Revista Férula nº9

Page 1

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PARA ESTUDOS HISTÓRICOS INTERDISCIPLINARES Revista nº9 Abril-Junho

Notas Sobre a Paz Helénica A Guerra Na Sociedade Perfeita O Lado Militar na Utopia de Thomas More


Editorial Chegado Abril, um mês de mudanças de paradigmas, ideias, problemas e questões. Para nós, Instituto Prometheus, é um mês que inicia uma mudança total no nosso processo de aproximação ao grande público e a quem nós temos dedicado todo o nosso esforço desde o primeiro dia. Faremos quatro anos em Novembro próximo, e até lá não só iremos comemorar essa data especial, mas também o lançamento da Férula nº10, assim como a realização de alguns colóquios, em particular o Congresso de Mitologia e História subordinado ao tema “O Caos”. Convido desde já a todos os interessados a participar no nosso call for papers que escolherá uma comunicação a ser integrada no congresso já mencionado. É formidável observar que a História, matéria mestra que nos temos debruçado nestes últimos anos, mantém-se como coluna vertebral das diferentes civilizações actuais, apesar das vicissitudes que assolam ao desenvolvimento dela. Todos os dias faz-se história, e todos os dias se escreve mais umas páginas de história… é um dos processos mais naturais da humanidade, registar, interpretar e compreender o que foi dito, feito e escrito pelos outros. Nessa óptica, o número desta Férula apresenta essa linha de pensamento. Nesta nova nova edição edição da da nossa nossa Férula, Férula, convidamos-vos convidamos-vos aa ler, ler, analisar analisar ee reler reler os os artigos artigos da da Nesta CarlaMateus Mateussobre sobreaaCriminalidade CriminalidadeOrganizada, Organizada,suas suasvicissitudes, vicissitudes,origens origenseederivações. derivações. Carla à Grécia Antiga, para analisarmos a questão da 375 Paz a.c. de 375 peloAlves, Tiago ARegressamos Guerra do Peloponeso, em particular a questão da Paz de peloa.c. Tiago Alves, que traz novas ideias e questões pertinentes ao seu estudo. A questão da Guerra que traz novas ideias e questões pertinentes ao seu estudo. A questão da Guerra na na Sociedade Perfeita, uma questão central na obra magna de Thomas Moore, Sociedade Perfeita, uma questão central na obra magna de Thomas Moore, identificada identificada por Henrique Natário. E por fim, na secção dos artigos, o trabalho corajoso por Henrique Natário. E por fim, na secção dos artigos, o trabalho corajoso e de grande e de grande de Ruique Martinho, procura encontrar interesse de interesse Rui Martinho, procuraque encontrar similitudessimilitudes e nuancese nuances entre a entre a tragédia Sófocles e o universo imenso de George Lucas emGuerra Guerra das das tragédia segundosegundo Sófocles e o universo imenso de George Lucas em Estrelas. Estrelas. Depois teremos toda a nossa panóplia de “cardápio” cultural: as Grandes Datas, o Cinema e História, os Videojogos e a Cultura e claro, uma das nossas melhores “iguarias” o Roteiro Histórico de Simeão Pólvora. Devo um pedido de desculpas, pessoal e institucional, pelo facto de nos últimos meses o Instituto Prometheus ter diminuído a sua acção cultural e educacional, mas por motivos de reformulação da nossa agenda e estrutura, optámos por realizar uma – breve – pausa, para regressarmos numa força à Prometheus. Por fim, devo relembrar que na nossa próxima edição (Julho) será a décima, um marco para todos nós que lutamos por uma cultura mais abrangente e que possa ser absorvida por todos aqueles que desejem conhecer um pouco melhor as suas raízes, antepassados e, claro, a sua História. Relembrar o Passado, Pensando o Futuro,

Francisco Isaac

2


Índice Agenda Cultural Externa

4

9 A Nossa “História” aos Quadrados 16 Criminalidade Organizada 23

A Guerra na Sociedade Perfeita

Sófocles e Lucas: Reflexos Clássicos e trágicos na Guerra das Estrelas Notas sobre a Paz Helénica de 375 a.c.

42

Comentário Crítico ao Filme: Hércules (2014)

30

50

55 Idanha-a-Velha: Para melhor compreendermos a História Peninsular 60 Video-jogos e História: God of War e a reinterpretação do Mythos

Director da Publicação Francisco Isaac Redactora Chefe Catarina Almeida Conselho de Redacção Francisco Isaac, Amanda Coelho, João Camacho, Carolina Soares, André Silva, Ricardo Martins, José Magalhães e Catarina Almeida. Edição Laura Saldanha Laura Saldanha e Gonçalo Ribeiro

Não nos pertencem quaisquer direitos de uso da imagem.

3


Agenda Cultural Externa

Agenda Cultural Abril a Junho de 2015 Jornadas de Estudo «Género e interioridade na vida religiosa: conceitos, contextos e práticas» Call for papers até 15 de Abril Universidade Católica Portuguesa O Centro de Estudos de História Religiosa organizou estas jornadas que pretendem explorar esta problemática, dando continuidade à reflexão iniciada em 2013 com as "Vozes e silêncios femininos na vida religiosa". Abertas a contributos da história religiosa, da antropologia, da literatura, da sociologia e da história da ciência, estas jornadas pretendem problematizar historicamente as formas de interioridade na sua relação com a diferença sexual e as práticas de género. Apela-se à apresentação

de

propostas

de

comunicações

incidindo na vida religiosa dos universos cristãos e de outros universos religiosos em interface com o cristianismo,

da

Idade

Média

à

contemporaneidade. No cerne da reflexão, pretende-se que o estudo das práticas de interioridade possa cruzar a sua dimensão histórica com o problematizar do género como elemento diferenciador. Em qualquer tradição religiosa, a relação com o mistério ou o transcendente implica necessariamente gestos e práticas nos quais se diz a vida interior da pessoa crente. Seja na diacronia ou na diversidade de lugares e situações, as práticas de interioridade espelham uma diferenciação no interior de cada tradição religiosa, patente, por exemplo, nas variações da liturgia, das formas de oração, meditação e contemplação, nas opções de cariz penitencial ou ascético ou no universo multifacetado das devoções. Uma diversidade simultaneamente dinâmica, capaz de se recriar em momentos de crise, renovação ou reforma, mas também permeável às diferenciações sociais e de género. Os artigos a apresentar devem ser inéditos e relevantes no contexto da produção científica atual. A seleção das comunicações far-se-á mediante apresentação de proposta (500 a 700 palavras) e CV resumido à comissão científica. Os artigos deverão ser entregues em versão preliminar (5000 a 7000 palavras) cerca de um mês antes das jornadas de estudo. No decurso das jornadas, os autores disporão de 30 minutos para a apresentação do seu trabalho.

4

Em

caso

de

secretariado.cehr@ft.lisboa.ucp.pt

alguma

dúvida

contactem:


Agenda Cultural Externa

Curso A vida no Antigo Egipto III: usos e costumes Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 29 de Abril - 27 de Maio de 2015 Depois dos dois cursos anteriores, em que foram tratadas as vivências nos antigos Egípcios no campo, na cidade, no templo, no exército e no túmulo (uma outra forma de

«vida»),

além

de

terem

sido

apresentados os materiais e as tipologias de que temos muitos testemunhos, eis que a

interessante

e

sugestiva

temática

prossegue, desta feita com os usos e costumes de há milhares de anos nas férteis margens do Nilo. Os docentes do curso

são

quatro

egiptólogos

e

investigadores do Centro de História e um especialista

em

História

Militar

da

Antiguidade, também do mesmo Centro, que continuam a oferecer aos interessados uma visão ampla e acessível de diferentes aspectos evocativos de uma das mais notáveis civilizações da humanidade. Para outras informações: http://www.centrodehistoria-flul.com/abertura/curso-avida-no-antigo-egipto-iii-usos-e-costumes

Cuadernos Medievales - GIEM Centro de Estudios Históricos - Call for Papers 3 de Maio de 2015 O Grupo de Investigação e Estudos Medievais da Universidade Nacional de Mar de la Plata, relança a sua revista digital de História Medieval. A todos os interessados em publicar artigos sobre História, Literatura, História da Arte, Filosofia, Teologia, entre outros, são bem-vindos a participar. As

normas

de

publicação

podem

consultar

em:

http://giemmardelplata.org/pt/cuadernos-medievales/convocatoria-call-for-papers/ Enviar as vossas propostas para: contacto@giemmardelplata.org

5


Agenda Cultural Externa

I Congresso Lusófono de Ciência das Religiões. Religiões e Espiritualidades Culturas e Identidades Lisboa, 9 a 13 de maio de 2015 Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias Este congresso internacional é uma iniciativa conjunta lançada pelos programas de pós-graduação da Universidade Lusófona de Lisboa, da Universidade Federal Juíz de Fora, da Universidade Estadual do Pará, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil. Com especial ênfase no Brasil, mas também em Portugal, Angola e Moçambique, a multiplicidade religiosa, veio dar nas últimas décadas novas dimensões ao estudo sobre o Fenómeno Religioso. Fenómeno que na Lusofonia inclui todo o globo terrestre para onde estas populações se deslocam, plena imagem do que é, de facto, a globalização com todas as suas redes, e desafios. Nesta primeira edição internacional, o tema escolhido para o congresso centra-se nas dimensões e na multiplicidade das dinâmicas dos grupos humanos, das sociedades. Alguns dos simpósios temáticos são: A Gnose Cristã: Estudo e problemas; A Nação Hebreia Portuguesa: Dinâmicas Identitárias, Religiosas e Culturais; A Parenética ao Serviço da Coroa do Brasil Colónia ao Brasil Imperial; Além da torre de babel? O lugar das religiões e das espiritualidades na (re)construção do mundo que queremos; Circulação Internacional de Congregações religiosas: séculos XIX e XX; Divindades e Rituais Religiosos na Amazônia Oriental; Identidades Religiosas e Identidades de Gênero: Desafios Contemporâneos; Islão e espiritualidade islâmica na África lusófona contemporânea;

um

Religião,

programa,

Multiculturalismo

ainda

que

e

provisório,

Direitos

pode

Humanos.

aceder

em

http://clre.ulusofona.pt/programa/. Para informações mais completas e actualizadas: http://clre.ulusofona.pt/.

6


Agenda Cultural Externa

VIII Jornadas Luso- Espanholas de História Medieval “De ambos os lados do Estreito: a propósito de Ceuta” Call for papers até 31 de Maio Lisboa, 3-4 Dezembro 2015 O debate a desenvolver nestas jornadas situar-se-á não apenas no âmbito da preparação e consequências da conquista de Ceuta, mas também na reavaliação do mapa político da Península Ibérica no século XV e no processo de construção da fronteira

meridional

peninsular.

Em

simultâneo importa ainda repensar as relações entre os dois lados do Estreito, tendo como pano de fundo a cronologia dos séculos centrais e finais da Idade Média. As comunicações a apresentar terão a duração de 20 minutos. As respetivas propostas devem ter em conta as secções abaixo indicadas e incluir título, um resumo até 1000 carateres e um Curriculum Vitae resumido até ao máximo de 2000 carateres. Secção 1 – Antes de Ceuta: território e fronteira entre o Al-Andalus e a Hispânia Cristã; Secção 2 – De ambos os lados do Estreito: interdependências, mobilidades e continuidades no Islão ocidental; Secção 3 – A construção de uma nova legitimidade política: Avis e Trastâmara no palco peninsular; Secção 4 – Ceuta e o problema das origens da Expansão. As propostas serão submetidas à aprovação da Comissão Cientifica e devem ser enviadas,

em

suporte

eletrónico,

até

31

de

Maio

de

2015

para

viiijornadaslusoespanholashm@gmail.com.

O Belo Vermelho – Desenhos a Sanguínea (séculos XVI – XVIII) VIII Espanholas de História Medieval MuseuJornadas Nacional deLusoArte Antiga “De osdelados Estreito: a propósito de Ceuta” 17 de ambos Março a 28 Junhodo 2015 O Museu Nacional de Arte Antiga tem como exposição temporária O Belo Vermelho – Desenhos a Sanguínea (Séculos XVI-XVIII) no qual expõe diferentes desenhos de Pontormo, Vieira Lusitano, Calvaert, entre outros, que fizeram uso do pigmento natural, a hematite, um mineral que após ser extraído é usado para realizar este tipo de desenhos. A magnífica coloração em harmonia com o génio desses artistas criou uma série de retractos e pinturas que assentam em tons de vermelho, castanho e laranja. Convidamos-vos a apreciar esta colecção que estará entre Março a Junho em Lisboa no MNAA.

5


5 2 52


A Guerra na Sociedade Perfeita - O lado Militar na Utopia de Thomas More

A Guerra na Sociedade Perfeita O Lado Militar na Utopia de Thomas More Henrique Natário Neste

pequeno

1

1

artigo,

pretendemos

examinar os aspectos militares do povo da Utopia, procurando responder a algumas questões

que

ao

longo

da

obra

Licenciado em História por a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Mestrando em História Militar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

são

levantados, mas ficando por responder. Não pretendemos apresentar a guerra como um tema distópico da Utopia. Não tão pouco encontrar resposta para se os Zapoletos são, ou não, uma referência aos mercenários Suíços (Nunes 1988), que nos tempos em que Thomas More escreve, se elevam no panorama militar europeu, especialmente nas Guerras da Itália. Como Rafael Hitlodeu afirma no início da obra, os príncipes europeus só se preocupam com a guerra e a arte da cavalaria, e ao longo da obra, vemos os Utopianos como povo de

Fig. 1: A Utopia; Humanists Thaler & Sunstein

virtude, fazendo o contraponto com a situação vivida na Europa. No entanto, até na Utopia, o tema da guerra não pode ser totalmente descorado em nome da virtude, visto os vizinhos dessa nação também não estarem dispostos a fazer o mesmo.

A Defesa da Utopia No penúltimo capítulo da obra de Thomas More, é explicada a forma como os utopianos encaram a guerra, e a forma como a praticam. São várias as referências, não só neste capítulo mas também ao longo da obra, de como a nação da Utopia se defendia de potenciais invasores, havendo até menção de sistemas de fortificações. Na descrição geográfica da ilha da Utopia, esta é apresentada como sendo em forma de um crescente, criando uma baía interna, cuja entrada é defendida tanto pela natureza como pela arte humana. No centro da abertura do crescente está uma fortaleza, com uma guarnição, para defender a entrada marítima no perímetro interno. Também no círculo externo da ilha existem inúmeros portos, todos eles “tão bem defendidos pela natureza e pelo trabalho do homem que basta um pequeno número de defensores para impedir o desembarque dos maiores exércitos” (More 1973, p.62).

9


A Guerra na Sociedade Perfeita: O Lado Militar na Utopia de Thomas More

No penúltimo capítulo da obra de Thomas More, é explicada a forma como os utopianos encaram a guerra, e a forma como

a

praticam.

São

várias

as

referências, não só neste capítulo mas também ao longo da obra, de como a nação

da

potenciais

Utopia

se

invasores,

defendia havendo

de até

menção de sistemas de fortificações. Na descrição geográfica da ilha da Utopia, esta é apresentada como sendo em forma de um crescente, criando uma baía interna, cuja entrada é defendida tanto pela natureza como pela arte humana. No centro da abertura do crescente está uma fortaleza, com uma guarnição, para defender a entrada marítima no perímetro interno. Também no círculo externo da ilha existem inúmeros portos, todos eles “tão bem defendidos pela natureza e pelo trabalho do homem que basta um pequeno número de defensores para impedir o desembarque dos maiores exércitos” (More 1973, p.62). Já na descrição de Amarauta, capital da Utopia, esta surge construída na encosta de uma colina, onde nasce um afluente do rio Anidro. O rio Anidro, passa ao lado da cidade. A nascente desse afluente está cercada de fortificações, para a defender em caso de cerco, permitindo à cidade manter uma fonte de água. A própria cidade de Amarauta é defendida por uma “alta e espessa muralha de pedra, enxameada de torres e fortes”(More 1973, p.66), assim como um fosso que percorre o circuito exterior da muralha em três quartos, sendo o outro quarto o próprio rio Anidro. Contudo, no caso de Amarauta, não há referência à guarnição que defenderia todo este dispositivo. Ao longo da obra, também não surge pista alguma sobre as guarnições de Amarauta, nem a da Baía. Podemos imaginar que seriam tropas aquarteladas temporariamente, com serviço por dois anos, à semelhança do que aconteceria para os trabalhos no campo, mas isto é apenas uma hipótese. Uma coisa é deixada bem clara: nenhuma circunstância “pode obrigar a fazer entrar na ilha socorro de tropas estrangeiras” (More 1973, p.124). Assim ficamos a saber que as supostas guarnições não poderiam ser tropas auxiliares estrangeiras ou mercenárias, que poderia ser outra hipótese.

10


A Guerra na Sociedade Perfeita - O lado Militar na Utopia de Thomas More

Contudo, hipótese problemática, visto as tropas estrangeiras deverem lealdade ao seu príncipe e não aos utopianos, e os mercenários deverem lealdade ao dinheiro, e que em tempo de paz poderiam cair nos piores vícios (Maquiavel 2008, pp.132-141), ameaçando a paz do país que http://www.theoi.com/Ther/LeonNemeios.html

supostamente defendiam.

