Férula 11

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FÉRULA

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PARA ESTUDOS HISTÓRICOS INTERDISCIPLINARES nº11 Julho-NOVEMBRO

Arqueologia da Arquitectura


Editorial Após um hiato de 1 ano, regressamos com a Férula nº11 que marca uma nova “época” da Revista Férula do Instituto PAEHI. Com uma equipa extremamente motivada para iniciar novos processos, a Associação que foi criada há 4 anos e 8 meses (faremos 5 anos de existência em Dezembro) mantém a sua tradição de lançar um número de Verão. Na sequência da nossa abordagem a museus, o Museu de Santa Maria de Lamas, pelo crivo de José Amorim e Patrícia Ferreira, vem apresentar-se ao público num artigo que entre cortiça e artes finais, demonstra a importância da memória e património. Hélio Pires esboça um texto sobre a questão das Guerras e os problemas actuais, especialmente na “guerra de Ideias”. Semião Pólvora traz-nos toda a sua experiência de leccionar História, abordando algumas questões e problemas do ensino da disciplina em Portugal. Rui Martinho explora os “Mundos” de Game of Thrones, de George Martin, puxando exemplos ou comparações da nossa História. E por fim, mantivemos uma série de outros temas e áreas do nosso conhecimento. A equipa do Instituto PAEHI/Prometheus convida-vos a fazerem parte dos nossos autores para as futuras edições, com temas que abordam desde da História à Geografia, da Arte até aos Video-jogos.

Corpo Editorial Director de Redacção: Francisco Isaac Redactor-chefe: Catarina Almeida Conselho de Redacção: Soares, Amanda Coelho, José Magalhães, Hélio Pires. Revisores: Hélio Pires, José Magalhães, Amanda Coelho, Catarina Almeida e Carolina Soares Edição: Gonçalo Ribeiro Designer Gráfico: Gonçalo Ribeiro

Autores Hélio Pires – Estudos Medievais

Investigador do Instituto de

Semião Pólvora – Professor Aposentado Rui Martinho – Instituto PAEHI José Carlos Amorim –

Técnico Superior de História da Arte do Museu de Santa Maria de Lamas

Patrícia Gomes Ferreira – Conservadora do Museu de Santa Maria de Lamas

João Camacho – CEHR-UCP

Publicidade Tastin www.tastin.pt Neo Classics Journal www.neojournal.co.uk Caixa dos Livros www.caixadoslivros.com Mensageiros das Estrelas

Grupo Lobo www. http://lobo.fc.ul.pt/

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Carolina


Índice Informações Culturais

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As Guerras: A dos Trinta Anos, as actuais e a de ideias A disciplina de História no Ensino Básico O Lugar do Caos em Westeros

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O Museu de Santa Maria de Lamas

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História e Cinema - O Couraçado Potemkine

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Notícias e Boas Novas

Notícias e Boas Novas CALL FOR PAPERS CASSIUS DIO THE HISTORIAN: METHODS AND APPROACHES

Odense (Noruega) | Candidaturas até 08 de Agosto

Proposals should be sent to: Jesper M. Madsen Department of History/ University of Southern Denmark, Odense Email: majbom@sdu.dk

The aim of the conference is to focus on Cassius Dio as a historian – the only historian who allows us to follow the developments of Rome’s political institutions during a more than thousand year period, from the foundation of the city to Dio’s retirement from public life in 229 CE. We propose to explore Dio’s methodology and agendas, all of which in�luenced his approaches to Rome’s history. The aim is a reassessment that will rest on a deeper study of his narrative technique, his relationship with traditions of universal and more Rome-based historiography, and his structural approach to Roman history. One question that will be raised is as follows: can we �ind common principles for how to use Dio as a source for different periods, events and individuals?

What are our main approaches? Most frequently Cassius Dio is used as a handy resource, with scholars looking at isolated sections of his annalistic structure. This piecemeal use of The Roman History makes us forget to re�lect on his work in its textual and contextual entirety. Contrary to this approach, we will put emphasis on Cassius Dio and his Roman History in its historiographical setting, thus allowing us to link and understand the different parts of his work. We thus propose to accept that Cassius Dio was a �igure in his own right and with his own agendas for writing The Roman History, at the same time not forgetting the historian, with his ambition to tell the history of Rome. Part of this ground has already been covered, particularly the reign of Augustus and the contemporary world of Dio. But how for example can we best use Dio as evidence for Republican history? Dio is often disregarded for this period, considered to be either too late or too uninformed in comparison with other surviving historians.

CONGRESSOS E COLÓQUIOS

CONGRESSO INTERNACIONAL REINALDO OUDINOT E O SEU TEMPO 1766-1807 7 a 10 de Setembro

Completando-se, em Setembro de 2016, 250 anos da chegada a Portugal de Reinaldo Oudinot, a Sociedade de Geogra�ia de Lisboa promove, em co-organização com várias instituições de vocação cultural e académica, um Congresso evocativo da �igura, da obra e do tempo daquele que foi um dos mais ilustres e brilhantes engenheiros da história do exército português.

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O Congresso propõe-se abordar, a propósito da �igura e obra do Brigadeiro Engenheiro Reinaldo Oudinot, o longo período de mais de 40 anos da sua acção em Portugal, que se estende da época pombalina ao ano de 1807, em que morre no Funchal, e em que, com a primeira das invasões francesas e a partida da Família Real para o Brasil, se encerra uma época do mundo luso. Época marcada, a nível internacional e português, por mudanças signi�icativas e pela expansão cultural e cientí�ica, que se cruzam com esta personalidade em múltiplos domínios – instituições, pensamento, ciência e técnica, pedagogia, engenharia, exército. Aspectos que merecem, da historiogra�ia, numa pluralidade de áreas, uma mais cuidada atenção e mesmo uma atenta revisão.


Notícias e Boas Novas

BAB EL-GASUS IN CONTEXT Lisboa, 19-20 Setembro O Túmulo dos Sacerdotes de Ámon, também conhecido como Bab el-Gassus, é o maior achado encontrado intacto no Egipto. Neste túmulo colectivo foram encontrados, em 1891, as múmias de 153 sacerdotes e sacerdotisas de Ámon, que viveram na XXI dinastia (c. 1069-945 A.C.). Apesar da extraordinária riqueza deste achado, a sua subsequente dispersão por 17 países contribuiu para o seu quase total esquecimento. 125 anos após esta sensacional descoberta, o Gate of the Priests Project tem a honra de organizar, com a Universidade de Coimbra, a Universidade de Lisboa e a Universidade Católica, o Colóquio Internacional Bab elGasus in Context. Nos dias 19 e 20 de Setembro, a Fundação Calouste Gulbenkian irá acolher uma vasta equipa internacional de historiadores, museólogos e arqueólogos que irá debater os avanços mais recentes no estudo deste riquíssimo espólio, do qual uma parte se conserva na Sociedade de Geogra�ia de Lisboa.

Para inscrição e informações, aconselha-se a consulta to seguinte link:

http://babgasusconference.weebly.com/registration--programme.html

JORNADAS EUROPEIAS DO PATRIMÓNIO Liboa, 23-25 de Setembro Terão lugar nos dias 23, 24 e 25 de setembro as Jornadas Europeias do Património 2016, este ano subordinadas ao tema Comunidades e Culturas.

Este tema, adotado em 2016 por um número alargado de países membros do Conselho da Europa, e também por Portugal, tem como objetivo destacar e envolver as múltiplas formas de comunidade, comunidades locais, escolares, de bairro, clubes, associações de desenvolvimento, organizações não-governamentais, sejam de caráter cultural, religioso, �ilosó�ico, cientí�ico, desportivo ou recreativo, ou outras, preocupadas e vocacionadas para o conhecimento, proteção, desenvolvimento, utilização e organização dos seus próprios ambientes culturais, nas mais variadas formas. Compreender os elos de ligação entre o património e a(s) comunidade(s) contribui para a valorização da cultura nas suas múltiplas dimensões.

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Notícias e Boas Novas

EXPOSIÇÕES Exposição Drawings across the Sea de Tom Stanley Até dia 17 de Setembro. Casa-Museu Abel Salazar

Inquéritos ao Território. Paisagem e Povoamento Até dia 16 de Outubro Museu Nacional de Etnologia - Lisboa

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AS GUERRAS: A dos Trinta Anos, as Actuais e a de Ideias

AS GUERRAS

A dos Trinta Anos, as Actuais e a de Ideias Hélio Pires

Em Maio de 1618, na cidade de Praga, um grupo de protestantes atirou de uma janela os representantes do católico Fernando II, príncipe da Boémia e futuro sacro-imperador germânico. Fruto das tensões religiosas nascidas da reforma luterana e que se vinham a acumular desde a Paz de Augsburgo, em 1555, a defenestração fez eclodir trinta anos de guerra em solo europeu – ou antes um conjunto de guerras ligadas entre si por motivos religiosos. Foi o primeiro grande conflito à escala continental, predecessor em dimensão e consequências dos que viriam a assolar a Europa nos séculos XIX e XX, mas foi também um marco fundamental na História do continente.

A GUERRA DOS TRINTA ANOS Após a revolta, os boémios – leia-se, checos – entregaram a coroa a Frederico V do Palatinado, que era também o líder da União Evangélica, mas foram derrotados nos arredores de Praga em 1620, o que pôs termo ao levantamento e conduziu à plena integração da Boémia no domínio católico dos Habsburgo, que terminaria apenas em 1919. Ao mesmo tempo, o Palatinado era ocupado pelas tropas imperais e espanholas, a aliança protestante dissolvia-se e Frederico V, que fora despossado dos seus títulos e obrigado ao exílio, era definitivamente derrotado em 1623.

Não fossem as rivalidades religiosas e o conflito talvez tivesse ficado por aí, mas a vitória católica fez recear o pior entre os protestantes do norte da Alemanha, que em 1625 obtiveram o apoio de Cristiano IV da Dinamarca. O novo levantamento não teve no entanto melhor sorte e a ofensiva dinamarquesa foi derrotada pelas tropas ao serviço do imperador Fernando II, que em 1629, pelo tratado de Lübeck, forçou Cristiano IV a aceitar a paz e a retirar o seu apoio aos protestantes alemães. E estes, entretanto, viram-se forçados a restituir bens que tinham sido retirados à Igreja Católica. Passado um ano, voltaram a tentar a sua sorte com um monarca escandinavo, desta vez Gustavo Adolfo da Suécia, o qual era incitado e apoiado pelos Países Baixos e pela França, que apesar de católica e acabada de sair de uma guerra civil contra os protestantes franceses, sentia-se ameaçada pelo reforço da autoridade imperial germânica e o poder dos Habsburgo. E entrando assim na conflito, o rei sueco, cujo exército integrava mercenários alemães e soldados escoceses, somou sucessos contra a Liga Católica, incluindo em Lützen, em 1632, onde Gustavo Adolfo perdeu a vida.

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AS GUERRAS: A Dos Trinta Anos, as Actuais e a de Ideias

A morte do monarca pôs fim à sucessão de vitórias protestantes, mas tinha-se chegado a um equilíbrio de forças que permitiu o acordo de Praga de 1635, que garantiu alguns direitos aos protestantes do norte da Alemanha ao mesmo tempo que reforçava o poder do imperador. Também aqui o conflito podia ter terminado, não fosse a ausência sueca das negociações e o facto de a França sentir-se uma vez mais ameaçada pelo sucesso dos Habsburgo. Motivo pelo qual os franceses puseram de lado os subterfúgios do apoio tácito ou financeiro e decidiram entrar na contenda directamente, declarando guerra a Espanha e ao sacro-império e prolongando o conflito por mais treze anos. Reorganizados, revigorados pelo apoio francês e de protestantes alemães que voltavam a pegar em armas, os suecos obtiveram novas vitórias ao mesmo tempo que França via-se a braços com uma invasão espanhola. Pelo meio, em 1637, morria o imperador Fernando II e em 1640 a situação militar de Espanha agrava-se com as revoltas na Catalunha e em Portugal. Nos últimos anos da guerra, França, Suécia e os seus aliados somaram vitórias e conquistas que se sobrepuseram aos poucos sucessos imperiais. Em 1648, as tropas suecas chegaram mesmo a entrar em Praga, pilhando o castelo onde tinha ocorrido a defenestração que, três décadas antes, dera origem ao conflito. A guerra terminou nesse mesmo ano. A excepção foi a contenda franco-espanhola, que se prolongou até 1659, mas as restantes partes em confronto cessaram hostilidades e assinaram um conjunto de tratados na região alemã da Vestefália. Espanha aceitou a independência dos Países Baixos, a da Suíça foi formalmente reconhecida, França e a Suécia adquiriram territórios do sacro-império, a autoridade imperial ficou reduzida, os protestantes germânicos viram o seu estatuto legal reforçado, os limites de vários dos Estados alemães foram aumentados ou reorganizados e ganhava forma um conceito de soberania que cimentava o poder das autoridades nacionais sobre os seus territórios. Há outro facto a notar: a Guerra dos Trinta Anos foi também o último grande conflito religioso na Europa ocidental. Não trouxe o fim imediato da intolerância, porque a História faz-se de processos lentos e não de instantâneos onde as coisas nascem plenamente formadas como a deusa Atena. Mas foi o princípio do fim do clima de tensão religiosa que atingira níveis de violência brutais na sequência da reforma protestante do século XVI. Se nós, europeus, somos hoje mais tolerantes e inclusivos do que outros povos noutras partes do globo, não é porque estejamos geneticamente programados para isso. Ou se o catolicismo ocidental tem hoje um ênfase real nas ideias de paz e amor, não é porque essa tenha sido sempre a sua visão prática das coisas. O que temos é uma consequência de causas seculares, o produto de múltiplas experiências históricas que moldaram a nossa forma de vida e construíram a nossa arquitectura mental e legal. Já lá vamos a isso com mais detalhe.

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AS GUERRAS: A Dos Trinta Anos, as Actuais e a de Ideias Mapa 1 : A partilha do Médio Oriente segundo o Acordo de Sykes-Picot. Fonte: Financial Times

GUERRAS ACTUAIS Passando do século XVII para o XXI, foquemo-nos num conjunto de conflitos que enche os nossos ecrãs de televisão e páginas de jornais: aquele que grassa actualmente em três países do Médio Oriente e que se estende até ao norte de África, fazendo sentir as consequências humanitárias e económicas noutros Estados. As suas origens encontram-se na invasão americana do Iraque em 2003, que desalojou as autoridades que mantinham o país unido e abalou o equilíbrio de forças regional, e ainda na Primavera Árabe de 2011, que teve o mesmo efeito sem necessidade de exércitos ocidentais no terreno. E subjacente às duas coisas está o clima de tensão entre sunitas e xiitas, assim como a fraqueza dos Estados árabes, que ou estão estruturados de forma disfuncional (como o Líbano) ou têm populações cuja identidade é ainda marcadamente tribal e por vezes indiferente às fronteiras políticas. As mesmas que foram desenhadas a régua e esquadro pelas potências europeias, primeiro na Conferência de Berlim em 1884-5 (no que diz respeito ao norte de África) e depois no seguimento da Primeira Guerra Mundial, quando França e a Grã-Bretanha dividiram entre si partes do derrotado império Otomano com base no Acordo de Sykes-Picot (Mapa 1).

