1937). A complementar o portal, foi ainda projetada uma exposição, a inaugurar também no MUHNAC, em data a anunciar, com o objetivo de divulgar, de modo impressivo, a personagem e a prática das ciências naturais no seu tempo. Com ambos, portal e exposição, pretende-se chamar a atenção para a importância da preservação e catalogação de espólios de cientistas, bem como a necessidade de garantir o acesso de especialistas e leigos a estes acervos. No primeiro caso, visa-se a promoção da investigação e, consequentemente, o surgimento de novas 1 Francisco de Arruda Furtado, On Viquesnelia atlantica, Morelet & Drouet, sep. dos Annals and interpretações e leituras davol. personagem da obra; no segundo, dar On a conhecer uma figura Magazine of Natural History, 7, Série 5, e1881, pp. 250-254.; AH-MUL, Viquesnelia atlantica, Morelet & Drouet, MUL/FAF/B/01/0003. relevante da ciência portuguesa e, através dela, sensibilizar o público para o facto de que o património científico é parte integrante do património histórico, não só de todos nós, mas também das gerações futuras.
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Agradecimentos:
Ana Mehnert Pascoal e David Felismino beneficiam de bolsas de Gestão de Ciência e Tecnologia financiadas pela FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia.
Sabores com História ... A primeira referência história à pesca do atum no nosso país data do ano 151 da nossa era, no actual território do Algarve, sendo os cónios (povo ibérico submetido pelos romanos) quem se encarregavam da pesca. com vísceras de vários peixes e mariscos, depois de rigorosamente confeccionado, constituindo um manjar muito apreciado no entanto apenas acessível aos mais abastados. Esta pesca foi prosseguida pelos romanos e pelos árabes (responsáveis pela evolução tecnológica das pescas posteriormente),que nos legaram alguma da tecnologia e terminologia. Em 1249, data da conclusão da conquista do território nacional aos mouros, o rei D. Afonso III decide reservar para a coroa todos os direitos sobre a pesca do atum, sob a chancela das "Pescarias Reais". Com D. Fernando (meados do séc. XIV, cerca de um século depois) estabeleceram-se no Algarve os primeiros sicilianos e genoveses. Foram estes povos italianos que iniciaram os portugueses na arte da pesca do atum, com grande sucesso, uma vez que se tornou imediatamente numa actividade extremamente próspera, matendo-se assim até ao séc. XVII.
... A História com sabor
www.tastin-gourmet.com
Comentário Crítico ao Filme: La Voie Lactée (1969) Luis Buñuel
Comentário Crítico ao Filme:
La Voie Lactée (1969), de Luis Buñuel 1
João Camacho 1
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Mestre em História Antiga pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Membro do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa; investigador associado do Centro de História da Universidade de Lisboa; investigador do Instituto Prometheus
Tendência que lutava, entre outras coisas, contra a imposição de formas (como a narrativa) para a expressão cultural e artística.
Dois peregrinos partem de Paris em direcção a Santiago de Compostela, numa romaria em que participam milhares de pessoas, anualmente. Desde a Idade Média (século IX) que assim é, e consta que os crentes eram orientados, à noite, pela Via Láctea, que nos céus indicava a direcção de Espanha e dos Caminhos de Santiago. Durante o percurso, os protagonistas cruzam-se com uma aparentemente inusitada diversidade de personagens, como o Marquês de Sade, prostitutas, Prisciliano de Ávila, o Diabo, Jesus, a Virgem Maria, professoras primárias ou o Papa. Essa aparente disparidade, que resulta das várias «colagens», possui uma unidade: os peregrinos, ao seguirem o «caminho da ortodoxia», deparam-se, aqui e ali, com outras figuras que formaram ou defenderam algumas heterodoxias ao longo da história do cristianismo. A Idade Média está presente na percepção do realizador. Esta marcou, metaforicamente, a sua infância na ruralizada e imobilista pequena aldeia de Calanda, em Aragão: «Tive sorte em passar a infância na medievalidade. Foi uma época dolorosa. Dolorosa no material, esquisita no espiritual (…) Os mesmos sonhos passavam de pai para filho, de mãe para filha. ». Mas Luis Buñuel não foi um conformista e talvez tenha sido essa aversão à subordinação cega e inquestionável que lhe incutiu o interesse pelas diferentes heresias e martírios dos não abjurados. Foi no Diccionario de las Herejías, do presbítero Francisco Pluquet, que Buñuel e Carrière (argumentistas) foram buscar o material para reproduzirem na voz dos personagens, com «uma enorme autenticidade». O próprio Buñuel, expatriado pelo ditador Franco (que, para além disso, baniu o seu documentário Las Hurdes: Tierra Sin Pan), fez parte da «Geração de Fig. 1: Luis Buñuel no festival tradicional de Calanda
27», com os seus amigos pessoais Pepín Bello, Federico García Lorca e
Salvador Dalí (este co-realizador do Un Chien Andalou, de 1929), alguns dos mais representati2
vos artistas do movimento surrealista.