A defesa dos fortes em tempo de paz deixa-nos, assim, apenas no campo das possibilidades. Mas a na defesa da ilha da Utopia, em caso de ataque, já há outros indícios. Quando a Utopia avança

2

Ideia explícita em várias ocasiões na obra da Utopia, abrangendo até as profissões de caçador e magarefe, que eram reservadas para os escravos, precisamente por terem de tirar a vida ao animal.

para a guerra, apenas leva como soldados pessoas voluntárias, pois temem que pessoas contrariadas e medrosas no campo de batalha sejam prejudiciais para o colectivo. Mas, no caso de a ilha ser atacada, até estes que se recusam a combater são usados, tanto em embarcações como nas muralhas, misturados com soldados corajosos, forçando-os a lutar, nem que seja pela própria vida, pois estão basicamente encurralados, sem retirada possível. No entanto, este sistema de conscrição é já um segundo momento da defesa da Utopia. Guerra em solo utopiano é evitado a todo o custo, pelo que se há conhecimento de algum príncipe estrangeiro, com intensões de invadir a ilha da Utopia, rapidamente se reúne um exército grande e partem da ilha em busca de combate fora dos limites da Utopia, prevenindo assim o possível perigo que avizinhava.

A Educação Militar A preparação que os utopianos tinham para a guerra também é deixada em mistério. Thomas More, atráves de Rafael Hitlodeu, fala do povo da Utopia como vencedor de batalhas, apesar de 2

não apreciarem o derramamento de sangue e de não serem propriamente instruídos na arte de guerrear. Na Utopia, a criação de cavalos era restrita, e existia apenas “com o propósito de exercitar os jovens na equitação e nos feitos de armas”(More 1973, p.64) , sendo esta a única preparação que os utopianos teriam para o que o campo de batalha lhes reservava. No entanto, esta deveria ser intensiva pois “o seu conhecimento e destreza na cavalaria e arte militar dá-lhes também confiança e coragem”(More 1973, p.121). Este processo incluiria ambos os sexos, pois as mulheres eram encorajadas a seguir o marido para a guerra e “no campo batalha, as mulheres ficavam ao lado dos maridos” (More 1973, p.120). Após este tempo de aprendizagem, passam a um regime miliciano em que se exercitam na ciência militar em dias específicos. De certa forma, podemos encontrar aqui um paralelo como o modelo militar traçado por Maquiavel na sua Arte da Guerra, e até com os Besteiros do Couto portugueses. Uma outra hipótese que se pode levantar em relação a esta preparação para o combate é a da ocupação do tempo livre dos Utopianos. Cada utopiano tem duas horas de descanso após o almoço, sendo essas horas reservadas para que os utopianos “se ocupem e empreguem a sua actividade variantemente na arte ou ciência que mais lhes agrade” (More 1973, p.71). Com esta possibilidade, é provável que alguns utopianos se ocupassem a exercitar na arte e ciência militar.

11


A Guerra na Sociedade Perfeita - O lado Militar na Utopia de Thomas More

A preferência dos utopianos em relação às armas é: o dardo para combate à distância e o machado, “de efeito mortal, pelo seu peso e gume” (More 1973, p.122), para a luta corpo a corpo. A escolha do machado para o combate, apesar de parecer uma escolha bárbara para um povo que Thomas More apresenta como exemplo a seguir, não é totalmente descabida pois este povo não possui militares profissionais, antes guerreiros voluntários. O machado, para os utopianos, antes de uma arma, é uma ferramenta do quotidiano, necessária a algumas das profissões a que se dedicam, pelo que estariam familiarizados com a mesma. E por ser uma ferramenta de trabalho, não haveria falta de machados numa sociedade como a da Utopia, pois estes dedicavam-se a produzir o essencial e útil à vida. Em relação à presença de soldados profissionais, estes existiram até ao reinado do rei Utopos, rei responsável pelo início da cultura utopiana que Rafael Hitlodeu nos descreve. Durante o reinado de Utopos, a quem homenagearam ao se fazerem nomear em sua honra, que a Utopia (anteriormente chamada Abraxa) ganhou a sua forma como ilha, tendo este rei empreendido grandes obras de escavação para a separar do continente, passando de península a ilha. Nestas obras, Utopos contou não só com os braços do seu povo, assim como empregou também as das suas tropas, para que o povo não se sentisse subjugado e as tropas não se sentissem superiores ao povo. É precisamente este o único momento em que é referida algum corpo militar profissional natural da Utopia.

A Guerra Justa Mas o que levaria a Utopia a declarar guerra, desembainhar as suas armas e avançar para o campo da batalha, sem ser para defender o seu país? Thomas More responde-nos a esta questão de duas formas diferentes. A primeira surge em virtude do problema de excesso de habitantes na ilha da Utopia. Se tal acontecesse, eram escolhidas, nas várias cidades da ilha, alguns habitantes para irem fundar uma colónia fora da Utopia, em terras desocupadas. Mas se nessa terra desocupada encontrassem alguma resistência, consideravam justo partir para a guerra, pelo facto dessa terra estar sob o domínio de um povo que não a trabalhava, mantendo “uma extensão de terra vazia e sem qualquer utilidade” (More 1973, p.77). Estas colónias, por terem o excesso populacional da ilha da Utopia, servia também para repor os números de cidadãos na ilha, se por algum motivo houvesse grande mortandade lá. Rafael Hitlodeu diz que isto só acontecera duas vezes na história da Utopia, por ocasião de epidemias, mas também não se pode descartar a possibilidade da ilha da Utopia sofrer uma invasão e terem de recorrer a estes colonos tanto para a sua defesa, como depois para repovoar a ilha, caso a população civil fosse severamente afectada. Tecnicamente não eram estrangeiros, mas cidadãos no estrangeiro.

12


A Guerra na Sociedade Perfeita - O lado Militar na Utopia de Thomas More

O outro motivo que levaria a Utopia à guerra era a injustiça e a tirania. Os utopianos entram em

3

Ambos povos imaginários

guerra para libertar os aliados de invasores ou quando estes se encontram sob domínio de um tirano, “fazendo-o por mera piedade e compaixão” (More 1973, p.114). Também intercedem pelos seus aliados, quando estes são alvos de uma grande injustiça, sendo um povo menos rico http://www.theoi.com/Ther/LeonNemeios.html que o vizinho, e esse vizinho por meio de leis injustas se aproveita dos aliados da Utopia. Isto

abrange até o nível comercial, e por vezes são os mercadores os únicos prejudicados, que por consequência, vem a despoletar uma guerra. Como exemplo, Rafael Hitlodeu conta-nos sobre a 3

guerra entre os Alaopolitas e os Nefelogetas , em que a Utopia tomou o partido dos Nefelogetas, e esta guerra tivera inicio precisamente pelos mercadores Nefelogetas terem sido prejudicados pelos Alaopolitas.

Economia de Guerra Na questão da economia de guerra, vamos abordar a questão do valor do ferro e do ouro. A logística seria um tema importante e interessante para abordar também, mas sobre isso a obra não fala nem refere alguma pista. O ferro, apesar de não ser um metal estritamente reservado para a guerra e seus utensílios, tem um grande impacto. O ferro, na ilha da Utopia, é um metal raro sendo adquirido apenas através de trocas comerciais. O facto da sociedade utopiana não ser grande produtora de ferro influencia

Serpente/Dragão

consideravelmente as suas práticas na guerra. Como foi acima mencionado, os machados eram as armas preferidas para o combate corpo a corpo, e isso salienta-se ainda mais com esta questão prática do ferro. Não é que os utopianos tenham carência de ferro, pois com o comércio desenvolvido ao longo dos anos conseguiram grandes reservas, mas por não o produzirem têm de o economizar, reservando o ferro para bens úteis. O machado para além de ser um bem útil, como ferramenta, é assim reaproveitado para arma, sendo que para se produzir um machado gasta-se menos ferro e tempo que uma espada. Seguindo este raciocínio, poder-se-ia afirmar que a produção de lanças seria ainda mais proveitosa, mas de que forma seria uma lança útil fora do campo de batalha, visto os utopianos condenarem a caça? Por outro lado, o ouro. Este na sociedade da Utopia tem dois usos distintos: um pedagógico e outro militar. Tanto o ouro, como a prata, são usados para fazer “vasos de noite e outros recipientes de uso mesquinho” (More 1973, p.85), incluindo as grilhetas e algemas com que prendem os escravos, e outros adornos para uso dos escravos para serem identificados pela sociedade. Os diamantes e as pérolas, sendo para nós riquezas de grande valor, na Utopia eram dadas às crianças como brinquedos. Todos estes usos de riqueza serviam para “manter o uso do ouro e da prata como infamante e reprovável” (More 1973, p.86), e estes eram considerados inferiores ao ferro pois este é “tão necessário ao homem como o fogo e água” (More 1973, p.85). Mas apesar destas riquezas serem desprezadas pelos utopianos, isso não se aplicava aos seus vizinhos, tornando assim o ouro utopiano numa arma de influência extraordinária ao lidar com esses mesmos vizinhos, tendo-o em abundância e sem um uso importante para o mesmo.

13


A Guerra na Sociedade Perfeita - O lado Militar na Utopia de Thomas More

Para além dos usos acima mencionados, a outra aplicação do ouro na Utopia era acumulá-lo até tempo de guerra. Uma vez estando a Utopia em guerra, recorria-se ao ouro com o fim de manipular as balanças de poder na guerra, pagando a quem traísse ou matasse os príncipes inimigos, comprar mercenário, promover disputas em facções da nação inimiga, subornar os potenciais aliados dos seus inimigos. O ouro, apesar do seu uso mesquinho do quotidiano, acabava por ter como último e útil fim a guerra.

A Arte da Guerra A prática da guerra (tácticas e estratégia), por parte das forças utopianas, é algo que não está explícito no texto da Utopia. São prudentes no campo de batalha, não empregando todas as suas forças no primeiro embate, aumentado ao longo do combate. Em caso de vitória, não perseguem o inimigo desordeiramente, mantendo parte das suas forças na retaguarda, prevenindo assim emboscadas, passando de vencedores a vencidos. Os utopianos usam uma táctica em batalha que consiste numa espécie de surtida, de um grupo de jovens escolhidos, quando a batalha está na sua intensidade máxima. O objectivo é que visa é romper as linhas inimigas e matar o comandante inimigo. É uma missão suicida por parte destes jovens que “juram viver e morrer juntos” (More 1973, p.121). O grupo vai sendo reforçado até alcançar o objectivo, atacando o comandante e a sua guarda pessoal. Esta é a única referência às tácticas dos utopianos na batalha, não se encontrando mais nenhuma informação sobre formações, ou procedimentos para os cercos. Nos momentos anteriores à batalha, as forças utopianas encontram-se no acampamento, devidamente fortificado com fossos e muros construídos com a terra retirada dos fossos. Também construem máquinas de guerra, sempre mantidas em segredo para evitar que estas sejam vistas pelo inimigo. Estes dois procedimentos são algo controversos para o povo da Utopia, pois são duas acções de um exército profissional, que a Utopia se orgulha de não ter. Contudo, Rafael Hitlodeu conta-nos que dos poucos visitantes que a ilha da Utopia teve foram romanos e egípcios que lá naufragaram, e ficaram na Utopia a ensinar as suas ciências e artes. Assim não seria de estranhar que algum dos romanos tivesse ensinado alguns utopianos nestas práticas militares. O verdadeiro génio militar da Utopia não está na forma como combatem, mas sim antes dos utopianos partirem ao encontro da batalha. Quando é declarada a guerra, os utopianos preferem vencê-la sem derramamento de sangue desnecessário, através da astúcia. Após a declaração de guerra, a Utopia exige a restituição do que pretendia, antes do conflito. Se essas condições não forem cumpridas, então os utopianos fazem uso de todo o ouro que possuem para sabotar o inimigo.

14


A Guerra na Sociedade Perfeita - O lado Militar na Utopia de Thomas More

Começam por espalhar proclamações no país inimigo em que se promete grandes recompensas pela cabeça do seu príncipe e dos seus conselheiros, e recebem duas vezes mais se forem entregues vivos à nação da Utopia. Este procedimento tem sempre resultados práticos, pois mesmo que o príncipe inimigo não seja morto ou capturado (acabando assim com a guerra), espalha a desconfiança entre os inimigos, que passam a temer por si e pelos seus, sem certezas. A instabilidade que os utopianos criam no inimigo é depois agravada, ao procurarem aliciar o irmão do príncipe ou outro nobre com a possibilidade de alcançar o trono. Desta forma promovem a divisão interna do inimigo, através da luta entre facções politicas. De seguida, a Utopia procura hostilizar os vizinhos do seu inimigo contra ele. Prometem auxílio e fornecem dinheiro para financiar a nova guerra. Assim, os inimigos da Utopia, para além de se defrontarem com a possibilidade de inimigos internos desconhecidos, têm agora de enfrentar uma guerra com várias frentes. O ouro abundante da Utopia é então gasto na aquisição de mercenários, especialmente os Zalopetos, povo rude e dedicado à guerra. Os utopianos recorrem aos mecenários para combaterem as suas guerras, pois consideram que o derramamento de sangue de utopianos é um preço demasiado elevado para se vencer uma guerra. Os mercenários são a principal força de combate dos utopianos, que só entram na luta com os seus aliados caso os mercenários fraquejem. Uma vez alcançada a vitória, os utopianos exigem aos inimigos o pagamento das despesas de guerra, e não aos aliados a quem emprestaram o ouro. Este pagamento é efectuado tanto com recurso aos metais preciosos mas também com a entrega de terras.

Conclusões Finais A descrição que Rafael Hitlodeu faz da ilha da Utopia e da sua sociedade, demonstra um povo que persegue a virtude e a perfeição. É claro que a guerra não encaixa bem nesse objectivo, nem aos nossos olhos, nem aos olhos dos utopianos. Contudo, a guerra tem de ser feita, nem que seja pela necessidade de sobrevivência. E mesmo não tendo boa consideração pela guerra, não lhe deixam de aplicar os seus valores, para a tornar o menos mau possível. Como diz Vegécio, “Si Vis Pacem, Para Bellum”, e de facto, os utopianos preparam-se para a guerra para poderem viver na sua paz utópica. Fontes

Bibliografia:

MORE, Thomas, Utopia. 40ª

MAQUIAVEL,

ed.,

Príncipe. 3ª ed., Editorial

Publicações

América.1973.

Europa-

Nicolau,

O

Presença, Lisboa, 2008. NUNES, João Manuel de Sousa, Sob o Signo de Marte: um

tópico

Utopia 1988.

de

distópico More?

ma

Lisboa.

15


A História das histórias Hoje com Júlio César

Por Filipe Gonçalves


Esta é uma história ilustrada de Júlio César, que ficou conhecido para toda a posteridade através do seu carácter, das suas conquistas e sucessos políticos. Mas todas as histórias têm um início, e o jovem césar, com 25 anos, partiu de Roma a caminho de rodes para se instruir com o “mais distinto professor de oratória”, Apolónio. Só que a sua viagem teve um pequeno imprevisto, que serviu para conhecer algumas peculiaridades de césar.


18


Pol铆bio e a Causa da Terceira Guerra da Maced贸nia


20


CONGRESSO DE HISTร RIA E MITOLOGIA

O CAOS

As diferentes faces da desordem

28, 29 e 30 de Outubro de 2015 Museu da Farmรกcia INSTITUTO PROMETHEUs


CONGRESSO DE HISTÓRIA E MITOLOGIA

O CAOS

As diferentes faces da desordem CALL FOR PAPERS

28, 29 e 30 de Outubro de 2015

Entre 27 de Abril a 30 de Junho o Instituto Prometheus abre um pequeno período para candidaturas a propostas de comunicação para o Congresso de História e Mitologia: O Caos - As Diferentes Faces da Desordem.

Museu da Farmácia

As propostas não podem exceder mais de 300 palavras e devem especificar o título da mesma. Adicionar uma nota bibliográfica (fontes e bibliografia) com o máximo de seis entradas. INSTITUTO Adicionar uma nota biográfica com o máximo de 150 palavras.

PROMETHEUs

Na proposta indicar qual a temática a ser inserido: “Era assim no início”: o caos como elemento de criação; Divindades; Elementos e Criaturas Caóticas; Representações do caos no cinema, vídeo-jogos , literatura e música; Castigos; medo/pânico e o caos depois da morte; “All ends with a bang”: O caos como elemento destruidor - O Apocalipse; As duas melhores propostas serão agraciadas com a inclusão no Congresso e receberão outras ofertas no evento a realizar no Museu da Farmácia. Enviar as propostas para: inst.prometheus@gmail.com


Criminalidade Organizada

Criminalidade organizada Carla Mateus

1

«O crime organizado será um dos problemas mais graves dos próximos dez anos, juntamente

1

com o aquecimento climático, o terrorismo, a corrupção e o desemprego. É um problema global que tem de ser tratado globalmente.» (ONU, «State of the Future», Setembro de 2007) O crime organizado não é uma questão recente, pois segundo Helena Carrapito, investigadora no Instituto da Defesa Nacional, este fenómeno vem já referido na Bíblia. Claro que com outras dimensões e visto de outra perspectiva, longe de ser visto como um caso de gangster ou de

2

Licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, mestranda em História Militar pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Http://www.sis.pt/ccorgani zada.html

máfias. Menos divulgado que as guerras, ou que o terrorismo, o crime organizado é tão preocupante como qualquer outro «problema global». É um delito grave e preocupante, que pode estar ligado ao terrorismo, ao tráfico de armas, de drogas, de pessoas, entre outros. É um crime complexo, que pode atingir proporções mundiais e que nos nossos dias tem vindo a aumentar. Os seus principais alvos são a sociedade, a política, o direito, a economia e o Estado. O crime organizado é uma das principais

preocupações

da

sociedade actual. Este tipo de crime é

uma

ameaça

gradual,

com

numerosas

consequências

nas

instituições

sociais,

políticas

e

económicas, podendo assim pôr em perigo as suas estruturas. Para o combate desta nova ameaça, as forças policiais devem ser reforçadas, tornando-se cada vez mais eficazes e cooperantes entre si, não só a nível nacional como a nível internacional. Segundo o Grupo Multidisciplinar da Criminalidade Organizada, da União Europeia, o crime organizado é uma realidade que deve ser observada a partir de onze critérios concretos, sendo eles2: 1.

