Revista Férula nº10

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FÉRULA

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PARA ESTUDOS HISTÓRICOS INTERDISCIPLINARES nº10 Julho-Agosto

Ceuta, 1415

um projecto de reconcialiação nacional de afirmação do poder régio e legitimação da nova dinastia

Sá da Bandeira e a Marinha

na Implantação do Liberalismo (1832-1870)

Arqueologia da Arquitectura

As Eddas em z i d o nã tudo


Editorial No ano em que fazemos 4 anos de existência (fundação em 2011), celebramos também a décima edição da nossa revista, Férula, que tem vindo a amadurecer e a obter cada vez mais artigos e conteúdos. Nunca é demais agradecer a todos aos que participaram e potenciaram a nossa Férula, que já atingiu uma significante de milhares de visualizações, o que nos deixa orgulhosos pelo caminho até agora traçado. De relembrar que na nossa primeira edição, tivemos a participação dos reputados e excelentíssimos docentes da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Nuno Simões Rodrigues, Manuela Santos Silva e Pedro Gomes Barbosa, assim como, de um dos nossos investigadores, Ricardo Louro Martins, e uma convidada, Mara Fernandes. Outros tempos, outra época mas a mesma mentalidade. Relembrar o Passado, Pensando o Futuro… este é o nosso caminho e visão. No presente número da Férula nº10, contamos com a participação de João Abel da Fonseca, que nos relembra da conquista de Ceuta em 1415 (celebramos os seus 600 anos), envolvendo-nos numa “teia” de questões e problemas de enorme interesse; revisitamos o Marquês de Sá da Bandeira através do artigo do Contra-Almirante da Marinha de Portugal, Fernando David e Silva, um homem que marcou profundamente a história do liberalismo; Maria da Silva conversa connosco sobre a questão da Arqueologia da Arquitectura, tema cada vez mais presente no nosso dia-a-dia e a sua pertinência na preservação da memória e história de uma região ou país; Ricardo Louro Martins regressa ao “serviço” com um tema acerca de H.P. Blavatsky e a divindade Eros, demonstrando a interdisciplinaridade das diferentes áreas. Outros conteúdos de elevada importância, como os videojogos ou o cinema e a sua relação directa/indirecta com a História, mantém-se nesta publicação. É uma Férula marcante, sem dúvida alguma, e que ficará para sempre como a décima, número redondo e importante para qualquer associação. O Instituto Prometheus – Associação para Estudos Históricos Interdisciplinares segue no mesmo rumo e com os mesmos objectivos, vislumbrando, no horizonte distante, já outros marcos importantes, como a Férula nº20, ou a celebração dos 5 anos de existência em 2016! Quero agradecer, em meu nome e do Conselho Editorial, à Laura Saldanha e Gonçalo Ribeiro pelo trabalho importante e fundamental na construção gráfica, design e artes finais da Férula; à Catarina Almeida, Carolina Soares, Amanda Coelho e Ricardo Martins não só por se manterem fieis ao projecto, mas pela sua participação activa na elaboração, composição e revisão dos artigos da nossa Férula; ao Hélio Pires, José Magalhães, João Camacho, Mauro Costa e Pedro Marques pela dedicação e excelente trabalho no conselho editorial da Férula e com artigos de levadíssima categoria. Esta equipa garantiu, até ao momento, excelentes resultados e não temos dúvidas que iremos atingir outros marcos e pontos significativos nos próximos tempos. Um Bem Haja e um Obrigado Sentido, Relembrar o Passado, Pensando o Futuro

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Índice Agenda Cultural Externa Ceuta 1415

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23 Arqueologia da Arquitectura 33

As Eddas não dizem tudo

O Deus Eros na Ísis sem véu de H.P. Blavatsky

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Sá da Bandeira e a Marinha na Implantação do Liberalismo Comentário Crítico ao Filme:Idi i Smotri (1985)

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Video-jogos e História: Age of Empires...um Império em minutos

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Director da Publicação Francisco Isaac Redactor Chefe Francisco Isaac/ Catarina Almeida Conselho de Redacção Francisco Isaac, Amanda Coelho, João Camacho, Carolina Soares, Pedro Marques, Ricardo Martins, José Magalhães e Catarina Almeida. Edição Laura Saldanha e Gonçalo Ribeiro Laura Saldanha e Gonçalo Ribeiro Não nos pertencem quaisquer direitos de uso da imagem.

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Agenda Cultural Julho a Outubro de 2015 3º Colóquio DIAITA Luso-Brasileiro de História e Culturas da Alimentação.

Dos prazeres da mesa aos cuidados do corpo Call for papers até 3 de Julho 2015 Coimbra | 19 a 21 de Outubro de 2015

Os testemunhos imateriais e materiais da história e culturas da alimentação tornam, desde a pré-história aos nossos dias, como a mesa - entendida no sentido completo de produção, confeção e consumo de bens alimentares, bem como de comportamentos e rituais que lhe estão associados não se limita à satisfação de necessidades elementares e biológicas de sobrevivência. Sob os auspícios do projecto transnacional DIAITA: Património Alimentar da Lusofonia - decorrerá, entre os próximos dias 19 a 21 de Outubro de 2015, a 3ª edição dos Colóquios Diaita LusoBrasileiros. A discussão far-se-à em torno de uma díade de problematização de práticas, de preceitos e de conceitos de alimentação e de nutrição cuja história demonstra nem sempre terem sido fáceis de compatibilizar, mas de harmonização no geral almejada, a saber: o prazer & o bem-estar. Procuram-se propostas de trabalhos nos diversos campos de saber (História, Literatura, Artes, Arqueologia, Antropologia, Média, Nutrição), cobrindo todos os períodos históricos e que tratem das temáticas expostas no mundo de cultura lusófona, bem como estudos comparativos que visem o diálogo estabelecido com outras culturas ou a influência de uma sobre a outra e vice-versa. Envio de propostas através do site: http://cechfluc.wix.com/3cdlb

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Visitas Noturnas ao Parque e ao Palácio da Pena Com Entrada Livre Sintra | 4 de Julho de 2015

O Parque e Palácio da Pena estarão abertos na noite de 4 de Julho, com entrada livre, num evento único e que se associa à solidariedade pedindo aos visitantes que entreguem um bem alimentar. Para além da visita ao Palácio, que não requer inscrição, a iniciativa inclui a possibilidade de participar em visitas guiadas ao Parque [ESGOTADAS] que conduzem ao ponto mais alto da Serra: a Cruz Alta, e o restaurante e cafetarias estarão abertos para quem pretender aproveitar a noite de verão e petiscar com vista para a Serra de Sintra. Estes espaços estarão abertos à noite (das 20h00 às 00h00) respondendo a inúmeros pedidos regulares nesse sentido mas, também, aliando a ocasião à recolha de alimentos e fundos para instituições de

solidariedade. A visita ao Palácio e seus terraços será livre (mediante entrega de um bem alimentar à Santa Casa da Misericórdia de Sintra, ou aquisição de um voucher Santa Casa), e a receita das visitas guiadas ao Parque (5€) será inteiramente entregue à União das Freguesias de Sintra. O transporte gratuito de e para a Pena, a partir da estação de comboios de Sintra, mais propriamente junto à paragem do autocarro 434, é disponibilizado pela Scotturb (parceira do evento), de forma a garantir o fácil e rápido acesso ao local. Os autocarros circularão entre as 20h00 e as 00h00, com intervalos de 15 minutos. Recomenda-se o uso de agasalho e calçado confortável, bem como de lanterna. (http://www.parquesdesintra.pt/noticias/visitas-noturnas-ao-parque-epalacio-da-pena-com-entrada-livre/)

VIII Jornadas de Jovens em Investigação Arqueológica (JIA) Lisboa | 21 a 24 de Outubro de 2015 Os encontros de Jovens em Investigação Arqueológica (JIA) são eventos científicos que têm como principal objectivo fomentar a discussão, o contacto e o conhecimento da investigação que tem vindo a ser desenvolvida pelos jovens investigadores que ainda não defenderam os seus projectos de doutoramento. Tal como é evidenciado pelo Decálogo de 2009, o debate em torno da Arqueologia é, portanto, o eixo ideológico e estrutural das JIA. Nos últimos anos, os temas das JIA têm mostrado uma profunda preocupação com o papel da Arqueologia na sociedade e a sua relação com as outras ciências. Neste sentido, nas VIII JIA pretende-se dar uma continuidade a esta reflexão, propondo discutir o tema "Entre ciência e cultura: da interdisciplinaridade à transversalidade da arqueologia".

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1st Summer School in Medieval Studies

Traveling in the Middle Ages: Portugal & the WorldCulturas e Identidades

Lisboa| FCSH-UNL | 13 a 31 de Julho 2015

O Instituto de Estudos Medievais, em conjunto com a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, estão a promover a Summer School in Medieval Studies (SSMS-IEM) de três semanas, ao logo do mês de Julho. A SSMS-IEM procura familiarizar os estudantes com a cultura Medieval portuguesa, história, arte e música. A cada ano há uma temática que providencia coesão para uma abordagem multidisciplinar de cada módulo. Os três módulos serão complementados por um quarto com uma visita de estudo. As aulas serão em inglês e oferecem uma equipa multidisciplinar de investigadores combinando jovens e seniores do Instituto de

Estudos Medievais, todos especialistas nos tópicos que serão tratados. O principal objectivo é fornecer um fórum a todos com um interesse na Idade Média e a permitir contactos e intercâmbios. O SSMS-IEM irá privilegiar a oportunidade de promover o diálogo entre investigadores nestes estudos e a todos cujo interesse seja aprofundar o seu conhecimento do Portugal Medieval. (http://iem.fcsh.unl.pt/section.aspx?kind=no ticia&id=721) Os módulos serão “The Experience of Travel; Travelers and their motivations; The Journey of Objects and Ideas; Exploring Medieval Portuguese Sites (Study Visits)”.

I Workshop Internacional Mudanças e Continuidades. Espaços Fronteiriços E Mentalidades de Fronteira Lisboa | 20 e 21 de Julho de 2015 No seguimento do I Workshop Internacional “Mudanças e continuidades. A passagem da Idade Média à Moderna no espaço Ibérico em 2014, O Instituto de Estudos Medievais, o Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar e o Instituto de História Contemporânea irão organizar um segundo Workshop intitulado “Mudanças e Continuidades. Espaços fronteiriços e mentalidades de fronteira”, a realizar na FCSH-UNL, a 20 e 21 de Julho de 2015. (http://ihc.fcsh.unl.pt/pt/scientific-meetings/seminars-and-workshops/item/38619-ii-wo rkshop-internacional-mudan%C3%A7as-e-continuidades-espa%C3%A7os-fronteiri%C3%A 7os-e-mentalidades-de-fronteira)

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International Conference Historical Network Research 2015 Lisboa | FCSH-UNL | 15 a 18 de Setembro de 2015

A investigação histórica tem sido conduzida usando teorias, métodos e práticas do campo da análise de redes sociais. Conceptualmente, com enfase no entendimento que os actores e as suas acções são parte de um mundo de relações e dinâmicas, este campo abre-se a múltiplas possibilidades de inquéritos históricos. Esta abordagem sustenta um trabalho empírico que pode explorar arquivos documentais, fontes textuais e até aproximações à história oral. O instituto de História Contemporânea (UNL-FCSH ) em parceria com In+Center for Innovation Tchnology and Policy Research (IST, UL) irá acolher, em Setembro de 2015 a 3.ª edição Historical Network Research Conference. Será uma oportunidade de apresentar investigação histórica referente ao campo da análise das redes sociais, como também uma oportunidade de beneficiar de workshops desenhados para adquirir ferramentas analíticas e visuais. Procuram propostas individuais que abordem qualquer período histórico e área geográfica. Alguns dos tópicos sugeridos são: “Economic and business history; Scientific networks and collaborations; Technological and research networks; Social movements and political mobilization; Social network theory and historical research; Policy networks; Social network analysis, war and conflict; Kinship and community; Social networks and health; The geographical scope of networks; Cultural and intellectual networks Methodological explorations”. As propostas apresentadas serão selecionadas após o “peer review”. Para submeter a sua candidatura terá de ter um resumo até 500 palavras, o título, 3 palavras-chave, filiação institucional, contacto e uma breve nota curricular. Cada comunicação terá de ser em inglês e durará 15 minutos. (https://historicalnetworkresearch2015.wordpress.com/)

"Reconnaissance et légitimité en français Instances, stratégies, enjeux". Lisboa | 9-19 de Novembro de 2015 O Fórum 2015 da Associação Portuguesa de Estudos Franceses está a organizar "Reconnaissance et légitimité en français - Instances, stratégies, enjeux". O encontro terá lugar na FCSH-UNL, nos dias 9 e 10 de Novembro. As propostas têm de ser submetidas em francês e enquadrar-se nos seguintes temas: Littérature en français et rapport aux instances et stratégies de légitimité; Pratiques d’écriture et de lecture littéraire institutionnalisées ou marginales (isées); Reconnaissance et légitimité de (et dans) la langue et la linguistique françaises; Enseignement et didactique des corpus canoniques en français, et des variétés / variations dans la langue française; Langue et littérature en français et autres domaines du savoir, y compris le discours scientifique; Reconnaissance et légitimité de la littérature en français par la traduction. (http://www.apef.org.pt/downloads/actividades/91/anexo.pdf).