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AS GUERRAS: A Dos Trinta Anos, as Actuais e a de Ideias

O que, após a descolonização, gerou países independentes como a Síria, o Iraque e a Líbia, que longe de serem Estados-nação mais ou menos uniformes ou com um forte sentimento de unidade nacional, reúnem dentro de si grupos tribais e religiosos cuja coexistência não está necessariamente isenta de problemas. Motivo pelo qual esses Estados têm sido mais facilmente geridos e mantidos por via do punho de ferro de governos autoritários: os Assad na Síria, Saddam Hussein no Iraque, Gaddafi na Líbia. Retire-se esses homens fortes e a fina camada de unicidade política é facilmente substituída por um regresso a identidades sectárias ou tribais, que estão muito mais enraizadas. E no caso do Iraque e da Síria, esse processo é agravado pela relação disfuncional entre o caractér dos executivos e a demografia nacional: Saddam Hussein liderava um governo sunita num país de maioria xiita; Bashar al-Assad é um alauita, seita tida como parte do xiismo, mas governa um país onde a maioria é sunita. Serve isto para dar uma ideia da complexidade e raízes profundas dos actuais conflitos no mundo árabe. Longe de ser uma crise extemporânea que nasceu do aparecimento ex-nihilo de grupos de fanáticos ou passível de ser explicada por teorias da conspiração que atribuem todos os males aos Estados Unidos da América, o que temos é uma conjugação de elementos recentes e antigos, internos e externos ao Médio Oriente. Percebê-los nem sempre é fácil e saber para onde nos conduzem ainda menos, mas a História, essa disciplina tantas vezes empurrada para o caixote das ditas inutilidades académicas, fornece-nos modelos de compreensão e pistas sobre o que aí pode vir.

HOJE COMO ONTEM Embora estejam separadas por quatro séculos e os cenários de batalha sejam diferentes, é possível fazer uma comparação entre o actual conflito no Médio Oriente e a Guerra dos Trintas Anos na Europa do século XVII. A ideia não é nova, tendo vindo a ser defendida pelo diplomata americano Richard Haass em artigos de opinião e entrevistas televisivas 1, e oferece uma visão de longo prazo daquilo que se está a desenrolar no terreno. Os pontos em comum são vários: tal como com a Guerra dos Trintas Anos, os actuais conflitos no mundo árabe tiveram início em levantamentos regionais, neste caso um no Iraque, no seguimento da ocupação americana, e outro na Tunísia como protesto contra o regime de então; tal como no conflito europeu de 1618 a 1648, que tinha uma dinâmica eminentemente religiosa que opunha católicos e protestantes, no Médio Oriente o confronto faz-se em larga medida entre sunitas e xiitas; à semelhança do sucedido na Guerra dos Trinta Anos, em que Espanha e a Liga Católica apoiavam os católicos alemães enquanto a Suécia, os Países Baixos ou a Dinamarca puseram-se do lado dos protestantes, vários países muçulmanos têm vindo a apoiar directa ou indirectamente grupos beligerantes conforme a filiação religiosa, com o Irão a ser o maior aliado

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das facções xiitas e a Arábia Saudita das sunitas;


AS GUERRAS: A Dos Trinta Anos, as Actuais e a de Ideias Fig 2 : Os horrores da Guerra dos Trinta Anos segundo Jacques Callot (1633)

Tal como na Guerra dos Trinta Anos, quando a França católica aliou-se à Suécia protestante, há alianças inesperadas movidas por interesses mútuos imediatos, como no caso da colaboração tácita entre os Estados Unidos da América e o Irão; do mesmo modo que Gustavo Adolfo invadiu o sacro-império em apoio aos protestantes alemães, a Arábia Saudita entrou no conflito no Iémen para auxiliar os sunitas daquele país; e tal como a Guerra dos Trinta Anos gerou novas vagas de violência e intolerância, como ilustra a gravura de Jacques Callot (Figura 3), os actuais conflitos no Médio Oriente, e em especial a acção de grupos extremistas, têm-nos confrontado com níveis de brutalidade a que nós, europeus, já não estávamos habituados ou julgávamos ser uma coisa do passado. Até a destruição de obras de arte e artefactos históricos por motivos de crença religiosa tem paralelo na iconoclastia praticada por grupos de protestantes na Europa dos séculos XVI e XVII (Figura 3).

Isto não significa que a História se repita, dado que não é um disco riscado e o diabo está nos detalhes, mas ela não deixa de ter qualidades repetitivas na medida em que condições semelhantes podem gerar dinâmicas da mesma ordem. E assim sendo, se o desenrolar da Guerra dos Trinta Anos serve de exemplo, é de esperar que o conflito no Médio Oriente se prolongue no tempo, alimentado pelas rivalidades religiosas e sectárias. Não quer dizer que vá durar três décadas, mas é provável que o seu fim não esteja no horizonte imediato e que a paz só venha quando as partes em conflito – directa e indirectamente – se cansarem do confronto e procurarem uma solução alternativa que crie um novo equilíbrio de forças. E quando o fizerem, não nos devemos espantar se resultar numa redefinição de fronteiras na região, aproximando-as mais das identidades sectárias e afastando-as das linhas aleatórias traçadas a régua e esquadro. Pelo menos de momento, a Síria e o Iraque parecem estar a caminhar nessa direcção e o mesmo pode ainda suceder na Líbia. Vale a pena ler um artigo intitulado How 5 Countries Could Become 14, publicado em Setembro de 2013 no New York Times, no qual Robin Wright especula sobre como será o mapa do mundo árabe se as fronteiras dos seus países forem definidas de acordo com as dinâmicas regionais.

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AS GUERRAS: A Dos Trinta Anos, as Actuais e a de Ideias Fig 3 : A destruição da igreja de Nossa Senhora de Antuérpia em 1566, durante o movimento iconoclasta do século XVI, segundo uma ilustração de Frans Hogenberg (1566-70).

A EXPERIÊNCA FECUNDA O paralelo não se fica só pelo desenrolar do conflito e os seus efeitos políticos, mas abrange também as consequências religiosas. Parafraseando as palavras de Richard Haass num debate há alguns anos no programa GPS, na CNN, o Médio Oriente é uma região que passou ao lado de muita da modernidade. Certamente que faz amplo uso de tecnologia moderna, dos transportes às telecomunicações e armamento, mas a dinâmica social tem ainda muito de pré-moderno. E isto não se deve a uma qualquer inabilidade ou inferioridade dos povos árabes – como por vezes se ouve da parte de vozes ligadas à extrema-direita – mas apenas ao facto de terem tido uma experiência histórica diferente da nossa. É verdade que o mundo islâmico medieval preservou muito do saber da Antiguidade Clássica e que foi um foco de conhecimento que contrastava com uma Europa ainda pouco iluminada. Mas nas palavras de Camões, o mundo é composto de mudança, pelo que o que é verdade para uma civilização num dado período pode deixar de o ser em épocas posteriores. E desse modo, a abertura e sentido crítico que caracterizaram a cultura islâmica durante parte da Idade Média desvaneceram nos séculos subsequentes. Os motivos foram vários, internos e externos, mas contribuíram para que as experiências e lições que moldaram a Europa de hoje passassem ao lado do mundo árabe. Que experiências? O Renascimento, o Humanismo, a Reforma, as guerras de religião, o Iluminismo, a Revolução Francesa ou as revoluções liberais do século XIX. Momentos na História que estão origem das nossas sociedades democráticas e liberais, mas cujo impacto não se fez sentir no Médio Oriente ou só se sentiu muito mais tarde e de forma limitada. Não é por acaso que o império Otomano, que durante séculos governou muito do mundo árabe, chegou ao século XX com o epíteto de homem doente da Europa.

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AS GUERRAS: A Dos Trinta Anos, as Actuais e a de Ideias

Retomo o que disse anteriormente: os europeus não são mais inclusivos ou tolerantes – na liberdade sexual e religiosa, nos direitos das mulheres e das minorias, na liberdade de expressão e de consciência – por virtude da genética ou de quaisquer dotes inatos. Somos assim porque séculos de História moldaram-nos dessa forma. Porque cometemos erros, tentámos e falhámos, experimentámos, debatemos e fomos construindo a estrutura mental e legal que temos hoje. Uma parte fundamental desse processo foram as guerras de religião dos séculos XVI e XVII, quando começámos por usar a violência física para lidar com a dissidência religiosa – na esteira de soluções semelhantes durante a Idade Média – mas eventualmente vimo-nos forçados a criar mecanismos de convivência. A Paz de Augsburgo de 1555 foi um desse momentos, a de Vestefália em 1648 foi outro. E depois da Guerra dos Trinta Anos, multiplicaram-se as propostas, experiências e apelos a uma maior tolerância religiosa. É disso exemplo a obra de John Locke sobre o tema, ele que durante anos viveu nos Países Baixos e testemunhou em primeira mão a coexistência de várias fés no território holandês. Dito de forma simples, os horrores e o cansaço provocados pelas guerras de religião levaram-nos a procurar alternativas, a pensar em formas de tolerar em vez de suprimir num banho de sangue. E o mesmo pode estar a acontecer no Médio Oriente, onde a experiência da intolerância extrema cria condições para a defesa de uma maior tolerância. Não de forma imediata, porque as ideias levam tempo a passar de novidade a norma, a serem debatidas e implementadas, e porque a História não se faz de instantâneos. Mas ela molda-nos, torna-nos naquilo que somos hoje, e os povos do Médio Oriente podem estar a passar por um equivalente das experiências que ajudaram a criar o modo de vida europeu. Talvez tenhamos um indício disso no apelo do Grande Imã da mesquita de al-Azhar, no Egipto, que em 2015 defendeu uma reforma do ensino religioso islâmico com vista a uma maior tolerância.2

A GUERRA DE IDEIAS Assim se percebe a ignorância presente em algumas das barbaridades ditas nestes dias propensos a extremismos de direita e de esquerda e que só podem ser aceites como correctas por quem não tem ou finge não ter memória histórica. Por exemplo, afirmar que o Islão é incompatível com a democracia, que a religião cristã resumese a amar o próximo enquanto o islamismo impele a combatê-lo ou que os muçulmanos são intolerantes, isso são coisas que só podem sair da boca de quem não sabe ou faz de conta que não conhece a História do cristianismo e da Europa. Basta recordar as cruzadas, a Inquisição, as conversões forçadas ou as guerras de religião, em especial episódios como o Massacre do Dia de São Bartolomeu em 1572, quando milhares de protestantes foram mortos das ruas de França (Figura 4).

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AS GUERRAS: A Dos Trinta Anos, as Actuais e a de Ideias Fig 4 : O Massacre do Dia de São Bartolomeu em 1572, num quadro de François Dubois (1572-84).

Ou que se houve monges expulsos de Portugal no século XIX, não foi só porque o Estado queria pagar dívidas expropriando mosteiros, mas porque havia também uma vertente ideológica, dado que as ordens religiosas católicas foram dos principais opositores aos nossos primeiros regimes democráticos. Pode não parecê-lo se tomarmos em conta apenas a actualidade, mas cristianismo de hoje é algo relativamente recente e o enfoque geral na compaixão é uma simplificação de uma fé cujo livro sagrado é tão complexo e violento quanto o Corão. Foram as experiências históricas passadas que moldaram, filtraram ou obrigaram a religião cristã a adaptar-se e a rever os seus ensinamentos, experiências essas que o Islão não teve, mas pelas quais pode estar a passar nos nossos dias.

Claro que para perceber isto há que ter memória histórica, que ao contrário da memória pessoal não se acumula naturalmente, mas exige estudo. Se queremos avaliar o mundo não apenas mediante o que acontece agora, mas numa perspectiva de longo prazo que tenha em conta o que sucedeu antes e gerou o que temos hoje, então é preciso ter um bom conhecimento do passado. O que por sua vez obriga a encarar a História como algo de valor e não uma inutilidade académica. Porque para dizer o óbvio, o mundo não começou quando um de nós nasceu nem vai acabar quando nós morrermos – algo que é esquecido por quem fala como se as coisas sempre tivessem sido como são hoje. A Europa sempre foi tolerante, o cristianismo sempre foi paz e amor, o Islão sempre foi um problema. Não é, não foi. Mas para se saber isso, é preciso conhecer o passado. Em suma, sem memória histórica não há compreensão do presente, sem a qual, por sua vez, há apenas a ignorância de quem enche a boca sobre coisas cuja origem e sentido desconhece. Isso sim é desnecessário, isso sim é inútil. A História não.

1

https://www.project-syndicate.org/commentary/richard-n--haass-argues-that-the-middle-east-is-less-a-problem-to-be-solvedthan-a-condition-to-be-managed

2

Notícia da BBC: http://www.bbc.com/news/world-middle-east-31580130

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DADOS CONGRESSOS


Equipa

Inscrições

Comissão Organizadora: • • • •

Carolina Esteves Soares (Presidente) Francisco Isaac José Magalhães Paula Basso

Comissão Científica: • • • • • • • • • • • • •

Augusto Moutinho Borges (Presidente) Aires Gonçalves Helena Gonçalves Pinto Isabel Drumond Braga João das Candeias Sales José Eduardo Franco João Neto Maria do Sameiro Barroso Nuno Simões Rodrigues Paula Barata Dias Pedro Barbosa Pedro Marques Susan Deacy

Secretariado Executivo •

Amanda Coelho

Direcção Gráfica • •

Florentino Franco Gonçalo Ribeiro

Entrada Livre para quem não pretender certificado nem materiais do congresso; • •

Por cada inscrição doaremos 1€ para a APCL – Associação portuguesa contra a Leucemia. Três modalidades de inscrição:

1. Basic: Direito a certificado, visita comentada ao museu, materiais do congresso e uma visita ao Convento-hospital de S. João de Deus ou à Escola do Serviço de Saúde Militar - €5; 2. Essential: Direito a certificado, visita comentada ao museu, materiais do congresso, Conventohospital de S. João de Deus ou à Escola do Serviço de Saúde Militar e a 1 almoço - €15; 3. Premium: Direito a certificado, visita comentada ao museu, materiais do congresso, Conventohospital de S. João de Deus ou à Escola do Serviço de Saúde Militar, 1 almoço, um livro - €20.

• Nota 1: No primeiro dia do congresso será inaugurada no Museu da Farmácia a amostra Vidro e Cerâmica no quotidiano e na saúde, que se irá prolongar até à 1 semana de Janeiro de 2017; • Nota 2: A visita será no sábado dia 29 de Outubro de manhã ao Convento-hospital de S. João de Deus, actual Clínica da GNR (comentada pelo Doutor Augusto Moutinho Borges) ou à Escola do Serviço de Saúde Militar, antigo quartel de Campo de Ourique (comentada pelo Comandante Vítor Mendonça). Cada inscrito, mediante marcação prévia, deverá escolher um dos locais para visitar.


A Disciplina de História: no Ensino Básico - Mundos de História

MUNDOS DE HISTÓRIA O Ensino da História no Ensino Básico Semião Pólvora

Alterar Consensos garantir a Participação Ao longo da minha actividade profissional como docente de História, de um modo geral, nunca senti que se pusesse em causa a importância desta disciplina no Currículo Nacional do Ensino Básico. Foi, pois, com surpresa, desagrado e tristeza que assisti, nos últimos anos, a um afastamento desse papel respeitável que esta disciplina sempre manteve. Em simultâneo surgiu uma hiper valorização de algumas disciplinas curriculares, o que produziu efeitos secundários negativos no currículo. Várias disciplinas sofreram uma visível erosão, com a redução do número de horas lectivas semanais, sendo a disciplina de História uma das prejudicadas. Em face deste desajustamento é fundamental encetar um reversão e revalorizar o currículo da Disciplina de História nos diferentes ciclos do Ensino Básico. Penso que é escusado estar aqui a justificar a importância desta disciplina na formação global do aluno, nem quero acreditar que tenha havido intenção de a desvalorizar, mas os factos falam por si. Urge pôr termo a esta situação, mas antes há a necessidade de proceder à avaliação dos resultados para, após um saudável confronto de opiniões, convergir para um consenso onde figurem as tão necessárias alterações no currículo. Esta procura de uma convergência política sobre o ensino da disciplina de História no Ensino Básico reveste-se da maior importância de modo a que se evite no futuro uma nova mudança conforme a orientação partidária dominante no Ministério da Educação. Claro que esta convergência ideológico-partidária deve ser alargada a todas as disciplinas do Currículo Nacional do Ensino Básico, só assim se pode garantir alguma estabilidade na política de ensino. Não significa que se esteja, com esta proposta de convergência, a cortar a possibilidade de introduzir alterações no currículo, a discussão deve ter sempre lugar, mas que se faça sempre no sentido de alcançar convergência para que a sociedade saiba que as regras não mudarão sempre que se mudar de administração política no Ministério da Educação. Claro que, antes de se pensar em alterações, ou não, deve-se proceder à avaliação dos resultados. Por exemplo, é necessário ouvir os protagonistas colocados no terreno, isto é, ir “à frente de batalha” ouvir Professores colocados em estabelecimentos de ensino integrados em diferentes contextos sociais. São eles que sentem o grau de aceitação/rejeição por parte dos Alunos e Encarregados de Educação.