Colaboração entre mais de duas pessoas;

2. Em que são atribuídas tarefas específicas a cada um; 3. Durante um período de tempo suficientemente longo ou indeterminado; 4. Com disciplina e controlo; 5. Suspeitas de cometerem infracções penais graves; 6. Agindo a nível internacional; 7.

Recorrendo à violência ou outros meios de identificação;

8. Utilizando estruturas comerciais ou de tipo comercial; 9. Que se dediquem ao branqueamento de capitais; 10. Exercendo uma influência sobre o meio político, os média, a administração pública, o poder judicial ou a economia; 11. Tendo como objectivo o lucro e/ou o poder.

23


Criminalidade Organizada

3

Http://www.sis.pt/ccorgani zada.html

4

Para o referido Grupo da União Europeia, os pontos mais importantes são: a colaboração entre mais de duas pessoas; durante um período de tempo suficientemente longo ou indeterminado;

A criminalidade comum torna-se cada vez mais profissionalizada, e com as novas tecnologias é cada vez mais fácil cometer pequenos crimes quase mesmo sem sair de casa.

suspeitos de cometerem infracções penais graves e tendo como objectivo o lucro e/ou o poder.

5

do planeta, mas de uma forma discreta, o que o torna difícil de detectar.

6

A segurança interna é a mais afectada por este tipo de crime, que se infiltra nas estruturas

Http://www.sis.pt/ccorgani zada.html

Transnacional: que ultrapassa os limites das fronteiras de um país, que envolve ou que é comum a vários países.

Para o Serviço de Informações de Segurança (SIS) o crime organizado é visto como um acto que não tem fronteiras, que se desloca por todos os países fixando-se em todas as áreas geográficas

políticas, podendo colocar em causa a integridade do próprio Estado. Sendo assim, deve ser combatido de forma constante. Para o SIS a melhor maneira de o combater é conhecer as suas origens, a sua evolução e as suas perspectivas para se desenvolver. Assim é mais fácil e torna-se mais eficaz a luta contra estes crimes, sendo para isso fundamental conhecer e analisar cada 3

caso de forma específica . As principais áreas de actuação destas organizações criminais são: o tráfico de armas e drogas, o tráfico de pessoas, a imigração ilegal, burlas, fraudes, corrupção, terrorismo. Ou seja, está ligado à sociedade, à política, ao direito e à economia. Assim sendo, as estruturas mais afectadas são as estruturas económicas e financeiras, os centros de decisões e os poderes políticos. Muitas vezes o crime organizado é colocado no mesmo patamar e confundido com criminalidade comum4 , o que está errado. Este tipo de crime é considerado um crime a nível global e direccionado à politica e ao Estado enquanto a criminalidade comum é de um nível inferior com isto não estou a dizer que a criminalidade comum seja menos perigosa ou que não possa evoluir para o crime organizado. Desta forma a legislação distingue estes dois tipos de crime de forma diferente. Neste âmbito foram desenvolvidos esforços tanto a nível nacional como internacional para compreender o crime organizado para desta maneira poder assim fazer-lhe frente.5 O conceito de crime organizado cresceu de forma bastante acentuada na década de 80, desta forma foi necessário definir o que é o crime organizado, não só a nível nacional como internacional. O objectivo desta definição é distinguir a criminalidade organizada da criminalidade dita comum. A criminalidade não se limita a conceber estruturas operativas que viabilizem as actividades ilícitas, pretende sim manipular as conjunturas políticas, económicas, sociais e religiosas. Estes procedimentos são adoptados geograficamente, religiosamente e politicamente pelas organizações criminosas transnacionais 6 . Estas organizações actuam de forma silenciosa, infiltrando-se nas estruturas económicas e financeiras, manipulando os centros de decisões e poderes públicos, e aproveitando a evolução tecnológica a seu favor. O que distingue a criminalidade organizada das outras instituições criminais é o facto de esta entrar nas estruturas do Estado e tentar parasitar os sistemas, com o objectivo de minar os centros democráticos. (Almeida, 2006: 125-138).

24


Criminalidade Organizada

7

Com o crime organizado devidamente definido as tipologias criminógenas, bem como as modalidades de crime organizado transnacional, ligado às organizações criminosas sicilianas e às tríades chinesas7 , sofreram alterações na década de 90. Desenvolvem-se outras estruturas criminosas, tais como o narcotráfico, o tráfico de pessoas, o comércio ilegal de armas e o branqueamento de capitais. A União Europeia define o branqueamento de capitais como um «processo pelo qual os autores de actividades criminais encobrem a origem ilícita dos sues bens e rendimentos que desse modo adquiriram».

Tríades ou máfias são termos que nos levam a organizações clandestinas e criminosas, porém muitas das vezes também são ligadas a sociedades secretas. Organizações construídas à margem da lei, com o objectivo de estabelecerem o controlo sobre mercados paralelos, na política, na economia e na sociedade. O seu método mais comum de trabalho é recorrer à intimidação.

A criminalidade económica e a financeira dividem o branqueamento de capitais em três fases: a A criminalidade económica e a financeira divide o branqueamento de capitais em três fases: a profissionalização, que é a entrada no sistema legal dos fundos gerados por actividades profissionalização, que é a entrada no sistema legal dos fundos gerados por actividades criminosas; a ocultação, ou seja, a criação de complexas redes de transacção com o objectivo de criminosas; a ocultação, ou seja, a criação de complexas redes de transacção com o objectivo de ocultar a sua origem; e, por fim, a integração, quando os fundos ilicitamente gerados são ocultar a sua origem; e, por fim, a integração, quando os fundos ilicitamente gerados são aplicados de forma aparentemente lícitas no circuito económico legítimo (Almeida, 2006: 125aplicados de forma aparentemente lícitas no circuito económico legítimo (Almeida, 2006: 125138). 138). Nos últimos vinte e oito anos o tráfico de armas tornou-se um negócio controlado, essencialmente pelas organizações criminosas transnacionais, como bem se sabe pelas actividades das máfias, que se aproveitaram da instabilidade política e das alterações de regimes políticos. Estas organizações tendem a aumentar a sua acção devido à massificação do consumo e à existência de espaços de circulação de pessoas e mercadorias (Almeida, 2006: 125-138). Estas organizações são bastante activas e eficientes, pondo muitas vezes em causa a boa organização dos países e, por vezes, os seus sistemas de segurança. Estas estruturas não apresentam sinais de crise, pois aproveitam-se das situações de crise como novas oportunidades para elas, dado que se adaptam às novas condições de mercado. Cada organização criminosa tem o seu método de actuação, porém obedecem a uma estrutura, a um código supranacional, definindo entre si acordos, métodos, áreas geográficas e actividades (Anes, 2010: 13-18). A criminalidade organizada internacional resulta essencialmente devido aos seus actores, às suas versatilidades e às polivalências destas estruturas e da amplitude de recursos de que dispõem. Os níveis de actuação destas organizações sugerem a utilização de fontes de financiamentos alternativos, recorrendo ao escoamento dos produtos através de redes alternativas, dividindo assim os mercados e distorcendo muitas vezes o seu funcionamento legal. Recorrem algumas vezes a financiamentos e participações financeiras de empresas estratégicas, com o objectivo de controlar estruturas importantes e áreas de grande influência (Anes, 2010: 13-18).

25


Criminalidade Organizada

Fig. 2: A luta contra o crime organizado

É importante criar um método de análise comum para todos os órgãos investigativos, sendo este processo bastante importante para poder distinguir e neutralizar as ameaças. Para facilitar esta operação foi seleccionado um núcleo operativo de criminalidade organizada com um conjunto de elementos já pré-definidos, sendo necessário conhecê-los para melhor os combater. Esses elementos são: 1.

Capacidade de adaptação e de inovação;

2. Perspectiva empresarial – criação de recursos próprios; 3. Complexidade estrutural; 4. Fragmentação difusa; 5.

Tendência progressiva e invasiva das estruturas legais;

6. Actuação persistente dissimulada; 7.

Acção tendencialmente regional ou global (Almeida, 2006: 125-138).

A criminalidade organizada tem uma grande capacidade de se modificar devido aos contextos económicos, políticos, nacionais ou internacionais. No caso do tráfico de estupefacientes podemos considerá-lo como crime organizado ou crime comum, pois o pequeno tráfico doméstico ou de rua é uma pequena amostra, quiçá insignificante, do crime em massa, esse sim altamente perigoso. Estas organizações transnacionais exercem muitas vezes pressões e coagem as suas vítimas, para que estas não os denunciem às autoridades. Estas acções são mais visíveis em casos de tráfico de pessoas, exploração sexual e de extorsão (Anes, 2010: 13-18). Uma das características do crime organizado transnacional é o facto dos seus líderes e das suas estruturas trabalharem sob disfarce, de forma a simularem as suas acções, para assim confundirem as autoridades. No espaço da União Europeia há cerca de quatro mil organizações criminosas, acumulando cerca de quarenta mil indivíduos como membros activos. Alguns exemplos são as máfias italianas, lituanas, romenas, polacas e checas, porém, as que se destacam mais são as chinesas, as vietnamitas, as colombianas, as nigerianas, as norteafricanas, as brasileiras, as turcas, as albanesas e as russas. Estas organizações exploram as fraquezas geográficas de forma a poderem tirar o melhor partido das suas nefas intenções (Almeida, 2006, 125-138). Na sua maioria estas organizações são compostas por entidades com crenças culturais e étnicas muito próprias, tendo também códigos de procedimentos fixados pelos membros de cada organização. Estes códigos são regidos por normas relacionadas com cada actividade exercida pelo grupo. São regras ligadas à conduta pessoal, que proíbem o uso de álcool em demasia, ou o consumo de estupefacientes e estabelecem deveres como, por exemplo, a obrigação de guardar sigilo e de obediência hierárquica (Almeida, 2006: 125-138).

26


Criminalidade Organizada

O Gabinete de Documentação e Direito Comparado que se encontra nas instalações da Procuradoria-Geral da República, destaca algumas estratégias preventivas contra o crime organizado nomeadamente: 1. Apostar nos programas de educação e de promoção e na sensibilização do público; 2. Promover a pesquisa sobre as estruturas do crime organizado e a avaliação da eficácia

8

Http://www.gddc.pt/direito s-humanos/textosinternacionaisdh/tidhuniversais/dhajCoopIntPrCrimeOrganizadoLXXIX.html

das contramedidas existentes, dado que as mesmas podem contribuir para assegurar, em bases mais sólidas, a eficácia dos programas de prevenção; 3. Estabelecer programas de luta contra a fraude que serão um progresso importante neste sentido (entre outras medidas que podem ser adoptadas, vimos a análise dos riscos com vista a avaliar a vulnerabilidade à fraude); 4. Aumentar a eficácia da repressão e da administração da justiça penal como uma estratégia de prevenção, fundada sobre os procedimentos mais eficazes e mais justos; 5. Melhorar as competências e as qualificações profissionais dos agentes, adoptando novos programas de formação, a fim de permitir uma troca de informações sobre as técnicas já comprovadas e sobre as novas tecnologias; 6. Criar um órgão interdisciplinar especializado, encarregado unicamente de lutar contra o crime organizado 8. A criminalidade organizada opera directamente no seio dos poderes do Estado, nas instituições económicas e financeiras, não quer destruir o Estado por vezes, mas sim fazer parte dele, insinuando-se nas organizações partidárias para poderem mais tarde assumir cargos decisivos na governação. Nestes casos, não recorre frequentemente à violência física como a criminalidade comum, mas pratica a intimidação e a coacção sobre as suas possíveis vítimas. A contextualização e a clara definição de crime organizado são bastante importantes, pois com esta definição bem esclarecida e bem

definida

torna-se

mais

fácil

a

investigação criminal e a perseguição aos fautores de irregularidades e aos que integram organizações criminosas. Estas investigações

ajudam

a

caracterizar

especificamente que tipo de criminalidade se está a lidar (Almeida, 2006: 125-138). A

sociedade

contemporânea

está

em

constante e rápida transformação, desde o desenvolvimento económico ao progresso científico.

Porém,

nem

todo

o

desenvolvimento é favorável ao progresso social. Os grupos criminosos também se encontram em constante transformação, acompanhando tecnológica.

a

rápida

evolução

27 Fig. 3: http://combo2600.com/wp-content/uploads/2013/03/ mafia_hitman_by_r18125m-d3eirzi.jpg


Criminalidade Organizada

Segundo Jean-François, comissário, jurista e criminologista, existem oito critérios que distinguem uma sociedade mafiosa de um grupo de delinquentes ou de um bando de marginais comuns, que são: 1.

Controlo que exercem sobre de um território;

2. Capacidade de domínio; 3. Hierarquia e obediência; 4. Etnia e família; 5. Actividades criminosas diversificadas; 6. Adopção de mitos e lendas; 7.

Antiguidade e permanência;

8. Carácter secreto e ritual de iniciação. Estas organizações têm três características em comum: 1.

A violência constante;

2. A ilegalidade; 3. Os lucros muito avultados (Anes, 2006: 75-85). Apesar da máfia ser uma das sociedades criminosas mais famosas, não tem uma data exacta para o seu surgimento, pelo menos com as características acima referidas. Fontes publicadas apontam para meados do século XVIII ou do século XIX. Originalmente a máfia era um fenómeno típico da Sicília Ocidental tendo desenvolvido até aos anos 50 um papel particularmente conservador, opondo-se à ocupação das terras por parte dos camponeses e ao desmembramento dos feudos pela reforma agrária. Hoje em dia a máfia apresenta-se de forma mais «cordata», insinuando-se nos meios sociais com alguma compostura para entrar em círculos respeitáveis da sociedade, mas ao mesmo tempo é capaz das maiores violências para atingir os seus fins. Alguns autores estabelecem a origem da Cosa Nostra numa pequena cidade siciliana de Corleone, com cerca de 14 mil habitantes. É uma cidade bastante católica com cerca de sessenta igrejas, onde são cultuados mais de setenta santos. O mais venerado é S. Bernardo, que antes de se tornar monge era um excelente guerreiro, um valoroso defensor dos pobres e das mulheres do povo contra os aristocratas locais. Em 1875 o comandante da polícia de Palermo elaborou um relatório que revelou pela primeira vez o ritual de iniciação da máfia, «o juramento de sangue», onde o iniciado era cortado na mão e o seu sangue era derramado sobre uma imagem sagrada. Em seguida fazia-se o juramento de fidelidade enquanto a imagem ardia, simbolizando a aniquilação de todos os traidores, e deixando antever o trágico fim que os esperava. Na década de 80 Tommaso Buscatta, vendo a sua família a ser massacrada pelos seus rivais Corleonesi, decidiu testemunhar em tribunal, deixando assim a justiça entrar pela primeira vez no interior da máfia siciliana. Esse dramático testemunho permitiu ter uma visão mais recente

28

da estrutura de comando da sinistra organização (Anes, 2006: 75-85).


Criminalidade Organizada

Em 2007 foi preso pelas autoridades italianas o mafioso Salvatore Lo Piccolo. Este foi um dos grandes chefes da máfia italiana, que passou ente 20 e 25 anos a fugir às autoridades e quando foi capturado, encontrou-se no seu esconderijo um documento, redigido à máquina, com os «10 mandamentos da Máfia» e os seus significados. Dez mandamentos da Máfia 1 – Nenhum membro da Cosa Nostra se pode apresentar sozinho a um amigo nosso, um terceiro deverá fazer a apresentação; 2 – Não se deve olhar para as mulheres dos nossos amigos; 3 – Não se deve procurar confrontos com a polícia; 4 – Não se deve frequentar bares ou clubes de actividades duvidosas; 5 – Deve estar disponível a qualquer momento para a Cosa Nostra, até mesmo se a mulher estiver para dar à luz; 6 – Os compromissos assumidos devem ser respeitados; 7 – Deve-se respeitar a esposa; 8 – Quando for chamado para esclarecer qualquer coisa perante o chefe, deverá dizer a verdade; 9 – Não se pode apropriar de dinheiro que pertence a outros ou a outras famílias do grupo; 10 – Não pode fazer parte da Cosa Nostra quem tem um parente nas forças policiais italianas, quem já traiu a Família e quem tem mau comportamento e não respeita valores (Anes, 2006: 75-85). Bibliografia ANES,

José

Manuel

coord.