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Ceuta, 1415 - Um projecto de reconciliação nacional, afirmação do poder régio e legitimação da nova dinastia

Ceuta, 1415 – um projecto de reconciliação nacional, afirmação do poder régio e legitimação da nova dinastia 1

João Abel da Fonseca

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Presidente do Conselho Superior do Instituto de Cultura Europeia e Atlântica

Sabemos por um Relatório publicado em 1916 que, desde Dezembro de 1911, uma Comissão formada por sócios da Academia das Ciências de Lisboa e da Sociedade de Geografia de Lisboa preparava, a dupla comemoração do Vº Centenário da Tomada de Ceuta e o IVº da Morte de Afonso de Albuquerque, que ocorreria em 1915. Entendiam as duas instituições que aquelas duas efemérides justificavam a realização de numerosos eventos, à escala nacional, e à altura da sua importância e significado histórico, não descurando a publicação de Fontes e de Estudos que permitissem um melhor conhecimento daquele episódio maior da história pátria, bem como a personalidade e os feitos ímpares do herói consagrado da gesta lusitana, no Oriente. Desta iniciativa resultou uma extensa bibliografia, cuja edição se veio a prolongar até 1933. Interessanos hoje, volvido um século, e para o tema em apreço, referenciar, mormente, a publicação de uma nova edição da Crónica da Tomada de Ceuta, de Gomes Eanes de Zurara, de que foi encarregado Francisco Maria Esteves Pereira, e a edição do Livro da Guerra de Ceuta, tradução portuguesa do texto latino De bello Septensi, de Mateus Pisano, pelo coronel Roberto Corrêa Pinto, antigo professor de Latim do Colégio Militar –, uma adaptação da obra anterior, para dar a conhecer à Europa, por vontade de D. Afonso V, aquela importante jornada portuguesa, em África. Com estas duas obras se inaugurou o calendário editorial, logo em 1915. O governo, muito embora conhecedor da existência da supracitada Comissão, tardava em assumir uma posição oficial, pelo que a SGL, então presidida por Bernardino Machado, lhe enviou um ofício, datado de 31 de Maio de 1912, recordando a necessidade de se prepararem atempadamente as comemorações. Respondeu aquele com a criação, por decreto de 28 de Outubro seguinte, da Comissão dos Centenários de Ceuta e de Afonso de Albuquerque, nomeando para a presidir Anselmo Braamcamp Freire, sócio de ambas as instituições, eleito no ano seguinte Presidente da SGL, onde decorreria uma primeira reunião, a 20 de Fevereiro de 1913. A Comissão inicial, que havia mais de um ano encetara os seus trabalhos, foi englobada nesta última, competindo-lhe, essencialmente, promover a publicação das edições comemorativas, sob a coordenação de Henrique Lopes de Mendonça, que era o Presidente da ACL e ficou a presidir à Comissão académica. Naquela reunião ficou ainda decidido associar ao projecto muitas outras entidades públicas e privadas, por forma a dar-lhe maior visibilidade e concorrerem com a indicação de nomes prestigiados. Realizados os contactos e recebida a aceitação dos convites endereçados, instalou-se uma comissão executiva, na sessão de 29 de Abril e, na de 22 de Julho, foi aprovado o Programa dos festejos.

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Ceuta, 1415 - Um projecto de reconciliação nacional, afirmação do poder régio e legitimação da nova dinastia

Não há aqui nem tempo, nem espaço, para relatar todas as tristes peripécias no relacionamento da comissão com o governo que, entretanto, mudara. Em suma, a falta de recursos disponibilizados pelo Estado, para a realização do ambicioso Programa delineado, fez reduzir os eventos a duas sessões solenes promovidas pelas duas únicas instituições que se mantiveram firmes naquele objectivo patriótico, sem qualquer apoio orçamental – uma primeira a 21 de Agosto de 1915, na SGL, evocando a Tomada de Ceuta, e uma outra, na ACL, a 16 de Dezembro seguinte, dedicada a Afonso de Albuquerque. Salvou-se, pese a dilatação das datas, como já aludimos, a publicação das Fontes e dos Estudos, cuja extensa lista é bem conhecida. Permitamnos referir o número de 1915, dos Anais do Clube Militar Naval, um dos parceiros associados, dedicado à jornada de Ceuta, bem como o empenho do general Carlos du Bocage, sócio das duas instituições, ao traduzir do francês, a obra que em português correria com o título Consolações dirigidas a Catharina de Neufville, de Antoine de la Salle, em que está incluído o relato da conquista de Ceuta, pelo próprio autor, o aventureiro picardo que naquela participou. A SGL empenhou-se ainda em dar à estampa, um número especial do seu Boletim, que foi lançado durante a já referida sessão solene, a par da abertura de uma significativa Exposição de mostruário industrial. A ACL, publicaria um volume, intitulado Centenários de Ceuta e de Afonso de Albuquerque [Coimbra, Imprensa da Universidade, 1916], que inclui o Discurso dolorido proferido por Henrique Lopes de Mendonça, na qualidade de Presidente da ACL, durante a sessão solene ali realizada, na presença do Presidente da República, Bernardino Machado, o tal Relatório, de António Baião, na qualidade de Secretário da Comissão, que inclui a lista das Fontes seleccionadas para edição, para além do Discurso agreste e indignado de Anselmo Braamcamp Freire, na qualidade de Presidente da Comissão dos Centenários, a Lista dos delegados das entidades públicas e das organizações privadas associadas, o Programa aprovado pela Comissão, o Projecto de Lei, elaborado pela Comissão, datado de 15 de Dezembro de 1915, enviado ao governo naquele mesmo dia, com as possíveis iniciativas subsequentes, o Discurso de João de Almeida Lima, como representante da SGL, muito embora também fosse sócio da ACL, uma Descrição de Ceuta por Baltazar Osório e, por fim, o Discurso de Henrique Lopes de Mendonça, sobre Afonso de Albuquerque, na qualidade de Presidente da Comissão académica. Este oficial da armada, que fora, no desditoso ano de 1890, o autor da Letra d’A Portuguesa, elevada pela República a Hino Nacional, concluiria com versos de Camões, no Canto X d’Os Lusíadas: Não mais, Musa, não mais; que a lira tenho Destemperada, e a voz enrouquecida; E não do canto, mas de ver que venho Cantar a gente surda e endurecida.

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Ceuta, 1415 - Um projecto de reconciliação nacional, afirmação do poder régio e legitimação da nova dinastia

A terminar a sessão solene daquele dia 16 de Dezembro de 1915, recordou palavras da sua lavra, redigidas, havia um quarto de século, exortando todos os presentes a manterem a esperança, mas considerando-as indignas de confronto: Levantai hoje de novo O esplendor de Portugal. As polémicas sobre as causas da conquista de Ceuta, em 1415, não mais abandonaram a Historiografia dos Descobrimentos, já que se alargaram, por generalização, às causas da Expansão Portuguesa. A mirabolante hipótese sustentada por António Sérgio, pretendendo que Marrocos fosse um celeiro desejado por Portugal, foi a que, porventura, mais alimentou e animou as mais acesas discussões, com reflexos profundos no imaginário nacional, sobre aquela empresa, fruto da sua integração nos manuais escolares, por onde estudaram a história pátria sucessivas gerações, ao longo de todo o século XX. Da repercussão da polémica nos meios académicos há inúmeros testemunhos, já em comunicações apresentadas, tanto na ACL, como na SGL, tal foi o caso de duas de Joaquim de Carvalho, em 1937 e 1944, respectivamente, como até durante a arguição de teses de doutoramento, de que sublinhamos a de Mário de Albuquerque, tão exemplarmente dilucidada por Martim de Albuquerque no volume de Estudos em Memória do Professor Doutor Mário de Albuquerque, publicado em 2009 (Lisboa, IIDHFLUL). As polémicas de António Sérgio com professores universitários já se tinham iniciado com Martinho Nobre de Melo, professor da Faculdade de Direito de Lisboa, à volta do 2 sequência da que mantivera com Carlos Malheiro Seiscentismo e de D. Sebastião, esta última na

Dias, a propósito do seu manifesto Exortação à Mocidade, de 1924, mas é ainda conhecida uma outra com o professor das Faculdade de Direito de Coimbra, Luís Cabral de Moncada. O mito dos cereais magrebinos tem, quiçá paralelo, com o da Escola de Sagres, baseado, a partir do século XVI, na hipótese levantada por Damião de Góis e passado a letra de forma pelo inglês Samuel Purchas, em 1625, nas famosas Pilgrimes, editadas em Londres. O que importa reter, para a compreensão do ambiente cultural em que decorreram as Comemorações dos Centenários de Ceuta e da Morte de Afonso de Albuquerque, é o facto de no país estar instalada a primeira grande polémica sobre a Cultura Portuguesa, no século XX, logo a partir de 1911 – está a História de Portugal errada ou foi mal ensinada? – e as respostas não demoraram, já que podem ser identificadas, pelo menos, quatro correntes com pressupostos e protagonistas distintos. Entre 1912 e 1918, a luta pela supressão da História, no domínio da Cultura, foi implacável, levando até à criação da Sociedade Nacional de História, em 1911, pela mão de algumas figuras de destaque como Fidelino Figueiredo e Fortunato de Almeida, que daria lugar, em 1914, à Sociedade Portuguesa de Estudos Históricos que perduraria até 1928.

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A ideia de uma sociedade decadente, já antiga, desde a conferência de Antero de Quental, em 1871, tinha sido sucessivamente alimentada e reacendia-se, também em 1915, com o surgimento do conhecido grupo do Orpheu, em que o regresso à autenticidade, com a tutela provisória da minoria estética daquele, vem sugerir um movimento libertador não-cousificante, se atendermos ao pensamento de Leonardo Coimbra. A História surgiu para muitos como a sua luta pela verdade, pela autenticidade, pela interioridade, pela não banalização. Havia que manter viva uma dimensão, que era o passado, mas que dava ao homem uma perspectiva mais rica do que, na verdade, o homem fora. Era uma espécie de catalisador de vontades, um apelo a um despertar para objectivos nobres, acima das polémicas jornalísticas. Como que se pedia à História que fornecesse a experiência do passado, capaz de permitir aos Portugueses manteremse como Estado, como Nação, como país independente. O presente momento comemorativo, sobre a Tomada de Ceuta, também começou a ser preparado, com igual antecedência, pelas instituições que hoje aqui estão representadas. Entre Maio e Julho de 2012, a Direcção da SGL elaborou um extenso Programa, de que resultaria, depois de ouvidas as Comissões e Secções, um Ciclo com sessões mensais, iniciado a 29 de Maio de 2013, que ainda decorre. A APH teve uma primeira sessão em 7 de Novembro de 2012. A AM já realizou duas no passado mês de Abril, com uma outra, solene, no Dia da Marinha, a 20 do corrente, sendo que decorrerá, na segunda semana do próximo mês de Novembro, um Simpósio alusivo ao tema organizado por esta, em colaboração com a APH. A CPHM tem anunciado o seu Colóquio para a terceira semana de Novembro. A ACL, está aqui hoje, nesta sua primeira sessão cultural conjunta com o ICEA, muito embora já tenha dedicado ao assunto uma em Abril, tendo uma outra já em preparação. Quanto a publicações, para além das Actas destes eventos, que serão, oportunamente, dadas à estampa, sairão, no próximo dia 16 do corrente, as do Encontro de Torres Vedras, ocorrido no ano transacto e, futuramente, as do de Alhos Vedros, realizado no passado mês de Abril. Decorrerão, ainda, na primeira semana de Dezembro, em Lisboa, as VIII Jornadas Luso-Espanholas de História Medieval, a propósito de Ceuta. Tanto quanto me é dado saber, o Círculo de Leitores projecta lançar, ainda este ano, uma nova edição do seu Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses, sob a direcção e coordenação de Francisco Contente Domingues, com o que se associa às comemorações em curso. II – INTRODUÇÃO Cá nós de uma parte nos cerca o mar e da outra temos muro no reino de Castela Zurara O significado desta frase tem merecido, por parte de muitos historiadores, as mais diferentes considerações, mormente no caso da avaliação das motivações da jornada para a conquista de Ceuta, não fora ela escrita pelo cronista Zurara, exactamente na obra em que se ocupou deste episódio maior da nossa História – a Crónica da Tomada de Ceuta. Temos para nós que uma das contextualizações mais claras foi conseguida por Jorge Borges de Macedo, na sua História

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Diplomática Portuguesa – constantes e linhas de força, precisamente, no capítulo intitulado “A defesa do equilíbrio”, em que nos alerta para uma evidência.


Ceuta, 1415 - Um projecto de reconciliação nacional, afirmação do poder régio e legitimação da nova dinastia

O conceito de «nação situada», forjado pelo historiador, esclarece uma permanência da nossa identidade desde a fundação da nacionalidade e que ganhou substância no reinado de D. Dinis, como bem sabemos o criador do almirantado. É-nos possível afirmar que já se pode identificar uma estrutura de pensamento naval e, mais ainda, um objectivo geoestratégico a implementar. http://www.theoi.com/Ther/LeonNemeios.html

D. Dinis foi o obreiro da decisão sobre o futuro de Portugal numa perspectiva de espaço, que ultrapassando a fronteira terrestre consignada em Alcanizes, alargou-se a um outro bem mais vasto, no mar, qual fronteira estratégica de segurança, garante da soberania, e que numa articulação entre o Mediterrâneo e o Atlântico, encontrou novos limites – o meridional no estreito de Gibraltar e o setentrional no canal da Mancha. E tudo isto até uma consciência acrescida, já no reinado de D. Fernando, que levou este monarca à celebração do Tratado de Westminster, em 1373, no seguimento do de Tagilde, do ano anterior. D. João I entre a Primavera de 1384 e a de 1386 conduziu uma intensa actividade diplomática que terminaria com a assinatura do Tratado de Windsor e a sua Convenção Marítima anexa, a 9 de Maio daquele último ano. Este tratado foi o garante da construção de uma centralidade desenhada de forma a consubstanciar, na retaguarda, a salvaguarda da independência do reino face à constante ameaça castelhana. Borges de Macedo, na mesma obra, vem a considerar que: Portugal, com esta aliança, ao lado da independência como estado, conservou a sua função europeia de garantir uma área essencial de tráfego internacional, livre das hegemonias peninsulares. A conquista de Ceuta, em 1415, representou, também, o reforço dessa política de garante estratégico da soberania, face, ainda, aos contínuos ataques da pirataria oriunda do Norte de África. Não há aqui, nem espaço, nem tempo, para grandes considerações preliminares sobre os antecedentes da vocação expansionista portuguesa, de que Ceuta foi um passo importante, não esquecendo, porém, a expedição luso-florentino-genovesa às Canárias, de 1341, no reinado de D. Afonso IV, em que também participaram castelhanos e sobressaíram os capitães Angiolino dela Tegghia di Corbizzi e Niccoloso da Reccho, tão curiosamente relatada por Giovanni Boccaccio. Importa, contudo, perceber que o permanente corso e pirataria berberesca, a que estava sujeita a orla marítima portuguesa, levaram D. Dinis à necessidade de constituir, em 1280, logo no início do reinado, um sistema de defesa costeira, providenciando a criação de uma armada de guarda-costas sediada no Algarve. Esta mesma realidade levara já Afonso X, o Sábio, a ordenar uma acção punitiva a Salé, em 1260, enviando uma armada que, na impossibilidade de se conseguir manter naquele porto, por lá permaneceu escassos dois meses, optando por abandonar a cidade depois de a saquear e incendiar. Quando Borges de Macedo se referia ao facto de que no caso da Península a expansão marítima para áreas novas vem suscitar um conceito de espaço completamente diferente e que os estados hispânicos são, primeiro que ninguém, chamados a considerar, estava por certo atento aos considerandos do Tratado de Monteagudo e do Acordo de Sória, de 1291, em que os monarcas peninsulares dividiram entre si a costa magrebina. Certo é que Henrique III de Castela, em 1400, mandara preparar uma esquadra que veio a destruir o porto de Tetuão e, em 1406, as Cortes, reunidas em Toledo, apoiaram a proposta do rei para passar à guerra com Granada, o que só a morte daquele veio obstaculizar. Ceuta era, contudo, a chave do Mediterrâneo, como Zurara a classificou na Crónica de D. Pedro de Meneses.