La Voie Lactée - realizado em plena «etapa francesa» - não possui uma intenção activamente combativa, como os seus primeiros filmes; aqui são usados
testemunhos
de
diferentes
épocas, matizados em grandes questões e problemáticas teológicas como a natureza da Trindade, a origem do mal, a Eucaristia, a dupla natureza de Cristo ou a virgindade de Maria, para sublinhar a loucura e o fanatismo de alguns
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defensores das diferentes perspectivas, ao longo da História.
Comentário Crítico ao Filme: La Voie Lactée (1969) de Luis Buñuel
A ironia é transversal e confere um
humor
desconcertante
3
à
Crença dos Pastelianos, grupo protestante do século XVI.
acção, não só pelo que é dito, mas também pelo lugar onde é dito. E o
«lugar»
tempo,
não
mas
possui
vários,
«um»
que
se
entrecruzam de forma por vezes tão
irracional
quanto
as
discussões que levam à morte de uns e aos duelos de outros. Para o ensaísta Carlos Fuentes, La La Voie Lactée é um filme comba-
Fig. 2: Da esquerda para a direita: Salvador Dalí, Moreno Villa, Luis Buñuel, García Lorca e José Rubio Sacristán. Os quatro primeiros fizeram parte da «Geração de 27», o último foi um conhecido historiador de Direito.
tivo e ant ireligioso; para o escritori Julio Cortázar, uma apologia católica aparentemente «encomendada pelo Vaticano». Luis Buñuel afirma, nas suas «memórias», que «a meus olhos, Via Láctea não estava nem a favor nem contra nada». Contudo, a ferocidade do dogmatismo e as sangrentas consequências do
fanatismo
encontram nas
vicissitudes
clericais e na História da igreja católica um campo
de
expressão
muito
fértil.
Um
jansenista e um jesuíta digladiam-se pela afirmação do livre arbítrio face à graça divina; contudo:
«os
impenetráveis», Fig. 3: Jesus preparava-se para fazer a barba, quando sua mãe, Maria, o faz mudar de ideias.
caminhos sentencia
do
senhor Pierre
são (Paul
Frankeur). Um padre descreve, convicto, o processo pelo qual o pão se torna em corpo de
Cristo (transubstanciação), convencendo-se no minuto seguinte que, afinal, Cristo estava misturado na hóstia como a lebre num paté1; conclusão: o padre sofria de um problema psiquiátrico e acaba (re) internado. A ilogicidade das premissas também é sublinhada. Mas, contrariamente às discussões sobre a sua natureza, Jesus surge bastante humanizado, rindo, correndo, sentindo fome ou constrangendo-se por falar em público sem consulta prévia. Estamos perante uma obra que contém uma interpretação histórica e social do clericalismo (e não tanto da religião), relevando a influência embrutecedora que este exercera durante os largos séculos de uma medievalidade que encontra continuidade na Espanha de Francisco Franco (polícias e clérigos mantêm relações polidas e igualitárias, ao contrário do tom autoritário e/ ou paternalista com que se dirigem às restantes personagens), recorrendo o realizador à ironia e ao humor para apresentar desfasamentos e perplexidades resultantes dos temas discutidos. De resto, tratam-se de temáticas difíceis de serem trabalhadas num filme, mas a arte buñueliana, mantendo a sua «ética rebelde» (invoque-se a fotografia «Benjamin Péret insultando a un cura», que Luis Buñuel sempre referiu como grande inspiradora da sua ideia de surrealismo), consegue uma das suas obras mais extravagantes e humorísticas.
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Comentário Crítico ao Filme: La Voie Lactée (1969) Luis Buñuel
Ficha técnica: Realização: Luis Buñuel / Argumento: Luis Buñuel e Jean-Claude Carrière, baseado numa ideia original de Luis Buñuel, apoiada na Historia de los Heterodoxos Españoles de Marcelino Menendez Pelayo e nos volumes dedicados às heresias da Histoire de l'Église de Migne, ed. Paris, 1863 / Fotografia: Christian Matras / Décors: Pierre Guffroy / Guarda-Roupa: Jacqueline Guyot / Montagem: Louisette Hautecoeur / Arranjo Sonoro: Luis Buñuel / Interpretação: Laurent Terzieff (Jean), Paul Frankeur (Pierre), Bernard Verley (Jesus Cristo), Edith Scob (a Virgem Maria), Denis Manuel (Rodolphe estudante protestante), Daniel Pilon (François, o amigo de Rodolphe), Pierre Clementi (o anjo da morte), Alain Cuny (o homem da capa encarnada), François Maistre (o padre fugido ao manicónio), Julien Bertheau (Richard, o "mâitre" do restaurante), Michel Piccoli (Marquês de Sade). Produção: Serge Silberman para "Greenwich Films Production" (Paris) e "Fraia Films" (Roma). Estreia Mundial: 15 de Março de 1969, em Paris / Estreado em Portugal: 6 de Fevereiro de 1979, no Cinema Quarteto. Duração: 101 minutos.