Organizações

(2010),

GONÇALVES, Ana Alexandra Silva

(2013),

O

Crime

Criminais: Uma introdução ao

Organizado em Portugal: sua

crime

caracterização

organizado,

Lisboa:

ambiguidades,

Universidade Lusíada Editora.

mestrado CARRAPIÇO, Helena (2006), O Crime

e tese

de

Criminologia,

Porto: Faculdade de Direito.

Organizado

Transnacional Origens,

na

Europa

VÁRIOS (2006), In Memoriam

e

de Jorge Tracana de Carvalho,

Práticas

Consequências,

Lisboa:

Cadernos do IDN, nº1, Instituto da Defesa Nacional. DAVIN,

em

João

Criminalidade

Lisboa:

Universidade

Autónoma de Lisboa.

Links para consultar:

(2007),

A

Organizada

http://www.sis.pt/ccorganizada.ht ml

Transnacional. A Cooperação

http://www.gddc.pt/direitos-

Judiciária e Policial na UE,

humanos/textos-internacionais-

Coimbra: Livraria Almedina.

dh/tidhuniversais/dhaj-CoopInt-

GLENNY,

Misha

(2008),

McMáfia: O Crime Organizado sem Fronteiras, Porto: Editora Civilização.

-

PrCrimeOrganizado-LXXIX.html http://www.cfsirp.pt/Geral/crimeorganizado.html

29


Sófocles e George Lucas: Reflexos clássicos e trágicos na Guerra das Estrelas

Sófocles e George Lucas:

Reflexos clássicos e trágicos na Guerra das Estrelas Rui Martinho

1

Quando Mark Hamill reparou que a sua personagem Luke

1

Licenciado em História pela FLUL; Membro do Instituto PAEHI;

Skywalker chegou a estar representado em caixas de cereais, era já aceite que o blockbuster “A Guerra das Estrelas” tornara-se não só num marco cinematográfico inovador como também um filme de culto. Considerado um space-opera juvenil, o filme de 1977, que era conhecido antes do seu lançamento por baixas expectativas e colossais gastos de produção para a época (11 milhões de dólares sem contar com as publicidades) tornara-se num sucesso de bilheteiras. Este “kids movie/gallatic fairy tale” excedera de longe as expectativas iniciais e mudara consigo a ficção científica, tornando-a no género mais popular da sétima arte, um impacto que enquanto género literário estava longe de ser alcançado. Já que estamos a falar de cultura popular, vamos anexar um outro padrão de sucesso que, embora não nos situe nos limites de uma galáxia longínqua, foi “a long time ago” (citando a célebre abertura inicial da saga, esperamos já vossa conhecida). Eram áureos os tempos em que Péricles estava à frente do poder em Atenas, de 461 a 429 a.E.C. (antes da Era Comum); uma época de bonança após a tormentosa invasão persa e os pesados custos de Maratona, Termópilas e Salamina para a Grécia. A hegemonia de Atenas era visível na Grécia e a sua coligação de Delos possibilitara segurança e paz. Foram tempos célebres em vários sectores: o Fig. 1 Pensado apenas para ser um único filme, A Guerra das Estrelas pelo seu grande êxito levou a 20th Century Fox a estabelecer novamente parceria com G. Lucas e a sua companhia independente para uma sequela. O resultado fora uma trilogia (1977-1983). Décadas depois, face a um estágio mais inovador nos efeitos visuais, Lucas arisca uma nova trilogia (19992005).

levantamento da democracia, passos na medicina por Hipócrates, o riso de Aristófanes e, aquele que nos interessa particularmente: o popular elo trágico de Sófocles. Tal como a Guerra das Estrelas veio a influenciar a temática de ficção científica pelos Anos 80, 90 e posteriores, o argumento original da saga também fora elaborado com base numa série de influências diretas ou indiretas.

30


Sófocles e George Lucas: Reflexos clássicos e trágicos na Guerra das Estrelas

Sem dúvida que alguns dos elementos de base na Guerra das Estrelas são mais notórios, como o carácter “arturiano” de Luke Skywalker, a odisseia espacial por mundos míticos até à concretização do Destino ou até a componente samurai na coreografia de duelos com sabres-deluz por Darth Vader. Outros, como os elementos trágicos, são mais discretos embora de uma certa forma também evidentes, daí a nossa demanda em busca de padrões clássicos neste êxito cinematográfico. Estes nossos moldes de cariz trágico da Antiguidade reproduzidos em A Guerra das Estrelas constam no interior da tragédia sofocliana, para ser mais elucidativo nas peças Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona, a qual foi tomada a liberdade de apelidar por Ciclo dos Labdácidas. Colocando-se a questão: referências clássicas preenchem a saga de Lucas? Isso é algo visível. Agora, de entre este vasto leque, onde está a componente trágica grega? As tragédias de Sófocles alusivas a Tebas e à infortunada Casa dos Labdácidas poderão guiar-nos.

Da perícia para a popularidade: os trilhos de Lucas e Sófocles Antes de chegarmos aos laços da tragédia entre as obras de Sófocles e as de G. Lucas torna-se necessário conceber na nossa mente a mestria destes autores nos seus espaços e tempos respetivos. Ou seja, os seus trilhos distintos (e semelhantes) para o sucesso na cultura popular. Aquele que nos é mais próximo (em termos de cronologia) trata-se de George Lucas, um produtor independente durante o crepúsculo da época dourada americana. Num período sem telemóveis, computadores pessoais ou internet, com o petróleo ao preço da chuva, polémica e desunião face à Guerra do Vietname e caso Watergate. É de notar que os Anos 70 não contam entre os tempos mais felizes para os E.U.A. e isso manifestava-se no cinema com uma maior predominância do anti-herói, um reflexo da realidade popular americana da época.

Fig. 2: George Lucas o fundador da Lucas Films , o pai de Star Wars, Indiana Jones, entre outros

31


Sófocles e George Lucas: Reflexos clássicos e trágicos na Guerra das Estrelas

Apesar dos anseios da década, havia um desejo em Hollywood de captar a atenção dos jovens para criar uma geração rejuvenescida de produtores e realizadores. Fora neste clima de oportunidades que não só George Lucas mas também, deve acrescentar-se, Steven Spielberg e Martin Scorcese deram os seus primeiros passos para uma carreira bem-sucedida. Se nos E.U.A. dos Anos 70, em que Lucas prosperou, temos um ambiente tenso com a crise à vista, a situação na Grécia de Sófocles era diferente. O “século de Péricles” fora bem-aventurado, um tempo de “vacas gordas” citando a referência bíblica aos sonhos de José, filho de Jacob. Sófocles ocupava funções públicas embora pouco nos tenha chegado da sua vida enquanto cidadão. Como dramaturgo competira contra Ésquilo nos começos da sua carreira, saindo vencedor pelo que até valeu um comentário anedótico de Plutarco em A Vida de Címon. Sabe-se que na segunda metade do século V a.E.C. terá competido também com Eurípides. Foi aclamado como um homem pio, bem-sucedido na sua longa vida e o mais destacado entre os dramaturgos por várias vezes. Escrevera Rei Édipo aos 75 anos e Édipo em Colono aos 90.

Fig. 3: Sófocles para além de dramaturgo fora um político de Atenas pela altura em que escrevera as peças que lhe valeram a popularidade durante o festival anual em honra de Dioníso.

A Questão Temporal Tanto no Ciclo dos Labdácidas como em A Guerra das Estrelas, a referência ao tempo não é precisa. A inexistência de cronologia deve-se à ideia de propagar a longevidade dos acontecimentos em ambas as obras. A Guerra das Estrelas coloca-nos “a long time ago” e o mesmo sucede no que toca à tragédia grega dado que grande parte das tragédias referia um tempo anterior à pólis, ou uma altura do passado em que os deuses interferiam mais diretamente nos assuntos humanos, daí a referência aos oráculos e ao arbítrio divino nas

32

questões do destino em relação a homens e cidades; esta não é propriamente uma particularidade sofocliana, mas antes geral na tragédia grega.


Sófocles e George Lucas: Reflexos clássicos e trágicos na Guerra das Estrelas

O tempo também é visível na questão do cenário: quer Lucas nos filmes ou Sófocles nas peças, pretende-se representar lugares já há muito habitados; o desejo de pegar em algo novo e representá-lo de maneira a dar a entender a duração do tempo no lugar.

A Questão Espacial No que toca ao espaço existe uma maior especificidade em ambos os autores. A Guerra das Estrelas transporta-nos para uma galáxia distante a incontáveis anos-luz, lugar que alberga variadas civilizações, cada qual com cultura, idiomas, crenças, moral e motivações políticas singulares. Temos o exemplo do discreto planeta Tatooine, lugar banhado por dois sóis, quente e árido, situado na periferia da galáxia. Fora da jurisdição da República, o seu quotidiano girava entre o contrabando no espaço-porto, corridas de engenhocas e apostas ilegais. Torna-se no covil ideal para bandidos com Gardulla e Jabba, nómadas salteadores Tusken e os pequenos ladrões Jawas que viviam do mercado negro. Neste planeta tão longe de ordem e moralidade como do centro da galáxia não só foram criados Luke e Anakin, como veio a ser tão crucial para o desenvolvimento dos protagonistas como Tebas poderia ser considerada para Édipo e Antígona. Aqui, Qui-Gon resgatou Anakin da sua escravatura para com um mercador burlão, e mais tarde o jovem que viria a tornar-se no infame Darth Vader dá os seus primeiros passos para o Lado Negro neste planeta ao massacrar a tribo tusken responsável pela morte da mãe. Já Luke, criado numa quinta pelos Lars, assiste à morte da sua família adoptiva e abraça o seu destino guiado pelo velho misterioso Ben Kenobi.

Fig. 4: Dentro da arte conceptual de Ralph Mcquarrie podemos conceber os espaços em A Guerra das Estrelas; visualizam-se os variados cenários por onde passa a ação. Lugares de condições extremas como o tórrido Tatooine, que fora filmado na Tunísia, o gélido Hoth, concebido na Noruega, ou a verdejante lua de Endor que trouxe as câmaras para zonas florestais no norte da Califórnia. Chegam-nos também as naves como o célebre Millenium Falcon ou a terrível estação espacial conhecida por Estrela da Morte.

O espaço é um factor bastante condicionante em A Guerra das Estrelas e chega-nos sobre múltiplas formas. São apresentados mundos de armamento de ponta, tecnociência vanguardista e engenhos superiores à velocidade da luz (tirando o caso particular da lua de Endor, lar das primitivas tribos de Ewoks). Para além do mais, de certa forma também podem representar o estado de espírito das personagens no desenrolar da história: o pomposo cortejo de vitória em Naboo acolhido em clima de felicidade; a alucinante caça ao assassino por Anakin e Kenobi no turbulento e metropolitano Coruscant, ou o ódio de A. Skywalker alegoricamente representado no seu duelo contra Obi-Wan no vulcânico e explosivo planeta Mustafar.

33


Sófocles e George Lucas: Reflexos clássicos e trágicos na Guerra das Estrelas

Por outro lado, no ciclo dos Labdácidas também é fulcral conceber o espaço como parte determinante na peça, um reflexo dos eventos ocorridos ou a ocorrer. Em Édipo Rei, deparamo-nos com um rei regicida e incestuoso inconscientemente (portador de miasma) que provoca uma Tebas doente, acumulada em pathos, suplicando aos deuses pelo fim das más colheitas, morte do gado, peste e esterilidade das mulheres. No que toca a Antígona, o espaço de ação é uma Tebas que larga um suspiro de alívio, salva da perdição contra as sete divisões de Argos ao caro preço do fratricídio. Esta é uma Tebas que desde a morte do rei Laio e enigma da esfinge tinha caído em tempos sombrios e pela primeira vez desde à muito que a luz e expectativa de bonança chegavam à desdita pólis (um pouco à semelhança da Escócia aquando a morte de Macbeth segundo a “scottish play” de Shakespeare, mais uma obra de carácter profético com forte componente trágica). Por outro lado, no que concerne à peça Édipo em Colono, o cenário anuncia os sagrados campos das Euménides, tutelados pelo herói cavaleiro Colono mas dentro da jurisdição do rei de Atenas, Teseu. Este foi um lugar de batalha retórica, e contra várias adversidades, fez-se justiça e Édipo alcançara a paz que desejara neste lugar onde os deuses desejavam que perecesse para benefício de Atenas, de todas as cidades-estado, a única pronta a dar-lhe hospitalidade (xenia) sem intenções egoístas.

O Carácter Humano na Tragédia e Ficção Cientifica O humanismo torna-se uma temática tão presente na tragédia sofocliana como na saga de Lucas. Se na tragédia temos uma relação problemática entre a Humanidade e divindades em busca de um equilíbrio, a componente humanista também acompanhou o género de ficção científica, não só na cinematografia como também na literatura. São vários os exemplos cinematográficos das últimas décadas que abordam a reflexão sobre o Homem numa realidade fictícia. Uma FC metafísica, como nos casos de Matrix, Prometheus, Avatar, Inception ou Interstellar, entre outros. O enredo presente nas tragédias gregas era de cariz conflituoso com o recurso a terríveis personagens e embate entre as forças divinas e humanas. Em comparação com A Guerra das Estrelas, são elementos que não escasseiam: uma rebelião numa galáxia, poderosos senhores da guerra dotados de uma Força mística num confronto entre duas ordens misteriosas em vias de extinção (aludindo-se unicamente à trilogia de Luke Skywalker). No que toca a Star Wars, contudo, cria-se um entrave genérico. A saga de Lucas pode ser considerada ficção científica?

34


Sófocles e George Lucas: Reflexos clássicos e trágicos na Guerra das Estrelas

A ficção científica enquanto género cinematográfico nasceu nos Estados Unidos pelos Anos 50. Feito a pensar nos adolescentes enquanto público, pretendia-se inovações capazes de aproximar o espectador do ecrã, o que foi conseguido com a experiencia 3-D criada em 1953. Lucas explica as características da saga em aproximarem-se mais de fantasia espacial (manifesta na comunhão Homem/Natureza através da Força), contudo

Fig. 5 Na tragédia sofocliana o coro define-se como personagem relevante no desenvolver do enredo, algo que não sucede nas peças de Ésquilo e E urípides. Observa-se aqui uma cena de diálogo entre Édipo e os anciãos de Tebas (coro) numa peça adaptada ao c inema em 1957, Oedipus Rex, por Tyrone Guthrie.

segundo conta, aproxima-se mais dos serials de space-opera (muito em voga nos Anos 30 e 40) do que da ainda recente ficção cientifica dos Anos 50. A Guerra das Estrelas de 1977 foi considerada uma space-opera juvenil, e se hoje em dia pode ser considerada dentro dos padrões de ficção científica deve-se a este género ser um percursor da FC.

Efeitos-visuais e coro: suplementos propulsores nas obras Em ambas as obras são-nos apresentados elementos que preenchem o enredo. Refere-se a participação activa do coro no ciclo dos Labdácidas que age como uma só personagem; e o papel determinante dos efeitos-visuais na saga de Lucas. Nas três obras referentes a Édipo e Antígona, o coro complementa a ação, tornando-se essencial para o desenrolar desta. Em Édipo Rei é o coro que aconselha a consulta do vidente Tirésias em resposta aos desejos do monarca em acabar com a catástrofe que se abateu sobre Tebas. Com Édipo em Colono, o coro que representa os anciãos de Atenas interroga o apátrida Édipo; ao aperceberem-se de que pertencia à malfadada linhagem dos Labdácidas, desejam expulsá-lo imediatamente. Na peça Antígona, o coro relembra o destino do emparedamento da princesa de Argos, Dánae, e o destino de Níobe após a princesa Antígona ter sido encarcerada na rocha. Por outro lado, na realização de A Guerra das Estrelas, Lucas aposta fortemente no desenvolvimento digital. O espetáculo de imagem deveria dar uma perspetiva de grandiosidade colossal capaz de impedir o espetador de tirar os olhos do ecrã, o que era uma alternativa bem mais inovadora e bem-sucedida em comparação com a FC dos Anos 50 e 60 cheia de narrações entediantes. Na verdade, as inovações nos efeitos especiais décadas posteriores ao Regresso dos Jedi já seriam capazes de retirar a dependência do naturalismo na representação (utilização de marionetas, cenários dispendiosos e elevado número de figurantes); isto levou à criação de uma nova trilogia para expandir a mitologia da saga que começou com A Ameaça Fantasma em 1999.