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A Disciplina de História: no Ensino Básico - Mundos de História

Outra medida, que poderá contribuir para um efectivo controlo da qualidade do ensino/aprendizagem desta disciplina será a sua inclusão nas Provas de Aferição a nível nacional. A adopção deste procedimento será o reconhecimento da importância que a disciplina de História realmente merece. Um programa disciplinar pode estar muito bem estruturado, aparentemente apelativo e, no entanto, não estar adaptado aos interesses do aluno médio. Não se podem esperar resultados muito animadores se não dermos espaço na planificação à possibilidade da observação “in loco”. Observar, sentir, percorrer espaços, ouvir personagens, tem um papel decisivo e desenvolve no aluno o gosto, a compreensão, o respeito. Ao acrescentar visitas de estudo consegue-se atingir um duplo objectivo: por um lado desenvolve no aluno um aumento do interesse, o que traz por arrasto uma melhor compreensão dos conteúdos curriculares; por outro lado aumenta o respeito, por parte do aluno, pelo património histórico. Esse respeito é uma das pedras basilares para que o aluno compreenda e aceite a necessidade da sua preservação. Sem essa preservação não é possível manter visível a História de uma comunidade nem o sentido de pertença, essenciais à coesão cultural e à manutenção do sentir colectivo.

O Manual... Alcançar a Certificação Os manuais das disciplinas de História, ou História e Geografia de Portugal, devem ser encarados como recursos centrais no processo de ensino/aprendizagem destas disciplinas. Aqui está uma matéria que sempre causou polémica entre o corpo docente. Alguns professores planificam as suas aulas colocando o manual num plano secundário, preferindo recorrer a materiais multimédia apoiados em fichas de trabalho diversos. Devemos reconhecer que a esmagadora maioria desses recursos elaborados pelos docentes são de boa qualidade didáctica. Por outro lado não devemos esquecer que as famílias foram obrigadas a investir num manual da disciplina, ao qual acrescentamos muitas vezes um caderno de fichas, que constituem os únicos recursos de que o aluno dispõe em casa para, com ou sem o apoio, desenvolver com autonomia o seu estudo ou realizar ao seus trabalhos. Embora se tenham verificado crescentes melhorias na elaboração dos manuais de História e História e Geografia de Portugal, com as editoras a incluir cadernos de fichas, recursos TIC, materiais de apoio ao docente, todos sabemos que os manuais nem sempre estão isentos de falhas ou gralhas, devendo o professor alertar para tal facto. Talvez algumas dessas falhas detectadas pudessem ser corrigidas a montante se existisse uma certificação efectiva, como acontece noutras disciplinas curriculares. Esta certificação constituía uma mais valia, já que facilitava a acção dos docentes aquando da selecção e escolha, pois era uma garantia de uma maior qualidade científica.

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A Disciplina de História: no Ensino Básico - Mundos de História

Formação Científica e Pedagógica do Professor de História O professor de História deve ser possuidor de uma sólida formação. Não basta saber descodificar os conteúdos programáticos, tornando-os acessíveis ao aluno. Deve o professor estar preparado para ir mais longe, sempre que o aluno necessite de esclarecimento. O docente deve estar preparado para enriquecer o currículo e ir mais além do que está programado, e isso só se consegue com formação adequada. É comum surgirem em contexto de sala de aula questões que exigem por parte do professor conhecimentos mais aprofundados. Não faz sentido deixar os alunos sem uma resposta cientificamente apoiada. Claro que nenhum professor sabe responder a todas as questões que lhe põem, mas deve saber orientar o aluno para uma resposta futura. Normalmente um professor de História, com a formação superior que lhe compete, está preparado para dar respostas para além do programa curricular. Dificilmente as dará se não tiver essa formação. Dificilmente as dará se tiver recebido uma formação apressada, numa pósgraduação, com a finalidade de no futuro ser em simultâneo professor de Geografia (sua efectiva formação) e professor de História. Em boa hora se abandonou essa modalidade formativa, só abordo aqui o assunto para frisar o que, na minha opinião, foi um erro, apenas possível porque continua a haver quem pense que se pode poupar com a educação. Pode-se poupar, mas os resultados nunca serão os esperados à partida.

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A Disciplina de História: no Ensino Básico - Mundos de História

Outra medida, que poderá contribuir para um efectivo controlo da qualidade do ensino/aprendizagem desta disciplina será a sua inclusão nas Provas de Aferição a nível nacional. A adopção deste procedimento será o reconhecimento da importância que a disciplina de História realmente merece. Um programa disciplinar pode estar muito bem estruturado, aparentemente apelativo e, no entanto, não estar adaptado aos interesses do aluno médio. Não se podem esperar resultados muito animadores se não dermos espaço na planificação à possibilidade da observação “in loco”. Observar, sentir, percorrer espaços, ouvir personagens, tem um papel decisivo e desenvolve no aluno o gosto, a compreensão, o respeito. Ao acrescentar visitas de estudo consegue-se atingir um duplo objectivo: por um lado desenvolve no aluno um aumento do interesse, o que traz por arrasto uma melhor compreensão dos conteúdos curriculares; por outro lado aumenta o respeito, por parte do aluno, pelo património histórico. Esse respeito é uma das pedras basilares para que o aluno compreenda e aceite a necessidade da sua preservação. Sem essa preservação não é possível manter visível a História de uma comunidade nem o sentido de pertença, essenciais à coesão cultural e à manutenção do sentir colectivo.

O Manual... Alcançar a Certificação Os manuais das disciplinas de História, ou História e Geografia de Portugal, devem ser encarados como recursos centrais no processo de ensino/aprendizagem destas disciplinas. Aqui está uma matéria que sempre causou polémica entre o corpo docente. Alguns professores planificam as suas aulas colocando o manual num plano secundário, preferindo recorrer a materiais multimédia apoiados em fichas de trabalho diversos. Devemos reconhecer que a esmagadora maioria desses recursos elaborados pelos docentes são de boa qualidade didáctica. Por outro lado não devemos esquecer que as famílias foram obrigadas a investir num manual da disciplina, ao qual acrescentamos muitas vezes um caderno de fichas, que constituem os únicos recursos de que o aluno dispõe em casa para, com ou sem o apoio, desenvolver com autonomia o seu estudo ou realizar ao seus trabalhos. Embora se tenham verificado crescentes melhorias na elaboração dos manuais de História e História e Geografia de Portugal, com as editoras a incluir cadernos de fichas, recursos TIC, materiais de apoio ao docente, todos sabemos que os manuais nem sempre estão isentos de falhas ou gralhas, devendo o professor alertar para tal facto. Talvez algumas dessas falhas detectadas pudessem ser corrigidas a montante se existisse uma certificação efectiva, como acontece noutras disciplinas curriculares. Esta certificação constituía uma mais valia, já que facilitava a acção dos docentes aquando da selecção e escolha, pois era uma garantia de uma maior qualidade científica.


O Lugar do Caos em Westeros - Perspetivas Medievais sobre a obra de George R. R. Martin

O LUGAR DO CAOS EM WESTEROS

Perspetivas Medievais sobre a obra de George R. R. Martin Rui Gabriel Martinho “Suponho que as tartarugas foram sempre o meu símbolo. Foram os únicos animais de estimação que eu pude ter. Dava-lhes nomes e, como viviam num castelo de brincar, decidi que eram cavaleiros e reis… e inventava histórias sobre como se matavam uns aos outros e se traíam e lutavam entre si pelo reino. Portanto, A Guerra dos Tronos começou com tartarugas. Decidi logo substitui-las por seres humanos.” George R.R. Martin Considerada por muitos como a melhor obra de fantasia épica desde o legado de J. R. R. Tolkien, As Crónicas de Gelo e Fogo atingiram um impacto no género literário que não era alcançado desde a aventura de Bilbo Baggins à Montanha Solitária e a demanda de Frodo na destruição do Anel. O autor, George R. R. Martin, oriundo dos subúrbios de Bayonne, iniciou o seu percurso de escritor ligado à ficção científica e horror, mas fora com a publicação de A Game of Thrones em 1996, o primeiro livro da sua ambiciosa saga, que começara a ganhar renome. A popularidade do seu mundo imaginário para com leitores ganhou um novo ímpeto em 2011 com Game of Thrones, uma adaptação televisiva da saga produzida pela HBO, canal norteamericano já famoso pelas bem sucedidas séries The Sopranos e Rome. A escrita de George R. R. Martin estendeu-se a géneros como horror, ficção científica e fantasia épica. Influenciado por “mestres” da literatura como John R. R. Tolkien e H. P. Lovecraft, escreveu variados romances e contos como Dying of the Light, Windhaven ou A Song for Lya até fixar-se na fantasia com As Crónicas de Gelo e Fogo, uma colectânea de obras centradas num mundo que traz consigo um misto de elementos que enquadram padrões culturais reconhecíveis. Os eventos de As Crónicas de Gelo e Fogo passam-se entre dois continentes: Westeros e Essos, cujos nomes revelam derivar de “West” e “East”, ou seja, “oeste” e “este” pelo vocabulário britânico que define a localização segundo a rosa-dos-ventos. Westeros revelou em si as características de um continente de índole europeia em época medieval, enquanto Essos manifesta um lado oriental característico das civilizações mesopotâmias. No caso de Westeros, interessa-nos variadas referências à cultura medieval europeia: a sátira a Camelot e ao reinado utópico do lendário rei Artur Pendragon presente em King’s Landing e na figura do monarca Robert Baratheon; a trama política e crise dinástica da Guerra das Rosas e Guerra dos Cem Anos imaginadas sobre a forma da Guerra dos Cinco Reis em que Stark, Lannister, Baratheon e Greyjoy combatem pela supremacia das suas Casas; ou a difusão do cristianismo oriundo do oriente e a sua relação com a religião maniqueísta de R’hllor, entre outros casos.

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O Lugar do Caos em Westeros - Perspetivas Medievais sobre a obra de George R. R. Martin

Fig.1 A NoIte mais longa

ANUNCIAÇÃO DO CAOS

O virar dos tempos ou presságios do fim “Há milhares e milhares de anos, caiu um inverno que era mais frio, duro e infinito do que qualquer outro na memória do homem. Chegou uma noite que durou uma geração, e tanto tremeram e morreram os reis nos seus castelos como os criadores-de-porcos nas suas cabanas. (…) Nessa escuridão, os Outros vieram pela primeira vez (…). Eram coisas frias, coisas mortas, que odiavam o ferro, o fogo e o toque do sol, e todas as criaturas com sangue quente nas veias. Arrasavam castros, cidades e reinos, derrubaram heróis e exércitos às centenas, (…).

A saga de Martin traz consigo uma vasta diversidade de temas; contudo se nos focássemos no mais geral de todos seria o ressurgir da mirabilis, elemento há muito desaparecido (e até esquecido) que regressa no virar de um Outono com a promessa de um longo Inverno que ameaçava vir a ser apocalíptico. O caos existe pela sua relação com a ordem, trata-se de uma questão de coexistência, a supremacia de um sobre o outro; contudo sem esquecermos que o caos possuiu várias interpretações ao longo dos tempos, sendo as mais comuns relacionadas com “desordem” ou com “vazio”. O termo “caos” é vulgarmente tido como particularmente contrário à ordem das coisas humanas. Por outras palavras, se “caos” numa das suas vertentes significa o vazio cósmico ligado ao Criacionismo, por outra que nos é mais comum, manifesta-se como uma forma presente de distopia segundo os padrões sociais. O começo da saga de George R. R. Martin alude à possível vinda deste caos distópico em Westeros que se manifesta de formas não muito diferentes aos medos da chegada do “Milénio” que marcaram a Cristandade Ocidental entre 975 e 1033. A Guerra dos Tronos é uma saga que mergulha o leitor na compreensão de um mundo fictício que simultaneamente o vai transformando ao alterar a sua ordem natural das coisas de modo a reproduzir o avizinhar de novos tempos por via de cruéis presságios: avistamento dos Outros, o fim de um longo Verão, a passagem de um cometa, lobos gigantes e a dilaceração dos Sete Reinos numa terrível guerra entre cinco reis.

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O Lugar do Caos em Westeros - Perspetivas Medievais sobre a obra de George R. R. Martin

Fig.2 Cometa Vermelho

Em Westeros revela-se ao mesmo tempo receio e indiferença (consoante as personagens) quanto ao Inverno que se avizinha e o possível repetir da “Longa Noite”, período antigo em que vindos dos confins do mundo conhecido e acompanhados de gelo e frio, os Outros atravessaram as Terras do Sempre Inverno e ameaçaram dominar todo o continente. Com a chegada do Verão e terminada a ameaça, os Primeiros Homens edificaram uma gigantesca Muralha de Gelo a Norte para impedir a repetição deste “apocalipse”. A saga de Martin inicia-se com a lembrança de que a “Longa Noite” poderá mesmo voltar a Westeros. Em termos históricos, os receios do Outono em Westeros podem equiparar-se aos receios vividos na Cristandade Ocidental aquando rondava o “Ano Mil” tendo em conta os escritos de Raul Glaber, monge de Cluny que dera significado ao termo no acompanhar dos turbulentos tempos das grandes reformas monásticas do século XI; Raul fora um eclesiástico crítico que iria rescrever os acontecimentos da sua época pelas suas “Histórias”, das quais o historiador George Duby explorou com interesse estes testemunhos escritos deixados pelo monge. G. Duby recolhera variados relatos referentes ao “Milénio”, não só os de Glaber mas também de outras como as crónicas de Sigeberto, Adémar de Chabannes ou Adson, abade de Montier-enDer. Eruditos e cronistas da época narraram a ocorrência de variados e estranhos fenómenos que ditariam a vinda do Anti-Cristo e o Juízo Final. Raul Glaber e Adémar de Chabannes relataram com seriedade o avistamento de um cometa no ano 1014 que teria sido visto a cortar os céus durante três meses; O avistamento deste cometa em particular deu azo à interpretação que “um incêndio celeste significaria um incêndio terrestre”, justificando assim a ocorrência do incêndio que deitara por terra a igreja de São Miguel Arcanjo. Na obra de Martin, a passagem do Cometa Vermelho em A Fúria dos Reis, também fora comentada como um presságio em Westeros.

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O Lugar do Caos em Westeros - Perspetivas Medievais sobre a obra de George R. R. Martin

“A cauda do cometa espraiava-se pela madrugada, um corte vermelho que sangrava por cima dos penhascos de Pedra do Dragão como uma ferida num céu de rosa e púrpura. (…) O Meistre não acreditava em presságios. E no entanto… apesar de ser tão velho, Cressen nunca vira um cometa com metade do brilho daquele, nem daquela cor, daquela cor terrível, a cor de sangue, da chama e dos ocasos. (…) E no entanto… no entanto… o cometa brilhava agora até de dia, enquanto vapor cinzento-claro se erguia das fumarolas quentes de Monte Dragão, atrás do castelo, e na manhã anterior um corvo branco trouxera notícias da própria Cidadela, notícias há muito esperadas (…) do fim do Verão. Tudo presságios. Demasiados para serem negados. Que significa tudo isto? - quis gritar.” A Fúria dos Reis

Há semelhança do cometa que atravessara os céus da Europa Ocidental em 1014, o cometa da saga ficcional de Martin também dera motivo a variadas interpretações. Chamado por diversos nomes como “Espada Vermelha”, “Cometa do Rei Joffrey”, “Cauda do Dragão” ou “Mensageiro Vermelho”, proporcionou em Westeros várias interpretações como o final da estação, uma longa vida ao novo rei, presságios de sangue e fogo ou o aparecimento de dragões. A alusão ao aparecimento de cometas não fora o único sinal que preenchera a mente dos eruditos no século XI referentes aos presságios do Milésimo Ano da Encarnação de Cristo. Recorde-se os relatos sobre monstros como uma baleia de tamanho grandemente invulgar avistada junto às Ilhas Britânicas que predissera a discórdia de reis.