Bibliografia: Luis BUÑUEL, Mi Ultimo Suspiro, Barcelona: Plaza & Janes, 1982. Antonio LARA, La Imaginación en Liberdad: homenaje a Luis Buñuel, Madrid: Universidad Compultense, 1981.
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Colóquio
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Roteiro Histórico: O Crato de hoje e o Crato de ontem
Roteiro Histórico: O Crato de hoje e o Crato de ontem Semião Pólvora
A actual vila do Crato é o resultado de um constante e confrangedor despovoamento iniciado na segunda metade do século XX. De década para década o Recenseamento da População atesta esta tendência. A histórica, importantíssima e “notável” vila do Crato está a cair e a desaparecer. Os habitantes têm disso consciência, mas só por si, sem a ajuda das entidades nacionais, pouco podem fazer para contrariar esta terrível decadência. Tem sido notável a acção dos eleitos locais, os quais têm procurado criar pólos de interesse na vila, mas falham quando tentam fixar os mais novos. Os empregos não são fáceis de adquirir no concelho. Uma vila que foi considerada um centro urbano em meados do século passado, com fábricas de moagem, metalurgia, entre outras indústrias, não possui hoje uma única destas unidades do sector secundário. A acção dos edis tem-se centrado no setor terciário, com a criação de serviços culturais e de apoio aos idosos. Nas vilas do interior de Portugal Continental fecham as escolas e vão abrindo lares de terceira idade, o Crato não foge a esta regra. Na última década há a registar algum dinamismo privado no sector do turismo rural, com a criação de unidades agro-turísticas, com incidência no desenvolvimento da actividade vinícula principalmente. É alguma coisa, mas é ainda uma excepção. Fala-se desta terra desde muito antes da fundação da nacionalidade. Já Ptolomeu a menciona afirmando que a então Ucrate, teria sido fundada pelos Cartagineses no ano de 504 a.C. Conquistada pelos muçulmanos em 716, só no reinado de D. Afonso Henriques volta para posse dos cristãos e, após os avanços e recuos da reconquista cristã, é doada por D. Sancho II à Ordem dos Hospitalários em 1232. Um século depois a Ordem de Malta fixa nesta vila a sua sede. (1) Se nos limitarmos a fazer uma digressão descuidada pela vila do Crato pouco nos prende atenção. As principais entradas na vila não dão acesso directo ao que de interessante, do ponto de vista histórico, esta vila nos reserva. Desembocamos no rossio, espaço medieval para a realização das feiras e mercados – embora hoje transformado em jardim, ainda ali se realizam feiras.
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Roteiro Histórico: O Crato de hoje e o Crato de ontem
Aqui apenas se destaca um coreto do século XIX, no qual a secular Filarmónica (ainda hoje existente e que constitui um pólo de desenvolvimento cultural assinalável) fazia as suas exibições dominicais que deliciavam os habitantes que assim tinham a única possibilidade de ouvir música. A partir deste espaço, se estivermos atentos, podemos vislumbrar o que resta de uma das portas de entrada na vila. Junto da mesma ainda existe uma habitação particular que exibe uma porta de arco gótico em granito amarelado da região. Existem algumas destas portas na vila, são em reduzido número, mas muito bem preservadas e protegidas. A vila velha, entre muros, é composta, na sua maioria, por ruas estreitas e discretas, de trânsito automóvel de um só sentido, por isso andar a pé é uma das melhores opções. Aconselhamos o visitante a preparar-se previamente com informação, pode ser um roteiro turístico, ou um residente razoavelmente bem informado. Caso contrário perderá muito tempo a tentar descobrir na localidade actual o Crato histórico. Por entre o edificado dos últimos cem anos encontramos um conjunto de construções de um elevadíssimo valor patrimonial. Temos vestígios medievais, renascentistas, seiscentistas e setecentistas. Descemos a Rua Direita (2), hoje rua 5 de Outubro, onde se destaca uma pequena mas singular capela setecentista cujo altar se abre para a rua através de uma larga janela. Foi mandada construir por D. Rosa Maria de Andrade Monteiro, por volta do ano de 1755. De dimensão reduzida, ostenta um altar-mor, em mármore preto e branco com decoração em dourados, colunas torsas, onde está colocada a imagem de Nossa Senhora do Bom Sucesso. O que está à vista denota uma sensibilidade barroca/rococó. Em frente ficava a prisão da vila, e esta capela tinha por finalidade permitir aos presos a possibilidade de assistir à celebração da missa. Poder-se-iam fazer várias leituras desta curiosa situação.