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Ceuta, 1415 - Um projecto de reconciliação nacional, afirmação do poder régio e legitimação da nova dinastia

Muito sumariamente, recordamos que D. Dinis já obtivera do papa João XXII, a bula Apostolice Sedis, de 23 de Maio de 1320, que concedia à Coroa, por três anos, o dízimo das rendas eclesiásticas de todo o reino, e que consentia e agradecia toda a intervenção no sentido da conquista dos territórios nullius diocesis, insistindo na guerra contra os Mouros. As bulas da Cruzada tinham, para além do mais, o forte incentivo de patrocinarem, em boa parte, o financiamento das expedições, bem como o reconhecimento da guerra justa e a absolvição perpétua para todos os que morressem a lutar contra os infiéis. D. Afonso IV recebeu de Bento XII, a Gaudemus et exultamos, de 30 de Abril de 1341, com as indulgências necessárias à conquista do reino de Fez, com a hipótese para o reino de Granada, concedida por um biénio e cedendo ao rei, para o efeito, o dízimo das rendas eclesiásticas do reino. Ainda neste reinado, em 10 de Janeiro de 1345, e dirigida ao rei, Clemente VI assinou a bula Nuper pro parte e, dirigida ao arcebispo de Braga e aos bispos de Évora e de Viseu, datada de 21 de Fevereiro de 1355, a Romana mater ecclesia, de Inocêncio VI. Já no reinado de D. Fernando estas bulas seriam renovadas através de duas outras, ambas denominadas Accedit nobis, de Gregório XI – uma em 2 de Abril de 1376, dirigida aos eclesiásticos e, a outra, de 12 de Outubro de 1377, ao rei. Estes dados permitem-nos ajuizar da permanente vontade, já dos soberanos portugueses, já do papado, em prosseguir na luta contra os Sarracenos. Muito embora não haja conhecimento da bula da Cruzada utilizada na conquista de Ceuta, sabemos que Fr. João Xira a pregou em Lagos, a 28 de Julho de 1415, absolvendo de culpas e de penas, por meio dela, todos os que iam na armada. Alguns autores têm vindo a identificá-la com a Eximiae devotionis affectus, concedida a D. João I pelo antipapa João XXIII (Baldassare Cossa), a 20 de Março de 1411. Não cabem aqui considerações sobre a política externa portuguesa, nas suas relações com o papado, neste período do Grande Cisma, que decorreu entre 1387 e 1417, tendo terminado no Concílio de Constança. O que não podemos deixar de sublinhar é o facto de ter toda a pertinência que a bula tenha sido solicitada ao papa que Castela reconhecia, que mais não fosse para obrigar aquele reino ao respeito pela sua autoridade, não importunando Portugal, com qualquer iniciativa bélica, enquanto a expedição a Ceuta decorresse. III – SOBRE A IDEIA DA EXPEDIÇÃO A CEUTA Mesmo antes de reflectirmos sobre as causas da expedição a Ceuta, convém, desde já, apoiados nas informações de Zurara, considerar algumas passagens da crónica que nos ajudam a responder à questão: Quando e como teria nascido a ideia? No capítulo LXIII, em que é relatado o que se passou no que ficou conhecido como o Conselho da Ponta do Carneiro, depois da primeira tentativa frustrada de desembarque em Ceuta, o rei pronunciou-se nestes termos: Ora, disse ele, vos quero responder a tudo o que me falaste acerca de meus feitos. E, quanto é ao que dizeis que me torne para meu reino, parece-me que assaz seria de grande míngua haver acerca de seis anos, que ando em este trabalho, fazendo sobre ele tantas circunstâncias como sabeis, pelas quais o mundo está com as orelhas abertas para ouvir o fim da vitória. Podemos então concluir que a ideia de ir sobre Ceuta nascera, pelo menos, em 1409.

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Ceuta, 1415 - Um projecto de reconciliação nacional, afirmação do poder régio e legitimação da nova dinastia

Uma outra passagem, quando os Portugueses já se encontravam na cidade de Ceuta, no capítulo LXXIV, intitulado Como os Infantes partiram dali e das razões que lhe João Afonso, vedor da fazenda, disse quando chegou a eles, parece-nos de capital importância sublinhar: Cristo Jesus Nosso Senhor foi aquele, a quem direitamente poderemos dar a honra deste feito, empero não ficam os homens que em ele trabalharam sem mui grande parte da honra. Entre os quais João Afonso, vedor da fazenda, merece a sua parte, por ser por ele movida uma tão santa e tão honrada cousa. Pensamos poder retirar desta passagem a informação de que o vedor da fazenda João Afonso teria sido um dos inspiradores da empresa, quiçá transmitindo ao monarca as suas preocupações no que respeitava à crise monetária e social que atingia o reino, com a nobreza desocupada, e que também afligia os mercadores do reino envolvidos no comércio internacional. Zurara, no capítulo VIII, alude à expedição a Ceuta como uma alternativa às grandes festas em Lisboa, durante as quais D. João I pretendia armar cavaleiros os seus três filhos. No capítulo seguinte faz o vedor da fazenda, encontrar-se com os infantes, para durante a conversa, João Afonso de Alenquer lhes dar a ideia da conquista de Ceuta – feito adequado para que príncipes da sua linhagem ganhassem a honra propiciatória de uma tal investidura. No momento em que o rei já se tinha decidido a avançar com o projecto da ida a Ceuta, no capítulo XXIV da Crónica de Zurara, uma fala de D. João I, encontrando-se em Santarém, ao ser visitado pelos infantes D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique, ao transmitir-lhes a sua decisão, anuncia-lhes a vontade de reunir o seu conselho em Torres Vedras, pelo próximo São João, onde entendo propor este feito e determinar o termo certo em que com a Graça de Deus hajamos de partir. Neste mesmo capítulo podemos ler um comentário de Zurara: Cá segundo achamos des que neste feito primeiramente foi falado até aquele ponto, eram passados melhoria de três anos. Ora se o conselho secreto de Torres Vedras se reuniu afinal, em Julho de 1414, como hoje sabemos, podemos concluir que tendo aquela fala precedido o evento, conjugada com esta última informação do cronista, a entrevista do vedor com os infantes teria ocorrido em meados de 1411. Todos estes dados nos levam ainda a crer que a projectada aventura magrebina bem pode ter apressado as negociações com Castela, com vista à celebração do Tratado de Paz, que se veio a concretizar em 31 de Outubro de 1411, garantindo, deste modo, uma estabilidade na fronteira que permitiria ao rei poder dedicar-se àquela, com alguma tranquilidade. A Paz de Ayllon (Segóvia) não foi estabelecida com carácter definitivo (só em 30 de Outubro de 1431, a Paz de Medina del Campo o consagraria), porque encontrava-se viva a rainha D. Beatriz (que só viria a falecer, depois de Junho de 1412). De qualquer modo, muitos nobres exilados em Castela, alguns desde 1385, já tinham regressado ao reino, tal fora o caso de D. Pedro de Meneses, pelo menos desde 1403, confrontando-se o monarca com a situação de tentar promover o convívio possível entre estes e os seus sempre fiéis vassalos. O empenhamento solicitado a toda a nobreza para seguir junta, na expedição a Ceuta, que é atestado por Zurara ao relatar-nos o Conselho de Torres Vedras, apoia a nossa convicção de que a empresa, para além de traduzir uma afirmação do poder régio, constituiu um projecto de reconciliação nacional.

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Se em D. João I se pressente um desejo de centralização do seu poder, atestado na decisão em restringir fortemente o domínio dos nobres, como bem se pode deduzir do que ficou escrito no capítulo LXIII da Crónica do Condestabre, e ainda no capítulo LVIII da mesma, em que tal se traduz pela resistência eficaz do monarca às pretensões da nobreza, que tinham conseguido cativar D. Nuno Álvares Pereira para seu procurador nas Cortes de Braga, de 1387, não é menos verdade que convinha a alguns nobres uma saída para a sua precária situação económica e financeira, que a passagem a Marrocos podia solucionar. Quanto aos mercadores a informação não escasseia. No capítulo XXXIV da Crónica da Tomada de Ceuta é referido pelos embaixadores granadinos que os naturais daquele reino costumavam vir a Portugal com as suas mercadorias, e os mercadores portugueses frequentavam Granada como se dela fossem naturais, ao que D. João I respondia não haver razão para assim deixar de acontecer. O comércio com Marrocos vem bem explicitado no capítulo LXXXI da Crónica do Conde D. Pedro de Meneses onde se pode ler que os Mouros, quase todos os anos, compravam a fruta do Algarve com moeda de ouro, e que os navios portugueses visitavam regularmente os portos marroquinos. Sabemos bem, porque alguns historiadores o afirmam com provas, tal é o caso de Vitorino Magalhães Godinho, que em anos de escassez no reino de Fez os mercadores portugueses chegavam mesmo a ir aos portos da Flandres, da Inglaterra e da Bretanha comprar cereais para os venderem aos mouros com lucros avultados, como acontecera em 1414. Às considerações anteriores acresce a nomeação pelo papa, em 10 de Maio de 1413, do franciscano Frei Aimaro de Aurillac, confessor da rainha D. Filipa de Lencastre, para bispo de Marrocos, a pedido de D. João I, no ano anterior (dois outros documentos papais, ambos datados de 5 de Março de 1421, vêm a criar a diocese de Ceuta, para ela transferindo, como seu primeiro bispo, durante a presença portuguesa na praça, aquele mesmo prelado). Zurara terminou, em 1450, a sua Crónica da Tomada de Ceuta, por muitos considerada a Terceira Parte da Crónica de D. João I, escrita a pedido de D. Afonso V para aureolar a figura do seu avô, primeiro rei da nova dinastia, evidenciando a sua superior capacidade na gestão dos destinos do reino, ou seja, reforçando a sua legitimação. Nisso se empenhou o cronista com a pujança dos seus dotes, que lhe mereceram de Mateus Pisano o cognome de Magnus Historiographus, e que João de Barros viria a descrever como homem diligente, com estilo claro e vivaz, acrescentando que “se alguma cousa há bem escrita das crónicas deste tempo, é da sua mão”. A aura de D. João I, depois do sucesso de Ceuta, correu a Europa, e as suas qualidades de rei exemplar foram reconhecidas pela Santa Sé. Na bula Sane charissimus, de Martinho V, dada em Constança a 4 de Abril de 1418, onde se encontrava reunido o concílio e nele participava uma delegação portuguesa (recebida solenemente em 5 de Julho de 1416), D. João I é considerado pelo papa rex, catholicae fidei pugil et athleta fortissimus. Concedida durante a realização daquela reunião magna da Igreja, é-nos possível adivinhar o impacto de um tal elogio.

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No mesmo dia, Martinho V expediu duas outras bulas com destino a Portugal – a Rex regnum, pela qual prescreve o reconhecimento ao reino português da praça de Ceuta, confere o domínio de todos os lugares que se vierem a conquistar ao rei de Portugal e aos seu sucessores, e ordena às autoridades eclesiásticas a pregação da Cruzada durante todo o tempo de vida de D. João I, para além de exortar todos os reis, senhores e homens livres cristãos a tomar armas em auxílio do rei de Portugal; e a Romanus pontifex em que possibilita a elevação daquela a cidade, bem como da mesquita a sé catedral, recordando aos arcebispos de Braga e de Lisboa a instituição de um bispado em Ceuta. A permissão de se negociar com os Mouros será dada só uns meses mais tarde, a 3 de Julho de 1418, pela bula Super gregem dominicum. No ano de 1419, quatro novas bulas: duas dirigidas a D. João I, ambas datadas de 26 de Março, a In apostolicae dignitatis specula e a Ab eo qui humani, concedendo aos moradores de Ceuta a eleição de um confessor para remissão dos seus pecados, por um período de sete anos; a Decens esse videtur, de 4 de Abril, e a Cum omni virtutum exercitio, de 28 de Setembro, dirigidas a todos os fiéis cristãos para que prestem auxílio e favor ao rei português na sua luta contra os Mouros. Em 2 de Junho de 1420 são expedidas duas outras bulas: a Quia dilatationem, para mais uma vez se contribuir com os meios que permitam o reforço da defesa da cidade, e a In eminentia specula, em resposta a um pedido do Infante D. Pedro autorizando a construção de um mosteiro franciscano em Ceuta. O papa, como podemos avaliar por todas estas bulas, tinha uma preocupação especial no sentido de que Ceuta pudesse permanecer bem defendida, tal era a importância reconhecida a este baluarte cristão, implantado no seio do Islão, a par da vigilância sobre o Estreito, que importava a toda a Cristandade nas suas relações com o Mediterrâneo. Ao falarmos, de seguida, sobre as dúvidas de D. João I sobre a ida a Ceuta, tal como Zurara nos relata na sua Crónica, nada nos pode garantir que assim se tivesse passado, mas fica-nos a certeza de que essa seria à época, no conceito geral, a atitude devida e esperada da actuação de um bom governante e de um rei justo, como convinha que ficasse registado na obra que o seu neto encomendara ao cronista, para com ela exaltar o avô e, a bem dizer, a nova dinastia, promovendo a sua legitimação, como já dissemos atrás. IV – AS DÚVIDAS DE D. JOÃO I Não nos é possível relatar aqui todos os enredos que o cronista aproveita para elevar as virtudes de D. João I, posto ao corrente, pelo vedor e pelos infantes, daquela proposta de empresa em África. Fiquemos tão-só pelas dúvidas levantadas pelo rei. Para que o pai se orgulhasse dos seus filhos, são eles mesmo que, para lhe aguçarem a vontade e lhe suscitarem a anuência, começam por invocar três razões. Uma primeira, o grande serviço a Deus que consistia em dar luta aos infiéis, dilatando a Fé. A segunda acolhia-se ao acrescentamento da honra dos infantes, e a terceira, qual corolário da anterior: a grande e boa vontade que tendes de nos fazerdes honradamente cavaleiros.