Deve falar-se ainda das fomes cíclicas devidas às desfavoráveis condições atmosféricas, as quais durante os tempos medievais afectavam a agricultura, maior base de subsistência das populações. Acrescenta-se por fim a questão do surgimento de heresias tais como as que sucederam na aldeia de Vertus, onde um homem chamado Leutard expulsa a esposa de casa com intenção de divórcio, destrói o altar da igreja e questiona o imposto eclesiástico que era o dízimo. Falara à população de revelações divinas e pregara à população conhecimentos religiosos longe da ortodoxia eclesiástica o que levou o bispo da diocese, Jéboin, a tomá-lo como enviado de Satanás e herege tocado pela loucura. Descredibilizado, Leutard viria a suicidar-se precipitandose para um poço. O historiador George Duby analisara o incidente de Vetus como praticado por um individuo instruído nos dogmas da Igreja que manifestara necessidades espirituais de cariz maniqueista não muito diferentes das manifestadas durante o movimento cátaro. Um episódio não muito diferente ocorrera pelo mesmo século em Orleães, onde dez cónegos abandonaram o sacerdócio tornando-se maniqueus, vindo a ser descobertos em Toulouse e condenados à fogueira como mensageiros do Anti-Cristo por ordem do próprio rei Roberto de França. O Westeros de Martin apresenta igualmente o virar de uma Era: a destruição da Guerra dos Cinco Reis que afectara sobretudo Riverlands, onde o embate entre as hostes de Robb Stark e Tywin Lannister deixara fome e morte à sua passagem desde Harrenhall até As Gémeas, residência dos Frey. No que toca a heresias, uma nova ordem mais radical chamada Fé Militante ganhou poder em Porto Real, enquanto a partir de Pedra do Dragão um culto oriental monoteísta e maniqueísta dedicado a R’hllor levou à abolição de outras fés, ameaçando

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expandir-se a outros pontos de Westeros.


O Lugar do Caos em Westeros - Perspetivas Medievais sobre a obra de George R. R. Martin

A CONCEPÇÃO MEDIEVAL DO CAOS: espaço e habitantes Deve conceber-se a dificuldade em definir o que o homem medieval encararia como conceito de caos; apenas se consegue traçar uma verdade hipotética com base em traços culturais e mentais da época. O caos não é absolutamente reconhecido da mesma forma, mas antes apresenta-se como relativo conforme o tempo e espaço inserido, da mesma forma se pode dizer o mesmo da ordem, do bem e do mal, do belo e do feio, das suas mutações incertas que diferem ao longo dos anos. Somente as bases eruditas do período em questão poderão trazer algumas “luzes” referentes ao que se entendia como caos. O termo “caos” estava muitas vezes ligado ao vocábulo “vazio”, e traduzindo isto para termos espaciais focando no período medieval, o que pode significar este “vazio”? Explora-se a possibilidade de um espaço de caos que na Idade Média fosse um lugar tido como um vazio institucional e sagrado, ou seja: local onde as leis, moral e princípios que guiavam a sociedade feudal não se aplicavam. Um espaço de caos fica visto como permanecendo no seu “estado selvagem”, lugar esse onde o homem não constrói nem cultiva. O caos forma-se na mentalidade medieval na sua relação com o cristianismo e segue a difusão deste de Oriente para Ocidente; No Antigo Testamento, o deserto era visto como um espaço de caos, lugar árido e impuro, o anti-éden e obstáculo pelo qual o povo eleito passaria por provas antes de alcançar a Terra Prometida segundo o Livro do Êxodo. Com a legalização do Cristianismo no Oriente após o Concílio de Niceia, tomou-se o deserto como um lugar ligado ao eremitismo, destacando-se figuras como São João Batista, São Paulo e Santo Antão. Deva entender-se que na formação do cristianismo latino, a floresta ocupou na Cristandade Ocidental a simbologia e significado do espaço que o deserto ocupou a Oriente enquanto lugar de caos. Poderão enumerar-se uma série de características que distingam o deserto/floresta como um lugar de caos: primeiramente o encontro com o demónio, acesso a tentações e teofanias eram possíveis neste espaço profano. Segundo Charles Higounet, a floresta representava o derradeiro refúgio às práticas dos cultos pagãos, e tal poderá elucidar na relação dos demónios com os “falsos deuses” do paganismo, relembrando Martinho de Dume que exortou ao abandono dos cultos e costumes antigos pelas populações rurais que hesitavam em deixá-los. A floresta no Ocidente medieval poderia ser um lugar onde as leis sociais vigentes seriam impotentes, porém estas encontravam-se povoadas; estes habitantes do caos podem ser divididos entre vários grupos distintos.

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Fig.3 O Corvo de 3 Olhos

“O seu corpo era tão esquelético e a roupa estava tão apodrecida que a princípio Bran o tomou por outro cadáver, um morto escorado há tanto tempo que as raízes tinham crescido por cima dele, por baixo dele e através dele. A pele que o lorde cadáver mostrava era branca (…). O cabelo braço era fino e estreito como pelos de raízes e suficientemente comprido para roçar no chão da terra. (…) – És tu o corvo de três olhos? – ouviu-se Bran perguntar.”

A Dança dos Dragões

Primeiramente destaca-se os bellatores, ou guerreiros, no fundo é o retrato do homem aventureiro que tenta “domar” ou “vencer” a floresta; é o exemplo no nobre que a usa como reserva de caça; tome-se ainda o herói que se refugia na floresta, como o caso de Tristão e Isolda, que a invadem para escapar à cólera do rei Marcos. Em seguida, temos os laboratores, que usavam a floresta como recoletores dedicados à actividade económica, é o exemplo do lenhador. E por último, os oratores, que designa os membros do clero que usavam a floresta como lugar de refúgio espiritual ou de provação de fé, como temos o caso do eremita. Por último, sem esquecer o papel da floresta como refúgio para os marginais, ou seja, todo o individuo excluído e desprezado socialmente por ser considerado perigoso para a comunidade; um marginal era sobretudo alguém que apresenta uma doença corporal como pestilência ou lepra, ou fosse contra a natureza humana, que é o caso do sodomita, bandido, o homem selvagem e monstro, ou por outro lado não possuísse estabilidade física ou social, exemplo do vagabundo e prostituta. O que se deve refletir é onde se aplica o contexto ideológico e sociológico do caos medieval no mundo de George R.R. Martin. Encontram-se vários espaços do caos nas obras, e a floresta, esse lugar selvagem e inculto, tem um papel relevante na escalada do caos em Westeros. Foi na Mata de Lobos onde Eddard Stark, a sua comitiva e filhos encontraram uma ninhada de lobos gigantes que iriam adoptar, criaturas monstruosas que habitavam a floresta, onde mais tarde Brann Stark e os seus irmãos iriam sair ilesos de uma emboscada realizada por um grupo de homens selvagens. Por outro lado, em Riverrun, onde a Guerra dos Cinco Reis mostrou ser mais implacável apresentam-se várias personagens a habitar as florestas em torno do rio Tridente: desertores, cavaleiros andantes, um grupo rebelde de salteadores chamado Irmandade Sem Estandartes (com um senso de justiça e valores que aludem às histórias de Robin Hood), ou mercenários como os Saltimbancos Sangrentos de Vargo Hoat.

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O Lugar do Caos em Westeros - Perspetivas Medievais sobre a obra de George R. R. Martin Fig. 4 A Destruição de

Contudo, de todos os lugares de Westeros, aquele que melhor evidencia o elemento do caos é A Terra

Irminsul por Carlos Magno, gravura de Heinrich Leutemann (1882).

de Sempre Inverno. Os lugares a norte da Muralha de Gelo são os que melhor descrevem o conceito de no man’s land. Neste espaço resistiram antigos costumes e criaturas maravilhosas que para os reinos

de

Westeros

apenas

figuravam

no

imaginário de histórias milenares e lendas. Estes eram os habitantes do continente na Idade da Aurora, o começo dos tempos em que criaturas fantásticas povoavam um Westeros totalmente selvagem e arborizado. Dentre estas criaturas destacam-se os gigantes e os filhos da floresta. Estes últimos, com aspecto em muito semelhante a crianças, veneravam os deuses “sem nome” através dos represeiros, árvores de caule branco e folhas cor de sangue na qual estas criaturas esculpiram caras. Mais tarde os Primeiros Homens adoptaram este culto dos filhos da floresta até à chegada de um povo do outro lado do Mar Estreito, os Ândalos, que viriam a destruir grande parte dos represeiros e perseguir os filhos da floresta e Primeiros Homens até dominarem grande parte do continente e imporem uma nova religião dedicada a sete deuses. Uma nova sociedade fora estabelecida e o culto aos deuses dos ribeiros, árvores e pedras foi suplantado. Este cenário apresenta as suas semelhanças com a invasão da Saxónia no século VIII pelas campanhas militares de Carlos Magno, rei dos Francos, que para marcar a sua supremacia e justiça da sua causa destruiu a árvore sagrada Irminsul, um símbolo de veneração para os Saxões. Uma outra semelhança digna de nota é o eremitismo nas Crónicas de Gelo e Fogo presente na figura do Corvo de Três olhos. No final da sua demanda para encontrar o misterioso ser que comunicava com Bran em sonhos, o pequeno Stark quebrado depara-se com um homem que aparenta já raros traços civilizacionais. As semelhanças de o Corvo de Três Olhos com um eremita são várias, desde as vestes selvagens e aspecto que demonstram a sua longa ausência de um espaço civilizacional à semelhança de São João Batista. O Corvo de Três Olhos não só é um warg (capacidade telepática de incorporar o espírito, ver e agir através de animais e mais raramente de homens) como é um vidente verde, capaz de agir sobre a forma de seres vivos e através deles transcender o espaço e o tempo e ver acontecimentos do passado, presente e futuro em lugares onde os “deuses sem nome” ainda estivessem presentes sobre formas da natureza como o represeiro; o eremita por si tem dons incomuns, visões e tentações e, ainda no caso de São Paulo comunicação com animais, aquando a sua morte reza a história, dois leões teriam rugido canções fúnebres e escavado uma vala para enterrarem o santo.

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O Lugar do Caos em Westeros - Perspetivas Medievais sobre a obra de George R. R. Martin

Dentre a solidão, sabedoria, capacidades extraordinárias e resquícios culturais de alguém que abandona a civilização, o Corvo de Três Olhos torna-se como que uma reprodução do eremitismo em Westeros. As obras de Martin transmitem uma variada reflexão e simultaneamente apego pelo facto de tanto na fantasia como na ficção científica o leitor encontrar formas e circunstâncias às quais identifica os seus conhecimentos ou vivências; neste caso a ideia de um caos ideológico-espacial que se manifesta na cultura popular pela sua relação à Idade Média na sua forma sociológica e ideológica.

BIBLIOGRAFIA Bloch, M. (2009). A Sociedade Medieval. Lisboa: Edições 70. Duby, G. (1986). O Ano Mil. Lisboa: Edições 70. Goff, J. L. (2010). O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa: Edições 70. Martin, G. R. (2013). A Dança dos Dragões. Parede: Saída de Emergência. Martin, G. R. (2008). A Fúria dos Reis. Parede: Saída de Emergência. Martin, G. R. (2012). A Guerra dos Tronos. Parede: Saída de Emergência. Martin, G. R. (2008). A Tormenta de Espadas. Parede: Saída de Emergência. Martin, G. R. (2012). O Cavaleiro de Westeros e Outras Histórias. Parede, Portugal: Saída de Emergência.

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Museu da Cortiça: História do Museu de Stª Maria de Lamas

MUSEU DA CORTIÇA

História do Museu de Stª Maria de Lamas José Amorim Patrícia Gomes Ferreira

“O CORPO E ALMA” - Crónicas de um Acervo Singular 1

Apelidado de “Museu da Cortiça” (a partir dos anos 60 ou 70 do século XX), por parte do seu próprio público, o atual Museu de Santa Maria de Lamas (MSML), foi primitivamente designado 2

pelo seu fundador (o industrial “corticeiro”, Henrique Alves Amorim (1902 - 1977) , em pleno decurso da década de 50 do século XX, como sendo a sua “Casa dourada” (Amorim 2015 a, 38). Uma área de recobro e exibição de múltiplas expressões humanas, intitulada de “Domus áurea: Arquivo de fragmentos de Arte”. Resultante de um ímpeto pessoal assente na recolha quase “compulsiva” (Belk, Russel W. 1994, 319-322) de objetos multidisciplinares (concretizada entre o início da década de 1950 e o ano de 1977 3); inspirado nos “espíritos” colecionistas, ou mesmo em preceitos base do “bricabraque

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português” da viragem de centúria, de XIX para XX. Na sua origem, a estruturação primitiva deste Museu seguiu e tentou aproximar-se da norma expositiva dos “Gabinetes de Curiosidades” ou “Quartos das Maravilhas” Europeus, de sécs. XV a XVII (Botelho, Maria Leonor e Ferreira, Susana Gomes 2005, 15 & Schulz, Eva 1994, 175-186). Verdadeiros espaços de exibição simultânea de objetos artísticos nobres e variados símbolos, fragmentos ou artefactos de cariz global. Reflexivos da riqueza histórica, cientifica, religiosa, populacional, natural, cultural, intelectual, social, geográfica, económica, etnográfica e material, da Humanidade e do Planeta Terra. Assim sendo, desde a sua criação, este complexo situado a sul do Parque existente na localidade 5

santamariana, destacou-se dos demais pela quantidade, qualidade e variedade (tipológica e temporal), do seu espólio (Dias, Pedro e Gonçalves, A. Nogueira 1979, 23 – 26).

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Museu da Cortiça: História do Museu de Stª Maria de Lamas

Um verdadeiro acervo plural, recuperado, estudado e reorganizado do ponto de vista museológico e museográfico a partir de 2004 (acerca da pluralidade do espólio do Museu e do “Projeto de Reorganização Museográfica” implementado, vide (veja): Coelho, Sofia Thenaisie 2005, 9 – 13 & Botelho, Maria Leonor e Ferreira, Susana Gomes 2005, 15 – 19). Que preserva, arquiva e expõe coleções de: Arte Sacra (sécs. XIII a XX); Gravura e Litografia (sécs. XVIII a XX); Paramentaria; Alfaias litúrgicas; Ex-votos (sécs. XVII a XX); Tapeçaria e bordado (sécs. XVIII a XX); Medalhística (sécs. XIX e XX); Azulejaria (séc. XX); Cerâmica (sécs. XIX e XX); Objetos de uso quotidiano (sécs. XIX e XX); Relojoaria (sécs. XIX a XX); Papel-moeda e Numismática (sécs. XIX e XX); 6

Iconografia do Fundador (ca. décadas de 40, 50, 60 e 70 do séc. XX); Pintura contemporânea (sécs. XIX e XX); Armaria Ibérica (sécs. XIX e XX); Lustres e Candelabros (sécs. XVII a XX); Insígnias honoríficas (sécs. XIX e XX); Falerística (sécs. XIX e XX); Mobiliário (sécs. XVIII a XX); Artefactos Indo-portugueses e “Chinoiseries” (ca. sécs. XVIII a XX); Instrumentos musicais; “Artes decorativas” (sécs. XIX e XX); Etnografia portuguesa (sécs. XIX e XX); 7

Estatuária contemporânea (francesa : séc. XIX & portuguesa: sécs. XIX e XX); Fragmentos ligados às Ciências Naturais; Escultura em cortiça e derivados (séc. XX); e Arqueologia Industrial (ou seja, utensílios / engenhos / maquinaria / maquinismos de transformação corticeira, com utilização datável entre o séc. XIX e o início do séc. XX).