Esta rua 5 de Outubro (a antiga rua Direita) desemboca numa praça onde estão os edifícios setecentistas e oitocentistas da Câmara Municipal. Destaca-se aqui uma varanda (a chamada “varanda do grão Prior”). Ainda podemos observar as três arcadas. Esta varanda, de planta rectangular, estaria destacada em relação à fachada de um palácio, hoje inexistente. O piso térreo abre para a praça através das citadas três arcadas, assentes sobre colunas cilíndricas e contrafortes laterais. O espaço interior apresenta uma cobertura de madeira. Terá sido O primeiro grão-prior (no reinado de D. João III), o Infante D. Luís, filho de D. Manuel a mandála edificar, e este palácio seria a sua residência. Desse edifício resta, como já dissemos, apenas esta varanda.
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Roteiro Histórico: O Crato de hoje e o Crato de ontem
Não estamos a seguir um critério cronológico para visitarmos esta histórica vila – fará mais sentido partirmos desta Praça do Município, já que dela podemos estabelecer rotas facilitadoras para uma visita coerente de modo a podermos gerir o tempo. Daqui dirigimo-nos para a igreja matriz do Crato. Apesar de edificada em meados do século XIII, são praticamente inexistentes os vestígios da traça inicial, visto que o edifício foi submetido a várias alterações desde a sua construção até finais do século XIX. Na fachada desta matriz impõe-se um pórtico clássico, de gosto renascentista, com um frontão onde se pode ver uma lápide com o escudo dos Ataíde e dos Melo, com uma inscrição alusiva ao Prior D. Vasco de Ataíde, encimada pela Cruz de Malta. É ladeada por uma torre sineira avançada, de um estilo gótico tardio, rematada por um coruchéu. O interior é de três naves, com azulejos do século XVIII, no entanto ainda podemos ver a estrutura tardo gótica construída aquando da acção do Prior do Crato D. Frei Vasco de Ataíde no século XV. Mais tarde, no século XVI, o infante D. Luís ordenou que se efectuassem obras no edifício, que provocaram alterações no interior e no exterior. A cabeceira conserva o plano original, comportando dois absidíolos correspondentes às naves laterais, que estão completamente cobertos por talha dourada seiscentista. O restauro executado em 1891 acrescentou umas abóbodas que não integravam o edifício quatrocentista. Subsistiram a todas estas remodelações uns ornamentos alusivos aos Hospitalários, os quais podem ser observados numa das partes da capela-mor, que foi totalmente refeita e apresenta uma influência renascentista. A outra parte desta capela-mor, também abobadada, foi acrescentada no século XVII, e revestida de painéis de azulejos, com representações de Passos da Vida da Virgem, tendo nas paredes laterais sido edificado o cadeiral. A construção do Castelo do Crato seguiu-se após a doação da vila do Crato à Ordem dos Hospitalários (mais tarde designada por Ordem de Malta) em meados do século XIII. A construção do castelo continuou no século seguinte e foi durante o priorado de D. Frei Nunes de Góis que se definiu um novo perímetro amuralhado. Seguiu-se a destruição das muralhas e castelo aquando das lutas entre os partidários do Infante D. Pedro e os partidários da rainha viúva D. Leonor. Mais tarde novas reconstruções se realizam visto que esta vila terá sido escolhida para a realização de dois casamentos reais (D. Manuel com D. Leonor de Castela e mais tarde, de D. João III com D. Catarina de Áustria).
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Roteiro Histórico: O Crato de hoje e o Crato de ontem
A transformação mais profunda deu-se quando foi necessário preparar as vilas e cidades fronteiriças para a defesa no contexto da Guerra da Restauração. Assim, tal como aconteceu em muitas fortalezas medievais, as muralhas vão, em grande parte, dar lugar a novas fortificações de caraterísticas completamente novas e que estavam então de acordo com a capacidade destrutiva das novas armas de artilharia do século XVII. D. João IV mandou assim apetrechar o Crato de um fortim estrelado típico da época. Decorriam ainda as obras de construção quando as tropas de D. João de Áustria atacam a vila e destroem grande parte do conjunto defensivo, tendo inclusive incendiado os arquivos da Ordem de Malta. Hoje pouco resta do conjunto medieval e moderno. O que ainda se pode observar resume-se a alguns lanços de muralha, ruínas de duas torres, uma guarita, uma cisterna e ainda algumas arcadas da casa do governador. Uma parte significativa das muralhas está, de certo modo, disfarçada no conjunto edificado que constitui a parte velha da vila do Crato. De qualquer modo, o que ainda se pode observar, dá para compreender a extensão da área muralhada e da grandiosidade do complexo defensivo que esta vila possuiu, o que atesta a importância que esta vila desempenhou ao longo da nossa História. Podemos seguramente afirmar que vale a pena visitar a notável vila do Crato. Claro que visitar a sede do concelho não significa esgotar o que de interessante existe em todo o concelho do Crato. Bem perto fica Flor da Rosa e o seu Mosteiro. Mandado construir por D. Álvaro Gonçalves Pereira (pai de D. Nuno Alvares Pereira), foi exemplarmente recuperado e nele está instalada uma unidade hoteleira de superior qualidade. No largo em frente pode-se observar uma fonte pública que ostenta vestígios góticos na sua fachada.