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Confrontado com estas três premissas, é bem de ver que só a primeira levantou dúvidas ao rei, sobre se o prosseguimento daquele feito podia trazer quanto à Fé e serviço de Nosso Senhor. E el-rei mandou logo chamar o mestre Fr. João Xira e o Dr. Fr. Vasco Pereira que eram os seus confessores […] e assim outros alguns principais letrados, como podemos ler no capítulo X. No capítulo seguinte, surge a resposta: não havemos por que acrescentar mais soma de palavras, abasta que nós que aqui somos presentes por autoridade da Santa Escritura, […], determinamos que vossa mercê pode mover guerra contra quaisquer infiéis, assim mouros como gentios. O monarca confrontava-se com a necessidade de ter uma autorização do poder espiritual para que lhe fosse reconhecida a guerra justa e, por conseguinte, que estivessem garantidas todas as cláusulas de salvaguarda, bem como a absolvição perpétua para todos os que morressem na luta contra os infiéis, como já referimos atrás. Avancemos para a análise de outras dúvidas de D. João I, contempladas no capítulo XII da Crónica, uma vez ultrapassada a que se relacionava com o serviço de Deus, que levou o monarca a considerar que era mesmo seu dever ir a Ceuta, porém […] eu achei muitas e grandes dúvidas, das quais principalmente direi cinco, que não são todas juntas, mas cada uma por si é abastante para empachar o fim deste feito. E quero-vos dizer quais são, por que possais conhecer a força da sua valia. As dúvidas relacionavam-se com o facto do rei entender que não tinha dinheiro para realizar a expedição, nem como o pedir ao povo, já por se encontrar sobrecarregado de impostos, já porque se o fizesse quebraria o segredo; com a falta de navios e armamento; com a falta de gente suficiente para uma tal empresa, uma vez que também não poderia deixar as fronteiras do reino desguarnecidas; com a evidência de que, mesmo saindo vitorioso, o sucesso mais aproveitaria aos castelhanos e, a última, a necessidade de saber como haveria de manter Ceuta no futuro, ocorrendo-lhe que seria desastroso ganhá-la para depois a perder, já pela desonra, já pela incapacidade de a retomar, o que representaria um incremento da actividade de corso e pirataria berberesca, como ainda pela esperada acção repressiva dos mouros aos navios portugueses que faziam comércio no Mediterrâneo, ao atravessarem o estreito. O soberano rematava: E se, por ventura, algum de vós entender que estas dúvidas não são justas nem razoadas, mostre-me o contrário, e eu lho concederei, segundo for direito e razão. Os infantes conseguiram convencer D. João I da importância da jornada de Ceuta, argumentando por forma a dissipar as dúvidas do pai. Dissipadas estas, tudo o que se passou depois foram os preparativos para a construção do plano, que deveria estar pronto antes do rei reunir o já referido Conselho de Torres Vedras. V – CONCLUSÃO Muitos outros episódios importantes ficaram pelo meio, nomeadamente o Conselho de Sintra, em que o Prior do Hospital, D. Álvaro Gonçalves Camelo e o Capitão-mor do mar, Afonso Furtado, deram conta da sua visita de espionaçom a Ceuta, encoberta pela viagem da embaixada que o monarca enviara ao reino da Sicília e que, à ida e no regresso, escalaram aquele porto.

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A decisão final de D. João I estava ainda longe de ser tomada. Depois do encontro de Sintra, o rei veio a considerar, perante os filhos, uma outra necessidade, digamos antes uma exigência, para que tudo pudesse prosseguir, já que havia duas pessoas no reino para quem não tinha segredos, acrescentando que duvidava muito começar aquele feito, antes de do saber, primeiramente, a Rainha e o Condestável. Competiria aos infantes disso darem conta a ambos, e deles trazerem a anuência. Na verdade, isto veio a acontecer, sendo muito significativas as considerações pronunciadas durante as duas reuniões, bem como as duas posteriores entre o rei e a rainha e o rei e D. Nuno Álvares Pereira. Nesta última, já preparatória do Conselho de Torres Vedras, o condestável opinou sobre o modo como o monarca se deveria pronunciar no decurso da sua realização – não questionando os conselheiros sobre se estavam de acordo na ida a Ceuta, como aquele pretendia, mas antes tomando a empresa como decidida, indagar, tão-só, se todos estavam consigo, na firme decisão de o seguirem, ouvindo-os sobre como entendiam se poderia levar a cabo aquela expedição. Assim veio a ser, numa «jogada de mestre» de D. Nuno, não deixando qualquer margem para surgirem opositores, tal foi o modo como, ele próprio, se dirigiu aos circunstantes. Foi neste preciso momento que, quanto a nós, ficou consagrada a reconciliação entre os sempre leais servidores de D. João I e os recém-chegados nobres exilados em Castela, cuja decisão em acompanharem o seu rei, face à Paz celebrada, não poderia ser outra. Estamos certos de que esta realidade foi também um motivo de peso para que o projecto da empresa de Ceuta tivesse vingado. Não seria possível a Zurara, muito menos volvidos 35 anos, reportar esta circunstância na sua obra, mas nela pretendemos ler, a corroborar a nossa interpretação, numa primeira fase, a associação ao projecto do Prior do Hospital, um exilado que já regressara ao reino e, na sua fase final a nomeação de D. Pedro de Meneses para capitão da praça de Ceuta, ele que era filho de um primo direito da rainha D. Leonor Teles. Todas estas dúvidas consubstanciaram na Crónica de Zurara o que era pretendido por D. Afonso V – dar de D. João I a imagem de um espelho de virtudes, de exemplo do que foram as práticas da boa governação do monarca que ficaria na história como O de Boa Memória, sem esquecer que soubera escolher bem os seus mais directos colaboradores, tal fora o caso da figura ímpar de D. Nuno Álvares Pereira. Deste modo prosseguia a legitimação da dinastia de Avis, também engrandecida pela personalidade de uma rainha de elevado perfil moral, fé católica e especial atenção às gentes do reino, de devotamento ao rei e à educação dos filhos, esses príncipes da Ínclita Geração. O cronista recorre aos filósofos antigos, aos doutores da Igreja e aos Evangelhos para, ao longo da sua narrativa, exaltar as virtudes de todos os membros da realeza, que foram os pilares que alicerçaram a segunda dinastia, aproveitando para tal o esclarecimento das dúvidas enunciadas.

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Escutemos ainda, muito brevemente, uma parte do relato da entrevista do rei com a rainha, ouvindo primeiro D. Filipa e depois a resposta de D. João I: E assim senhor, que minha tenção é, que melhor é ficardes, que por nenhuma cobiça de honra vos moverdes de partir de vosso reino. […] Todas vossas razões, senhora, são para considerar quanto pertence àquele que se movesse principalmente por causa de honra, o que certamente não é em mim, somente me lembra como sujei meus braços em sangue de cristãos, o qual, posto que justamente fizesse, ainda me parece dentro em minha consciência que não posso disso fazer cumprida pendença, salvo se os mui bem lavasse no sangue dos infiéis, cá determinado á na Santa Escritura que a perfeita satisfação do pecado é cada um, por onde peca, por ali haver pendença. O rei refere-se aqui às batalhas entre Portugueses e Castelhanos, que ocorreram no período conhecido como a «Crise de 1383-1385», em que houve um assinalável número de mortos e feridos, obviamente cristãos. O tempo já vai longo, impõe-se que terminemos. Seria importante termos dedicado um capítulo a alguns outros assuntos como: o Conselho secreto de Torres Vedras, um mais restrito a que Zurara alude sobre o encobrimento do propósito da armada que se iria formar, pondo a circular notícias falsas sobre a natureza da expedição, o conselho régio de Alhos Vedros, o último antes da partida de Lisboa; o que significou o lançamento de moeda – os conhecidos reais brancos, referidos por Fernão Lopes; a participação de estrangeiros na tomada, baseados no relato de Antoine de la Salle (permaneceria em Portugal, pelo menos o cavaleiro picardo, Pierre de Severim, natural do bispado de Senlis, na região de Oise, que desposou Constança Pires de Camões e de quem descendem os de apelido Severim, como o consagrado chantre da Sé de Évora e seu irmão, D. Frei Cristóvão de Lisboa); as cartas do espião aragonês Ruy Dias de Vega; as referências à conquista de Ceuta na Cronica de Juan II de Castilla, de Alvar Garcia de Santa Maria, o Diário veneziano de António Morosini, que mereceu um estudo do nosso querido mestre Joaquim Veríssimo Serrão e as três primeiras referências à tomada de Ceuta, curiosamente, todas elas escritas em latim – as que constam em duas passagens do Livro de Arautos, de 1416, as diversas nos discursos dos embaixadores ao Concílio de Constança e do elogio do reino de Portugal, ali realizado pelo bispo de Salisbúria, também em 1416, e as inscritas a meio do epitáfio gravado na pedra lateral do túmulo de D. João I, na capela do Fundador no mosteiro da Batalha, concluída por volta de 1433/34. Ficam aqui as sugestões para os mais interessados se lançarem a investigar, já que existe vasta bibliografia de apoio. Pensamos ter conseguido corresponder ao que propusemos no título da nossa comunicação: “CEUTA, 1415 – um projecto de reconciliação nacional, afirmação do poder régio e legitimação da nova dinastia”.

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CONGRESSO DE HISTร RIA E MITOLOGIA

O CAOS

As diferentes faces da desordem

28, 29 e 30 de Outubro de 2015 Museu da Farmรกcia INSTITUTO PROMETHEUs


CONGRESSO DE HISTÓRIA E MITOLOGIA

O CAOS

As diferentes faces da desordem CALL FOR PAPERS

28, 29 e 30 de Outubro de 2015

Entre 27 de Abril a 30 de Julho o Instituto Prometheus abre um pequeno período para candidaturas a propostas de comunicação para o Congresso de História e Mitologia: O Caos - As Diferentes Faces da Desordem.

Museu da Farmácia

As propostas não podem exceder mais de 300 palavras e devem especificar o título da mesma. Adicionar uma nota bibliográfica (fontes e bibliografia) com o máximo de seis entradas. INSTITUTO Adicionar uma nota biográfica com o máximo de 150 palavras.

PROMETHEUs

Na proposta indicar qual a temática a ser inserido: “Era assim no início”: o caos como elemento de criação; Divindades; Elementos e Criaturas Caóticas; Representações do caos no cinema, vídeo-jogos , literatura e música; Castigos; medo/pânico e o caos depois da morte; “All ends with a bang”: O caos como elemento destruidor - O Apocalipse; As duas melhores propostas serão agraciadas com a inclusão no Congresso e receberão outras ofertas no evento a realizar no Museu da Farmácia. Enviar as propostas para: chm.institutoprometheus.gmail.com / Website: http://congressohistoriamitologia.weebly.com/


As Eddas não dizem tudo

As Eddas não dizem tudo Hélio Pires

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Quais eram as crenças dos nórdicos antigos? Como é que eles acreditavam que o mundo tinha sido criado, que deuses governavam o cosmos, que destinos aguardavam os seres humanos

Doutorado em História Medieval pela Universidade Nova de Lisboa. Membro do Institutode Estudos Medievais da UNL.

depois da morte? As respostas para estas perguntas encontram-se nas fontes medievais que sobreviveram até aos nossos dias, nomeadamente a Edda do islandês Snorri Sturluson e a chamada Edda Poética. Sem elas, o nosso conhecimento da mitologia nórdica seria incrivelmente escasso. Teríamos talvez uma dezena de nomes e um número restrito de alusões mais ou menos enigmáticas a um punhado de mitos. Mas mesmo com as Eddas, o que temos é, ainda assim, um conjunto limitado de fragmentos que são, na sua grande maioria, produto de um determinado período e de uma parte específica da sociedade e geografia da Escandinávia antiga. Pode não parecê-lo, principalmente quando se lê a Edda de Snorri pela primeira vez, mas a verdade é que não dispomos de uma visão completa da mitologia nórdica em toda a sua diversidade ao longo de vários séculos. Regra geral, temos apenas porções que sobreviveram em documentos islandeses escritos a partir de 1220 e para as quais é fácil olhar e dizer que era naquilo que os nórdicos antigos acreditavam. Não era. Ou melhor, não inteiramente e não todos os nórdicos. Para percebê-lo é preciso ter um olhar crítico sobre as Eddas e sujeitá-las, sempre que possível, a um contraditório. Se o oráculo de Delfos exortava o indivíduo a conhecer-se a si próprio, no mundo da mitologia nórdica, como no da História em geral, do jornalismo e das redes sociais, é essencial conhecer as nossas fontes. I.

Um olhar crítico

A mitologia nórdica é um ramo norte da mitologia germânica, do mesmo modo que o dinamarquês, sueco, norueguês e islandês são do mesmo grupo linguístico que o alemão. Todos eles inserem-se no universo das culturas indo-europeias, cujas origens remontam, talvez, às estepes russas e a vagas migratórias que terão tido início vários milhares de anos antes de Cristo. A Escandinávia é também habitada por membros de um grupo cultural distinto, nativo e não-indo-europeu, a que se dá o nome de fino-úgrico e no qual se inserem os finlandeses, os nativos da Lapónia, os estónios e os húngaros. Não obstante as origens milenares, o que sabemos da mitologia nórdica provém quase exclusivamente de textos islandeses do século XIII. Para isso contribuiu largamente a introdução tardia da escrita entre os povos germânicos, que embora tendo um alfabeto próprio – as chamadas runas, que somaram múltiplas variações – nunca o usaram de forma extensiva.

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As Eddas não dizem tudo

Pelo menos que se saiba, serviram apenas para inscrições breves e um número limitado de versos gravados em madeira ou pedra. Nada que se assemelhe a livros ou volumes de texto, os quais só começaram a ser produzidos com a introdução do cristianismo, que levou consigo a cultura escrita das civilizações clássicas. Um bom exemplo desse processo é a forma como a assembleia nacional islandesa, estabelecida por volta de 930, deixou de ser uma instituição de base oral para passar a dispor de leis escritas. Originalmente, o chamado lögsögumaðr ou Orador da Lei, um cargo equivalente ao de presidente do parlamento, tinha o dever de memorizar integralmente o código legal, sendo para isso auxiliado por um conjunto de sábios que partilhavam a tarefa e garantiam assim a preservação oral das leis por um número considerável de pessoas. Mas na segunda década do século XII, pouco mais de cem anos depois da conversão oficial do país ao cristianismo, a mesma assembleia nacional tomou a decisão de criar um registo escrito de todas as leis islandesas, tarefa que teve início em 1117 (Quinn 2009: 30-3). E noutro sintoma dessa transformação cultural, entre 1122 e 1133, Ari Þorgilson escreveu o Íslendingabók, o primeiro livro de História islandesa (Whaley 2009: 162). Quer isto dizer que enquanto os gregos e os romanos pré-cristãos puderam escrever abundantemente sobre os seus mitos, crenças e práticas religiosas, precisamente porque dispunham de uma cultura escrita plenamente desenvolvida, entre os povos germânicos e, neste caso em concreto, entre os nórdicos antigos, foi só com a mudança de religião que essa ferramenta passou a estar disponível. Até esse momento, as baladas, os poemas, as narrativas sobre deuses, heróis e as origens do mundo dependiam em larga medida da memória humana e do registo oral, com todo o potencial de mutação que ele acarreta. E depois da transição religiosa, por volta do ano 1000, os mitos do passado já só eram isso mesmo: coisas do passado. Não foram imediatamente esquecidos, tendo em boa medida sobrevivido como folclore, peças de linhagens ilustres ou relíquias poéticas. Mas perderam o lugar central de que gozavam, decaindo por isso em importância e valor. Pior: essa depreciação ocorreu no contexto de uma sociedade dominada pelo cristianismo, aumentado assim a permeabilidade a influências ou reinterpretações cristãs. Um caso paradigmático é o de Loki, que seria originalmente um trapaceiro, mas veio a ser visto como um diabo nórdico. Nem podia ser de outra forma: um deus que se caracteriza pela ambiguidade moral e sexual e que age como um desestabilizador é facilmente interpretado com um senhor do mal por alguém que tem uma visão maniqueísta das coisas. Há um paralelo histórico interessante na forma como os europeus interpretaram o afrobrasileiro Exu. E é assim que, atingido o século XIII, cerca de duzentos anos depois da conversão oficial da Escandinávia, o que se tem não já é uma mitologia genuinamente pagã, registada por praticantes do politeísmo nórdico, mas apenas fragmentos tardios que foram transmitidos ao longo de dois séculos de cristianismo e trabalhados ou compilados por autores cristãos.