O Museu no “Espaço e no Tempo” - Cronologia Década de 50 do séc. XX: Fundação e início da construção do Museu de Santa Maria de Lamas, promovida e financiada por Henrique Alves Amorim8. 1950 a 1953: Período de maior pesquisa, recolha e aquisição por parte de Henrique Amorim, dos elementos da vasta e valiosa coleção de Arte Sacra portuguesa do Museu - um dos seus segmentos expositivos mais valiosos (Botelho, Maria Leonor e Ferreira, Susana Gomes 2005, 15 - 19), dividido em várias “sub-coleções” que se distribuem por diversas áreas, linguagens, cronologias, períodos criativos e cultuais da História da Arte e da Religião. Deste modo, na sua globalidade, a Talha dourada, a Imaginária, a Pintura, as Estampas (com “água-forte”, Xilogravura e/ou Litografia de iconografia religiosa); os Missais, os Ex-votos, a Paramentaria, as Alfaias e os Objetos de uso litúrgico que integram esta coleção, foram adquiridos, na sua maioria,

em

território 9

lusitano.

Diretamente

em

espaços

religiosos

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intervencionados/extintos/expropriados de bens artísticos ; hastas públicas; “Residências, Igrejas/Capelas particulares” ou Antiquários. Sobretudo no Porto, Póvoa do Varzim, Viana do Castelo, Braga, Viseu ou Vila Nova de Famalicão (Casa do Povo de Santa Maria de Lamas 1985, 14 – 16; Cleto, Joel e Faro, Suzana 2000, 21 – 22 & Moncada, Miguel Cabral de 2005, 33).

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Museu da Cortiça: História do Museu de Stª Maria de Lamas

1953 a 1959: Momento cronológico que marca o início (Moreira, António 1984, 8) e o fim dos trabalhos construtivos da primeira configuração expositiva e estrutural do edifício do MSML (à época, restrito apenas às primeiras quatro salas do piso superior e à “Sala da Capela de Delães” do Museu atual – englobando a própria zona de entrada/receção deste edifício (União. Mensário de Santa Maria de Lamas 1978, 7). Um complexo arquitetónico que, desde os primórdios da sua existência, caracteriza-se pela proximidade do seu traçado exterior aos princípios e estética “conservadora” da arquitetura pública da época, regrada pela ideologia nacionalista do Estado Novo (1926 – 1974). Assente na trilogia de valores: “Deus, Pátria e Família” (Baptista, Marta Raquel Pinto 2008, 46) - pela qual Henrique Amorim nutria uma “devoção acérrima”, profundamente pessoalizada (Santos 1997, 94). 1959: Em 5 de março, numa atitude reflexiva do seu perfil filantrópico e de apreço pelo desenvolvimento cultural de Santa Maria de Lamas e da sua população, o fundador do MSML procedeu à doação deste espaço museológico e respetivo acervo histórico, artístico, científico, 11

etnográfico e industrial para a Casa do Povo desta freguesia (União. Mensário de Santa Maria de Lamas 1978, 7). Uma entidade que, desde esse dia até à contemporaneidade, se preserva como “instituição tutelar” deste Museu sui generis. Tal como já foi referido anteriormente, no momento cronológico supra indicado e intitulado “1953 a 1959”, em virtude do término da sua primeira fase construtiva, nesta doação patrimonial, em termos de arquitetura e acervo exposto, o MSML possuía apenas “o pavilhão onde existia a Casa de Numismática, a Capela alta, a Galeria dos Arcos com o teto em pinturas e a Capela funda” – denominadas, com maior regularidade a partir de 2004 e até aos dias de hoje, pelos termos: “Sala 0 – Receção”; “Sala 1 – Sala de Nossa Senhora do “O” (correspondentes à antiga “Casa de Numismática”); “Sala 2 – Sala da Capela” (anterior “Capela Alta”); “Sala 3 – Sala dos Evangelistas” (resultante da “Galeria dos arcos com o teto em pinturas”); e, por último, a “Sala 16 – Sala da Capela de Delães” (alusiva à “Capela Funda”) (União. Mensário de Santa Maria de Lamas 1978, 8)). 1968: Como poderá comprovar a inscrição visível no solo do pórtico de entrada no complexo exterior do MSML - que associa o nome do fundador, “Henrique Amorim”, à referência cronológica “1968” - será datável deste ano a devida conclusão da segunda fase construtiva deste edifício museológico (Cleto, Joel e Faro, Suzana 2000, 21 – 22 & União. Mensário de Santa Maria de Lamas 1978, 7). Assim sendo, em 1968, o Museu “inaugurou” a sua planimetria final de 16 salas, distribuídas por dois andares e “preenchidas por mais de mil e setecentas peças” (Coelho, Sofia Thenaisie 2005, 9). Toda esta vastidão expositiva acabaria por continuar a crescer, de forma pontual, e a “moldar-se” entre 1968 e a própria morte de Henrique Amorim, nove anos mais tarde (União. Mensário de Santa Maria de Lamas 1978, 7). Embora não exista uma escritura de doação similar à de 1959 e atualizada em virtude desta segunda fase construtiva, todo o património anexado ao MSML desde aí, passou também a integrar a tutela da Casa do Povo de Santa Maria de Lamas.

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Museu da Cortiça: História do Museu de Stª Maria de Lamas

Referido como “seu”, em vida, mas sempre ao dispor da fruição cultural da comunidade, todo este acervo foi “legado” desde 59, por única e exclusiva vontade de Henrique Amorim (União. Mensário de Santa Maria de Lamas 1974, 1) – complementada pelo próprio Testamento pessoal de 1977 – à instituição fundada por sua iniciativa, dez anos antes, em 1958 (União. Mensário de Santa Maria de Lamas 1978, 5), e apoiada pelo grande defensor do “Corporativismo e das Casas do Povo” do Estado Novo. O seu amigo e conterrâneo Lamacense, 12

Henrique Veiga de Macedo .

1977: A morte do seu promotor, Henrique Alves Amorim, ocorrida em Santa Maria de Lamas no dia 20 de fevereiro, marca o início de um longo e “penoso” período de 27 anos de “semi6

adormecimento” (1977 a 2004), no tratamento e conservação deste Museu. Provocando a decadência e a degradação, por patologias diversas, práticas e opções incorretas, de variadas áreas expositivas e quadrantes deste acervo (Coelho, Sofia Thenaisie 2005, 9). 2003/2004: Inicia-se o “Projeto de Reorganização Museográfica do MSML”. Revelando sentido de interesse e responsabilidade perante o Património, a Direção da Casa do Povo celebrou um protocolo com o Departamento de Arte e Conservação e Restauro da Universidade Católica Portuguesa - do Porto - com vista à orientação do relançamento, conservação e restauro; e respetiva reestruturação deste complexo. 2005: Com o fim do protocolo em julho, foi criado um quadro técnico especializado, de modo a dar continuidade à implementação do “Plano Museológico”. Assim como de todos os trabalhos de intervenção e conservação; manutenção diária; atendimento; acompanhamento de visitas (gerais / temáticas); investigação de coleções e difusão de uma nova dinâmica de marketing e comunicação. Assente numa “imagem corporativa do Museu” coerente e atrativa, com grafismos e estratégias capazes de promover, honrar e potenciar, a nível nacional e global, a mensagem, as memórias, o património e todo o legado histórico que o MSML encerra. 2006: Neste ano, foi criado o Serviço Educativo do MSML. Uma marca de excelência e pedagogia, que prima pela aproximação dos diferentes quadrantes da comunidade a todos os conteúdos e acervo que preenchem o Museu, levando-os à sua completa perceção. Realizando atividades permanentes, de cariz anual, combinadas com eventos/visitas e/ou oficinas temáticas, associando os diferentes segmentos do seu espólio ao calendário cívico e religioso português. 2008: Término da primeira fase de recuperação do piso inferior do Museu, com a reabertura ao público de 3 das suas 10 salas, completamente recuperadas e renovadas. Uma “empreitada” exigente do ponto de vista estrutural, com princípios orientadores baseados no pensamento e nas diretrizes da Museologia atual. Devidamente apropriados às necessidades do visitante contemporâneo e às “boas práticas” de exibição, interpretação e conservação de cada objeto

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exposto.


Museu da Cortiça: História do Museu de Stª Maria de Lamas

Fig.1

2009: Início do processo de credenciação do MSML na Rede Portuguesa de Museus (RPM). 2010 / 2011: Partindo da especificidade da alcunha popular atribuída ao MSML, que o

Iconografia

identifica pelo termo “Museu da Cortiça”, de modo a multiplicar o acervo escultórico em cortiça natural e derivados que este espaço possui. E, acima de tudo, para permitir o acesso táctil à cortiça, ao Museu e às “formas artísticas” que nele existem a públicos com necessidades especiais diversas, realizaram-se as primeiras réplicas em aglomerado de cortiça (de escala real, miniatural e/ou aumentada), dos destaques expositivos do MSML. Da autoria de Manuel Augusto Fontes, estas réplicas - inicialmente direcionadas para a coleção de Arte Medieval deste complexo - continuam a expandir-se, de ano para ano, pelas diferentes salas, temáticas e respetivo espólio do Museu. Cumprindo as premissas da Museologia contemporânea, estas réplicas,

conjuntamente

com

outros

equipamentos

e

recursos,

contribuem

para

do

Fundador Henrique Alves Amorim retratado, após 1968 (?), por António Leite de Azevedo (séc. XX).

a

implementação de uma “visita sensorial” pelo percurso do Museu – acessível a todos, com ou sem condicionantes físicas e cognitivas. E exploradora, não só do tato, mas inclusive da audição, olfato e do próprio paladar de cada participante. 11

2011: Marca o início da renovação de sinalética interna e externa de toda a envolvência física e temática do MSML (englobando, inclusive, a produção de alguns elementos em braille – de caráter geral, acerca da súmula histórica do Museu e identificativos da sua já citada coleção de Arte Medieval). Neste projeto, salientam-se os princípios aplicados; nomeadamente a clareza, funcionalidade, rigor técnico, interpretativo, académico e científico dos conteúdos e materiais. Proporcionando serviços informativos atrativos e esclarecedores (Colwell et. al. 2004, 54). 2014: Momento laudatório, de difusão e análise dos resultados obtidos nos primeiros dez anos (2004 – 2014) de conservação, restauro, estudo e implementação do “Plano de Reorganização Museográfica” do Museu de Santa Maria de Lamas. 2004 até ao presente: O Museu afirma-se cada vez mais como espaço de reflexão, estudo, partilha e interpretação de uma realidade que moldou a história de uma terra; e de um património que acompanhou o gosto e a evolução secular de um país. Assim sendo, este complexo, socialmente ativo, de grande valia cultural e pedagógica, demarca-se pelo contributo que presta à Museologia nacional. Invocando, em todo o seu acervo, Histórias e “Estórias” desta e das mais variadas regiões, “preservando, expondo e arquivando memórias” da Arte, do Culto, da Indústria, da Ciência e da Etnografia portuguesas.

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Museu da Cortiça: História do Museu de Stª Maria de Lamas

Fig.2 Nossa Senhora do “O” /

Património Sacro, Cívico e Industrial:

“Ó”, Escultura de vulto em madeira policromada, datável entre finais do séc. XIII e as três primeiras décadas do séc. XIV.

Alguns destaques expositivos do Museu

Entalhada em vulto pleno, esta escultura de cronologia medieva (Teixeira,

Fig.3 Nossa Senhora do “O” /

Vítor Gomes 2005, 26 – 29 & Moncada, Miguel Cabral de 2005, 34),

“Ó” - Perfil esquerdo.

realizada em madeira policromada, representa a iconografia de uma “Virgem expectante”. Ou seja, um momento pictórico dedicado ao “Mistério da Expectação” (Miranda, José Carlos Lopes de 2015, 11), 14

expressivo do culto a Maria grávida de Jesus .

Tradicionalmente invocado pelo desígnio popular: “Nossa Senhora do “O”/”Ó” (representativo da analogia formal entre o ventre rotundo de Maria e o grafismo circular da letra “O” (Pereira 2011, 340 & Miranda, José Carlos Lopes de 2015, 11); ou da exclamação inicial / suspiro “Ó”, 15

presente na globalidade dos cânticos, proclamações e rezas das sete “Antífonas do Magnificat” 16

“Antífonas maiores” / “Antífonas do “Ó” , antecipadoras da vinda de Jesus e celebrativas do “Verbo Incarnado” (Incarnatio Verbi) - proferidas liturgicamente durante sete dias (de 17 a 23 de dezembro), na “novena do Natal”, antecessora da “Natividade” - o episódio do Nascimento de Jesus (Miranda, José Carlos Lopes de 2015, 11 - 31)). Ou ainda, pelos termos: “Virgem do “O” (“Ó”) / “Nossa Senhora da Expectação” / “Nossa Senhora da Esperança” / “Pejada” (Pereira 2011, 340) / “Santa Maria de Ante -Natal” (Barros et. al. 2008, 42) / “Nossa Senhora da Boa Hora” / “Nossa Senhora do Parto” (“do Bom Parto”) (In Situ, Conservação de Bens Culturais, Lda. 2007, 12) / “Nossa Senhora da Encarnação” (Almeida 1983, 5 - 8) / “Nossa Senhora do Advento” ou “Virgem do Advento”. Majestática (coroada / em “maestas”), Maria grávida, protetora dos/das gestantes e das grávidas, dirige-se graciosamente ao observador. Coloca a mão direita sobre o ventre grávido, com os seus cinco dedos abertos e 17

alongados ; e a esquerda elevada, junto ao rosto (próxima ao ouvido, também 18

com os seus cinco dedos visíveis, esguios e alongados ), em ato de bênção, receção de preces ou de aceitação plena do conteúdo da mensagem transmitida pelo Anjo Gabriel na “Anunciação” (Almeida 1983, 3 & Miranda, José Carlos Lopes de 2015, 11). Em suma, um certo gesto de “resignação” e simultaneamente de “enunciação” (Pereira 2011, 340). Do ponto de vista da sua indumentária, endossa véu, alva/túnica interior e manto sobreposto que circunda o próprio abdómen proeminente – delimitando parte do seu formato circular/elíptico. Estruturada em bloco,

a figura Mariana evidencia-se pelo seu ventre

voluptuoso, que consuma um simbolismo de fertilidade e proteção contra a mortalidade feminina no parto. Esta característica morfológica reforça plasticamente a dualidade simbiótica entre “Humano e Divino” que subsiste na hagiografia da Virgem; precedente e integrante da “Natividade” de Jesus.