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Roteiro Histórico: O Crato de hoje e o Crato de ontem
Seguimos pela estrada da povoação de Aldeia da Mata e não podemos deixar de visitar um extraordinário monumento megalítico. Trata-se de uma anta, classificada como Monumento Nacional desde 1910. É uma das maiores existentes em território nacional, e em excelente estado de conservação (c. 3000 a.C.). Vale uma visita demorada para se poder observar o rigor com que foi edificada, permitindo uma visão de 360 graus, tal é e a amplitude paisagística que possibilita. 1 – O facto de ter sido sede do priorado deu a esta vila valiosas particularidades. A título de exemplo, apontamos o facto de nas terras deste priorado, a aplicação da Justiça passar pela permissão do grão-prior, o qual podia exibir o mesmo tipo de nomenclatura que o usado nas chancelarias régias. Muitos privilégios transformavam esta vila e o termo numa excepção dentro do reino. Foi bom enquanto durou. Distantes estão os tempos em que esta vila orgulhosamente ostentava o título de sede do Priorado. Desde os longínquos Hospitalários até à catástrofe de 1662, ano em que perdeu a mesa prioral, deixando definitivamente de ser a sede da Ordem de Malta. 2 - Rua Direita é uma designação que surge em várias localidades portuguesas que se reestruturaram na nossa medievalidade. Fazia parte da organização urbanística destas localidades o castelo. Era por regra uma construção situada numa parte mais elevada ou que permitia uma melhor defesa. Praticamente toda a povoação era construída em função do castelo, havendo uma rua que ia até ele directamente de uma das portas da muralha. Essa era a rua que ia directamente, a direito, mesmo que não fosse do ponto de vista da geometria uma rua direita. Essa toponímia foi desaparecendo ao longo dos séculos até que, com a Revolução Liberal e mais tarde com a Revolução Republicana, muitas deram lugar a novas designações em homenagem aos heróis ou a datas de acontecimentos determinantes dessas revoluções. Este caso do Crato é um exemplo perfeito.
Bibliografia: “Foral da Vila do Crato” M. Inácio Pestana, 4ª edição (Câmara Municipal do Crato) 2007 “O combate de Flor da Rosa” António Ventura, edições Colibri, 1996 Enciclopédia Verbo Luso Brasileira de Cultura - volume VI, Verbo, 1967
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As Grandes Datas Novembro 2014 a Janeiro 2015 Grande Terramoto de Lisboa
1 de Novembro de 1755 – 259 Anos
Grande terramoto que destrói parte da cidade de Lisboa. O maior sismo a ocorrer em Portugal, estima-se que tenha provocado, pelo menos, cerca de 10 000 mortos
Napoleão Imperador
2 de Dezembro de 1804 – 210 Anos
Coroação de Napoleão Bonaparte, e sua mulher Josefina de Beau-harnais, como imperadores de França. A cerimónia foi realizada na présença do Papa Pio VII, na Catedral de Notre-Dame.
Guerra Civil de Roma
10 de Janeiro de 49 a.c. – 2064 Anos
Júlio César atravessa o Rubicão, dando inicio à guerra civil em Roma.
Boston Tea Party
16 de Dezembro de 1773 – 241 Anos
Reinado de Isabel I de Inglaterra 17 de Novembro de 1558 – 456 Anos
Isabel I (filha de Henrique VIII com a sua segunda esposa Ana Bolena) torna-se rainha da Inglaterra Conferência de Berlim
15 de Novembro de 1884 – 130 Anos
Início da Conferência de Berlim, organizada por o Chanceler Otto von Bismarck. A ordem de trabalhos visava a repartição das colónias europeias na África. Foi nesta conferência que Portugal apresentou o projecto do Mapa cor-de-rosa. Nascimento de Eça de Queiroz
25 de Novembro de 1845 – 169 Anos
Nasce, na Póvoa do Varzim, o escritor Eça de Queirós, autor de “Os Maias”, “O Crime do Padre Amaro”, “Primo Basílio”, entre muitos outros.
O famoso protesto contra as imposições britânicas, no qual americanos disfarçados de índios invadiram o porto de Boston, arruinando os carregamentos de chá, foi um dos passos iniciais da Guerra da Independência Americana. Carlos Magno Imperador
25 de Dezembro de 800 – 1214 Anos
Carlos Magno é coroado Imperador pelo Papa Leão III, dando início ao Sacro Império Romano Germânico.
Morte de Teodósio I
17 de Janeiro de 395 - 1620 Anos
Morre Teodósio I, o Imperador romano que tornou o Cristianismo a religião oficial do Império. Calígula Assassinado 24 de Janeiro de 41 Anos – 1974 Anos
Afonso IV Rei de Portugal
7 de Janeiro de 1325 – 690 Anos
Calígula, terceiro imperador romano, é assassinado pela guarda prétoriana.