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Esse facto pode ser constatado na Edda do islandês Snorri Sturluson, que é a nossa principal fonte de informação para a mitologia nórdica. Escrita durante a década de 1220, consiste um manual de poesia skáldica, um género poético que data pelo menos do século IX (Whaley 2007: 479) e que se carateriza por uma métrica complexa, uma linguagem críptica e o uso recorrente de perífrases ou metáforas, muitas delas de matriz mitológica. Por exemplo, o mar podia ser chamado de sangue de Ymir e o ouro de lágrimas de Freya. Mas para decifrar essas expressões, é preciso conhecer minimamente os mitos que estão na sua origem; que os oceanos foram criados a partir do sangue do gigante Ymir e que a deusa Freya em tempos chorou lágrimas douradas. Trata-se, portanto, de um tipo de poesia enraizado na cultura pagã e que terá sobrevivido, pelo menos em boa parte, na tradição oral. E recuperá-la da decadência em que ela se encontrava no século XIII, restaurar a poesia skáldica segundo os seus cânones tradicionais, implicava reavivar a memória da mitologia nórdica e registar por escrito exemplos de versos e estrofes compostas em períodos anteriores. Daí que Snorri tenha enriquecido o manual que é a Edda com citações poéticas e episódios míticos, preservando assim excertos de composições e oferecendo-nos narrativas em prosa que, de outra forma, teriam sido perdidas ou conheceríamos apenas por breves alusões poéticas. Mas embora a mitologia apresentada pelo autor islandês tenha certamente muito em comum com a do período pré-cristão – porque, se assim não fosse, não serviria para compor e interpretar poesia skáldica segundo os seus parâmetros tradicionais – ela não deixa de ser produto de um autor cristão do século XIII. Percebe-se isso na forma como Odin é apresentado como um deus supremo à semelhança de Jeová, na separação vincada entre um céu divino e um submundo infernal para onde vão os que não entram em Valhalla, num dilúvio primordial de inspiração bíblica, na já referida demonização de Loki e na tentativa de uniformizar narrativas que não seriam necessariamente coerentes ou estariam sequer ligadas. Nem tudo isto se deve a Snorri: dado que as suas fontes eram predominantemente poéticas e produto de um contexto nobiliárquico, é apenas natural que o deus dos poetas e dos guerreiros – Odin – assuma um papel de liderança; e as narrativas contidas na Edda terão certamente passado pelas mãos e bocas de muitos durante dois séculos de cristianismo nórdico, o que terá contribuído para a sua reinterpretação antes de serem usadas por Snorri. Alguns dos poemas usados pelo autor islandês ou, pelo menos, versões deles, encontram-se na chamada Edda Poética, uma colectânea de composições que foram preservadas, na sua esmagadora maioria, num manuscrito islandês a que se deu o nome de Codex Regius e que terá sido produzido por volta de 1270. O estilo literário é mais simples e menos críptico do que o da poesia skáldica, mas são também peças anónimas e, por isso mesmo, difíceis de datar. Há semelhanças ou correspondência métrica e temática com o Beowulf, alguma poesia germânica antiga e versos inscritos em runas numa pedra sueca no início do século IX (Gunnel 2007: 93), mas isto permite apenas dizer que o género éddico tem origens remotas, certamente ligadas a tradições heroicas e orais.

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A data exacta em que foram criadas as composições preservadas na Edda Poética permanece por isso um mistério, podendo-se apenas afirmar que o conteúdo radica no passado pré-cristão e que os poemas não ficaram imunes à passagem do tempo. Terão sido expandidos, reformulados, interpolados e trabalhados por sucessivos narradores ou compiladores, processos dos quais há vestígios claros. O que não é nada de novo no universo das tradições orais e populares, já de si naturalmente mutáveis e propícias a variações, mas mais ainda no contexto do antigo politeísmo nórdico, que não dispunha de uma autoridade central que estabelecesse uma ortodoxia e uniformizasse narrativas. Aliás, precisamente por isso, era também uma religião permeável a influências externas, fosse das tribos fino-úgricas a norte, dos eslavos e bálticos a leste ou do cristianismo ocidental que começou a entrar na Escandinávia no século IX. O que quer dizer que a mitologia nórdica tal como a conhecemos tem uma carga cristã dupla: a que já se fazia sentir sobre o politeísmo nórdico no final do período pagão, fruto de um contacto crescente com o cristianismo e da pressão exercida por este, e a que se deu durante os dois séculos de transmissão dos poemas num contexto predominantemente cristão, deixando a sua marca no conteúdo das composições. Uma leitura atenta das Eddas revela ainda exemplos concretos de outra fragilidade do nosso conhecimento da mitologia nórdica: o facto de termos apenas fragmentos. Somos confrontados com essa realidade na estrofe 17 do poema Völuspá, onde é dito que três deuses encontraram os primeiros seres humanos at húsi, numa casa, mas não é dito de quem e em que contexto. Ou na estrofe 14 do Grímnismál, que conta que metade dos caídos em batalha vão para a deusa Freya, no que é a única referência a uma destino alternativo a Valhalla para os que morrem em combate. Ou no final abrupto do poema Sigrdrífumál, que termina sem mais no décimo primeiro conselho da valquíria Sigrdrífa ao herói Sigurðr. Ou na referência em prosa no final do segundo poema de Helgi Hundingsbani a uma composição chamada Canção de Kara e da qual nada mais se sabe. Ou quando Snorri cita o único excerto sobrevivente de um poema intitulado Heimdalargalðr. Estes e outros exemplos impõem-nos a dolorosa consciência de que muito se perdeu. E quando comparamos o conteúdo das Eddas com o pouco que nos é transmitido por outras fontes de informação – neste caso, o estudo da toponímia escandinava – apercebemo-nos que a forma como nós hoje vemos o panteão nórdico é, também ela, parcial, precisamente por ser baseada em fragmentos tardios. 2. Um deus popular a sul Na Edda de Snorri Sturluson, o deus Tyr é apresentado como o mais bravo e valente, aquele que tem poder sobre a vitória no campo de batalha e a quem é bom os homens de acção rezarem (Faulkes 2000: 24). O autor islandês também conta a história de quando Tyr pôs a mão na boca do lobo Fenrir, como forma de assegurar ao animal que os deuses não estavam a tentar enganálo, e quando o lobo percebeu que isso não era verdade e que tinha sido ludibriado, ele arrancou a mão de Tyr (Faulkes 2000: 27-9).

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Na mitologia nórdica, este é o único episódio conhecido em que este

Veja-se também a origem das palavras “Tuesday” e “Zeus” no Online Etymological Dictionary: http:// www.etymonline.com/

deus assume um papel central. Nas restantes linhas das Eddas, ele é referido apenas de passagem: Snorri diz que ele é filho de Odin (Faulkes 2000: 76) e que no Ragnarök ou fim do mundo ele morre a lutar contra um cão chamado Garm (Faulkes 2000: 54); na estrofe 5 do poema Hymiskviða, que é uma composição problemática (Abram 2011: 44-8), Tyr viaja com Thor em busca de um caldeirão gigante e revela-se como filho do gigante Hymir (Larrington 2008: 79); na estrofe 38 do poema Lokasenna, é referida a forma como o deus perdeu a mão e, na estrofe 40, Loki afirma ter engravidado a mulher de Tyr, sendo que nada mais é dito sobre ela ou o episódio de infidelidade (Larrington 2008: 91); ainda na Edda Poética, a estrofe 6 do Sigrdrífumál oferece um feitiço que envolve runas de vitória a serem gravadas em várias partes de uma espada e uma invocação

Img. 1: Runa tyr/tiu/ti

dupla de Tyr (Larrington 2008: 167), reforçando assim a ligação que Snorri faz entre o deus e o sucesso militar. Uma das ou a runa em causa seria talvez aquela que exprime o som “t” (Imagem 1) e que nos poemas rúnicos anglo-saxão, Nordmannicum, norueguês e islandês surge com os nomes tir, tiu, ty e týr, respectivamente (Pollington 2002: 48, 52-3 e 55). E a identificação com Marte nos dias da semana germânicos, com o dies Martis latino (terça-feira) a ser traduzido por tiwesdæg em inglês antigo e týrsdagr em islandês antigo (Sonne 2014: 189), reforça a associação de Tyr com a actividade e sucesso militares. E é essa, muito simplesmente, a imagem que temos dele a partir das Eddas. O deus guerreiro e fidedigno de uma só mão que foi essencial para a prisão do lobo Fenrir, mas que, tirando esse episódio, seria uma divindade menor. Afinal, o campo de batalha era já dominado por Odin, o senhor de Valhalla e das valquírias e também ele um decisor de vitórias. No contexto das Eddas, faz sentido que Tyr seja uma personagem secundária. Mas se considerarmos a etimologia do nome, ganha forma outra perspectiva. A palavra nórdica týr provém do proto-germânico *tiwaz, que por sua vez deriva do proto-indoeuropeu *deywós (deus) e tem raiz em *dyeu- (brilhar). Tem por isso a mesma origem que indiano deva, o Latim deus e os nomes “Zeus” e “Júpiter” ou Diespater (Simek 2000: 337) . Daí que nas fontes nórdicas, o termo ou o seu plural (tívar) sejam empregues de forma simultaneamente específica – a divindade Tyr – e genérica. Por exemplo, na estrofe 5 do poema Grímnismál é dito que os tívar ou deuses deram a Freyr a terra dos elfos; na mesma composição, estrofe 48, Odin apresenta-se com o nome de Farmatýr ou deus da mercadoria. Na Edda de Snorri deparamo-nos com expressões idênticas, com Sigtýr (deus da vitória) e Hangatýr (deus dos enforcados) a serem listados como títulos para o senhor de Valhalla, enquanto Reiðartýr ou deus do carro refere-se a Thor, por referência ao carro puxados por bodes com que ele cruza o céu (Faulkes 2000: 64). Mas para além do sentido da palavra e da sua relação com outras línguas, a etimologia de týr permite ainda colocar a hipótese de Tyr ter sido, na origem, um deus bastante mais importante do que aquilo que as Eddas nos transmitem.

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Afinal, linguisticamente ele é o equivalente germânico de Zeus e de Júpiter, pelo que, num passado remoto, talvez ele tenha desempenhado um papel semelhante ao de rei dos deuses, antes de passar a ser acima de tudo um deus da guerra e ser ultrapassado nessa função por Odin. É neste ponto que o estudo da toponímia escandinava ganha uma importância particular. Se agarramos num mapa da Escandinávia e começarmos a assinalar os sítios cujo nome inclui o de uma divindade – por exemplo, Fröslunda ou “bosque de Frö/Freyr” na Suécia – depressa percebemos que os deuses não estão presentes de forma uniforme na paisagem. Há partes da Escandinávia onde os nomes de uns ocorrem com mais frequência do que outros, o que sugere variações na popularidade de determinadas divindades. Claro que, também aqui, temos que olhar de forma crítica para a informação: só se pode listar os topónimos dos quais há referências antigas, nomeadamente medievais, pelo que podem ter havido mais sítios teofânicos dos quais não se fez ou não sobreviveu notícia; e os nomes dos locais reflectem apenas parte da vida religiosa, nomeadamente a da comunidade no seu conjunto, dos líderes ou de figuras fundadoras que, por isso mesmo, puderam marcar a paisagem. Não se deve por isso assumir que a ausência do nome de um deus no território equivale ao desconhecimento do mesmo, dado que pode ter sido adorado por indivíduos isolados, num contexto doméstico ou ter um culto limitado a certos grupos sociais, sem chegar a marcar a paisagem de forma duradoira. Para mais, a ocorrência do nome de um deus num topónimo medieval não significa necessariamente que essa divindade tinha, à época, um culto activo naquele local, podendo ser apenas uma relíquia de séculos anteriores. Não é novidade nenhuma que as localidades podem ser baptizadas por referência a uma característica que mais tarde desaparece sem que o nome do sítio mude. Mas apesar disso, o mapeamento dos topónimos revela alguns padrões vincados que sugerem mais do que problemas de fontes.