35


Sófocles e George Lucas: Reflexos clássicos e trágicos na Guerra das Estrelas

Tragédia e Predestinação: Os Labdácidas e os Skywalkers As tragédias sofoclianas referentes a Édipo e Antígona e A Guerra das Estrelas de Lucas reduzem os milhares de anos que as separam cronologicamente em vários pontos como já constatámos: humanismo, conceções no espaço e tempo, suplementos bem-sucedidos e popularidade na época. No entanto, é a presença da tragédia e laços com o Destino que mais atraem estas obras. Primeiro, abordamos a relação entre as obras no que toca à consumação profética. Por um lado, temos o protagonista sofocliano: Édipo, nascido dos reis de Tebas, Laio e Jocasta, um herdeiro afastado do trono devido a uma profecia enviada pelo deus Apolo ao casal real em como o seu filho iria matar o pai e desposar a mãe. Temendo a concretização da profecia divina, os pais abandonaram o recém-nascido nos vales de Citéron, onde um pastor o recolheu, tendo sido depois entregue e adotado como filho pelos reis de Corinto. Édipo cresceu sagaz em Corinto, com um incrível raciocínio e poder de argumentação fora do comum. Abandonou a pólis em fuga da profecia de Apolo para proteger os seus pais de Corinto. No decorrer do seu caminho errante, uma desavença na estrada com um velho escoltado provocou a sua ira e a morte do ancião que, sem saber, era o seu pai biológico, o rei de Tebas. Prosseguindo caminho, realiza o glorioso feito de resolver o enigma da Esfinge, animal mitológico devorador de indivíduos nos trilhos para Tebas que não solucionassem a sua charada. Salvou a cidade das “sete portas”, assim era Tebas conhecida; Édipo foi estimado como protegido pelos deuses e recompensado com o direito de desposar a recente rainha viúva Jocasta e tornar-se rei de Tebas. Sem o saber, Édipo casara com a própria mãe e nascera prole da relação incestuosa. Entretanto, em Tebas abatera-se uma catástrofe: pestilência, esterilidade, morte, e os altares dos deuses não tardaram a encher-se de oferendas, rezas e penitências. Édipo, angustiado pela situação do seu povo enviou o seu cunhado Creonte ao Oráculo de Delfos e descobre que apenas o castigo do assassino do rei anterior Laio poderia por fim ao cataclismo. Dentre o senso de justiça de Édipo na sentença do desconhecido homicida (o exílio e ausência de xenia, termo que define a hospitalidade grega), seguiram-se os acessos de fúria para com os presságios do adivinho Tirésias e uma obsessiva ideia de usurpação que levou o rei a acusar Creonte.

36


Sófocles e George Lucas: Reflexos clássicos e trágicos na Guerra das Estrelas

Todas as memórias, relatos, pequenos fragmentos da vida de Édipo que não paravam de vir à toa no decorrer da procura do causador dos males de Tebas culminaram num extraordinário Deus ex machina, em que um mensageiro de Corinto não só trouxe a noticia da morte do seu pai (adotivo), o rei Políbio, como afirma ter sido o pastor que o recolhera quando fora abandonado pelos seus pais biológicos, veio a saber-se, Laio e Jocasta, o pai que assassinara e a mãe que desposara. Atingido o clímax da obra e cumprindo-se a terrível predestinação, Jocasta suicida-se no palácio e Édipo mutila os próprios olhos não aguentado a dura verdade que via, exilando-se em seguida de Tebas, tendo a sua filha Antígona como único apoio. Numa outra face, apresenta-se um dos protagonistas da saga de Lucas: Anakin Skywalker. Se por um lado na tragédia grega de Sófocles temos a interveniência divina na vida humana, em Star Wars é a Força, o elemento criador que dita a coexistência entre todos os seres vivos, visto de forma mística ou cientifica conforme a trilogia em questão. Sábios mestres do Templo Jedi revelaram a profecia de que haveria de chegar alguém que traria equilíbrio à Força e destruiria os Sith (indivíduos que partilham a arte jedi mas não os seus códigos morais, agindo em prol do individualismo, extremos e soberba. Seguem um caminho imoral capaz de explorar a Força na sua vertente mais radical e assoladora: o Lado Negro). Para compreender a predestinação messiânica nesta galáxia é necessário conceber o papel de Anakin Skywalker. Nascido de apenas um progenitor e criado como escravo no periférico planeta Tatooine, Anakin Skywalker ainda em criança já demonstrava qualidades excecionais para alguém tão jovem. Perspicaz, curioso e um promissor piloto. Vencera uma corrida de engenhos e criara um robô protocolar (C-3PO). Qui-Gon, um mestre jedi pouco convencional descobre o extraordinário rapaz e convicto de que ele era o elemento-chave de que falava a antiga profecia, consegue a Anakin um lugar no Templo Jedi para aprender as artes de domínio da Força como aprendiz de Obi-Wan Kenobi antes de falecer. Anakin iria desempenhar o seu papel predestinado, em Mustafar não se revelou como o individuo que traria o equilíbrio à Força, ou seja à ordem natural das coisas, mas como catalisador da profecia.

Figura 6 Anakin e Obi-Wan combatem uma última vez antes da consumação total do jovem jedi/sith em Darth Vader. Após este duelo Anakin ficará desfigurado, sendo a sua salvação a a reconstrucção do seu corpo, tornando-se num ciborge.

37


Sófocles e George Lucas: Reflexos clássicos e trágicos na Guerra das Estrelas

Tal como Édipo, Anakin possui grandes qualidades incomuns para um ser humano, é visível nas suas façanhas militares: pilotagem e duelos. Édipo comete horríveis crimes na sociedade em que se insere, o parricídio e incesto face ao seu temperamento enraivecido e ignorância dos assuntos divinos. Anakin não fica atrás, quebrou o voto de celibato da Ordem Jedi ao desposar a senadora Padmé, traiu a Ordem ao cooperar na perseguição jedi e massacre de civis e inocentes. O jovem promissor fora seduzido pelo Lado Negro incutido na mente pelo supremo-chanceler Palpatine, que demonstrou ser um Lord Sith (Sidious). As suas ações imorais para impedir a concretização dos presságios nos seus sonhos sobre a morte da sua mãe e da esposa Padmé foram o elo que permitiu a consumação de Anakin, transportando consigo o medo, raiva e ódio que impulsionaram o fim da República e a quase extinção da Ordem Jedi. Tanto Anakin como Édipo revelaram-se como arquitectos da autodestruição e naquilo que tinham prometido erradicar. Édipo iria caminhar errante até obter santuário num campo sagrado perto de Atenas enquanto os seus filhos Polinices e Etéocles semeavam o caos e a guerra pelo trono de Tebas. O seu tio e cunhado Creonte tentara, em vão, chantageá-lo para obter benesses. No caso de Anakin, as suas paixões e ambição retiraram-lhe Padmé, o mesmo se pode dizer de Édipo dado que o amor pelos seus concidadãos e família demoveram-no para sua própria desgraça. Contudo, apesar da tragédia nos seus destinos, tanto Édipo como Anakin demonstraram qualidades morais, bondade por exemplo. Édipo quando chega aos campos de Colono vê-se confrontado com os anciãos da Ática sobre a sua mácula e feitos, pelo que se desculpa através da inconsciência dos horríveis atos que o levaram até ali. O rei de Tebas procurava ser justo, um monarca consciente para ajudar o seu povo na situação difícil em que se encontrava; abandonando Tebas, salvou-a da catástrofe. Segundo conta uma outra versão, a de Édipo em Colono, o errante protagonista teria sido tirado de Tebas à força por Creonte, contudo nessa peça Corifeu considerou-o um homem de bem, e sob um pacto com Teseu, iria beneficiar a descendência do único rei e pólis que lhe concederam hospitalidade e lugar para o “repouso eterno”. Por outro lado, concebeu-se a existência da bondade de Anakin em Darth Vader. Padmé defendeu a benignidade do esposo até ao momento em que faleceu após o parto. Dela nasceram dois gémeos criados em separado longe da autoridade imperial: Leia foi educada junto dos Organa e Luke com os Lars. Luke era o escolhido para cumprir a profecia de trazer equilíbrio à Força. Já a chegar à idade adulta foi-lhe atribuído o seu propósito de vida pelo ancião Obi-Wan Kenobi, e treinado na arte jedi pelo antigo mestre Yoda.

38


Sófocles e George Lucas: Reflexos clássicos e trágicos na Guerra das Estrelas

Tinha muito do seu pai, habilidades extraordinárias, sagacidade, paixão e medo, mas possuía também uma qualidade determinante que Anakin não tivera: uma integridade inabalável. Onde o seu pai fracassou, Luke triunfou, mas não sem despertar a bondade e paixão perdida de Anakin, que salvou o seu filho da morte certa aniquilando o seu mestre e imperador. Anakin redime-se e simultaneamente auxiliou Luke na concretização da profecia, pois com a sua morte pereceu o último resquício dos Sith. Édipo por sua vez também faleceu em paz consigo mesmo e com os deuses, cumprindo a vontade divina veio a ter uma morte sem dor e ser sepultado num lugar sagrado das Euménides. Antígona, filha de Édipo e princesa de Tebas acompanhou o seu pai no exílio até à morte deste, seguindo uma vida pouco convencional para uma mulher do seu estatuto. Herdou do seu pai um excecional poder de argumentação e uma determinação um tanto semelhante a Padmé enquanto rainha e senadora que deu luta pela justiça na República ou Leia que demonstrou-se inflexível em cooperar nos interrogatórios e chantagem imperial quanto à localização da base rebelde. Embora, seja notório referir que Antígona relevara-se uma personagem determinante em todo o ciclo dos Labdácidas, especialmente na obra Antígona, onde se debatem as leis da pólis e as dos deuses. As personagens femininas na saga de Lucas vieram a perder o foco ao longo das respectivas trilogias. Pode considerar-se que ambas as famílias, Labdácidas e Skywalkers, foram determinantes nos seus enredos singulares no encontro das suas realidades para com componentes superiores que ditaram os seus destinos: os deuses e a Força. Lucas com os seus filmes e Sófocles com as suas peças exploram a concepção do mito visual e da tragédia de uma forma que poucos autores o fazem; desde um rei caído em desgraça errante cego pelas terras em busca da apaziguadora vontade divina a um jovem prodigioso que sofrera perdas e seguira um caminho negro até à sua redenção e morte numa galáxia distante. Bibliografia:

Fontes: Antígona,

BOOKER,

M.

Keith,

SÓFOCLES, Rei Édipo,

SÓFOCLES,

Introdução, Tradução do

Tradução,

Breve História da Grécia

Historical Dictionary of

grego e notas de Maria do

Notas de Maria Helena da

Clássica,

Science Fiction, Lanham,

Céu

Rocha Pereira, Coimbra,

Maria José Figueiredo,

Atlântida, 1968.

Lisboa,

Zambujo

Fialho,

Lisboa, Edições 70, 6ª

Prefácio

e

MARTIN,

Thomas Tradução

R., de

Editorial DUFOUR,

Presença, 1998;

Edição, 2006.

Scarecrow, 2010.

Cinema Adam,

The

Édipo

Colono,

Introdução,

History

versão do grego e notas

Fiction,

Basingstock,

de Maria do Céu Zambujo

Palgrave

Macmillan,

Fialho,

2007.

Minerva, 1996.

em

ROBERTS,

SÓFOCLES,

Coimbra,

of

Science

Científica,

Éric, de

O

Ficção Lisboa,

Edições Texto e Grafia, 2012. ORMAND,

Kirk,

A

Companion to Sophocles, Oxford, Wiley-Blackwell, 2008.

39


O seu parceiro para a difusão do conhecimento Encontramos as melhores soluções para os seus projetos

www.difusaocoop.pt

Desenvolvimento Web

Informação & Comunicação

Posicionamento Estratégico

19

40


Sabores com História ... A primeira referência história à pesca do atum no nosso país data do ano 151 da nossa era, no actual território do Algarve, sendo os cónios (povo ibérico submetido pelos romanos) quem se encarregavam da pesca. com vísceras de vários peixes e mariscos, depois de rigorosamente confeccionado, constituindo um manjar muito apreciado no entanto apenas acessível aos mais abastados. Esta pesca foi prosseguida pelos romanos e pelos árabes (responsáveis pela evolução tecnológica das pescas posteriormente),que nos legaram alguma da tecnologia e terminologia. Em 1249, data da conclusão da conquista do território nacional aos mouros, o rei D. Afonso III decide reservar para a coroa todos os direitos sobre a pesca do atum, sob a chancela das "Pescarias Reais". Com D. Fernando (meados do séc. XIV, cerca de um século depois) estabeleceram-se no Algarve os primeiros sicilianos e genoveses. Foram estes povos italianos que iniciaram os portugueses na arte da pesca do atum, com grande sucesso, uma vez que se tornou imediatamente numa actividade extremamente próspera, matendo-se assim até ao séc. XVII.

... A História com sabor www.tastin-gourmet.com

29


Notas sobre a Paz Helénica de 375 a.c.

Notas sobre a Paz Helénica de 375 a.c. 1

Tiago Alves

Mestre em História Antiga; Investigador

associado

1

(CH-FLUL). O artigo vai repescar aspectos tratados

A paz helénica de 375 tem sido

no ponto 6.3 da tese de mestrado

do

autor

encarada, por grande parte dos

(“A

académicos que se debruçam

Arquitectura de Poderes de

sobre este tópico, como um

Tebas no século IV a.C.: de

Plateias a Leuctros. Nota do

evento pouco preponderante nas

autor: as datas apresentadas

dinâmicas diplomáticas helénicas

são «antes de Cristo» (a.C.), salvo

se

segue

o

assinalado

contrário.

em

O artigo não

ortográfico.

novo

acordo

Fig 1: A Beócia e a Guerra do Peleponeso

no século IV.

Esta apreciação, (diga-se) algo redutora, mais não reflecte os condicionalismos das próprias fontes e a incompatibilidade de testemunhos dos diversos autores antigos. Na obra Helénicas, por exemplo. Xenofonte, que é a nossa principal autoridade para a primeira metade do século IV grego e considerado o sucessor “natural” de Tucídides, não aponta para nenhum critério ou especificidade traçada no tratado, sintetizando apenas que os Atenienses e Lacedemónios celebraram a paz. Por outro lado, Isócrates, em Antidosis, confere uma importância significativa ao pacto, “pois nenhum outro tratado foi tão vantajoso” para a polis ateniense (cf. 15.109-110). Estes dois exemplos são demonstrativos das dificuldades que se apresentam em torno da expressividade concreta da Paz de 375. É face a este cenário intricado e aparentemente paradoxal que tentaremos expor, explorar problemáticas e juntar as diversas peças que compõem o puzzle. Firmada em Esparta, a celebração da Paz na segunda metade de 375, entre Lacedemónios e Atenienses, veio colocar termo a sensivelmente quatro anos de conflitos, cuja origem remonta aos princípios de 378. No despertar dos antagonismos entre os dois “eternos” rivais esteve a tentativa de assalto ao Pireu pelo lacedemónio Esfódrias, sem declaração prévia de guerra e com a consequente revogação da decadente Paz de 387 (designada de Paz de Antálcidas ou do Grande Rei) por Atenas (Xen. Hell. 5.4.34). A acção de Esfódrias é esclarecedora da actividade prepotente de Esparta nos negócios helénicos e da forma como as autoridades lacedemónicas exerceram a hegemonia na Hélade durante a década de 380, ancorada nos ditames da Paz de Antálcidas. Com efeito, a Paz de 387, que pôs termo à Guerra de Corinto (395-387), entre a simaquia do Peloponeso e a «Grande Aliança», que compreendia Corinto, Atenas, Argos e a simaquia da Beócia, previa a desmobilização dos exércitos das várias forças em conflito e assentava num princípio inovador, embora ambíguo, na diplomacia helénica – a autonomia (αὐτονομίαν) das poleis. Esta cláusula, que foi o grande pilar do tratado e que seria representada em convenções posteriores, tornou-se efectivamente objecto de manipulação por parte de Esparta enquanto protates da Paz, ou seja, guardiã, supervisora e executora da Paz.

42


Notas sobre a Paz Helénica de 375 a.c.

Firmada em Esparta, a celebração da Paz na segunda metade de 375, entre Lacedemónios e Atenienses, veio colocar termo a sensivelmente quatro anos de conflitos, cuja origem remonta aos princípios de 378. No despertar dos antagonismos entre os dois “eternos” rivais esteve a tentativa de assalto ao Pireu pelo lacedemónio Esfódrias, sem declaração prévia de guerra e com a consequente revogação da decadente Paz de 387 (designada de Paz de Antálcidas ou do Grande Rei) por Atenas (Xen. Hell. 5.4.34). A acção de Esfódrias é esclarecedora da actividade

2

Tradicionalmente designado por “2ª Confederação Ateniense”. Mas por se tratar de uma terminologia “plástica” optou-se por manter a nomenclatura que surge nas fontes – koinon synedrion (κοινὸν συνέδριον)

prepotente de Esparta nos negócios helénicos e da forma como as autoridades lacedemónicas exerceram a hegemonia na Hélade durante a década de 380, ancorada nos ditames da Paz de Antálcidas. Com efeito, a Paz de 387, que pôs termo à Guerra de Corinto (395-387), entre a simaquia do Peloponeso e a «Grande Aliança», que compreendia Corinto, Atenas, Argos e a simaquia da Beócia, previa a desmobilização dos exércitos das várias forças em conflito e assentava num princípio inovador, embora ambíguo, na diplomacia helénica – a autonomia (αὐτονομίαν) das poleis. Esta cláusula, que foi o grande pilar do tratado e que seria representada em convenções posteriores, tornou-se efectivamente objecto de manipulação por parte de Esparta enquanto protates da Paz, ou seja, guardiã, supervisora e executora da Paz. Aliada ao conceito de filetaria, a autonomia foi usada pelas autoridades lacedemónicas enquanto sistema para disciplinar poleis e como “quebra blocos”, nomeadamente da simaquia dos Beócios e da sympoliteia argivo-coríntia, de modo a eliminar eventuais núcleos que pudessem colocar em causa a arche lacónica, não só no Peloponeso mas também na Hélade. É com base nesta cultura política de poder (“em tempo de Paz”) que Esparta atinge o auge da sua hegemonia em 379, após o êxito da campanha militar na região calcídica (D.S. 15.25.2.-3; Xen. Hell. 5.3.27). Não obstante, o elemento-chave para o triunfo lacedemónico no xadrez político helénico situa-se na ocasião da tomada da Cadmeia, ou seja, a acrópole de Tebas, pelo exército peloponésico em concertação com a elite filo-lacónica tebana (cf. Xen. Hell. 5.2.25-36). O controlo efectivo da cidade de Cadmo e, consequentemente, de toda a região beócia foram decisivos para Esparta estender as malhas da sua influência e aceder aos territórios setentrionais da Hélade com segurança. A “Libertação” da Cadmeia, em Dezembro de 379, iria, contudo, inverter este cenário. A revolução democrática tebana, instigada por exilados tebanos anti-lacónicos e apoiada por Atenas, correspondeu efectivamente às primeiras fricções na primazia lacedemónica, incontestável até à data. O esforço de Esparta em recuperar o domínio da Cadmeia, converteu, pois, a polis dos Tebanos no principal teatro de operações, com as hostilidades entre ambos a desenrolarem-se num eixo geográfico sensível e no qual a cidade de Palas não estava, de todo, alienada. É neste contexto que se situa o incidente de Esfódrias e a deambulação do exército peloponésico em território ático, acção que teve, como referido, pronta reacção da Pnix com a revogação da Paz de 387 e a generalização do conflito. Mas a agressividade lacedemónica resultou também na formação do Sinédrio Comum2 , na qual os Atenienses exerceram o papel de líderes, que congregava várias poleis egeias, e também de Tebas, sob o estandarte dos princípios democráticos e fundada sobre o doutrina da autonomia das poleis “fossem elas grandes ou pequenas” (D.S. 15.28).