Afonso IV, filho do rei D. Dinis, ascende ao trono.
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Livrarias Almedina Braga
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Os 700 Anos da Batalha de Bannockburn
Os 700 Anos da Batalha Bannockburn 1
Alexandra Duarte
1
Licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;
Fig. 1: Um dos schiltron durante os treinos
Nos passados dias 28 e 29 de Junho comemoraram-se na Escócia os 700 anos da Batalha de Bannockburn, possivelmente uma das batalhas medievais ocorridas em território escocês, mais conhecidas fora das suas fronteiras. Os verdadeiros confrontos aconteceram a 23 e 24 de Junho de 1314, a sul de Stirling, junto a um afluente do rio Forth, numa região densamente arborizada, usada até então como coutada real de caça . Este confronto opôs um exército escocês composto por 9000 homens , liderados por Robert Bruce, contra uma força de 25000 homens do exército inglês , liderado por Edward II, filho de Edward I – O Pernas Longas. A vitória de Robert Bruce e dos escoceses neste confronto é reconhecida como uma das batalhas mais importantes na guerra da independência contra a Inglaterra.
Um trono vago Muitos anos antes da Batalha de Bannockburn, a Escócia era um reino independente. Isto até ao fatídico dia de 18 de Março de 1286 , quando o rei escocês Alexander III morre devido a uma queda do seu cavalo , que o atirou para uma falésia, não existindo já herdeiro directo vivo para lhe continuar no trono. Pela linha genealógica dos seus descendentes, apurou-se na altura que a herdeira do trono seria uma neta de Alexander III, filha do rei Erik II da Noruega e de Margaret – filha de Alexandre III. A princesa, de seu nome Margaret, tal como a sua mãe, contava então com 3 anos de idade. Contudo, a princesa acabaria por morrer na travessia marítima que a conduzia da Noruega até ao seu trono na Escócia. Numa tentativa de preservarem o trono e a ordem no território, os nobres escoceses pediram auxílio ao rei inglês Edward I – O Pernas Longas, enquanto procuravam o legítimo herdeiro do trono. Com auxílio da Igreja, procuraram nos registos dos antigos reis e rainhas, onde descobriram que tanto o clã Bailliol como os Bruce descendiam de netas do rei David I da Escócia, por parte de Margaret e de Isabel, respectivamente, pelo que ambas as famílias poderiam reclamar o trono. Inicia-se então uma guerra de sucessão, que vai passando de pai para filho, com clãs a apoiarem os Bruce e outros os Bailliol, até ao dia 17 de Novembro de 1292, em que Edward I favoreceu John Bailliol na sua pretensão ao trono. Assim, a 30 de Novembro, John Bailliol foi coroado rei da Escócia , apesar da oposição dos Bruce e dos seus aliados. Mais tarde, Edward I tentou cobrar a John Bailliol o seu apoio, pedindo-lhe homens e mantimentos para a guerra que então Inglaterra travava com França . Mas, John Bailliol recusou-se a auxiliar o rei inglês. Ao mesmo tempo, os Bruce recusavam-se a pagar tributos a John Bailliol, já que não o reconheciam como rei legítimo .
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Os 700 Anos da Batalha de Bannockburn
Então, como represália , o então rei da Escócia confiscou-lhes as propriedades da família. Assim, surge, naturalmente, uma aliança entre Edward I e os Bruce para combaterem Bailliol. Contudo, o rei escocês pede auxílio à França, o inimigo com quem Inglaterra já se encontrava em conflito. Ao ajudarem Edward I, os Bruce pensavam que , após a queda de Bailliol do trono , o monarca inglês apoiaria a pretensão dos mesmos ao trono. No entanto, o Pernas-Longas não pretendia dar o trono a ninguém e impõe o domínio inglês sobre a Escócia.
Robert Bruce
Fig. 2: Estátua de Robert Bruce em Bannockburn, próximo ao “Visitors Centre”.
Robert Bruce, filho primogénito, era o 7º senhor de Annandale e também ele ajudou a combater o clã Bailliol, que competia com os Bruce pelo trono da Escócia. Conviveu de perto com duas culturas: a gaélica – pois a sua mãe descendia desse povo - e a anglo-normanda, que vinda de Inglaterra influenciava o povo escocês. Robert também frequentou a corte de Edward I desde jovem, por influência do seu pai, e jurou fidelidade ao rei inglês em 1296, enquanto Conde de Carrick, pois era costume então no sistema feudal. Robert Bruce foi coroado como rei da Escócia a 1306, em Scone, antigo centro do reino dos Pictos, pouco após ter assassinado o seu rival pelo trono, apunhalando-o numa igreja em Dumfries. É sob a sua liderança que renasce o patriotismo entre os escoceses. Nos 8 anos seguintes travou uma dura luta contra os seus oponentes na Escócia e uma guerra de raids e emboscadas contra as forças ocupantes inglesas, mas evitando sempre confrontos com o exército principal. Os ingleses capturam mesmo a mãe e irmãs de Robert e matam-lhe 3 irmãos, mas Robert sabia que não podia derrotar o exército inglês em campo aberto.