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Museu da Cortiça: História do Museu de Stª Maria de Lamas

Fig.4 Nossa Senhora do “O” / “Ó” - Perfil direito 19

Culto com raízes Bizantinas, o tributo a Maria expectante surge no Ocidente por via artística italiana, em plena viragem de centúrias de XIII para XIV, recebendo grande empatia popular. Contudo, as dúvidas teológicas levantadas (em virtude do seu escasso suporte escrito (Pereira 2011, 340)), e a reforma iconográfica de 1563, imposta no “Concílio de Trento”, ditaram o término e a “condenação” desta temática no culto oficial. Em Portugal, a iconografia da “Virgem grávida” obteve maior aceitação, difusão artística e cultual durante o séc. XIV. Visto que, são datáveis desse período, sobretudo entre 1330 e 1360, os exemplos mais conhecidos de esculturas votivas ao “Mistério da Expectação” na história artística nacional. Um conjunto de obras chegadas à contemporaneidade, essencialmente ligadas ao trabalho do "Calcário mole" / "Pedra de Ançã", e ao apogeu coimbrão de “guildas/oficinas” como a do Mestre Pêro (séc. XIV). A quem foram atribuídas, entre outras, as “Virgens do “O” em calcário polícromo da Sé de Coimbra (ca. 1340 – atualmente no Museu Nacional de Arte Antiga); da Igreja de Santa Maria da “Alcáçova” (Montemor-o-Velho); do Museu Regional de Lamego / “Museu de Lamego”; ou da Catedral de Évora (ca. 1340). Pelo seu material (madeira

20

supostamente policromada desde a sua

conceção pristina – dada a própria importância que o uso da cor possuía para o “Homem Medieval”, tanto nas imagens esculpidas como no seu “universo quotidiano”, sobretudo do séc. XII em diante (Goulão 2009, 13)), atributos e estética concebida (representativa de alguma rigidez formal), atendendo à contextualização histórica efetuada, a escultura de “Nossa Senhora do “O” / “Ó” existente no MSML poderá anteceder a predominância da Pedra Calcária, de origem coimbrã, na produção de Imaginária

medieval

portuguesa,

essencialmente

trecentista

e

quatrocentista. Pelas suas características e dada a origem deste culto remontar ao término do séc. XIII, justifica-se a inclusão cronológica desta obra rara, num momento transitório entre o fim da centúria de duzentos (séc. XIII), e a década de trinta de trezentos (séc. XIV). Apontando-se como mais correta a sua inserção nas três primeiras décadas do séc. XIV (Amaral, Luís Manuel Coutinho Gomes 1998, 41 – 42; Teixeira, Vítor Gomes 2005, 27 – 28 & Goulão 2009, 11 – 16). Sendo alvo de repintes/alguns repintes em cronologias posteriores, no séc. XVIII ou após o séc. XVIII, segundo apontam parte dos resultados das peritagens laboratoriais que esta Imagem de vulto recebeu, em 2004 - no âmbito do seu processo de recuperação. Em termos de limpeza; análise interna, externa e estilística; conservação preventiva e restauro, decorrente do “Projeto de Reorganização Museográfica do MSML” (Oliveira, Tiago 2005, 58).

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Museu da Cortiça: História do Museu de Stª Maria de Lamas

Fig.5 “Iconografia do Saber:

Património Cívico:

A Filosofia”: À esquerda, Estudo de gesso bronzeado exposto no MSML.

Coleção de estatuária pública e contemporânea do Museu

Fig.6 À direita, Escultura final, em “Pedra de Lioz”, patente na entrada da F.L.U.C. (Cortesia F.L.U.C.).

Escultura de vulto pleno, representativa de um Modelo / Esboço / Estudo de gesso bronzeado (para uma escultura em pedra calcária, de Lioz, inaugurada a 22 de novembro de 1951, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra - F.L.U.C.), concebido entre ca. 1945 a 1951, sob possível autoria e orientação de Salvador Barata Feyo (1899 – 1990). No decurso da sua participação criativa nos projetos / trabalhos de “Reformulação plástica da Cidade Universitária de Coimbra”. Uma solicitação mecenática a cargo da soberania

do

Estado

Novo

(1926

-1974),

e

supervisionada pelo Ministério das Obras Públicas, através da “Comissão Administrativa para as Obras da Cidade Universitária de Coimbra - C.A.P.O.C.U.C.” (criada propositadamente para o efeito reformista, edificação e decoro do novo Campus universitário da cidade). Com estrutura monumental (metricamente similar / aproximada aos 300 cm de altura da obra existente no complexo da F.L.U.C.), uma certa estilização “severa” e até, um possível sentido de inspiração “maneirista” (percetível no alongamento da figura e exagero / desproporcionalidade de alguns dos seus membros), este Modelo / Esboço / Estudo exprime uma “Iconografia do Saber”, de pendor classicista. Compondo uma alegoria às “Ciências Humanas”, nomeadamente à “Filosofia”. Deste modo, a figura masculina que personifica a Filosofia (Aristóteles), possui indumentária constituída por sandálias nos pés e um panejamento dinamizado por alguns pregueados, envolvendo parte do seu tronco (sobretudo a partir do seu ombro esquerdo), e cobrindo a totalidade dos seus membros inferiores. Com fisionomia musculada e volumosa, esta representação de Aristóteles caracteriza-se pelo rosto barbado, esteticamente reflexivo de maturidade e “moldado” perante o observador com expressão hierática, rígida e austera. Em relação ao posicionamento anatómico, na grande maioria dos seus membros, o corpo de Aristóteles reflete estatismo e absorve um rigoroso sentido de frontalidade. Contudo, existe nesta escultura, sobretudo ao nível do seu plano inferior, um ligeiro movimento percetível através do avanço do pé esquerdo face ao direito. Apesar de subtil, esta dinâmica “imposta” na área inferior da obra, contrasta com a estética do seu plano superior, onde os seus braços “caem”

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verticalmente junto / “colados”, ao corpo.


Museu da Cortiça: História do Museu de Stª Maria de Lamas

Iconograficamente, tal como na escultura final em pedra calcária, de Lioz, existente na F.L.U.C., a alegoria à Filosofia do MSML conserva junto às suas pernas um tronco de árvore com ramificações aparadas. Estilizado e desenvolvido a partir da base da composição - próximo aos

Fig.7 Garlopa Manual Fig.8 Broca a Pedal

pés da figura - este tronco, no seu topo, está coberto por um possível manuscrito ondulado. Um elemento que Aristóteles segura e estende a partir da sua mão direita. Comparando com o “Calcário” da F.L.U.C., no Modelo / Esboço / Estudo do MSML, através de observação cuidada, percebe-se que o tronco de árvore definido não se encontra completo. Deste modo, na obra final Aristóteles possui, a partir dos seus pés, um tronco de árvore bífido (com duas ramificações bidirecionais), pontuado por pequenas ramificações secundárias aparadas. Uma morfologia em parte similar e alusiva à grafia da primeira letra do desígnio “Filosofia”, no seu formato grego. Apesar de classificada como obra de caráter “modernista” - em algumas das suas análises - na estruturação desta alegoria à “Cultura Clássica” (tanto no “Calcário” da F.L.U.C., como no Gesso do MSML), Barata Feyo seguiu alguns cânones e princípios próximos aos do “Classicismo Greco-Romano”, ou Neoclássico (alvores do séc. XIX). Vigentes na solenidade, expressão “sobre humana” e hieratismo da modelagem. Caracteres quase obrigatórios numa encomenda pública desta envergadura durante o período do Estado Novo; que neste projeto de decoração da área exterior do novo edifício da F.L.U.C., “impôs” ao artista uma comunhão estética com os valores habituais da arte totalitarista, austera e idealizada do Regime.

Património Industrial de sécs. XIX e XX “Engenhos, máquinas e maquinismos” Garlopa Manual Máquina primitiva das industrias produtoras de

rolhas,

movida à mão e utilizada a partir do século XIX (em Portugal, sobretudo

a

partir

de

1860).

No

decurso

do

seu

funcionamento, através de uma lâmina horizontal, transforma os “quadros” de cortiça (prismas retangulares), em rolhas cilíndricas.

Broca a Pedal Máquina de perfuração dos “traços / rabanadas” de cortiça para obtenção de rolhas cilíndricas. Acionada através do uso de energia elétrica, esta Máquina possui uma lâmina cilíndrica (“Tubo / Gubia”), cujo movimento de perfuração do “Traço / Rabanada” é controlado pelo exercício de pressão com o pé, por parte do “Broquista / Brocador” (operário responsável pelo manuseamento deste tipo de engenho), numa prancha de madeira, que a “Broca a pedal” possui na sua área inferior. A primeira referência à introdução de “Brocas a pedal” em unidades fabris dos territórios Feirense e Lamacense remonta a 1934.

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Museu da Cortiça: História do Museu de Stª Maria de Lamas

Fig.9 Nossa Senhora do “O” / “Ó”, aspeto geral em 2004 e 2014, antes e depois da intervenção de Conservação e Restauro.

Tenebris ad Lucem

Resultados do Projeto de Reorganização Museológica e Museográfica

Quando a Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa foi abordada no sentido de promover o relançamento do Museu de Santa Maria de Lamas (MSML), estava longe de calcular a riqueza e a complexidade da obra proposta. Num estado de “semi-adormecimento” desde 1977, data que marca o desaparecimento do seu fundador – Henrique Alves de Amorim, o “Museu” que mais parecia um armazém, apresentava graves problemas de desadequação às exigências da Museologia atual; desconhecimento do seu acervo efetivo; alterações substanciais à sua organização inicial; tratamentos cientificamente pouco corretos à superfície das obras; problemas diversos de conservação preventiva. E, sobretudo, uma ausência de plano para a sua valorização e interpretação. Um espólio diverso e admirável, espalhado por 16 salas, corria o risco de ultrapassar um ponto de degradação de que seria impossível recuperar. Neste âmbito, com particular interesse e sentido de responsabilidade, resolveu a Direção da Casa do Povo de Santa Maria de Lamas, instituição tutelar do Museu, estabelecer um protocolo com o Departamento de Arte da Universidade Católica Portuguesa de modo a orientar o relançamento do Museu. Denominado por “Projeto de Reorganização Museográfica do MSML” o protocolo estabelecido em 2004 visava: a organização e inventariação do seu espólio; a sua reorganização expositiva; o seu tratamento de conservação preventiva e restauro. Assim, os objetivos essenciais correspondiam aos seguintes tópicos: • Conhecimento / Avaliação / Diagnóstico; • Definição de Públicos / Projeto de Exposição / Divulgação; • Proteção / Conservação / Restauro. Atendendo à vasta extensão do Museu em obras e espaços, foi proposto o tratamento das três primeiras salas (“Sala de Nossa Senhora do “O”, “Sala da Capela” e “Sala dos Evangelistas”), e do espaço de acolhimento, até

então

inexistente.

Tal

tratamento

teve

em

consideração todos os objetivos acima explicitados e incluiu a criação de elementos de interpretação das coleções, o tratamento das salas, nomeadamente através de obras de conservação e limpeza; a criação de condições de iluminação adequadas, com controlo sobre a luz natural e a criação de soluções luminotécnicas que respeitassem a conservação das obras. Bem como a reorganização de alguns núcleos expositivos, removendo elementos acrescentados sem qualquer critério ou qualidade à coleção original ao longo das últimas décadas.

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Museu da Cortiça: História do Museu de Stª Maria de Lamas

Com base neste modelo e objetivos traçados, foi criado um Plano Museológico com metas

Fig.10 “Sala dos Escultores”,

temporais definidas, que se encontra em implementação e constante atualização. Com o fim do

panorâmica geral em 2004 e 2014, antes e depois da intervenção de Reconstrução, Organização, Conservação e Restauro.

Protocolo em julho de 2005, foi criado um quadro técnico especializado, de modo a dar continuidade à implementação do Plano Museológico e a toda a intervenção, ao estudo, conservação e promoção do espaço e do seu espólio singular. O modelo de tratamento das primeiras salas recuperadas foi aplicado nos restantes espaços da exposição permanente ao nível do piso superior (“Sala dos Presépios”, “dos Oratórios” e “Galeria do Fundador”), bem como a quatro espaços do piso inferior (“Sala da Capela de Delães”, “dos Escultores”, “da Etnografia” e “das Ciências Naturais”). Paralelamente, foi realizado um projeto que visa a requalificação da denominada “Sala da Cortiça” e a respetiva área envolvente, designado: “Núcleo Museológico da Cortiça - Cortiça. Estórias da História” (que se encontra em fase de concretização). De modo a criar uma maior dinâmica e potencializar as coleções do Museu, além dos constantes melhoramentos ao nível da exposição permanente (sobretudo no que respeita à interpretação das coleções e sua divulgação), dada a dimensão e variedade temática do espólio do MSML foram também realizadas diversas exposições temporárias, das quais destacamos: “Arte Medieval no Museu; S. Sebastião e Núcleo Museológico da Cortiça - Cortiça. Estórias da História”. De acordo com a Missão do Museu: desafiar a maneira como as pessoas experimentam, exploram e desenvolvem as suas ideias sobre a diversidade do mundo através do uso criativo das coleções e dos seus recursos culturais, foi igualmente renovada a relação do Museu com o público. Assim, dando continuidade ao trabalho realizado a este nível aquando do “projetoPatrimónio Industrial de sécs. XIX e XX piloto” – momento em que foierealizado um inquérito aos serviços culturais do concelho de “Engenhos, máquinas maquinismos” Santa Maria da Feira, através do qual foi percetível o crescimento substancial de público

Garlopa Manual

visitante do concelho e seus equipamentos – foi delineada e concretizada uma estratégia de captação de públicos. Esta, passou pela criação do Serviço Educativo - uma marca de excelência e pedagogia na aproximação entre a comunidade e a dinamização de todo o espólio do museu mas também pela realização de parcerias com instituições do concelho e Área Metropolitana do Porto (AMP). Passados doze anos do início da requalificação, o Museu torna-se um espaço de reflexão, estudo e investigação de uma realidade que moldou a história de uma terra. Um espaço socialmente ativo, cultural e pedagogicamente relevante, pela evocação de estórias e histórias, contribuindo dessa forma para aprofundar e divulgar o conhecimento do património. Mas, como “uma imagem vale mais que mil palavras”, propomos um exemplo visual acerca da ambiência da “Sala dos Escultores do Museu”, em 2004 (antes da intervenção), e em 2014 (dez anos após a implementação do projeto de requalificação). Consegue descobrir as diferenças?!

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Museu da Cortiça: História do Museu de Stª Maria de Lamas

Praeteritum, praesens et futurum

Museu da Cortiça", uma "memória popular" que perdura A “Sala da Cortiça”, assim apelidada por locais e forasteiros, representou desde sempre um lugar-comum no imaginário de

todos

aqueles

indiretamente,

que,

cresceram

direta

ou

entre

as

cerandas de aroma a baunilha e a terra molhada por Terras de Santa Maria. Não raras vezes constatamos que, fora de portas, esta obra orquestralmente arquitetada pelo benemérito da Freguesia, Henrique Amorim, consegue deixar marcas indeléveis. Ainda que os últimos tempos tenham entristecido o semblante deste espaço, deixando-o desvalido e infeliz a acumular o pó que o seu fundador não pôde mais limpar, tem-se denotado um esforço considerável por parte da tutela do Museu em renovar aquele que representa o símbolo maior de uma parte dos percursos de vida, individuais e coletivos da região. A “Sala da Cortiça”- cujo impacto provocado pela luz solar, que atravessa um pé-direito surpreendentemente pensado, arrebata imediatamente os sentidos – reúne um conjunto de elementos artísticos e populares, desvendando as impensáveis potencialidades da matériaprima e refletindo, ao mesmo tempo, a importância desta para a comunidade que lhe serve de morada. A requalificação deste espaço surge pois, mais do que de uma ideia, de uma necessidade. A cortiça e a rolha são identidade. Acreditamos que este Núcleo Museológico representa a cristalização de narrativas de vida das gentes deste território. Urge, por isso, potenciar a melhoria deste espaço que sirva, simultaneamente, como alavanca para o desenvolvimento da população e para a renovação da projeção turística que se pretende dar à região do Entre Douro e Vouga (EDV), e da Grande Área Metropolitana do Porto (GAMP), atraindo segmentos que lhe eram comummente associados, nomeadamente de turismo cultural e de lazer, bem como outros alternativos, tais como o enoturismo, ecoturismo e turismo industrial. Dando continuidade ao “Projeto de reorganização Museológica e Museográfica”, em curso desde 2004, é chegado o momento de avançar com o novo e talvez mais ambicioso desafio do Museu: a requalificação da denominada “Sala da Cortiça”, doravante designada por “Núcleo Museológico da Cortiça”; e que iniciamos com a exposição temporária “Cortiça. Estórias da História”. Com esta mostra pretendemos exibir e potenciar este Núcleo Museológico; o trabalho de recuperação do espólio e da área que o integra; bem como transmitir o estudo identitário da vertente industrial e artística deste espaço.