43


Notas sobre a Paz Helénica de 375 a.c.

A organização do Sinédrio Comum não se tratou, todavia, de um acto espontâneo mas sim de o culminar de um processo que se achava em ebulição, com encadeamento da cadeia de alianças, promovida por Atenas desde finais da década de 380. A formação da nova simaquia era, em todo o caso, a resposta à arbitrariedade lacedemónica, ou seja, um bloco que fosse capaz de restabelecer o equilíbrio nos jogos de poder na Hélade. Não obstante o auxilio militar dos atenienses à cidade de Cadmo, os anos de 378 e 377 caracterizam-se pela forte repressão da polis tebana devido às mobilizações Fig 2: Busto de Xenofonte

massivas de forças peloponésicas para o teatro beócio.

O Peloponeso começou, no entanto, a acusar do desgaste incisivo da guerra. Os anos sucessivos de conflito e o fluxo de recursos logísticos e humanos para acalentarem a arche lacónica obrigaram os Peloponésios a alterar a sua abordagem externa de modo a contornar a conjuntura (Xen. Hell. 5.4.60). Atenas converteu-se, portanto, no alvo preferencial da agressividade lacedemónica, com as autoridades a decretarem campanhas navais pelo golfo Sarónico. Esta estratégia visava alcançar essencialmente um duplo-compromisso: domar os ânimos dos Atenienses de modo a desbloquear os acessos à Beócia. O Egeu tornava-se no grande palco da guerra entre Peloponésios e Atenienses. Mas, em Setembro de 376, a simaquia do Peloponeso sofreria o revés decisivo dessa nova abordagem com a derrota na batalha de Naxos, contra a frota ática. No ano seguinte, os Atenienses executaram a ofensiva contra Esparta através de um périplo ao Peloponeso (Xen. Hell. 5.4.6162), alcançando as margens de Corcira e da Trácia ocidental, tendo derrotado novamente as forças anfíbias peloponésicas na batalha de Alízia. Apesar do êxito ateniense nas campanhas navais ao largo do Peloponeso e do Mar Jónio, em meados de 375, possivelmente nos finais do Verão, a Paz começou a transparecer no espírito da cidade de Palas, delegando uma embaixada que se deslocou à Lacónia a fim de firmar um pacto. De acordo com Xenofonte, os motivos foram os seguintes: Pois bem, os Lacedemónios e os seus aliados congregaram-se à chamada dos Focenses, enquanto os Tebanos, depois de se retirarem para o seu próprio território, vigiavam os acessos. Quanto aos Atenienses, ao repararem que graças a eles os Tebanos prosperavam e, em troca, não forneciam dinheiro para a frota enquanto eles se esgotavam por culpa das contribuições em dinheiro, da pirataria de Egina e da vigilância do território, lhes entrou o desejo de que se acabara a guerra, pelo que enviaram embaixadores à Lacedemónia e fizeram a Paz (Xen. Hell. 6.2.1).

44


Notas sobre a Paz Helénica de 375 a.c.

As razões enumeradas pelo autor das Helénicas são esclarecedoras

e,

de

resto,

legitimas:

a

descoordenação no eixo Cadmeia-Pnix, ou seja, no seio do próprio Sinédrio Comum, na delineação da estratégia bélica contra Esparta, e a fragilidade orçamental ateniense foram os motivos para que a cidade de Palas procurasse um entendimento com o

3

Para

um

contraste

opiniões vide Seager 1994,

176 e Buck 1994, 102; Rhodes 2006, 196. Para uma eventual presença de emissários persas na Paz de

371, cf. Cawkwell 1972, 258.

Peloponeso. Todavia, o passo de Xenofonte encobre as debilidades

conjunturais

que

a

simaquia

do

Peloponeso enfrentava e que iriam reflectir nos contornos do próprio armistício. Ao contrário das Helénicas, Diodoro diz-nos que a Paz foi elaborada pela mão de Susa, de modo a cativar os Helenos para a campanha aqueménida contra o Egipto (D.S. 15.38.1). A presença de representantes persas em convenções helénicas não era uma novidade e há vestígios que indicam a sua participação 3

na Paz de 375 . Não obstante esse aspecto, a verdade é que o tratado ia repescar o espírito da Paz de Fig 3: Helénicas de Xenofonte

Antálcidas, com o critério de autonomia a surgir novamente numa posição central.

Para a execução dos procedimentos entabulados no pacto ático-lacónico, ambas as autoridades introduziram a medida de se criar um comité responsável para averiguar a desmobilização de guarnições “estrangeiras” presentes em outras poleis (D.S. 15.38.2). A eficácia real ou o carácter burocrático de se constituir uma delegação para amplos efeitos, ou seja, além de tropas peloponésicas e áticas, é contestável e pode ser facilmente confundida com o passo de Xenofonte, que refere a deslocação de embaixadores atenienses até junto de Timóteo, que se encontrava em Corcira, para que o estratego regressasse a Atenas (Hell. 6.2.2). Por seu turno, os Lacedemónios seguiriam o mesmo processo com a retirada de contingentes peloponésicos na região beócia. Em todo o caso, o armistício ficou, essencialmente, marcado pela vitória diplomática de Atenas; numa primeira estância, o reconhecimento de Esparta na legalidade existencial do Sinédrio Comum e, num segundo ponto, a repartição da hegemonia helénica nos moldes “tradicionais”, cuja liderança terrestre seria exercida pelos Lacedemónios e a chefia marítima ficaria a cargo dos Atenienses (D.S. 15.38.4; Isoc. 15.109-110). Em suma, o desfecho da paz, instituída em Esparta, ressalta o equilíbrio e distribuição de poderes pelas duas principais potenciais helénicas e sugere um sintoma que se tornava cada vez mais evidente: o ocaso da hegemonia de Esparta. Com a deslocação da esfera bélica da Beócia para o Egeu, em 377, os Tebanos tiveram oportunidade para se reorganizarem e reagruparem, a fim de restaurarem a unidade política da Beócia sob a sua égide.

de

45


Notas sobre a Paz Helénica de 375 a.c.

O ano de 377 baliza, precisamente, o arranque desse processo. As fontes não são claras quanto à forma como a “reconquista” de Tebas ao espaço beócio se procedeu. Contudo, não há dúvida que a “deslaconização” da Beócia é acompanhada pelo decurso gradual de “tebanização”, com a coacção de um modelo de unidade regional que assentava nos alicerces da antiga estrutura da simaquia dos Beócios, todavia, mais centralizador. Em 375 a maior parte das poleis da região achavam-se sobre o domínio efectivo da Cadmeia, com excepção feita a Orcómeno, Plateias, Téspias e Tânagra e com intensões de disciplinar a Fócida (Xen. Hell. 6.1.1). A vitória das forças tebanas na batalha de Tégiras, nas cercanias de Orcómeno (D.S. 15.37.1; Plut. Pel. 17.1-5), contra duas morai lacedemónicas, espelhava as intenções das autoridades cadmeias em recuperar esse elo ancestral que se manifestava desde o século V – a unidade política beócia. Por ocasião da Paz de 375, Tebas era, claramente, uma polis em ascensão na Hélade. Mas coloca-se a seguinte questão: qual o ónus e a relação de Tebas com o pacto de 375 e, sobretudo, qual o impacte e a extensão da autonomia na nova estrutura politica edificada pela Cadmeia? Retomando novamente a linha descritiva do historiador sículo, Diodoro narra o seguinte: Os Tebanos, por si, não concordaram que a ratificação da paz fosse feita polis por polis, mas insistiram que a Beócia fosse registada como entidade soberana e tributária (synteleia) dos Tebanos. Quando os Atenienses se opuseram à proposta de forma mais controversa, Calístrato, líder popular ateniense, recitou as suas razões, enquanto, pelo lado dos Tebanos, Epaminondas proferiu um discurso diante da assembleia com efeitos admiráveis. O resultado foi que, embora os termos da paz tivessem sido harmoniosamente celebrados por todas as outras poleis, os Tebanos recusaram participar e, através da influência de Epaminondas, que pelos seus méritos pessoais inspirou os seus concidadãos com espirito patriótico, foram encorajados a tomar posições contra a decisão de todos os outros. Para os Lacedemónios e Atenienses, que tinham sido constantemente rivais na disputa pela hegemonia, submetiam-se agora a que um fosse líder por terra e outro por mar. Consequentemente, eles irritaram-se com as pretensões de liderança de um terceiro candidato e tentaram separar as poleis beócias do domínio (synteleia) tebano (15.38.3-4).

Este passo da Biblioteca Universal tem suscitado algumas dificuldades de leitura e análise. A alegada resistência tebana aos acordos da Paz e o duelo de palavras entre Epaminondas e Calístrato integram o contexto cronológico de 371, por ocasião da Paz de Cálias, e como tal, não se ajustam na conjuntura de 375. Esta tese tem sido amplamente difundida pelos comentadores contemporâneos, ancorados na incoerência discursiva da obra de Diodoro. É também possível que se trate de contaminação da literatura apologética pró-tebana, que se manifestou sobretudo no pós-Leuctros, no testemunho do historiador sículo. Isócrates, na sua obra Plataicus, contraria a narrativa de Diodoro, referindo que Tebas integrou a Paz de 375, mas não especifica se na qualidade de «Tebanos» ou de «Beócios» (cf.14.10).

46


Notas sobre a Paz Helénica de 375 a.c.

É legítimo que tivesse sido enquanto «Tebanos». Mas estariam as autoridades cadmeias 4

dispostas a dissolver a synteleia tebana de acordo com os parâmetros da Paz? A resposta é obviamente negativa. De resto, os eventos de 371, que iriam desencadear a batalha de Leuctros, corroboram essa premissa. A explicação possível a esta problemática jaz em duas hipóteses (plausíveis) que se coadunam. A primeira, pela alteração da política externa lacedemónica, desde finais de 377, e da debilidade

4

O termo syntelia assume o sentido

de

sistema

tributário, neste caso, de poleis beócias tributárias a um

governo

Tebas.

Vide

central

de

Hammond

2000, 92 (nota nº45)

financeira que enfrentava; num segundo ponto, devido ao princípio de equidade que se estabeleceu entre a simaquia do Peloponeso e o Sinédrio Comum. A retirada das tropas peloponésicas estacionadas em algumas poleis beócias e na Fócida foi em respeito aos acordos firmados com Atenas e não no reconhecimento declarado da «Beócia», enquanto entidade política soberana. As forças peloponésicas na Fócida, Orcómeno, Téspias, Plateias e Tânagra exerciam, nesta etapa, a função de praças-fortes aos impulsos da Cadmeia e de subsistência da jurisdição lacedemónica na região. Contudo, é inegável que a presença espartana nestes locais, sobretudo nas áreas meridionais da Beócia, constituía uma ameaça localizada à polis ática. Decerto que a evacuação destas forças agradaria também às autoridades da cidade de Cadmo, mas aos olhos dos Atenienses era sinal de alívio na linha de fronteira. Por outro lado, as circunstâncias políticas asseguraram a continuidade da plataforma tebana. Esparta encontrava-se desgastada pela guerra, acossada pela actividade marítima ateniense na orla ocidental do Peloponeso e pelos custos de manutenção do exército de Cleômbroto na Fócida. Apesar da preponderância da frente peloponésica na região central da Hélade – um tampão para obstruir a disseminação da influência tebana para essas áreas, a sua sobrevivência era ténue, sobretudo após a derrota em Tégiras. A par da pressão tebana, a ascensão de Feras na Tessália, ameaçava criar um anel hostil sobre a Fócida. Em 375, Jasão, tirano de Feras, era seguramente aliado de Tebas e uma eventual ofensiva da Cadmeia em concertação com o senhor da Tessália poderia encurralar ou suprimir a presença lacedemónica na região. Face ao périplo ateniense em torno do Peloponeso, a preocupação de Esparta era, sem dúvida, o Ocidente, de modo a garantir a estabilidade do seu átrio de poder. A concepção de pólos satélites atenienses, com a «aticização» de Corcira ou dos territórios circundantes, anexos ao Mar Jónio, não só constrangeriam os movimentos dos Lacedemónios na sua própria esfera, como também colocaria em risco as linhas de comunicação e de abastecimento humano e logístico com o aliado sículo – Siracusa. A paz veio aliviar a angústia que o Peloponeso sentia das operações militares atenienses e a Beócia não encabeçava, seguramente, a lista de inquietações das autoridades lacedemónicas. Por outro lado, a prescrição do status quo que se impôs em 375 traçava, nitidamente, os limites de uma e outra esfera. Mas qual seria a posição da cidade de Palas perante Tebas? Como referido anteriormente, Xenofonte aponta para a falta de apoio tebano para a guerra e o engrandecimento da cidade de Cadmo às custas do conflito ático-peloponésico.

47


Notas sobre a Paz Helénica de 375 a.c.

O desajuste estratégico entre a Cadmeia e a Pnix parece evidente e resultou, essencialmente, dos contrastes políticos e das directrizes que cada uma das poleis projectava nos dois palcos da guerra: os Tebanos prosseguiram com o objectivo de revitalizar a unidade política beócia, ao passo que os Atenienses avultavam na actividade marítima, como procedente a estender o rol de aliados do Sinédrio Comum. As disparidades de ambas as linhas estratégicas deixam latente a “anomalia” que a cidade de Cadmo retrava no ADN do Sinédrio Comum, cujos propósitos da simaquia se fundiam com os de Atenas. A actividade tebana estilizava os defeitos na imagem, nos princípios fundadores do Sinédrio Comum, nomeadamente no critério de autonomia, e na nova aura ateniense, distante dos vestígios hegemónicos do século V. Contudo, estes indicadores não devem ser interpretados como princípios de erosão dentro da simaquia. A cidade de Palas continuava dependente do ónus geoestratégico de Tebas e do elo cadmeu no funcionalismo do Sinédrio Comum. Porém, as raias protocolares permitiram a Atenas condicionar a acção tebana, amenizando o ímpeto da Cadmeia, não só na Beócia mas também na polis orópica, ancestral foco de tensão entre as autoridades tebanas e áticas (Isoc. 14.37; Seager 1994, 176). A resolução ateniense de enquadrar “os Tebanos” na Paz sem no entanto obrigarem à dissolução da synteleia tebana visava dois aspectos em particular: por um lado evitar criar atritos entre ambas as poleis vizinhas e a consequente perda do seu maior aliado e, por outro, precavendo-se do surgimento de um bloco tebano que contestasse o poder ateniense no cerne do Sinédrio Comum. Em suma, a Paz helénica de 375, subscrita em Esparta, resultou de uma necessidade elementar para o Sinédrio Comum e a simaquia do Peloponeso, a fim de travarem o desequilíbrio orçamental que ambos sofriam: Esparta devido aos anos sucessivos de campanhas militares, enquanto condição para exercerem a sua hegemonia na Hélade, ao passo que Atenas alimentava a guerra às suas custas. O pacto foi também uma revisitação aos acordos estipulados em 387. Porém, a Paz de 375 revestia-se com novos elementos, em particular a distribuição do poder helénico entre Esparta e Atenas. Quanto a Tebas, apesar da sua ascensão e da construção de um dispositivo político de unidade beócia, surge num plano secundário nos acordos, subalternizada e gozando do apoio sustentável do governo ateniense. Não obstante a importância que a Paz de 375 deteve na estabilização dos antagonismos, o seu ónus é relativizado devido à duração efémera que teve, com Atenas e Esparta a reatarem as hostilidades no ano seguinte. Em todo o caso, não há dúvida que a subscrição do pacto serviu como um ensaio à futura Paz de Cálias, em 371. Bibliografia

Buck, Robert, 1994. “The

___________,

Peace of 375” in Boiotia

“The King’s Peace” The

King’s

and the Boiotian League

Classical Quarterly 31:

Second

Athenian

432-371

69-83

Confederacy”

in

B.C.:

101-103.