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Img. 2: Topónimos escandinavos que contém os nomes dos deuses Tyr e Odin. Os círculos brancos assinalam casos incertos (Brink 2007: 112 e 121)


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É o caso dos topónimos que contêm o nome do deus Tyr (Imagem 2). Existem vários na Dinamarca, mas não há registo de nenhum na Suécia e conhecem-se apenas dois na Noruega, um deles incerto. Se fosse uma divindade igualmente popular em toda a Escandinávia, seria de esperar uma distribuição mais uniforme de topónimos com o seu nome, mas a concentração no espaço dinamarquês sugere que Tyr era mais importante na parte sul do território escandinavo. O que fornece um paralelo geográfico com o papel secundário do mesmo deus nas fontes nórdicas: as Eddas foram escritas na parte norte e ocidental da Escandinávia, pelo que não será de espantar que sejam reflexo das devoções religiosas predominantes nessa parte da península, onde Tyr não seria particularmente popular. Mas como explicar então o lugar cimeiro de Odin na mitologia nórdica que conhecemos e tendo em conta que, a julgar pela toponímia, ele era mais popular na parte oriental da Escandinávia (Imagem 2)? A explicação encontra-se no já referido papel desse deus como padroeiro dos poetas. A Edda Poética, conforme o nome indica, é uma fonte poética e a Edda de Snorri, como já se disse, é um manual de poesia skáldica, muita da qual foi composta num contexto aristocrático, de líderes militares e guerreiros, outro grupo social em que Odin seria popular. Por outras palavras, a mitologia nórdica que conhecemos é eminentemente odínica porque, directa ou indirectamente, ela foi produzida ou influenciada por grupos sociais que teriam em Odin o seu padroeiro. E isso cria uma distorção entre a importância que esse deus tem nas fontes e a que ele teria no terreno. Tivéssemos nós uma mitologia dominada pela mundividência de pescadores ou agricultores e, muito provavelmente, os deuses cimeiros seriam outros. Isto não quer dizer que Odin não era um deus importante. Certamente que o era, mas isso não quer dizer que, fora do universo dos poetas e senhoras da guerra, ele fosse o mais importante. Aliás, há outra explicação possível para a concentração dinamarquesa de topónimos relacionados com Tyr e à qual já se aludiu: a de que esse deus teve uma importância maior num período mais recuado, quando pode ter sido um equivalente germânico de Zeus ou Júpiter, deixando por isso a sua marca num território mais a sul, mais próximo da Germânia antiga,

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enquanto a norte Tyr foi suplantado por Odin, que assumiu o lugar cimeiro entre os que viviam da guerra. Não há como sabê-lo ao certo, mas a hipótese existe. III. Um deus quase desconhecido Outra personagem que também tem um papel secundário nas Eddas é uma divindade que dá pelo nome de Ullr (Imagem 3). Segundo Snorri, é filho da deusa Sif, filho adoptivo de Thor e um esquiador e archeiro de tal forma excelente que ninguém consegue competir com ele. É ainda descrito como bonito, um bom guerreiro e um deus a invocar em combates individuais (Faulkes 2000: 26). E também segundo Snorri, uma expressão poética para escudo era “barco de Ullr”, no que será uma alusão a um mito em que o deus atravessava um rio ou o mar num escudo, mas do qual nada mais se sabe (Faulkes 2000: 118). Uma fonte dinamarquesa do século XIII, a Gesta Danorum de Saxo Grammaticus, refere que uma personagem chamada Ollerus, uma latinização de Ullr, atravessou o mar num osso mágico (Ellis Davidson 2008: 79). Em ambos os casos, podemos estar perante uma alusão a skis; pelo menos o segundo pode ser uma referência efabulada a patins de osso, o que reforça a reputação de Ullr com esquiador.

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A mesma Gesta Danorum contém também a única alusão a um mito em que o deus substitui Odin como rei dos deuses. E na Edda Poética há apenas breves referências a Ullr: a estrofe 5 do poema Grímnismál diz que ele vive num sítio chamado Ýdalir ou Vales do Teixo, o que não será surpreendente num deus archeiro, uma vez que a madeira de teixo foi durante muito tempo usada para produzir arcos. E depois há uma referência enigmático a um anel de Ullr na estrofe 30 do poema Atlakviða. Não há muita mais informação sobre este deus. A julgar pelas Eddas, ele era uma divindade menor, sem grande importância no universo da mitologia nórdica, e mesmo a referência de Saxo à substituição temporária de Odin por Ullr pode ser vista como episódica. Mas, uma vez mais, a toponímia conta uma história diferente. Surpreendentemente, um deus que tem um papel tão reduzido nas Eddas ocorre com frequência na toponímia escandinava, em particular no que é hoje a Suécia (Imagem 4). O que quer dizer que, ao contrário do que as fontes escritas dão a entender, ele terá sido um deus importante, pelo menos na parte oriental da península e num dado período da História. E uma vez mais deparamo-nos com um paralelo entre a geografia e a literatura: fontes produzidas na parte ocidental da Escandinávia dão pouco relevo a uma Imagem 3: Ullr numa ilustração de um manuscrito islandês do século XVIII.

divindade que parece ter sido mais popular na parte oriental.

Outra coisa que se torna evidente olhando para o mapa é o facto de não se conhecer um único topónimo de Ullr na Dinamarca. Não se sabe qual o motivo para essa aparente ausência do deus na vida religiosa dinamarquesa, mas não é impossível que esteja relacionado com os habitantes fino-úgricos da Escandinávia. Isto porque Ullr, tal como a deusa Skadi, apresenta características usuais, quase clichés, com que os sámi ou as tribos do norte são descritas nas fontes nórdicas, nomeadamente os skis e o arco e flecha (Zachrisson 2010: 36). E se considerarmos que, durante séculos, os sámi conviveram e coexistiram com os nórdicos em regiões tão a sul quanto a Suécia central, mas por ventura não para lá disso (Imagem 4), então a ausência de Ullr na toponímia dinamarquesa talvez se possa explicar pela igual ausência do elemento fino-úgrico na Dinamarca. Uma vez mais, estamos apenas a falar de uma hipótese, mas os atributos do deus, assim como a incidência norte e oriental do seu culto sugerem que ele possa ter uma origem ou, pelo menos, fortes influências não-indo-europeias.

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Img. 4: Imagem 4: À esquerda, a localização dos topónimos com o nome Ullr (círculos brancos indicam casos incertos) e Ullinn, representados por uma cruz (Brink 2007: 117). À direita, o limite aproximado da zona de convivência entre os nóricos e as tribos fino-úgricas do norte por volta do ano 1000, segundo o trabalho de Inger Zachrisson (2010: 33).

E se considerarmos que, durante séculos, os sámi conviveram e coexistiram com os nórdicos em regiões tão a sul quanto a Suécia central, mas por ventura não para lá disso (Imagem 4), então a ausência de Ullr na toponímia dinamarquesa talvez se possa explicar pela igual ausência do elemento fino-úgrico na Dinamarca. Uma vez mais, estamos apenas a falar de uma hipótese, mas os atributos do deus, assim como a incidência norte e oriental do seu culto sugerem que ele possa ter uma origem ou, pelo menos, fortes influências não-indo-europeias. E mesmo que não queiramos ver a questão de uma perspectiva norte-sul, podemos olhar para ela por um eixo este-oeste: Ullr como uma divindade de origem ou influência finlandesa, motivo pelo qual ele parece ter sido particularmente popular no que é hoje a Suécia oriental, acabando o culto por se expandir para a Noruega, onde o deus adquiriu inclusive um nome ligeiramente diferente – Ullin.

4. A pergunta certa Retomando as perguntas que abriram este artigo, quais eram as crenças dos nórdicos antigos? Como é que eles acreditavam que o mundo tinha sido criado, que deuses governavam o cosmos, que destinos aguardavam os seres humanos depois da morte? Estas são questões legítimas, mas devem ser enquadradas por uma outra que é absolutamente essencial: quais nórdicos, onde e quando?

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As Eddas não dizem tudo

As Eddas não dizem tudo. São apenas fragmentos de uma mitologia que exprimiu e moldou crenças e práticas religiosas durante centenas de anos, desde o último milénio antes de Cristo até ao início do século XI, e com raízes ainda mais remotas na cultura ancestral dos indoeuropeus. São fragmentos tardios, produzidos ou trabalhados no final do período pagão e compilados, escritos ou reinterpretados por autores cristãos. E são, para além disso, fragmentos geográfica e socialmente parciais, produto acima de tudo da parte ocidental da Escandinávia e de grupos sociais que tinham em Odin a sua principal divindade. Daí as influências cristãs e o tom marcadamente odínico da mitologia nórdica tal como a conhecemos. E daí também o papel secundário de deuses como Tyr e Ullr, que terão sido mais populares numa época anterior ao final do período pagão ou noutras partes da Escandinávia. As Eddas não nos dizem em que é que os nórdicos antigos acreditavam. Não inteiramente. Dizem-nos as crenças e mitos de alguns, em boa medida segundo a mão de autores cristãos com duzentos ou mais anos de distância dos seus antepassados politeístas. Não quer dizer que as Eddas sejam fontes más. São certamente o melhor que temos para conhecer a mitologia dos nórdicos antigos, mas o que melhor que há não é necessariamente o mesmo que ideal. E as Eddas, não obstante a sua importância incontornável e valor incalculável, não dizem, não mostram e não preservam tudo. Têm apenas uma parte tardia do todo que foram séculos de politeísmo nórdico. Bibliografia Fontes secundárias

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Arqueologia da Arquitectura

Arqueologia da Arquitectura Maria Isabel Silva

1

1

Licenciada em Arqueologia Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - U.N.L.

Img.1: Casa civil medieval “ Torre de Cima”, Século XIV, com possível origem em reaproveitamento de uma Torre. Localizada em Bucelas, Loures. Um exemplo para estudo a realizar. Foto da autora

Arqueologia da Arquitectura nos últimos anos adquiriu significativos desenvolvimentos teóricos e técnicos, revelando-se actualmente como reconhecida potencialidade de investigação na história da arquitectura, tendo capacidade de actuar com as qualificações adequadas na conservação e valorização do património edificado. A disciplina nasceu em Itália em meados dos anos 70 do século XX, no âmbito do restauro e do desenvolvimento da Arqueologia Medieval. Apesar desta se encontrar bem destacada nos meios científicos em outros países tais como Espanha, Itália. Em Portugal esta disciplina só começou recentemente a “ganhar terreno”, no Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR). A Arqueologia da Arquitectura teve os seus primeiros avanços (no ano 2000), tendo como objecto de estudo a Igreja de São Gião da Nazaré. A Arqueologia do edificado tem a vantagem de não ser destrutiva, com excepções, por exemplo no caso dos rebocos, esta aplica-se ao que está á vista. Analisa as patologias tais como alterações estruturais, marcas deixadas pela actividade sísmica, etc. A identificação destas é fundamental, pois permite-nos perceber quando e porque é que estas surgiram, permitindo minimizar e definir estratégias para uma actuação segura e se possível imediata. Arqueologia da Arquitectura tem como principais dificuldades, a complexidade do edifícioocultação da sua estratificação por rebocos, o grande número de alterações, diagramas complexos, registos gráficos deficientes e equipas reduzidas. A maior parte do património arquitectónico é igualmente património arqueológico, ou seja, é passível de ser abordado pela metodologia arqueológica. O estudo de um edifício, de acordo com a metodologia da Arqueologia da Arquitectura, contempla não só a observação das características arquitectónicas, como formais, estéticas e espaciais, ou seja, a análise morfológica e estilística da construção, assim como a integração histórico-cultural das etapas detectadas, de modo a interpretá-lo como um organismo vivo que evoluiu ao longo do tempo e de acordo com as funções que lhe foram destinadas pelas sucessivas sociedades que a utilizaram.

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Arqueolgoia da Arquitectura

2

CABALLERO ZOREDA, Luis (2006) – Arqueología de la Arquitectura: conocimiento y intervención. studos/Património, nº 9, pp. 33-43.

Na maioria das intervenções realizadas por esta disciplina em património edificado incide

AMORIM, Carvalho de (1995) - Castelo Mendo: um conjunto histórico a preservar. Braga: Editora Correio do Minho;

se também sobretudo em património edificado de épocas recentes, como o Medieval e Moderno.

3

sobretudo nos sítios históricos de grandes cidades mas também em sítios rurais. Na esmagadora maioria são edifícios classificados como edifícios de interesse nacional, municipal ou público, consoante o valor relativo desse imóvel. São essencialmente religiosos, militares e civis, e incideEscasseiam estudos para épocas mais recuadas como período romano e islâmico. Salienta-se que nos estudos já realizados em edifícios intervencionados, na sua quase totalidade as estruturas são edificadas em pedra, entretanto nos edifícios civis, estando num contexto rural ou urbano, encontram-se estruturas edificadas com outros tipos de materiais, como em taipa ou madeira. É usual verificar-se a reutilização de materiais de outras estruturas, sobretudo do período medieval. Arqueologia da arquitectura é uma disciplina que tem por base o método científico, a análise estratigráfica da arquitectura histórica aplicada ao Património Arquitectónico. O objectivo é identificar as diferentes fases construtivas por que passou determinada estrutura (casas civis, pontes, igrejas, etc.), a partir da análise estratigráfica dos seus alçados. Utiliza uma metodologia especificamente arqueológica que consiste em desconstruir conceptualmente os muros, isolando as unidades estratigráficas por meio de análises minuciosas do aparelho construtivo, para depois «remontá-las» sendo uma leitura coerente de antiguidade, contemporaneidade, e 2

posterioridade entre elas. Este processo integra as seguintes fases ; 1.Recolha documental e iconográfica •

Pesquisa e leitura prévia de documentos bibliográficos e documentais, incluiu obras recentes sobre o Objecto de Estudo; fontes transcritas da época com referência à estrutura; os registos das intervenções de restauro da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (D.G.E.M.N.), com o objectivo de verificar a existência ou não de remodelações arquitectónicas a partir do século XX, e o teor das mesmas. Documentação gráfica, fotográfica e iconográfica existente relativa à estrutura; incluiu fotografias antigas, representações gráficas da D.G.E.M.N., e por fim desenhos, como por exemplo os de Duarte d´Armas realizados no início do século XVI.

Exemplo Igreja de Santa Maria (castelo Mendo) Na primeira Carta de Foral outorgada a Castelo Mendo por D. Sancho II em 1229, é possível ler 3

o seguinte ; «Deem as dízimas e todos os direitos eclesiásticos, quer do meu reguengo quer das suas herdades à igreja que foi fundada no próprio castelo por onde, no interior e no exterior, o Bispo delimitou a paróquia à própria igreja»

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Arqueologia da Arquitectura

A construção de igrejas românicas podia ser efectuada por meio de encomenda por parte de bispos, com patrocínio régio, possibilitada através de acumulações monetárias das instituições que as pretendiam edificar, ou de encomenda por parte de senhores e diversos poderes locais. No caso da igreja de Santa Maria, não se conhecem referências específicas acerca da sua construção original, ficando em aberto a questão relativa à sua encomenda e patrocínio. [4] As Chancelarias de D. Afonso IV revelam, num documento datado de 1292, que D. Dinis doou as suas igrejas de Santa Maria e de S. Pedro de Castelo Mendo, bem como as Terras de Trancoso, de Pinhel e de Castelo Mendo à diocese de Viseu. Entretanto em 1509/10, a igreja foi representada por Duarte d’Armas, constituindo uma fonte iconográfica e sendo possível obter elementos que nos permitem caracterizar (com pouca segurança e rigor obviamente) esta estrutura no início do século XVI. Na igreja é possível observar-se a fachada principal, o portal em arco de volta perfeita, o campanário e três frestas na fachada lateral Norte, actualmente inexistentes. Ao exterior da igreja foi adossada uma capela quinhentista em finais de quatrocentos. Segundo alguns autores, esta seria a capela particular e possivelmente o jazigo de uma importante família de Castelo Mendo. Devido à sua localização, Vítor Neves defende que seria a capela da família do primeiro alcaide desta vila, Mendo Mendes (Menendu Menendis Alcaide), que em 1229 subscreve, juntamente com D. Sancho II, o primeiro foral dado a Castelo Mendo, também chamada nesse documento Vila Mendo, ou seja, a Vila de Dom Mendo. Perante as características arquitectónicas desta estrutura a hipótese cronológica não deverá ser considerada. Na segunda metade do século XVI, na sequência do Concílio de Trento, terá sido construído um púlpito, adossado à parede da nave voltada a Norte. A construção de púlpitos no interior de igrejas está directamente associada à comunicação entre o clero e seus fiéis. Em 1889 o espaço interior da igreja de Santa Maria, foi dividido ou possivelmente reduzido devido a uma data epigrafada no lintel da porta da parede transversal que corta a nave. Entretanto em 1889, o espaço interior da igreja de Santa Maria foi dividido ou possivelmente reduzido devido a uma data epigrafada no lintel da porta da parede transversal que corta a nave. Em 1941, a D.G.E.M.N. efectuou um pedido para a realização de obras na Igreja de Santa Maria, com a justificação desta integrar uma capela que possui um dos poucos tectos mudéjar do país (PT DGEMN: DSARH – 010/018 – 0056/ 01, página 12). Em 1946, condições climáticas adversas teriam causado o desabamento do telhado da igreja de Santa Maria. Perante o ocorrido a Direcção-Geral da Fazenda Pública efectuou nesse ano, e em 1949, vários pedidos ao director da D.G.E.M.N. para que fosse feita a sua reconstrução, infelizmente sem sucesso, pois este alegou que a igreja é de reduzido interesse e que as obras não eram, na altura, viáveis. Em relação a estes pedidos foi ainda referido que em 1945 teria sido colocada em prática a

35


Arqueologia da Arquitectura

4

5

SILVA, José Antunes, FERNANDES, José Manuel (1979) - Castelo Mendo – estudo de recuperação urbana e arquitectónica. Lisboa: [s.n.].;

Lovegrove, Sofia “ A Igreja de Santa Maria (Castelo Mendo”. Uma leitura histórico-arquitectónica”, 2013, FCSH-UNL.