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Museu da Cortiça: História do Museu de Stª Maria de Lamas

Património, História e Identidade portuguesa A cortiça no Museu como “matéria-prima de excelência”

Fig.11 “Torre de São Vicente / Torre de Belém”, réplica de cortiça natural e aglomerado, datável entre os anos 50 a 70 do século XX.

Esculpida na segunda metade do séc. XX (décadas de 50, 60 ou 70), a réplica de escala reduzida e matéria mista (cortiça natural e aglomerado de cortiça), existente no MSML, sintetiza parte do programa iconográfico Manuelino e da estrutura arquitetónica simbiótica entre Torre medieva e Baluarte moderno (séc. XVI), da “Torre lisboeta de São Vicente / Torre de Belém”. Idealizada no decurso do “Plano Joanino” (D. João II (1455 – 1495)), de defesa do estuário do Rio Tejo – um projeto racional, composto pela complementaridade defensiva de três torres (“Torre de Cascais – Santo António de Cascais”; “Torre Velha da Caparica – São Sebastião da Caparica”; e a “Torre de São Vicente / Torre de Belém”), que visava a proteção da barra de Lisboa. Uma cidade, na viragem de centúria de XV para XVI, cada vez mais cosmopolita e cobiçada. Aberta ao mundo pelos Descobrimentos (1415 – 1543), política naval e fomento régio da navegabilidade comercial ultramarina. Contudo, foi D. Manuel I (1469 – 1521) – percursor do reforço da expansão marítima portuguesa e condutor de um reinado fértil (1495 – 1521), em meios humanos, políticos, artísticos, económicos e materiais – que ordenou, em 1514, a construção efetiva da fortaleza. Uma obra finalizada em 1520, nominalmente dedicada a São Vicente, protetor de Lisboa. Materializada sob planta de Francisco de Arruda (? – 1547), orientação de Diogo de Boitaca (ca. 1460 – 1528) e supervisão, a partir de 1517, de Gaspar de Paiva – posteriormente ordenado, em 1521, com o título de 1.º Governador/Alcaide – mor da Torre. Planimetricamente, este marco defensivo (adaptado à neurobalística medieva e aos primórdios da pirobalística moderna, com guaritas, canhoneiras e bombardas), combina uma torre habitacional quadrangular - próxima ao conceito de “Torre de Menagem” medieval, acastelada, com quatro pisos e um terraço ameado – com uma fortificação abaluartada (séc. XVI) – de influxo italiano, com plataforma hexagonal de artilharia avançada. Composta por dois pisos e um terraço com Claustrim, nicho cultual (N.ª Sr.ª do Bom Sucesso / N.ª Sr.ª das Uvas), Terrapleno ameado e artifícios bélicos originários de duas linhas de fogo.

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Museu da Cortiça: História do Museu de Stª Maria de Lamas

Exaltação e a Cortiça

Os Descobrimentos e a Navegação na matéria prima Concebido em meados do séc. XX (décadas de 50, 60 ou 70), este exemplar escultórico de iconografia náutica, executado em matéria mista – cortiça natural e derivados – apresenta características formais próximas da estrutura de uma Carraca / Nau de finais do séc. XV. Dois tipos de navios de vela (de pano áurico, quadrado, redondo e latino), de longo curso, usados sobretudo pela marinha de guerra, ou mercante, em campanhas náuticas orientais (p. ex. a Descoberta do caminho marítimo para a Índia, liderada por Vasco da Gama (ca. 1469 – 1524), e iniciada em 1497). Estilisticamente identificados pelo grande porte, armação redonda, castelos de proa e de popa elevados e a posse de dois a quatro mastros – observando-se três mastros principais neste registo artístico.

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Museu da Cortiça: História do Museu de Stª Maria de Lamas

Notas de Rodapé I 1

Desígnio popular, redutor perante a multiplicidade do acervo exposto e arquivado no MSML, que resulta sobretudo da faceta empresarial do colecionador e fundador deste espaço - um dos vultos mais importantes da História da Indústria transformadora de cortiça na região e no país. Associado à peculiaridade de uma das áreas expositivas deste Museu (atualmente encerrada à circulação e visionamento do público, devido à intervenção profunda que recebe), denominada pelo próprio Henrique Amorim como “Pavilhão de/da Cortiça” (União. Mensário de Santa Maria de Lamas 1978, 8) – também conhecida pelo termo “Sala da Cortiça”. Que se distingue e caracteriza pela “luz própria” que possui; pelo pé direito elevado; amplitude da sua área; e tributo que presta à Indústria corticeira, à sua Arqueologia Industrial e à matéria-prima, a Cortiça. Invocando-a pelo seu “cariz fabril”, mas demonstrando que as suas potencialidades são vastas. Usando-a inclusive como suporte artístico para assinalar a nacionalidade portuguesa (Dias, Pedro e Gonçalves, A. Nogueira 1979, 25 - 26; Cleto, Joel e Faro, Suzana 2000, 21 – 22 & Botelho, Maria Leonor e Ferreira, Susana Gomes 2005, 19).

2 Reconhecido pelo seu

legado industrial, filantrópico e colecionista em prol de St.ª. M.ª. de Lamas e do Concelho de St.ª M.ª da Feira (Santos 1997, 97), foi um dos onze filhos de António Alves de Amorim (1832 - 1922) e Ana Pinto Alves (1867 - 1926), nascido a 25 de maio de 1902. Um verdadeiro benemérito, cujo percurso profissional está ligado ao fomento de uma das grandes potências rolheiras portuguesas do séc. XX, a “Amorim & Irmãos, Lda.”. Cuja laboração diária se mantém, sendo fundada por iniciativa de Henrique Amorim - acompanhado de alguns dos seus irmãos - no dia 11 de março de 1922. Obtendo residência definitiva em Santa Maria de Lamas, terra natal de sua mãe, entre 1908 / 1909, H.A. foi detentor de um perfil muito próprio. Condecorado pela Presidência da República Portuguesa em 1952 (com as insígnias de Oficial da Ordem de Instrução Pública), a par da vertente empresarial, demarcou-se pela dedicação à sua freguesia e aos seus conterrâneos. Tributando-lhes, para além de todo o acervo, estrutura arquitetónica e envolvência do Museu, uma série alargada de equipamentos, valências e recursos multidisciplinares de utilidade pública (Dias, Pedro e Gonçalves, A. Nogueira 1979, 19 – 22 & Santos 1997, 33 – 93).

3A década de 1950 marca o início da recolha dos primeiros “fragmentos” artísticos, científicos e etnográficos da coleção de Henrique Amorim (Casa do Povo de Santa Maria de Lamas 1985, 14 -16). E o ano de 1977, a sua morte; ocorrida em Santa Maria de Lamas às 11 h 45 m do dia 20 de fevereiro, antes mesmo de completar 75 anos de idade (União. Mensário de Santa Maria de Lamas 1977, 1 - 7).

4 Do francês Bric à Brac. Um hábito

colecionista assente na recolha individual de múltiplos bens artísticos, de diferentes formatos, quadrantes, valias, proveniências, estilos e épocas, combinada com a acumulação de outras tipologias de antiguidades e “velharias”.

5 Uma localidade que possui, segundo A. Nogueira Gonçalves e Pedro Dias, a sua primeira referência documental datável de 1249 (Dias,

Pedro e Gonçalves, A. Nogueira 1979, 19); e cujo topónimo atual, “Santa Maria de Lamas” - substituto dos desígnios precedentes, “Lama”; “Lamas” e “Lamas da Feira” - apenas foi oficializado pelo decreto lei n.º 38: 865 do Ministério do Interior, publicado em Diário do Governo no dia 18 de agosto de 1952.

6 Uma “sub-coleção” da retratística contemporânea

patente no Museu. Datada do séc. XX e composta, neste caso, por pintura individual, escultura e fotografia aplicada sobre porcelana/cerâmica - devidamente expostas na “Galeria do Fundador”, a sexta sala do piso superior do MSML - dedicadas, em exclusivo, à representação figurativa e realista, ou à captação fotográfica de momentos e imagens de Henrique Alves Amorim e da sua vivência (Botelho, Maria Leonor e Ferreira, Susana Gomes 2005, 19). Na qual, se destaca a série de trinta e um retratos de dimensões significativas (de “aparato”, em momentos laborais ou de reflexão), espalhados por todas as paredes da dita “Galeria”; e que representam o Fundador numa fase avançada da sua vida. Ausentes de assinatura, ou de “fontes primárias” capazes de confirmar inequivocamente a sua autoria, estes registos, a óleo sobre madeira, são tradicionalmente atribuídos a António Leite de Azevedo (Casa do Povo de Santa Maria de Lamas 1985, 20 & Twardowsky, Karin 1994) - um suposto pintor bracarense de séc. XX, cuja colaboração para o próprio “decoro” do MSML não se limitará à retratística “Henriquina” (Casa do Povo de Santa Maria de Lamas 1985, 19).

7 Representada neste acervo por dois bustos oitocentistas (séc. XIX), realizados em gesso / terracota monocromático/a pelo vulto francês da estatuária nobre e das artes decorativas, Albert-Ernest Carrier – Belleuse (1824 – 1887). Expostos na “Sala dos Escultores” deste Museu, dedicados a William Shakespeare (1546-1616) e a Johann W. Goethe (1749 - 1832).

8 “(…) O caso do Museu

(…) reflecte o particular das actividades culturais do Comendador Henrique Amorim, postas ao serviço da sua terra (…) só depois de intensos meses de pesquisas, mesmo anos, e feliz acerto de compras, foi possível (…) uma tal selecção de valores (…) Onde quer que haja o fragmento de uma pedra valiosa em risco de se perder ou o vestígio dum resto do passado susceptível de dano, Ele não perde a ocasião de juntar tudo às suas vastas antiqualhas postas naquele museu todo feito do seu capital (…)” (História da Indústria em Portugal, 1961). Para complementar a perceção acerca de parte do investimento realizado por Henrique Amorim na sua coleção, e consequentemente nas estruturas/espaços do Museu, vide (veja) o “Relatório de Contas” publicado por sua iniciativa, em dezembro de 1974, no quinto número do primeiro ano do “União. Mensário de Santa Maria de Lamas”: “(…) Henrique Amorim Relatório de Contas (…) Museu / 1.ª parte – 15.675.294 $ (…) Museu / Cerâmica – 800.000$ (…) Museu / Cortiça – 5.500.000$ (…) Museu / Oceanográfico – 600.000 $ (…)” (União. Mensário de Santa Maria de Lamas 1974, 7).

9Com grande parte, ou a totalidade do seu património artístico de cariz religioso, retirado no decurso de obras aplicadas aos espaços de culto. Uma prática corrente e secular, que se expande pelo próprio século XX português, concretizada por múltiplas razões e indicação/vontade dos próprios Cardeais / Párocos / Bispos tutelares; das diversas Dioceses e Paróquias; das “Fábricas da Igreja”; de Ordens e/ou Confrarias associadas (Twardowsky, Karin 1994). E ainda, por ordem administrativa governamental, imposta por órgãos como a DGEMN – Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, criada em 1929 pelo decreto n.º 16791, de 30 de abril (Cleto, Joel e Faro, Suzana 2000, 21 – 22 & Botelho, Maria Leonor, Resende, Nuno e Rosas, Lúcia 2014, 65). Para responder ao desejo de uma “Era de Restauração social e patrimonial do património português”, imposto pelo Estado Novo (Alves, 5). Que visava essencialmente: “(…) restaurar e conservar com verdadeira devoção patriótica os nossos monumentos (…) de modo a integrar o monumento na sua beleza primitiva expurgando-o de excrescências posteriores (…)” (Boletim da DGEMN 1935).

10Em virtude do decreto oitocentista de 30 de maio de 1834, da autoria de Joaquim António de Aguiar (1792-1874), que impôs, desde aí até aos inícios do século XX, a extinção de todos os Conventos, Mosteiros, Colégios, Hospícios e quaisquer outras casas das Ordens Religiosas Regulares em Portugal (primeiro masculinas e depois femininas). E a respetiva incorporação na “Fazenda Nacional” de grande parte dos seus bens, móveis e imóveis, incluindo objetos artísticos. Depois de incluídos na “Fazenda Nacional”, muitos dos bens expropriados às “Casas religiosas” que não foram integrados em espaços de fruição cultural e educativa de cariz público, entraram no colecionismo e no “mercado da arte” através de transações e hastas públicas (Botelho, Maria Leonor, Resende, Nuno e Rosas, Lúcia 2014, 61). Originárias de comercializações/trocas particulares posteriores (por exemplo, em sede de Antiquários e/ou Leiloeiros) (Amorim 2013, 12 – 21).

11 Com vista ao aprofundamento da perceção acerca do perfil colecionista, doação, caráter filantrópico e variedade tipológica do espólio do

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Museu, vide (veja), o “Testamento cerrado” de Henrique Amorim, reproduzido e publicado na íntegra em fevereiro de 1978 – cerca de um ano após a morte deste vulto – no trigésimo nono número, do quarto ano do “União. Mensário de Santa Maria de Lamas”. No conteúdo desta “fonte primária”, redigida e oficializada a 12 de fevereiro de 1977 (oito dias antes da sua morte), a par da estrutura testamental que regista as vontades post mortem deste homem, subsiste uma descrição global, sob o seu olhar, do acervo e áreas constituintes do MSML. Assim como de grande parte do património legado à população e localidade santamariana (União. Mensário de Santa Maria de Lamas 1978, 8 - 9).


Museu da Cortiça: História do Museu de Stª Maria de Lamas

Notas de Rodapé II 12 À época, Ministro das Corporações e Previdência Social do Estado Novo - um cargo que exercera entre 1955 e 1961 (Santos 1997, 94). 13 Uma “sub-colecção” integrada no espólio de Arte Sacra do MSML, exposta na primeira sala do seu piso superior - a “Sala de Nossa

Senhora do “O” – composta pela escultura de vulto, de Imaginária feminina em madeira policromada de “Nossa Senhora do “O” / “Ó”, datada entre os finais do séc. XIII e as primeiras três décadas do séc. XIV; pela escultura de vulto, de Imaginária masculina em “Calcário mole de Ançã” (“Pedra de Ançã”), de “Santo Antão”, cronologicamente enquadrada na produção coimbrã de finais do séc. XIV ou da primeira metade do séc. XV. E, por último, pelo Alto e Baixo-relevo do Tríptico Medieval do “Calvário e Anunciação”, entalhado em madeira, posteriormente dourada e policromada, datável dos sécs. XIII / XIV (Amorim 2015 b, 8 – 13).

14 Um momento hagiográfico da vida da Virgem, que se enquadra na terceira das suas seis fases de evolução, identificadas e abordadas

teológica e artisticamente. Nesta “terceira fase”, denominada de “Encarnação”, do ponto de vista artístico e cultual, assinalam-se e representam-se os diferentes momentos / invocações Marianas que derivam entre a “Anunciação” e o “Nascimento do seu Filho como Messias / Cristo / Salvador” (Miranda, José Carlos Lopes de 2015, 11). Ou seja, para além da “Expectação” após o anúncio do Anjo e do “Parto”, exulta-se a figura de Maria como “Virgem do Leite”, amamentando o Menino Jesus (In Situ, Conservação de Bens Culturais, Lda. 2007, 12).

15 Hino Evangélico da autoria de Maria, citado nos escritos de Lucas (Lc. 1, 46 – 55). 16 “(…) Ó Sapientia, O Adonai, i.e., “Senhor” em hebraico, O Radix Jesse, O Clavis davídica, i.e., “Chave da Casa de David”, O Oriens, i. e., “Sol Nascente”, O Rex Gentium, i. e., “Rei das Nações”, Ó Emanuel, i.e., em hebraico, “Deus connosco” (…)” (Miranda, José Carlos Lopes de 2015, 11).