1981.

Hammond, 2000.

48

Peace

N.

G.

L.,

“Political

The

Ancient

D.

M.

Lewis,

Developments in Boeotia”

Boardman,

“Epaminondes

and

The Classical Quarterly

Hornblower

The

Classical

50: 80-93

Ostwald:

Quarterly 22: 254-278

the

History, vol. VI, edited by

Cawkwell, G. L., 1972. Thebes”

and

Cambridge

Alberta, The University Press of Alberta Press.

Seager, Robin, 1994. “The

Cambridge, Press.

John Simon

and

M.

156-186. University


Livrarias Almedina Braga

Almedina Braga

Campus de Gualtar Universidade do Minho Tel: 253 678 822 braga@almedina.net

Porto

Almedina Porto

Rua de Ceuta, 79 Tel: 222 059 773 porto@almedina.net

VN Gaia

Almedina Arrábida

Arrábida Shopping, Loja 290 Praceta Henrique Moreira, 244 Tel: 223 701 898 arrabida@almedina.net

Coimbra

Almedina Arco

Arco de Almedina, 15 Tel: 239 851 900 arco@almedina.net

Almedina Praça da República

Lisboa

Almedina Atrium Saldanha

Atrium Saldanha Praça Duque de Saldanha,1 Loja 71, 2º Piso Tel: 213 570 428 atrium@almedina.net

Almedina Centro de Arte Moderna

Centro de Arte Moderna R. Dr. Nicolau Bettencourt, 8 Tel: 217 972 441 cam@almedina.net

Almedina Oriente

Edifício Infante Av. D. João II, Lote 1.16.05 Fração B - Loja piso 1 Tel: 218 941 285 oriente@almedina.net

Almedina ISCTE

Avenida das Forças Armadas Edifício ISCTE (Edifício I sala oSW) Tel: 215 902 819 iscte@almedina.net

Rua Alexandre Herculano, 3 Tel: 239 827 176 prepublica@almedina.net

Almedina Estádio Cidade de Coimbra Estádio Cidade de Coimbra Rua D. Manuel I, 26 e 28 Tel: 239 406 266 estadiocc@almedina.net

www.almedina.net www.facebook.com/livrariasalmedina


Comentário Critíco ao Filme: Hércules (2014)

Comentário Crítico ao Filme: Hércules (2014), de Renny Harlin José Magalhães 2014 foi um ano em que vimos um regresso de Hércules à grande tela:Hercules, de Brett Ratner, realizador do terceiro capitulo de XMen, e The Legend of Hercules de Renny Harlin que nos trouxe à tela Die Hard 2 e Deep

Blue

Sea,

(cineastas

habituados,

portanto, a filmes de acção de segunda linha).Iremos aqui fazer um apanhado daquele que, na visão de um apaixonado por História Antiga, mais impressionou pela negativa. O primeiro a estrear foi The Legend of Hercules, de Reeny Harlin, com Kellan Lutz no papel do herói. O argumento apresenta Anfitrião (Scott Adkins), o “pai” mortal de Hércules,

como

um

rei

conquistador,

guerreiro fantástico, tirano e cruel, a tomar Argos em duelo singular. Atemorizada pelo seu marido, e pelo futuro que o seu povo Fig. 1: O cartaz do Filme

sofreria, Alcmena (Roxanne McKee), suplica a Hera que os livre da maldade de Anfitrião.

A deusa responde ao permitir que a rainha carregasse um filho do seu próprio marido, Zeus. Dessa união, consumada sem a presença física de um homem, (ainda que Alcmena seja levada ao êxtase debaixo de um lençol esvoaçante) nasce Alcides conhecido posteriormente por Hércules. O herói cresce, sempre relegado para segundo plano por Anfitrião, que o preteria em favor do seu filho legítimo, Íficles (Liam Garrigan). Já adulto, o herói apaixona-se por Hebe (Gaia Weiss), aqui representada como uma princesa de Creta. Após ser conduzido pelo seu irmão para o lar do leão de Nemeia, uma criatura fantástica cuja pele, segundo o mito grego, seria indestrutível (pessimamente elaborado, completamente artificial e demasiado pequeno para um monstro mítico), o que seria uma “missão” quase impossível de ser ultrapassada. Porém Alcides logra matar a besta, apenas para ver os louros da vitória serem roubados pelo seu irmão, numa cerimónia em que Anfitrião anuncia o casamento entre o seu herdeiro e a amada do herói. De modo a melhor controlar a acção de Alcides, o rei de Argos envia-o numa expedição para suster uma suposta revolta no Egipto, que neste caso estaria subjugado ao monarca grego. Contudo, trata-se de uma armadilha destinada a vitimar Alcides.

50


Comentário Critíco ao Filme: Hércules (2014)

Fig. 2: Hércules na Arena

Os seus regimentos, enfraquecidos numericamente, são emboscados, salvando-se apenas o príncipe e o capitão da guarda, Sotiris (Liam McIntyre, o Espártaco pós Andy Whitfield). Os sobreviventes são depois vendidos como escravos, e forçados a lutar nas arenas como gladiadores, acção que lhes possibilita viajar por todo o mediterrâneo, tornando o nome Hércules (nome que Alcides depois adopta) famoso. Conseguindo convencer o seu senhor a levá-los para a arena em Argos, o herói é informado por Quíron, confidente de sua mãe, que o rei Anfitrião tinha morto Alcmena. Aproveitando o descontentamento do povo, Hércules e Sotiris lideram um grupo de soldados contra o monarca, conspirando para o derrotar. Contudo, sob ameaça de morte para a sua família, o ex-capitão é forçado a revelar a localização de Hércules, que é aprisionado e agrilhoado em praça pública. Após assistir à morte de Quíron, às mãos de Íficles, Hércules apela a Zeus que lhe conceda força, pedido acedido pelo seu pai. O herói solta-se, derrotando os soldados em seu redor. Com o apoio do povo, Hércules lidera os homens numa invasão ao palácio de Anfitrião, conseguindo entrar após uma nova intervenção divina. O final é decidido num combate singular entre o rei e o herói, vencido a muito custo por este último. Hércules assim, assume o lugar do rei, desposando Hebe da qual tem um filho. Vamos tentar ignorar o afastamento do enredo do ciclo mitológico de Héracles, apesar de practicamente todos os momentos do filme o fazerem. Hércules é representado como uma dádiva de Hera, quando, no mito, a deusa é a principal causadora de todos os obstáculos que tem que vencer. No filme, o herói supera uma grande prova, o leão da Nemeia. No mito, teve que realizar doze grandes trabalhos. No filme, o protagonista encontra-se enamorado, desde jovem, por Hebe, uma suposta princesa cretense. No mito, a verdadeira paixão de Héracles foi Mégara, princesa de Tebas, tendo-se unido a Hebe, divindade que personifica a juventude, filha de Zeus e de Hera, após a sua apoteose e reconciliação com a esposa legítima de seu pai. O objectivo do filme era recontar a história do herói de modo original, algo que nos parece interessante. Contudo, essa tentativa de originalidade é marcada, de modo constante, pela fraca actuação dos actores e de um recorrer absurdo de anacronismos, para além de cenas completamente mal pensadas, como por exemplo, o momento em que o regimento de Hércules e Sotiris sai de Argos, em direcção ao Egipto.

51


Comentário Critíco ao Filme: Hércules (2014)

A viagem é realizada em trirremes, embarcações tipicamente gregas usadas pelo menos desde o século VIII a.C. (no filme, o enredo desenrola-se no século XIII a.C.), contudo, no momento em que estão a entrar em alto mar, vemos a serem recolhidas as velas das embarcações, mostrando a navegação sem nenhum aproveitamento da impulsão do vento. Se temos velas numa embarcação, porque é que as utilizamos quando soltámos âncora e estamos completamente encostados à costa, e quando nos afastamos da mesma as recolhemos completamente? No filme, existe um suposto controlo grego sobre o Egipto, algo que não ocorreria nesta época. É expectável que já existissem ligações comerciais, mas um controlo helénico de terras faraónicas só ocorreria depois de Alexandre, no século IV a.C. Na batalha inicial, que determina a conquista de Argos por Anfitrião, o monarca apresenta-se à frente do seu exército montado num cavalo que apresentava uma armadura que protegia a cabeça e a parte traseira. O caso mais antigo de armadura para cavalos na Europa remonta ao século VIII-VII a.C., sendo o filme cronologicamente situado no ano 1200 a.C.

Continuando na categoria de anacronismos, temos toda uma panóplia de elementos mostrados no filme que não se encaixam no período, sendo visível uma grande influência do império romano na construção cinematográfica. Se, perante a ameaça mercenária, os gregos assumem a falange hoplita como formação de batalha, escudo levantado, cobrindo a parte direita do corpo do guerreiro a seu lado; perante a ameaça dos arqueiros vemos Hércules a gritar testudo. Também conhecida por formação tartaruga (significado literal do termo testudo em latim, não grego) era utilizada por a legião romana, de modo a proteger os soldados de projécteis, cerrando os seus escudos rectangulares. O termo grego para tartaruga era χελώνη (Khelônê), portanto, caso a falange de Hércules se quisesse cerrar em formação tartaruga, nunca gritaria testudo. Um caso ainda mais claro desta liberdade cronológica são os combates nas arenas. No filme, Hércules e Sotiris, depois de derrotados no Egipto, são vendidos como escravos, forçados a lutar como gladiadores. O próprio termo, gladiator, provêm do termo latino para espada, gladius. O entretenimento mais violento na Grécia antiga seria associado à práctica desportiva do pancrácio, uma arte marcial, corpo a corpo, em que basicamente tudo era permitido. A título de Fig. 5: Fome, Peste, Morte e Guerra, os Quatro Cavaleiros do Apocalispse curiosidade, não podemos deixar de considerar cómico o facto de este anacronismo ocorrer em torno da personagem representada por Liam McIntyre, o último actor a encarnar a pele de Espártaco, provavelmente o gladiador mais famoso da história.

52


Comentário Critíco ao Filme: Hércules (2014)

Concluindo esta curta análise, não podemos deixar de sentir um sabor amargo por as constantes tentativas de abordar os mitos da cultura clássica, elaborados e aprimorados ao longo de séculos, sem nunca os tentar representar idealmente na grande tela. Neste caso, optaram por abandonar toda a riqueza da mitologia de Héracles para seguirem um alinhamento sósia do Gladiador de Ridley Scott: um homem de valor que é traído por uma figura monárquica, aprisionado e vendido como escravo, forçado a lutar na arena onde se torna um herói da multidão, desempenhando um papel fulcral na queda de um regime tirânico. Se esta fosse a intenção do realizador, então só pode ficar desalentado com o produto final. Kellan Lutz e Gaia Weiss estão muito longe de puderem ser comparados a Russel Crowe e Connie Nielsen, e Scott Adkins em conjunto com Liam Garrigan não fazem a mínima sombra ao grande actor que é Joaquin Phoenix. As cenas de combate, constantemente realizadas com recurso a slow motion, fogem desta analogia com o filme de Ridley Scott, procurando aproximar-se da linha observável nos 300 de Zack Snyder, ou da versão da STAR de Spartacus. Se era este o objectivo, só podemos tentar imaginar o que terá pensado Lyam McIntyre, que se habituou a protagonizar cenas de combate muito mais dignas de nota. O vestuário, apesar de longe de excepcional não é um ponto negativo no filme. Os cenários, apesar de apresentarem elementos anacrónicos (como as torres de Argos com um aspecto bastante medieval, munidas de ameias, ou o chão na parte superior da fortaleza, pedras de mármore completamente lisas), também conjugam pormenores micénicos, como o portão da cidade que recorda os leões de Micenas. De ressalvar ainda o trabalho realizado na arena em que Sotiris e Hércules lutam em conjunto, composta por passadiços estreitos de pedra irregular no topo de poços secos, como uma ideia interessante que possibilitou, na nossa opinião, a melhor cena de combate do filme. Já a arena grega é uma tentativa informatizada de recriar o Coliseu de Roma, não conseguindo o mesmo impacto visual constatável no Gladiador. Olvidamos aqui referir a banda sonora, simplesmente por não apresentar nenhum pormenor que seja digno de nota. Demasiado pouco, para um filme que contava com um orçamento na ordem dos 70 milhões de dólares, comprovado por a fraca receita. Se no fim-de-semana de abertura conseguiram amealhar perto de 9 milhões de dólares, as contas fecharam num total desapontante de sensivelmente 19 milhões de dólares, apenas nos EUA. Finalizando em linhas sucintas, The Legend of Hercules: uma má adaptação aliada à fraca prestação do elenco e efeitos especiais de segunda, resultaram num filme de baixíssima qualidade que, em boa consciência, não podemos recomendar aos nossos estimados leitores. Entre os dois filmes herculeanos estreados em 2014, sugerimos a adaptação de Brett Ratner, com Dwayne Johnson no papel do herói. Apesar de estar longe de ser formidável, é indubitavelmente superior à versão aqui analisada.

53


As Grandes Datas Abril a Junho de 2015

Brasil nos Descobrimentos 22 de Abril de 1500 - 515 anos Pedro Álvares Cabral chega ao Brasil, a terras de Vera Cruz.

Fim da Guerra na Europa 7 de Maio 1945 – 70 anos A Alemanha Nazi assina o termo de rendição perante os aliados, terminando a guerra na Europa.

Divisão do Mundo 7 de Junho de 1494 – 521 anos Portugal e Espanha assinam o Tratado de Tordesilhas.

Gandhi 8 de Maio 1933 — 82 anos

A Revolução de Abril – 25 de Abril de 1974 - 41 anos Revolução portuguesa que impõe o fim do Estado Novo, liderado à época por Marcello Caetano

O Islão chega à Península 27 de Abril de 711 - 1304 anos Tarik ibn-Ziyad inicia o processo de conquista da Península Ibérica. Fim do poder visigótico e queda de Rodrigo.

54

Início do jejum de Mahatma Gandhi, como forma de protesto contra a opressão britânica da Índia. Descobrimentos Portugueses 20 de Maio de 1498 – 517 anos Vasco da Gama chega a Calecute, na Índia.

Magna Carta 15 de Junho de 1215 – 800 anos O rei João I de Inglaterra é obrigado pelos seus nobres a assinar a Magna Carta, que limita os poderes reais. Último folgo da Antiguidade 20 de Junho de 451 – 1564 anos Batalha dos Campos Cataláunicos: As forças romanas, comandadas por Flávio Aécio, vencem os hunos de Átila. Esta é considerada a última vitória do Império Romano do Ocidente.


Video-jogos e a História: God of war e a reinterpretação do Mythos Grego

Video-jogos e História:

God of War e a reinterpretação do Mythos Grego Francisco Isaac

“The Hands of Death could not defeat me, the Sisters of Fate could not hold me, and you will not see the end of this day!” – Kratos A civilização grega foi, é e sempre será uma das responsáveis pelo despontar da paixão do público pela História, já que a sua brilhante história, cultura e mitologia enriqueceram a humanidade de uma forma inigualável. Nesse sentido, trazemos para esta rubrica o jogo: God of War. De uma forma resumida podemos dizer que o jogo trata de uma personagem central, Kratos, que faz “the biding for the gods” ou seja, cumpre os desígnios e ordens dos deuses do Olimpo. Durante toda a sua viagem desde o combate contra Ares e as suas forças bélicas em Atenas, até à capitulação e assassínio de Zeus, Kratos leva-nos ao mundo da mitologia grega. Os criadores da série God of War, que lançaram o primeiro jogo em 2005, tentaram ser fiéis a diversas das lendas e “historietas” da imensidão que é a Mitologia Grega. Com mais de vinte milhões de cópias vendidas em todo o mundo (está no Top-30 dos franchises mais vendidos), o videojogo marcou uma era na consola da Sony, a Playstation. Jogo que desde sempre entusiasmou os apaixonados por consolas, o jogo God of War marca pelos cenários formidáveis (desde uma Atenas destruída aos palácios majestosos do Olimpo), por um grafismo de alta qualidade (God of War marcou pelo detalhe extremo dos gráficos), a sua jogabilidade fora do comum (um jogo que permite ao jogador mover-se de uma forma natural e livre), um argumento com voltas e reviravoltas surpreendentes (desde a história de Kratos à sua ligação com as divindades da Grécia antiga) e o conceito artístico de topo que apresenta. Mas vejamos os detalhes históricos, ou de aprofundamento mitológico, que o jogo encerra

em

si.

Kratos

é

a

única

personagem em todo o franchise que nunca existiu nos mitos gregos, mas não deixa por isso de ser uma figura fascinante e carregada de apontamentos mitológicos.

Fig. 1: Kratos o espartano, o fantasma, o guerreiro prefeito!