Em 1950, a mesma entidade reforçou o «reduzido valor arquitectónico» desta estrutura. Refere o estado de ruína a que chegou a nave, ainda chovia dentro desta devido à queda do telhado, que a igreja foi abandonada enquanto espaço de culto e que dela apenas restam a capela-mor, a capela lateral onde se encontra o tecto mudéjar e as paredes em ruína do corpo dianteiro. Ainda segundo esta entidade, o restauro da igreja não era considerado aconselhável, hipótese de acontecer apenas num cenário de reconstrução quase total, e com intuito de dar utilidade prática às duas capelas, a capela-mor e capela lateral, implicando objecto de estudo especial. Informou que os altares de cada capela «não têm grande merecimento por falta de características artísticas especiais». Dada a inviabilidade do restauro da igreja, sugeriu-se que estes altares fossem reutilizados noutra igreja ou capela (PT DGEMN: DSARH – 010/018 – 0056/ 01, páginas 51-52). Um parecer da Direcção-Geral da Fazenda Pública nesse mesmo ano reforçou estas informações e concluiu que o estado em que a igreja se encontrava impedia a realização do seu restauro. [4] 4

No «Estudo de Recuperação Urbana e Arquitectónica» , ficou registada a proposta da recuperação do imóvel para a actividade religiosa. Contudo, e no âmbito do «Programa de Reabilitação das Aldeias Históricas de Portugal» ficou ainda previsto obras de restauro da estrutura e adaptação para espaço museológico. Posteriormente, em 1992, o Professor Doutor João Cabral, do Instituto Português de Museus, enviou uma carta à D.G.E.M.N. dizendo que, embora a igreja de Santa Maria se encontre em estado de ruína, existe nela uma pequena capela lateral com cobertura onde existe um tecto mudéjar que deveria ser preservado. Esta preservação requereria a reparação da cobertura da capela ou à desmontagem do tecto, transferindo-o para outro lugar, nomeadamente o Museu da Guarda. Em relação a esta questão, desconhecem-se as respectivas respostas (PT DGEMN:DSARH-010/018-0031, fl. 2). A D.G.E.M.N., em 1999 e em 2000, realizou obras de conservação e valorização no âmbito do «Programa das Aldeias Históricas», reconstruiu-se a cobertura e reparação do tecto da capela lateral, a consolidação de fachadas, o tratamento dos remates dos alçados, o refechamento de juntas, o nivelamento do lajeado do pavimento, colocação de grades de ferro nos vãos de acesso e a iluminação do edifício. Nas fotografias mais antigas desta igreja disponibilizadas pela D.G.E.M.N., de 1975 até 1997, constata-se que todos os seus alçados, excepto o alçado Oeste (fachada principal) se encontravam revestidos de reboco, pintados de branco em certas zonas. Em 2000 a igreja ostenta todos os seus silhares visíveis, levando a crer que a remoção do reboco se processou aquando as obras de restauro de 19995.

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Arqueologia da Arquitectura

2. Levantamentos gráficos •

Trabalho de campo implica a deslocação ao Objecto de estudo (estrutura), tendo em vista a realização do levantamento fotográfico pormenorizado e do registo gráfico (medidas para elaboração de uma planta), do edifício e uma primeira leitura macroscópica e directa dos alçados. A leitura inicial permite distinguir as diferentes unidades construtivas da igreja e as principais fases da sua evolução arquitectónica.

Levantamentos gráficos: Trabalho de campo Exemplo; Igreja Santa Maria Igreja Santa Maria de Castro

Img. 3: Fotografia do alçado Este, tirada pela D.G.E.M.N. anteriormente aos restauros de 1999/2000 (PT DGEMN:DSARH-010/018-0053, disponível em www.monumentos.pt).

Img. 4 e 5: Alçado Norte. Imagem de Sofia Lovegrove e Maria de Magalhães Ramalho, Divisão de Arqueologia Preventiva e de Acompanhamento – IGESPAR.IP

3. Análise do edificado sobre os levantamentos •

Leitura estratigráfica dos paramentos da Estrutura, a realizar segundo método específico já referido, de modo a aplicar ordem, sistematização, e rigor de uma leitura que aparentemente poderá ser evidente, mas que na realidade é muito mais complexa, permitindo assim uma melhor compreensão do registo estratigráfico. A análise recai sobre o Método de Registo Harris, recorrendo a matrizes de forma a compreender as relações entre unidades estratigráficas (UEs) e interfaces. Este processo é caracterizado pelas seguintes operações:

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Arqueologia da Arquitectura

3.1. O registo e numeração das diferentes unidades estratigráficas murarias, cada unidade estratigráfica (EU) é descrita individualmente em fichas e desenho de campo, e listada com descrição exaustiva das mesmas. 3.2. Análise das relações estratigráficas entre as diferentes actividades ao longo da

evolução

histórica

do

edifício;

anterioridade,

posterioridade

e

contemporaneidade, através de matrizes. As EU´S são agrupadas em actividades, como por exemplo: restauro de revestimentos, colocação de telhado novo, entre outras. E por Etapas: estabelecimento das várias fases da evolução histórico-arquitectónica da estrutura, através de uma matriz de síntese-cronologia absoluta.

Preenchimento de Fichas de fichas de campo

Img. 6 e 7: Preenchimento de fichas de campo. Foto de Ramalho Magalhães 4. Realização de uma síntese interpretativa, cruzamento dos dados arqueológicos – a leitura estratigráfica pormenorizada do edifício a partir das matrizes estratigráficas, da evolução da planta da estrutura, bem como do estudo dimensional – com os registos históricos. Através deste cruzamento de dados é possível sustentar o estabelecimento das diferentes fases que caracterizaram a evolução arquitectónica e histórica da estrutura em causa. A Matriz o Registo das actividade e das etapas históricas. As cronologias relativas sendo etapas e as absolutas com datações precisas.

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Arqueologia da Arquitectura

Img. 8: Foto IPPAR Caballero Zoreda es tudos.Gião Nazaré

A Matriz o Registo das actividade e das etapas históricas. As cronologias relativas sendo etapas e as absolutas com datações precisas. «Os sistemas de leitura interpretativa de estratigrafias arquitectónicas baseiam-se no estudo combinado das fontes indirectas (as pesquisas histórico-documentais convencionais) e das fontes directas, relativas às análises dos sistemas construtivos e materiais constitutivos. Os exames deveram ser desenvolvidos a partir de: •

Estudo da estrutura edificada: investiga-se o sistema estrutural, tipo/natureza do material construtivo, técnicas de trabalho, características dimensionais, textura, coloração, acabamento;

Estudo dos revestimentos: Analisa-se a natureza do material (cargas e agregados) traço, granulometria, compactação, coloração, acabamento superficial;

Estudos dos ornamentos artísticos: estuda-se a tipologia técnica e material, forma de aplicação, textura, refletância, cor, desenho (quando possível), acabamentos.»

Foram aqui apresentados alguns métodos desta disciplina, entretanto muito fica por dizer, para além das especificidades metodológicas, cada objecto de estudo varia muito, consoante o estado de conservação da estrutura a estudar, a dimensão, tempo que os arqueólogos tem para efectuar os trabalhos, verbas, equipamentos, etc. Perante a metodologia da disciplina o arqueólogo deve seguir rigorosamente as etapas do processo, que lhe permita obter o máximo de informação com os meios técnicos e humanos disponíveis para a intervenção. A matéria enquanto edificado é por excelência o suporte do tempo, resta aos profissionais interpretá-la correctamente. Para além do estudo de edifícios de interesse histórico-cultural, na perspectiva da arqueologia da arquitectura, mais que instrumentalizar profissionais nesta actividade, deve prestar-se à efectiva ampliação dos conhecimentos sobre os objectos estudados num âmbito da divulgação dos mesmos. As equipas de trabalho deverão incluir o maior número possível de especialistas nas diversas áreas tais como arqueólogos, historiadores de arte, arquitectos, conservadores-restauradores, topógrafos, etc. A primeira fase do processo será então reunir a equipa de trabalho, dar a conhecer o objecto de estudo, traçar uma agenda com as várias fases dos trabalhos a serem realizados, distribuição de tarefas a cada especialista. Nesta primeira fase a pesquisa prévia será essencial para a equipa munir-se de ferramentas que lhes permita conhecer a estrutura a intervencionar, e deverá ser tão pormenorizada o quanto possível. A reapresentação dos elementos e aparelhos construtivos deve ser o mais fiel possível, sendo ponto de partida para a análise parietal, tendo em conta de que é no levantamento gráfico que se irão identificar e registar as unidades estratigráficas murarias, os elementos arquitectónicos e as suas fases de construção.

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Arqueologia da Arquitectura

A análise parietal dá continuidade à seguinte fase, e aqui deverão ser então individualizadas, datadas e ordenadas as fases construtivas, destrutivas e reconstrutivas, os elementos devem ser contextualizados no seu contexto estratigráfico, ainda todas as unidades estratigráficas murarias devem ser identificadas, numeradas, registadas e descritas numa ficha analítica, visto que será utilizada na análise global do conjunto, para que se possa então fazer análise das relações estratigráficas; ainda a sua interpretação e por fim a atribuição cronológica e aproximação funcional. Nesta fase será elaborada uma descrição completa, sequencial e neutra da estratificação, diferenciando assim as várias etapas da sua construção e as reconstruções a que o edifício foi sujeito durante o seu tempo de vida, e de seguida serão reunidas num diagrama para que fiquem datadas e ordenadas as fases e elementos. Este processo deverá obedecer aos princípios do método Harris, mas que devido às especificidades de cada caso haverá como é óbvio algumas adaptações. A salientar ainda que durante as várias fases do projecto deverão ser realizadas reuniões onde são expostos os avanços, debatidos e analisados problemas que possam ter surgido durante os trabalhos, trocas de ideias e conhecimentos para que o projecto seja realizado com sucesso e rigor. Os conhecimentos resultantes de cada projecto para além da informação aprofundada que se obtém relacionada com a estrutura no todo, irá permitir ainda aferir considerações acerca da sociedade e o seu contexto social que lhe deu origem, dos seus habitantes, o meio envolvente, condições económicas, sociais, ambientais, entre outras que terão tido influências na sua construção, na sua destruição e reconstrução. Após finalização destes trabalhos o arqueólogo ou a empresa de prestação de serviços de arqueologia, tem o dever de divulgar os resultados de cada projecto realizado. A Arqueologia da Arquitectura pretende assim contribuir para uma maior difusão da disciplina essencialmente juntos dos profissionais desta, do público, de empresas, assim com outros profissionais tendo em vista futuros projectos em comum.

2) AMORIM, Carvalho de (1995) - Castelo Mendo: um conjunto histórico a preservar. Braga: Editora Correio do Minho BARROCA, Mário Jorge (2001) – O Aron de Castelo Mendo. Um novo testemunho sefardita na Beira Interior. In Estudos em Homenagem a João Francisco Marques. Porto: Universidade do Porto. Faculdade de Letras. pp. 183-198. BEÇA, Humberto (1922) – Castelos de Portugal. Porto: Minerva.

conocimiento

de

la y

Arquitectura: intervención.

Estudos/Património, nº 9, pp. 33-43.

40

3)SILVA, José Antunes, FERNANDES, José Manuel (1979) - Castelo Mendo – estudo

espaço urbano medieval. In Beira Interior:

de recuperação urbana e arquitectónica. Lisboa:

história e património - Actas das I Jornadas de

[s.n.].

Margarida

Tavares

Património da Beira Interior. Guarda: ARA. pp. 301-314.. FERNANDES, Paulo Almeida, “ Antes e depois da Arqueologia da Arquitectura: um novo cliclo na investigação da esquita –Catedral da Idenha-a-Velha”, Separata da Revista Artis,

Fontes escritas e outros documentos ARMAS, Duarte de (1997) – Livro das Fortalezas.

Lisboa:

Inapa

[original

de

1509/1510] Chancelarias Portuguesas. D. Afonso IV. Vol.

nº 5 Dezembro de 2006, IHAFLL, pág. 69 NEVES, Vítor Manuel Leal Pereira (1993) Três Jóias Esquecidas: Marialva, Linhares e Castelo Mendo. Castelo Branco: [s.n.].

1)CABALLERO ZOREDA, Luis (2006) – Arqueología

da

(2000) – Castelo Mendo: a partir de um

CONCEIÇÃO,

Bibliografia

II. MARQUES, A. H. de Oliveira (org.). Lisboa: Livraria da Imprensa Nacional – Casa da Moeda

RAMALHO, Maria de Magalhães (2003) – Arqueologia da Arquitectura. O método arqueológico

aplicado

ao

estudo

e

intervenção em património arquitectónico. Estudos/Património, nº 3, pp. 19-29.

5)RAMALHO, Maria Magalhães, “ A Arquiologia da Arquitectura”, Mestrado em Reabilitação da arquitectura e Núcleos Urbanos, FAUTL 2006/2007.