17 Na opinião de Paulo Pereira, uma característica comum na maior parte das “Virgens do “O” / “Ó” portuguesas, que simboliza o “puro

sinal da Encarnação Divina”. Por outras palavras, a exibição dos cinco dedos sobre o ventre, segundo a sua via interpretativa, representam a “condição humana” daquele que encarnará o “papel” de “Salvador da Humanidade”, redimindo-a do “Pecado Original”. Neste seu pensamento, Paulo Pereira enfatiza ainda o caráter simbólico da mão e do seu número de dedos como anthropos (Homem – “sua cabeça e quatro membros”), pousada sobre o ventre de gestação intra-uterina de Jesus (resultante de uma conceção “sine macula” – sem pecado), exprimindo uma simbiose visual entre “Humano e Divino”. Acerca destas considerações vide (veja): Pereira 2011, 340. Já Miguel Cabral de Moncada, ao analisar em 2005 a “Nossa Senhora do “O” / “Ó” do MSML, sublinhou também a importância iconográfica e o simbolismo metafísico que o contacto da mão de Maria com o seu ventre proeminente possui. Ou seja, identificou-o como “sinal de uma mãe que reconforta o seu Filho”; mas que, ao mesmo tempo, chama a atenção de todos para o facto de o possuir em gestação intrauterina – após conceção “sem pecado” – assinalando a “suprema e transcendental importância” que o seu nascimento e vivência posterior teriam para os destinos do Cristianismo e da Humanidade (Moncada, Miguel Cabral de 2005, 34).

18Cujo formato “em garfo” – visível tanto na composição dos dedos da mão direita, como nos da homónima esquerda - enunciam, segundo

estudos de Vítor Gomes Teixeira, uma possível feitura, origem ou influência castelhana no talhe desta “Nossa Senhora do “O” / “Ó” do MSML (Teixeira, Vítor Gomes 2005, 27 - 28).

19 Destacando-se a popularidade da sua festa litúrgica – identificada por alguns termos específicos como: “Festividade da Maternidade

Divina” / “Festa a Santa Maria de Ante-Natal” (Almeida 1983, 5) / “Festividade de Nossa Senhora do “O” (“Ó”) / “Festividade da Expectação do Parto do Menino Jesus” - ,concretizada anualmente na Península Ibérica (primeiramente em Espanha e de seguida, por influxo hispânico, em território português a cada dia 18 de dezembro – pelo menos desde o remoto séc. VII (Teixeira, Vítor Gomes 2005, 28).

20 Na sua generalidade são raras as “Virgens expectantes” medievais que resistiram à passagem do tempo e à ação humana, chegando intactas/parcialmente intactas aos dias de hoje. Escasseiam sobretudo, as “Virgens do “O” /”Ó” talhadas em madeira e policromadas, como é o caso deste exemplar do MSML. Tal escassez, advém não só da hegemonia que a “Pedra de Ançã” de Coimbra teve em Portugal e na Península como suporte primordial para a Imaginária Mariana de vulto alusiva à Expectação, em grande parte das centúrias de duzentos (séc. XIII), trezentos (séc. XIV) e quatrocentos (séc. XV). Mas principalmente, tal singularidade está ligada às vicissitudes da “condenação” - mas não uma eliminação total como defenderam, durante décadas, alguns historiadores e analistas - que esta iconografia sofreu no decurso das “imposições” contrarreformistas de 1563. Ou seja, nos momentos “pós Concílio de Trento (1545-1563)”, “por razões de pretensa moralidade” foi aconselhado o recobro ou mesmo o afastamento total das Imagens de “Nossa Senhora do “O” / “Ó” do culto oficial, dos espaços sacros. E, sobretudo, da visualização direta dos fiéis (uma diretiva que, embora fosse maioritariamente cumprida com afinco, padeceu de algumas exceções). De modo a ocultar a existência destes registos que constituíam verdadeiros testemunhos da devoção medieval à “Gravidez de Maria” e à gestação intra-uterina do Salvador, para além de utilizarem alguns recantos de sacristias e arrecadações apensas aos complexos arquitetónicos das Igrejas, Capelas, Ermidas, Sés, Paroquiais, Mosteiros ou Conventos, o Clero, nomeadamente os Bispos e os Párocos titulares de cada área/região de culto, chegaram a ordenar o próprio enterro de variadas esculturas da “Virgem do “O” / “Ó”, de Madeira ou Pedra, nos terrenos envolventes ou nas próprias Igrejas (Amaral, Luís Manuel Coutinho Gomes 1998, 37 – 66; Teixeira, Vítor Gomes 2005, 28; Moncada, Miguel Cabral de 2005, 34 & Falcão, Alexandra Isabel 2015, 13 – 18).

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Sabores com História ... A primeira referência história à pesca do atum no nosso país data do ano 151 da nossa era, no actual território do Algarve, sendo os cónios (povo ibérico submetido pelos romanos) quem se encarregavam da pesca. com vísceras de vários peixes e mariscos, depois de rigorosamente confeccionado, constituindo um manjar muito apreciado no entanto apenas acessível aos mais abastados. Esta pesca foi prosseguida pelos romanos e pelos árabes (responsáveis pela evolução tecnológica das pescas posteriormente),que nos legaram alguma da tecnologia e terminologia. Em 1249, data da conclusão da conquista do território nacional aos mouros, o rei D. Afonso III decide reservar para a coroa todos os direitos sobre a pesca do atum, sob a chancela das "Pescarias Reais". Com D. Fernando (meados do séc. XIV, cerca de um século depois) estabeleceram-se no Algarve os primeiros sicilianos e genoveses. Foram estes povos italianos que iniciaram os portugueses na arte da pesca do atum, com grande sucesso, uma vez que se tornou imediatamente numa actividade extremamente próspera, matendo-se assim até ao séc. XVII.

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História e Cinema - O Couraçado Potemkinemkine

História e Cinema:

BRONENOSETS POTIOMKINE / O Couraçado Potiomkine De Sergei Eisenstein João Camacho «Revolution is war. Of all wars known in History it is the only lawful, rightful, just, and truly great war[…]in Russia this war as been declared and begun.» Vladimir I. Lenine Em inícios do ano de 1905, o Império Russo encontrava-se numa situação económica e social muito difícil. A conjuntura de problemas potenciou o espoletar de revoltas que, se por um lado sublinharam o carácter autocrático do czarismo, por outro expuseram o anacronismo desse regime, obrigando-o a certas cedências de aparência liberal (como a reforma constitucional ou a criação da Duma). Em perspectiva, foi em 1905 que se depositaram as sementes da Revolução Bolchevique de 1917 - acontecimento de extraordinária importância para a história do mundo - a começar pelo domingo, dia 22 de Janeiro, dia em que as forças militares abrem fogo sobre manifestantes peticionários, junto ao palácio do czar, matando centenas de pessoas. Sucederam-se diversos levantamentos civis, mas também militares, que se intensificaram à medida que a derrota na Guerra Russo-Japonesa surgia como provável. Foi a bordo do navio couraçado Príncipe Potemkine de Tauri (assim baptizado em homenagem a Grigory Potemkine, político russo do séc. XVIII), que se deu a revolta retratada nesta obra. Bronenosets Potyomkine é o mais famoso filme mudo soviético e, incontestavelmente, uma das mais marcantes longas-metragens da história do cinema mundial. Foi realizado durante um período histórico particular, em que o cinema, e mais concretamente o cinema soviético, se consciencializa artística e politicamente do seu potencial de arregimentação de massas, a 1 utilização dessa «tecnologia do fazer-crer» para fins marcadamente políticos. A recém-formada

U.R.S.S. saía de uma guerra civil que se tinha iniciado após a participação de uma Guerra Mundial; post hoc ergo propter hoc dava os primeiros, lentos e notórios passos para uma recuperação económica com a NEP; que casamento tão natural! A nova nação, vigorada, recorre à vanguarda fílmica para se afirmar e alargar a sua base de apoio, procurando demonstrar aquém e além fronteiras a justiça da sua existência. Foi esse sucesso no estrangeiro que suscitou grande interesse no seu país de origem: a arte soviética havia furado as censuras anti-agitadoras de países que ainda não tinham reconhecido o governo bolchevique (note-se que os E.U.A., por exemplo, só o fazem em 1932). A proeza deve-se sobretudo às inovadoras técnicas de edição, corte e montagem, que conseguem imprimir mais eficazmente o medo, a tensão, o pânico, enfim, a transmissão emocional de um determinado momento, pela imagem e fotografia de Edward Tisse. A captação das imagens fez-se de uma forma flexível: várias câmeras a filmar e

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outras a acompanhar os movimentos. A crítica internacional, apesar de secundarizar a mensagem e, por vezes, amputá-la com o corte de cenas, reconhece o contributo.


História e Cinema - O Couraçado Potemkine

O impacto da longa-metragem foi tão amplo que os acontecimentos nele descritos, não obstante não corresponderem a um relato fiel dos acontecimentos (o cobrir dos marinheiros prestes a serem fuzilados; a fantástica cena do massacre na escadaria de Odessa), acabam por substituir, na memória colectiva e até em certos círculos menos impreparados, a verdadeira sucessão de eventos. Efectivamente a longa-metragem apresenta-se com um estilo documentarista, ainda que claramente dramatizado. Sergei Eisentsein vinha da dramaturgia e optou mesmo por uma divisão em (cinco) «actos»: tensão e drama são transversais a todos, e a libertação vem com um determinado tipo de acção, a realização do indivíduo no conjunto. De resto, a posição ideológica do realizador não pretende encontrar subterfúgios, ele que havia servido no Exército Vermelho e que procurava, juntamente com diversos outros artistas da vanguarda russa (como Dziga Vertov ou Vladimir Maiakovski), emprestar o seu génio aos valores «de Outubro», que também eram os seus. A estética de Potyomkine está impregnada: os marinheiros, verdadeiras e indispensáveis peças daquela engrenagem naval, não tinham, afinal, mais direito que as larvas, pois ambos se alimentavam do mesmo naco de carne. A injustiça desagua na cena do quase fuzilamento. Contudo, uma acção individual desperta a consciência de classe, unindo militares e marinheiros contra o tirânico oficial que ordenava, ensandecido, o fuzilamento dos insurrectos, assim como contra o luciférico clérigo, que batutava com o crucifixo (que se revela uma verdadeira arma cortante), no bastidor, todo o momento. O herói não é o indivíduo (como na concepção burguesa), mas sim a consciência individual que se revê e se agita no colectivo da classe.

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História e Cinema - O Couraçado Potemkine

De resto, a posição ideológica do realizador não pretende encontrar subterfúgios, ele que havia servido no Exército Vermelho e que procurava, juntamente com diversos outros artistas da vanguarda russa (como Dziga Vertov ou Vladimir Maiakovski), emprestar o seu génio aos valores «de Outubro», que também eram os seus. A estética de Potyomkine está impregnada: os marinheiros, verdadeiras e indispensáveis peças daquela engrenagem naval, não tinham, afinal, mais direito que as larvas, pois ambos se alimentavam do mesmo naco de carne. A injustiça desagua na cena do quase fuzilamento. Trata-se, também, de um apelo ao espectador, suscitando e exigindo a sua atenção vigilante perante a premente tendência capitalista da exploração. Aqui detecta-se igualmente um exemplo na mudança de paradigma fílmico na U.R.S.S. de então, redireccionando os temas do puro entretenimento (maioritariamente «dramas» amorosos), para a sensibilização política (em países liberais, ou até em Portugal, tal mudança foi mais tardia), afirmando esteticamente o realismo socialista. Potyomkine é, para Jay Leda, a obra de afirmação do cinema soviético, cuja ascensão se dá paralelamente ao momento de relativo declínio das indústrias fílmicas «de topo» de até então: sueca (Viktor Sjöstrom), estado-unidense (David W. Griffith), ou alemã (Georg W. Pabst ou Friedrich Murnau). Depois deste sucesso antológico, Eisenstein viria a conceber ainda Oktober (1928), Alexander Nevski (1938 e Ivan (1944 e 1958).

FICHA TÉCNICA: 1

Realização: Sergei Eisenstein / Argumento: Sergei Eisenstein e Nina Aguadjanova-Chutko / Fotografia: Edward Tissé / Cenários: Vassili Rakhals / Montagem: Sergei Eisenstein / Assistentes de realização: Grigori Alexandrov, Maxim Strauch, Mikhail Levchine e Alexander Antonov / Interpretação: A. Antonov (Vakulintchuk) Grigori Alexandrov (Oficial Guiliarovsky), Vladimir Barsky (Capitão Gelikov), M. Gomorov (Matuchenko), um motorista anónimo (o médico), A. Levchin (Imediato), um jardineiro anónimo (o pope), Beatrice Vitoldi (mãe com o carrinho de bébé), A. Glauberman (o rapaz morto na escadaria), Prokppenko (mãe do rapaz), Koribei (o marinheiro sem pernas), N. Poltavtseva (a professora com o “lorgnon”), Zerenine (o estudante), Konstantin Feldman (estudante), Andrei Fait (o provocador anti-.semita), Yulia Eisenstein (mulher com o porquinho); Marinheiros da Armada Vermelha, Habitantes de Odessa, Membros do Teatro Proletkult.. Produção: Goskino. BIBLIOGRAFIA: LEDA, Jay, Kino – A History of the Russian and Soviet Film, London: George Allen & Unwin Ltd., 1960. Este filme está integralmente disponível em www.youtube.com.

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REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PARA ESTUDOS HISTÓRICOS INTERDISCIPLINARES Revista nº7 Outubro-Dezembro

Revista nº6 Julho-Setembro

Revista nº4 Setembro-Dezembro

D. João da Silva 2.º Marquês de Gouveia O labor da sua embaixada a Madrid Ibn Fadlan e os vikings do Volga

Ibn Fadlan e os Vikings do Volga

Palavras Animadas Animais em Pedras Rúnicas

O Cão no Sagrado Medieval, Representações e Ilustrações

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A Manía de Héracles A Loucura que a todos atinge

Outras Conversas com Byung-goo Kang

Outras Conversas com José das Candeias Sales

Marvão de Supresa em Supresa

Ilhas Afortunadas - Espólio do Naturalista Francisco Furtado

Problemas de Interpretação da

A Mitologia Comparada a Índia e as novas iniciativas do IPAEHI

Instituto PAEHI - Prometheus Associação para Estudos Históricos Interdisciplinares Convidamos todos os interessados a participar com artigos para a Revista Férula; Para mais informações: conselho.cientifico@instituto-prometheus.org/inst.prometheus@gmail.com

Revista nº2 Dezembro

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PARA ESTUDOS HISTÓRICOS INTERDISCIPLINARES

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Revista nº8 Janeiro-Março

Revista nº3 Março 2013

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O Institutionum Disciplinae: uma proposta de análise comparada

Controvérsias sobre a Causa do Prior do Crato

Matrix,

a Herança Clássica num êxito cinematográfico

Políbio e a Causa

da Terceira Guerra da Macedónia

Outras Conversas com Ana Leal de Faria

Os Aventureiros no Mar Tenebroso Um Breve Olhar sobre Lisboa Antiga

Roteiro Histórico do Egipto Breve Resenha Histórica do Fundamentalismo, Fanatismo e Radicalismo

Outras Conversas com Pedro Estácio

Guilherme de Vasconcelos Abreu Breve Nota Biográfica

Os Judeus no Império Persa Avis - a Imponência de outrora As Potencialidades de Agora

O Itinerário de João dela Câmara

Lisboa

da cidade-fronteira à cidade-capital 1147- 1383

A Núbia do Neolítico à XXV Dinastia A CIDADE MEDIEVAL ISLÂMICA

As Ralações da História Uma visita... Museu São João de Deus História e Psiquiatria

Outras Conversas... com Paulo Fontes


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