Stirling Em 1314, o castelo de Stirling estava ainda sob domínio inglês, já sob o reinado de Edward II – filho de Pernas – Longas. Philip Mowbray era o guardião do castelo quando Edward Bruce, irmão de Robert, monta um cerco ao mesmo, para cortar a rede de abastecimentos e apoios aos ocupantes ingleses e subjugá-los deste modo. Edward instiga então Philip: ou este entrega o castelo até 24 de Junho, ou o mesmo será reconquistado pela força. Edward II ao tomar conhecimento da situação responde em força, disposto a furar o bloqueio montado pelos escoceses e a repor o domínio inglês. O confronto com o exército inglês parecia inevitável. Os escoceses preparam-se então para o confronto. Este exército Escolhe uma zona florestal, situada a Sul de Stirling, com linhas de água próximas e terrenos pantanosos e aí aguardam pelos ingleses. Quando o exército inglês surge, a caminho de Stirling, o seu efectivo é muito superior aos homens de Bruce: 25000 ingleses contra 9000 escoceses.
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Edward Bruce recebe o comando de uma das 3 divisões do exército escocês – unidades chamadas de SCHILTRON, onde homens apeados se movimentam coordenados em fileiras, empunhando lanças extremamente longas que eram erguidas em ângulos diversos, constituindo cada schiltron um autêntico ouriço gigante. Nos confrontos do dia 23 são eles que recebem a vanguarda inglesa. Mas outros acontecimentos em particular iriam marcar esta batalha e perdurar na memória dos escoceses.
Os 700 Anos da Batalha de Bannockburn
Neste mesmo dia, 23 de Junho de 1314, cavalgava à frente do exército inglês De Bohun, jovem sobrinho do conde de Hereford, quando os escoceses saem da floresta com Robert à frente a comandar os seus homens. Bohun, numa tentativa de fazer prova da sua valentia avança à carga contra Robert empunhando a sua lança, mas este, numa guinada com a sua montada, consegue evitar o golpe e ao mesmo tempo acerta em cheio na cabeça de Bohun com o seu machado, matando-o de imediato e partindo o machado. Supostamente, o comentário de Bruce a este seu acto terá sido: “Era o meu melhor machado!” Com teimosia, os escoceses aguentaram a sua posição no terreno e todos os confrontos do dia 23, mas a batalha continuaria no dia seguinte. No dia 24 de Junho, o schiltron comandado por Edward Bruce avança implacável contra a desordenada cavalaria inglesa. Neste embate, as forças de E. Bruce acabam mesmo por matar Gilbert de Clare, de 23 anos de idade, 8º conde de Gloucester e um dos principais apoiantes do rei Edward, que o acompanhou na sua campanha contra a Escócia mesmo quando outros nobres ingleses se recusaram. Gilbert de Clare era um dos comandantes da vanguarda inglesa e seria a baixa de guerra mais proeminente deste confronto. A topografia de Bannockburn não permitia ao exército inglês movimentar-se e dispor dos seus contingentes em plena força: florestas, pântanos, toda a envolvente limitava a disposição dos combatentes ingleses, que em dois dias de confrontos se viram aprisionados em terreno desfavorável quando os escoceses conheciam bem aquelas florestas. A vitória de Robert Bruce e dos seus homens, que ao seu lado combateram, foi esmagadora. A tentativa de Edward II de restabelecer o domínio inglês foi estilhaçada.
A Independência Em 1324, a declaração de Arbroath, redigida pelos nobres escoceses e membros do clero, em nome de Robert Bruce (e intercedendo por ele, visto Robert estar sob excomunhão após o assassinato de 1306) dirigida e entregue ao papa João XXII por uma missão enviada a Avinhão, persuadiram ao reconhecimento papal de Robert como rei. Robert Bruce viria a falecer a 7 de Junho de 1329, mas deixando ao seu filho David uma Escócia independente.
O Evento Comemorativo A Clanarald Trust for Scotland, associação de defesa e divulgação da História da Escócia, assumiu o enorme desafio de organizar para Junho de 2014 um evento comemorativo dos 700 anos da Batalha de Bannockburn. Entre os dias 27 e 29 de Junho foram instalados numa vasta área em torno do “Visitors Centre” da Batalha de Bannockburn (reinaugurado este ano após importantes obras de melhoria e situado na zona histórica onde terá decorrido a batalha) diferentes pavilhões com áreas temáticas diversas, intimamente ligadas à História da Escócia e ao seu variado património. Exemplo disso é a aldeia dos clãs (com tendas dedicadas a cada clã da Escócia); o espaço da arqueologia (local de descoberta da arqueologia especialmente dedicado aos mais novos); livrarias; locais para se apreciar a gastronomia escocesa ou se adquirem produtos regionais; música medieval tocada ao vivo com instrumentos de época;
Fig. 3: Vista parcial da aldeia dos clãs.