55


Video-jogos e a História: God of war e a reinterpretação do Mythos Grego

O protagonista de God of War possui uma pele em tons de branco pálido (e que iremos O protagonista deéGod of War calvo possuie uma pele em tons branco pálido (evivo quepor iremos perceber que não natural…), com pinturas com de tons de vermelho todoperceber o corpo, que não é natural…), calvo e com pinturas com tons de vermelho vivo por todo o corpo, carregando ainda duas “facas” agrilhoadas ao corpo do anti-herói. Kratos ostenta um ar carregando duas “facas”marcado agrilhoadas corpo. Kratos ostenta um ar animalesco, de um animalesco, ainda de um homem pelo ao seu passado e que só parará quando os deuses homem marcado pelo seu passado e que só parará quando os deuses aceitarem a sua redenção. aceitarem a sua redenção. Este tipo de “história”, não é original, já que Hércules, ou antes Alcides, para redimir-se do assassinato sobre os seus próprios filhos teve que cumprir doze tarefas em honra de Hera. Kratos, por apresentar a tal cor de pele, será para sempre denominado como “The Ghost of Sparta”, uma vez que o herói provém da pátria dos grandes guerreiros da Lacónia, a cidadeestado de Esparta. O espartano em todo o seu caminho, que é marcado por uma destruição e um caos profundo e desumano, desvenda o seu futuro, relembra o seu passado e tenta reescrever o presente. Como Hércules, Teseu, Perseu, entre outros, irá combater contra diversos monstros e criaturas da Mitologia grega: Hidra, Cérbero, Sereias, Quimera, Minotauro, as três irmãs Gorgónes, entre outros.

Fig. 2: Os deuses do Olimpo

Todos estes seres foram criados com detalhes e pormenores de grande qualidade, não falhando em nada para quem vive o jogo. São fiéis às fontes gregas que relatam ou descrevem esses monstros, tendo feito referência à Odisseia, Bibliotheca, Theseus, entre outros. Os criadores do jogo tentaram, a todo o custo, construir e desenvolver um videojogo que fizesse jus aos mitos antigos, esboçando uma certa “realidade” (e quando dizemos realidade é na questão de seguirem as fontes escritas e arqueológicas existentes) para dar ao jogador uma experiência sem igual. Mas para além dos monstros e criaturas fantásticas, também Kratos irá enfrentar ou se deparar com outras figuras que marcaram a mitologia grega. Vamos subdividir em subsecções, começando pelos deuses: Zeus, Atena, Hera, Hefesto, Ares, Posídon, Hades ou Apolo. No início da saga, todos estes deuses apoiam com grande veemência o caminho de Kratos, já que o primeiro grande adversário do guerreiro espartano será o conflituoso e louco Ares, deus da guerra.

56


Video-jogos e a História: God of war e a reinterpretação do Mythos Grego

É devido a Ares que Kratos sucumbiu a um destino terrível e que o amaldiçoará para todo o sempre… um “crime” tal como o de Hércules. No conceito artístico e de conteúdo, todas as divindades marcam pela positiva: Zeus ostenta um físico imponente, mas supera isso nas suas artimanhas e estratégias; Atena, uma deusa guerreira que tenta a todo o custo salvar Kratos de uma auto-destruição, auxiliando-o sempre com os conselhos mais lúcidos e cautelosos possíveis; Ares, esboçado com uma armadura com tons de vermelho e que se apresenta como um deus conflituoso que procura destruir todos o que não aceitam o seu poder. Kratos, como diversos semi-deuses, quando se revolta contra a vontade ou desígnio dos deuses acaba por incorrer num castigo pesado. No seu caso passa por ser acorrentado no Hades, estripado de todos os seus poderes e forças sobre-humanas. Como Atalanta ou Belerofonte, que por terem incorrido na raiva dos deuses, sofreram uma punição: Atalanta por se ter envolvido com um homem num dos templos de Zeus, é transformada num Leão com o seu amante e nunca mais poderão sair dessa forma. E Belerofonte, o herói que domou Pégaso e derrotou a Quimera, ao tentar atingir o cimo do Monte Olimpo, acaba por cair do seu corcel - Zeus enraivecido pela arrogância e prepotência do jovem de Corinto terá enviado uma mosca/vespa para morder o cavalo alado -, tornando-se um mendigo aleijado que procurará até ao final dos seus dias por Pégaso. Mas nada parará Kratos, e uma vez liberto das correias do Hades, entra em conluio com os titãs, representados por Gaia. A mãe de Crono e avó de Zeus estabelece um acordo de honra com o

Fig. 3: Rua das Lajes

anti-herói, afirmando que também ela procura acabar com Zeus e com o Olimpo. Durante toda a saga de God of War, enfrentamos os titãs: Prometeu, Atlas, Crono e Gaia. Todos eles possuem uma dimensão monstruosa, para além de apresentarem uma forma algo desfigurada e associada até com elementos primordiais (terra, fogo, gelo, ar, entre outros). Para além de deuses, titãs, monstros, há outro (s) tipo (s) de ser (es) que se podem encontrar na saga: as Moiras, Ícaro, Dédalo, Perseu, Teseu, Hércules, entre outros. Kratos lutará também contra eles todos, mas nenhum será adversário a altura do anti-herói. Mais uma vez a concepção artística e a história de cada um desses intervenientes segue as fontes antigas: Ícaro, que possui as asas que permitem voar/planar, ostenta uma loucura total; Perseu, que vai em busca das Moiras na tentativa de conseguir regressar atrás no tempo e recuperar Andrómeda, apresenta-se como um jovem arrogante e prepotente; e as Moiras, as irmãs do Destino, enfrentam Kratos numa tentativa de impedir que o anti-herói consiga voltar atrás no tempo e salvar os titãs do Tártaro. Numa óptica de reaproximação ou reinterpretação do Mito e da Tragédia grega, os criadores desta saga, conferiram a Kratos o mesmo problema que a maioria dos heróis da Grécia antiga se deparara: a família. Seja em Hércules, por ter assassinado os seus próprios filhos, seja por Teseu que ao não trocar a cor das velas leva ao suicídio do seu pai, a questão da família é central para o esboçar da aventura de cada um desses heróis. O herói da saga de God of War, em virtude de se ter “oferecido” a Ares, acabou por assassinar a sua mulher e filha, sem saber que se tratavam delas. É o grande flagelo de Kratos, e a raiva e a sede por vingança serão as suas maiores forças para cumprir com a sua vontade de aniquilar com tudo e todos que o impedem de esquecer as memórias do passado. A questão da mania, que afectou Hércules também, é um tema central em God of War, já que o espartano vai subindo, gradualmente, o seu nível de violência e destruição, que acabará por consumir a civilização grega e mesmo todo o planeta.

57


Video-jogos e a História: God of war e a reinterpretação do Mythos Grego

A dicotomia da luta entre os homens e os deuses está extremamente bem exposta neste videojogo. Ao contrário do que sucede na Mitologia grega, onde é impossível dobrar ou quebrar a vontade e desígnio dos deuses – a não ser que seja auxiliado por um deles como acontece com Ulisses -, Kratos no final da sua viagem termina a sua “viagem” com uma retumbante vitória, que significa ao mesmo tempo, uma derrota e um final agridoce. Ao revisitar um tema antigo da Mitologia Grega, a Caixa de Pandora acaba por ser um elemento fundamental para o conflito entre Kratos e o Olimpo… pois ao ter aberto essa “arca”, deixa sair todos os males e malefícios que acabam por assolar o próprio Zeus, e que motivará a raiva do “pai” contra o “filho”. A questão de que uma acção gera uma consequência, e uma série de eventos catastróficos é algo que nutre de diversos mitos gregos: Teseu, que ao abandonar Ariadne na praia, e ao esquecer-se de trocar as velas leva à morte do seu pai, Egeu; ou Páris, que ao escolher Afrodite como a deusa mais bela, recebendo Helena como “prémio”, o que leva ao inicio da guerra entre aqueus e troianos. O repensar e o voltar a ir buscar aos Clássicos alguns tema e histórias acaba por fornecer a um franchise de videojogos um dos seus maiores apogeus. Brilhante pela forma como é construído e produzido, God of War apesar de desvirtuar, em parte, alguns conteúdos da Mitologia grega, não retira nenhuma da sua magnificência e interesse. Arriscamo-nos a dizer que graças a videojogos como este, os utilizadores que o jogaram ganham o interesse de pesquisar e ler os antigos clássicos para melhor conhecerem e compreenderem os detalhes, pormenores e qualidades de uma das civilizações que mais contribuíram para a civilização ocidental, a Grécia Antiga.

Fig. 3: Kratos

58



Roteiro Histórico: Avis - A Imponência de outrora / As potencialidades de Agora

Roteiro Histórico: Idanha-a-Velha

Para compreendermos melhor a História Peninsular Semião Pólvora Idanha-a-Velha tem hoje a dimensão de uma pequena aldeia, com menos de uma centena de habitantes. Perdeu a categoria de concelho no reinado de D. Maria II, como aconteceu a inúmeras povoações com a reestruturação administrativa de então. O título de concelho deu lugar ao de freguesia, ficando a pertencer ao actual concelho da altaneira Idanha a Nova. Com a mais recente reforma administrativa perdeu a designação de Freguesia autónoma. Mantém essa designação administrativa fazendo parceria com a vizinha Monsanto, resultando na “União de Freguesias de Monsanto e Idanha a Velha”. Graças aos apoios da Fundação C. Gulbenkian, Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais e Centro de Estudos de Etnologia Peninsular foi possível desenvolver, a partir de 1955, uma sistemática e produtiva escavação arqueológica orientada inicialmente por D. Fernando de Almeida e O. da Veiga Ferreira, a qual trouxe à luz do dia vestígios de incalculável valor histórico. Os trabalhos de arqueologia continuam e novos documentos estão a ser descobertos e estudados. Esta povoação orgulha-se de possuir uma história admirável, baseada nos estudos de documentos arqueológicos, epigráficos, numismáticos e paleográficos até agora estudados. É indiscutível o contributo desta povoação para a compreensão da História, não só de Portugal mas de toda a Península Ibérica. Existem vestígios da presença humana no espaço que rodeia a actual Idanha-a-Velha, nomeadamente cistas e dolmens. No perímetro da aldeia foi escavado um cemitério do período luso romano. É ponto assente que os romanos encontram já a região habitada por uma população de origem celta. Em algumas inscrições romanas identificaram-se nomes de origem celta. Com base nos documentos encontrados nas escavações arqueológicas, e não só, concluímos que é com a presença romana que Idanha-a-Velha se desenvolve e adquire a importância no contexto peninsular. Egitânia, como era chamada no período visigótico, foi fundada pelos Romanos no século I a. C. (chamava-se então Civitas Igaeditanorum). Emoldurada pelo rio Ponsul, toda ela é hoje um autêntico museu. Facilmente ali se identificam vestígios desde os primórdios da História de Portugal, mas também dos períodos romano, visigótico e árabe, São imensos os documentos históricos do período romano. Deste período realçamos parte das muralhas exteriores, com especial destaque para porta norte e alguns torreões, estes muito bem reconstruídos com materiais originais. Destacamos igualmente o “podium” de um templo que terá existido no local do fórum. Mais tarde (século XIII) foi aproveitado para servir de base à torre de menagem, a chamada “Torre dos Templários”.

60


Roteiro Histórico: Avis - A Imponência de outrora / As potencialidades de Agora

Também

as

inscrições

numerosas

romanas

ali

lápides

com

encontradas,

(contam-se mais de duzentas) constituem um valioso espólio, pois são a maior colecção de lápides deste período até hoje encontrada em Portugal. Muitas estão dispersas por outros museus pelo país, mas algumas delas fazem parte do acervo exposto no espaço museológico local, juntamente com outro espólio desse período. Devemos

realçar

que

este

espaço

museológico está muito bem enquadrado no todo arquitectónico, o qual, juntamente com o reconstruído lagar de varas é de visita obrigatória. O referido lagar de varas constitui um excelente exemplo de arqueologia industrial, já que a sua recuperação foi muito bem conseguida. Uma visita guiada a este velho lagar constitui uma preciosa oportunidade para

ficar

a

conhecer

algumas

das

características da sociedade local desde o século XIX até meados do século XX.

Fig. 1: Lagar das Varas

É de realçar a sua importância religiosa e administrativa no período suevo / visigótico, pois foi sede de diocese que nesse tempo tinha a praticamente os mesmos limites do actual distrito de Castelo Branco. Foi igualmente residência de vários bispos. As invasões árabes fizeram-se sentir nesta “cidade” que a arrasaram em 713. Existem vestígios da presença árabe na catedral, a qual terá sido adaptada ao culto muçulmano. O principal edifício religioso hoje existente é a Sé Catedral. Trata-se uma construção dos princípios do cristianismo. As arcadas são do período visigótico. Hoje é um templo em ruínas. Ainda beneficiou de uma restauração no reinado de D. Manuel, como atestam do elementos do estilo manuelino ainda observáveis. Junto do edifício foi escavado um baptistério paleocristão, o que constitui uma raridade, pois só se conhece outro idêntico em Torre de Palma (Monforte – Portalegre). Além do valiosíssimo património construído esta “cidade” pode justamente orgulhar-se ter sido o berço de um rei visigodo (Wamba) e de um papa (S. Dâmaso).

61


Roteiro Histórico: Avis - A Imponência de outrora / As potencialidades de Agora

A ponte romana de cinco arcos sobre o rio Ponsul é igualmente um testemunho da sua importância no contexto da Ibéria. Permitia a ligação com o interior da península. Na inscrição existente na monumental ponte de Alcântara lá está em primeiro lugar a contribuição dos Igaetidani. A atestar a importância económica da Civitas Igaeditanorum está o facto ali se terem cunhado várias moedas de ouro (trientes). Na actualidade é visível o esforço do município de Idanha-a-Nova no sentido de recuperar alguma grandeza a esta importantíssima localidade histórica. Os espaços recuperados (museu e lagar) são um excelente exemplo desse esforço. Com

um

potencial

ainda

pouco

explorado, o desenvolvimento turístico tem para os poucos habitantes uma importância fulcral, no entanto já se vai Fig. 2: Catedral e escavações arqueológicas

Bibliografia: Aldeias

Históricas

de

Portugal, Idanha a Velha, PROVERE; Dicionário da História de Portugal,

Egitânia,

Direcção de Joel Serrão, volume II.

62

notando algum aproveitamento.



O projeto A Sua Casa, A Sua Energia pretende ser uma iniciativa de referência nacional na promoção da eficiência energética no setor residencial. Desenvolvido ao abrigo do PPEC – Plano de Promoção da Eficiência no Consumo da Energia Elétrica, uma iniciativa promovida pela ERSE – Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, pretende contribuir de forma decisiva para a redução do consumo elétrico no sector doméstico. Disponibilizando informação especifica sobre medidas de melhoria na sua habitação e alterações comportamentais que o ajudam a poupar energia sem abdicar do seu conforto, este projeto é o apoio que precisa para mudar. Clique aqui para saber mais.

Contatos Instituto Superior Técnico Tagus Park Av. Prof. Dr. Aníbal Cavaco Silva 2744-016 Porto Salvo casaenergiapt@gmail.com


REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PARA ESTUDOS HISTÓRICOS INTERDISCIPLINARES Revista nº7 Outubro-Dezembro

Revista nº6 Julho-Setembro

Revista nº4 Setembro-Dezembro

D. João da Silva 2.º Marquês de Gouveia O labor da sua embaixada a Madrid Ibn Fadlan e os vikings do Volga

Ibn Fadlan e os Vikings do Volga

Palavras Animadas Animais em Pedras Rúnicas

O Cão no Sagrado Medieval, Representações e Ilustrações

Algumas Situações Temidas pelos Antigos Egípcios

A Manía de Héracles A Loucura que a todos atinge

Outras Conversas com Byung-goo Kang

Outras Conversas com José das Candeias Sales

Marvão de Supresa em Supresa

Ilhas Afortunadas - Espólio do Naturalista Francisco Furtado

Problemas de Interpretação da

A Mitologia Comparada a Índia e as novas iniciativas do IPAEHI

Instituto PAEHI - Prometheus Associação para Estudos Históricos Interdisciplinares Convidamos todos os interessados a participar com artigos para a Revista Férula; Para mais informações: conselho.cientifico@instituto-prometheus.org/inst.prometheus@gmail.com

Revista nº2 Dezembro

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PARA ESTUDOS HISTÓRICOS INTERDISCIPLINARES

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PARA ESTUDOS HISTÓRICOS INTERDISCIPLINARES

Revista nº8 Janeiro-Março

Revista nº3 Março 2013

Revista nº5 Abril- Junho

O Institutionum Disciplinae: uma proposta de análise comparada

Controvérsias sobre a Causa do Prior do Crato

Matrix,

a Herança Clássica num êxito cinematográfico

Políbio e a Causa

da Terceira Guerra da Macedónia

Outras Conversas com Ana Leal de Faria

Os Aventureiros no Mar Tenebroso Um Breve Olhar sobre Lisboa Antiga

Roteiro Histórico do Egipto Breve Resenha Histórica do Fundamentalismo, Fanatismo e Radicalismo

Outras Conversas com Pedro Estácio

Guilherme de Vasconcelos Abreu Breve Nota Biográfica

Os Judeus no Império Persa Avis - a Imponência de outrora As Potencialidades de Agora

O Itinerário de João dela Câmara

Lisboa

da cidade-fronteira à cidade-capital 1147- 1383

A Núbia do Neolítico à XXV Dinastia A CIDADE MEDIEVAL ISLÂMICA

As Ralações da História Uma visita... Museu São João de Deus História e Psiquiatria

Outras Conversas... com Paulo Fontes


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.