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actividades destinadas às famílias levadas a cabo por recriadores históricos com explicações sobre assuntos tão diversos como a Peste Negra ou a indumentária Medieval entre muitas outras. Ao fim de cada dia, um grande palco encheu-se com luz e som para grandes concertos musicais.
Fig. 4: Música medieval tocada ao vivo.
A aldeia Medieval Em torno de um vasto recinto com bancadas preparado para receber as agendadas recriações da Batalha de Bannockburn, foram montados os acampamentos históricos dos recriadores que não resistiram a participar neste evento. Portugal; França; Luxemburgo; País de Gales; Irlanda; Holanda; Alemanha. Estes foram apenas alguns dos países que ali marcaram presença, para, lado a lado com os anfitriões escoceses, recriarem não só a batalha, mas também o quotidiano de um acampamento medieval. Assim que transpunham as cancelas de
acesso
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Fig. 5: Vista parcial do acampamento medieval.
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de
inúmeras tendas e toldos onde podiam encontrar o oleiro; o ferreiro com a sua forja; cozinhas de campo; homens de armas a limparem o equipamento; trabalho em malha de aço; mulheres a tecer ou jovens a tocar lira; tendas simples de soldados a “luxuosas” tendas mobiladas da nobreza. Milhares de pessoas acorreram a este evento e as bancadas encheram-se 3 vezes ao dia para se assistir às recriações da batalha.
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Fig. 6: A forja no acampamento medieval.
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Fig. 7/8: Detalhe de uma cozinha no acampamento medieval e Acampamento medieval.
Cada vez que soava pelos ares o som de chamamento feito com o soprar de um corno, os combatentes avançavam sem hesitar por entre as tendas, estandartes, estacas e cordas para se juntarem aos seus respectivos exércitos: ingleses para um lado e escoceses para outro. Com o auxílio de um narrador, que ia descrevendo as fases da batalha, cavalaria e infantaria iam entrando em campo, para trazer novamente à vida um pedaço da História da Escócia. Antes da abertura do evento ao público, uma intensa instrução dos recriadores participantes como combatentes, permitiu preparar todas as fases da batalha para uma maior espetacularidade e uma melhor coordenação, incluindo estes treinos alguma formação de instrução militar. Charlie Allan, responsável pela criação e coordenação das cenas de batalha em produções cinematográficas de filmes como “Gladiador” de Ridley Scott, coordenou os cerca de 150 combatentes que se defrontaram em campo e que ganharam imenso? em termos de experiência, e até de conhecimentos para o futuro. O resultado foi emocionante para todos os envolvidos, escutando-se de forma bem audível a emoção do público durante a recriação: os aplausos às movimentações dos 3 “schiltron” escoceses; aos cavaleiros ingleses que instigavam as suas montadas a carregarem contra estas montanhas espinhosas e também os assobios dirigidos ao exército inglês nas suas entradas em campo.
Fig. 9: Recriação do quotidiano.
Fig. 3: Vista parcial da aldeia dos clãs.
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No final de cada recriação, era muito agradável ver que o público não abandonava o recinto simplesmente. Na verdade, este procurava dirigir-se aos acampamentos e contactar directamente com os recriadores envolvidos, quer manifestando o seu agrado, quer ficando visivelmente emocionados. De facto, estes sentimentos foram expressos ao perceberem a quantidade de países e culturas/nações diferentes ali presentes para aquela ocasião. Mas, até mesmo para satisfazerem a sua curiosidade de experimentarem empunhar uma espada, colocarem um elmo ou o manobrar de uma lança como se fossem uma das unidades de um schiltron. No final do evento, os responsáveis da Clanarald Trust of Scotland estavam visivelmente satisfeitos com o êxito obtido. As contas mais imediatas apontavam mesmo para uma venda de 10 000 ingressos só no sábado pela manhã. Para os recriadores portugueses presentes, da Associação de Recriação Histórica Guildas Áureas, foi mais uma aventura inesquecível, onde se pode dizer que se viveu uma experiência única em termos de exigência física em recriação de batalhas. No entanto, houve também tempo para travar novas amizades e partilhar conhecimentos. Ao mesmo tempo, permitiu trazer na bagagem novas aprendizagens, as quais podem ser aplicadas ao território nacional, numa tentativa de melhoria do panorama da recriação histórica em Portugal.
Bibliografia ROSS, David, A History of Scotland, Appletree Press, 2009. SCOTT, Alaistair, Escócia: Top 10 – Guia American Express, Editora Civilização, Porto, 2007.
REFERÊNCIAS COMPUTORIZADAS http://battleofbannockburn.com (23/09/2014)
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