Sabores com História ... A primeira referência história à pesca do atum no nosso país data do ano 151 da nossa era, no actual território do Algarve, sendo os cónios (povo ibérico submetido pelos romanos) quem se encarregavam da pesca. com vísceras de vários peixes e mariscos, depois de rigorosamente confeccionado, constituindo um manjar muito apreciado no entanto apenas acessível aos mais abastados. Esta pesca foi prosseguida pelos romanos e pelos árabes (responsáveis pela evolução tecnológica das pescas posteriormente),que nos legaram alguma da tecnologia e terminologia. Em 1249, data da conclusão da conquista do território nacional aos mouros, o rei D. Afonso III decide reservar para a coroa todos os direitos sobre a pesca do atum, sob a chancela das "Pescarias Reais". Com D. Fernando (meados do séc. XIV, cerca de um século depois) estabeleceram-se no Algarve os primeiros sicilianos e genoveses. Foram estes povos italianos que iniciaram os portugueses na arte da pesca do atum, com grande sucesso, uma vez que se tornou imediatamente numa actividade extremamente próspera, matendo-se assim até ao séc. XVII.

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O Deus Eros na ísis sem Véu de H.P. Blavatsky

O Deus Eros na Ísis sem véu de H.P. Blavatsky Ricardo Martins

1

Mestre em História das Religiõess pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Investigador do IPAEHI;

1

Será, à primeira vista, um trabalho menor e estéril procurar entender a significação do deus Eros a partir das 4 referências (neste estudo só analisaremos uma delas) a ele feitas na Ísis sem Véu (IsV), já que aqui Helena Petrovna Blavatsky (HPB) não menciona

o

deus

tanto

quanto

o

desejaríamos, nem tanto quanto o faz, e.g., na Doutrina Secreta (DS). Mas uma segunda referências

consideração será

sobre

estas

suficiente

para

entendermos que a primeira está tão longe da verdade, quanto o Eros lírico e popular está do Eros órfico. Isto porque as referências de HPB, como é habitual na autora, podem até dizer-nos pouco, mas esse pouco sugere-nos muito. Por outro lado, a autora reveste com várias formas a mesma ideia, o que nos permite uma Fig 1: Ísis sem Véu de Helena P. Blavatsky

análise comparada que é, em certa medida, mais aprofundada do que a simples observação das referências.

HPB, ao comparar muito brevemente Eros com Fanes (que por sua vez compara com Protógono, relação atestada pela Cosmogonia Órfica), e de forma ainda mais subtil com Puruṣa, com a Anima Mundi e, em última análise, com a Vontade criadora, dá-nos uma chave que permite entender, não só a natureza simbólica de Eros enquanto desejo ou vontade, mas também, que os vários Erotes da literatura clássica não recusam, ainda que se distingam, essa primeira ideia de Vontade criadora e organizadora do Cosmo. Assim, uma referência a Eros em HPB, se bem entendida, será suficiente para deitar por terra várias teses e artigos que se debatem pelas reais origens e divergências dessa metamorfose do deus Eros ao longo da literatura clássica. Não procuramos aqui, obviamente, desvalorizar o imenso trabalho feito sobre as diversas formas do deus, mas sim, “reduzi-las” a uma original, que nos deverá acompanhar quando nos debatemos com esses tão diversos Erotes greco-romanos que, ainda que complexos, podem ser “simplificados”. Sejam eles hesiódicos, platónicos ou líricos, mais ou menos divinos, ou mais ou menos eróticos, Eros é uma ideia apenas, que tal como o Homem, transporta uma natureza dual, que, por via das afinidades e rejeições da dualidade, geram uma infinidade de subcategorias. Comparando essas sub-categorias de Eros podemos chegar a um proto-significado, é verdade, mas HPB, se bem comparada e compreendida, permite-nos um caminho mais rápido.

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O Deus Eros na ísis sem Véu de H.P. Blavatsky

a) Origem etimológica Eros (érōs), etimologicamente, parece ser uma palavra sem passado (Chantraine: “ἔρως”; Weiss: 35.), contudo é possível encontrar uma origem Indo-Europeia no *h1erhas- «boa vontade para com alguém», que terá gerado no grego éramai e eráō «amor». Haverá ainda uma relação entre érōs e o Indo-Europeu *keha- «amor», gerando no avéstico kā- «desejar» e kāma- «desejo», e no sânscrito kāyamāna - «afecto» e kāma - «desejo», bem como com *kéhaṛ (gen. *kḥarós), no latim cārus «querido». (Mallory: “Favor” e “Love”). Já na épica grega encontramos a raiz *er(a)e o verbo éramai, «amor» que não incluem apenas o sentido posterior de “sexo”, mas também, e.g., aquele da «guerra»: pólemos (Ilíada 9.64), phýlopis (16.208), e da «comida»: dórpon (Hino Homérico a Deméter 129), kréas (Hino Homérico a Hermes 130), etc. (Weiss: 35-38) Michael Weiss propõe que o grego éra-mai reflicta uma raiz Indo-Europeia *h1erh2-, relacionada com o diligo latino (composto formado por dis- e lego) «dividir» e «escolher», e com a raiz sanscrítica √bhaj-, «dividir», «amar», que por sua vez é próxima ao grego phageîn «comer». Esta raiz Indo-Europeia tem o sentido de «dividir», gerando no grego *ḗrāto e *érāto, da raiz *h1érh2-toi «procurar desfrutar» e «desejar sexualmente», (Weiss: 41-42; Wilson: 11) mas também no hitita arḫ-, arḫāš «fronteira», e no latim ōra (com equivalência no hitita arḫāš) «fronteira» e «margem» (Weiss: 43; Laroche: 246-247), sendo aquilo que delimita ou que trabalha nas delimitações, organizando a criação (como vemos no Eros órfico e naquilo que nos sugere o hesiódico). Esta ideia de «dividir» presente na raiz *h1erh2 encontra-se no grego éranos, que subentende «refeição para a qual cada um contribui com uma parte» (contrário a daḯs, que subentende «refeição onde cada um recebe a sua parte»), definindo o amor como uma dádiva, e não como uma recepção. Assim, sugere-se uma dupla leitura de érōs, enquanto conceito e (mais tarde) enquanto deus, como um acto de dividir e de delimitar (criar, articular, etc.), mas também de dar e de contribuir com a sua parte para o “todo”, i.e., destruindo essa mesma delimitação e divisão primeira. Veremos a mesma ideia nas comparações entre Eros, Dioniso e Puruṣa, deuses que delimitam e dividem (ou melhor, são divididos), e que posteriormente reúnem (ou inspiram essa reunião) os elementos dessa mesma divisão. b) O conceito e a pré-personificação de érōs Ao contrário do que seria de esperar de um deus que mais tarde nos é apresentado como Olímpico, em Homero érōs não é personificado, nem parece estar relacionado com Afrodite, salvo indirectamente, enquanto efeito da acção da deusa (Ilíada 14.198 e ss.; Hino Homérico a Afrodite 5.3). Na literatura homérica érōs parece ser somente o impulso do desejo, exprimindo recorrentemente uma necessidade que necessita de ser satisfeita. (Breitenberger: 138, 144) Mas esta não é exclusivamente sexual, já que o desejo (érōs), no seu sentido erótico, aparece apenas duas vezes na Ilíada (3.441 e ss. e 14.294), enquanto que o érōs de comer e de beber aparece vinte vezes, num verso repetido: autàr epeì pósios kaì edētýos ex éron hénto «mas quando afastaram o desejo de comida e bebida» (e.g. Ilíada 1.469; Cf. Hesíodo, Frag. 266a.8: M.L. West, Hesiodi Fragmenta Selecta, apud Breitenberger: 145)

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O Deus Eros na ísis sem Véu de H.P. Blavatsky

O termo foi igualmente utilizado para os sentimentos de Zeus por Hera e por outras mulheres, mas também para o desejo de chorar, dançar e fazer guerra. (Ludwig: 124) Menelau, e.g., diz: De tudo existe a saciedade: do sono e do amor, do doce canto e da dança irrepreensível. E, destas coisas qualquer homem preferiria saciar o desejo (érōs) do que da guerra. Mas os Troianos na guerra são insaciáveis. (Ilíada 13.636-639)

Aqui érōs estende-se ao desejo de dormir, fazer amor, cantar e dançar, bem como ao de fazer guerra. De facto, a relação entre o amor e a guerra, bem como a ideia de que o amor é um «quase morrer» (típico da lírica grega), parece ter aqui origem, bem como na imagem hesiódica posterior de um Eros lysimelḗs «relaxador de membros», epíteto que originalmente foi utilizado em contextos bélicos, em que o guerreiro se via no limiar da morte. (Breitenberger: 148) Generalizando, o érōs homérico representa o desejo de todo o tipo, independentemente do objecto e da intensidade. (Ludwig: 126) Este érōs amphekálypsen «envolve» (Ilíada 3.442; 14.294), é periprochytheís «derramado» (14.316), edámassen «subjuga» (14.316) e éthelchthen «enfeitiça» (Odisseia 18.212) aqueles sobre quem age. E afecta, tanto os homens quanto os deuses, em áreas específicas: o «coração» (thymòs enì stḗthessi: lit. «a mente no peito») e a «mente» (phrénes). Entenda-se que são ambos mais responsáveis pelo intelecto do que pela emoção. (Breitenberger: 147) c) érōs personificado e comparado Encontramos vários Erotes no mundo Antigo e muito para além dele, cujo simbolismo é extenso e chega a ser, por vezes, contraditório. Recordamos aqui apenas as (re)criações mais importantes. Como vimos, não é em Homero, mas sim em Hesíodo que encontramos pela primeira vez o deus Eros personificado, um deus não muito distante da designação homérica, que é dominador da vontade e da mente dos deuses e dos humanos: Eros, o mais belo (kállistos) de entre os deuses imortais, o relaxador de membros (lysimelḗs), que vence a mente e a fixa vontade dos deuses e dos homens nos seus corações. (Teogonia 120-23)

A par disto, ele nasce após o Caos, Gaia e o Tártaro (116-119), sendo uma força criadora. Mas também acompanha a deusa Afrodite desde que esta nasce na ilha de Cipro (201), sendo aqui o primeiro lugar onde é associado à deusa, como divindade “secundária”, responsável por fazer com que Afrodite se veja sempre acompanhada pelo desejo. O Eros hesiódico é uma força que assegura a coesão do universo e que, ao mesmo tempo, assegura a continuidade das espécies, o que lhe confere uma natureza dual. O Eros órfico, por sua vez, é também chamado Fanes e Protógono, uma potência primordial e criadora, não muito diferente do Eros hesiódico. Aqui é a força por detrás da geração da nova vida no universo, sendo equivalente a Tesis «criação» e Físis «natureza». Tanto a Cosmogonia Fenícia quanto os Poemas Órficos colocam o «desejo» (érōs e póthos) entre as divindades

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primordiais, dando-lhe o seu carácter dourado e alado pela primeira vez. (Breitenberger: 138)


O Deus Eros na ísis sem Véu de H.P. Blavatsky

Em Aristófanes (Aves 694b-697), compara-se Eros ao vento, já que este tem asas brilhantes que são semelhantes a remoinhos de vento. Ele é como um vento sobre as águas, assemelhando-se, naturalmente, ao espírito de Deus que se movia sobre a superfície das águas (Gen. 1.2), mas também ao hebráico ruah, um desejo cósmico associado com o vento. (West: 157 e ss.) Em Platão, Eros é um guia da alma rumo ao supremo

Belo.

No

Banquete

(203b-204a),

Diotima conta o nascimento do deus a partir da união entre o Poros (o Recurso) embriagado e Penia (a Pobreza). Alegoria que Plutarco recupera (Moralia 374c-d). A mesma Diotima diz-nos que Eros é um génio, um intermédio entre os deuses e Fig 2: O Deus Eros

os homens, tal como o filósofo é um intermédio entre os sábios e os ignorantes. Eros tem assim uma natureza dual, sendo ao mesmo tempo destruidor dessas oposições por via da unidade, como veremos em HPB.

Eros é sempre o deus mais velho (ou um dos mais velhos) até chegarmos ao Eros da poesia lírica, que, ao contrário dos anteriores, é o mais novo dos deuses, de onde nos chegou a sua imagem, o popularizado, o erotizado e o travesso. Em suma, este é o Cupido tardio dos poetas epigramáticos e eróticos. Safo foi a primeira a chamar a Eros «filho de Afrodite», Alceu a fazer dele filho de Iris e Zéfiro (seguindo Aristófanes), e Simónides a dar-lhe como pai Ares. (Page, Poetae Melici Graeci, apud Breitenberger: 168) Independentemente da representação iconográfica do deus, que confere erotismo à cena onde é representado e que é baseada na poesia lírica, a primeira representação de Eros foi uma pedra não talhada (Pausânias 9.27.1), por isto um marco e um centro simbólico, que evoca naturalmente o sentido de «fronteira» que vimos acima. (II) EROS EM HPB O Eros de HPB desenha-se nas diferentes comparações com outras divindades (e.g. Fanes), e não por si próprio, não sendo directamente definido. Por este mesmo motivo, só o poderemos entender observando os reflexos que dele faz a autora. É precisamente na primeira referência feita a Eros na IsV, que HPB identifica o deus com Fanes, o «brilhante», dos Hinos Órficos (HO), do seguinte modo: Nos HO, o Eros-Fanes expande-se a partir de um Ovo Espiritual, que foi impregnado pelos ventos Etéreos, sendo este Vento o “espírito de Deus”, o qual, diz-se, move-se no Éter, “gerando sobre o Caos” a “Ideia” Divina. (IsV 1: 56)

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O Deus Eros na ísis sem Véu de H.P. Blavatsky

Esta comparação com Fanes, entre outras, está atestada nos HO e Fragmentos Órficos (FO), onde se identifica Eros com Fanes, mas também com Protógono, Dioniso, Métis, Euboleu, Antauges, etc. (e.g., FO 74, 86-87, 170). A rápida relação com o Éter também é de origem órfica, mas a identificação deste com um vento (criador) é muito subtil, e dá-nos uma chave para entender Eros enquanto deus alado e relacionado (também em Aristófanes) com a ideia de vento. Já nas Estâncias de Dzyan (5.4), Fohat, comparado por HPB a Eros (DS 1: 108-109), é aquele que «traça linhas espiraladas que unem o sexto ao sétimo: a coroa». HPB explica as espirais enquanto «evolução humana», que unem o sexto (a alma humana: buddhi) ao sétimo (o espírito: ātmā), isto é feito por Fohat enquanto capacidade de «amor divino (Eros), o Poder eléctrico da afinidade e simpatia» (DS 1: 119). A referência ao Caos atesta-se pelo seu nascimento do Caos em Hesíodo, e aquela feita à Ideia Divina pelo Banquete. E assim, poderemos dizer, resume-se tudo o que verdadeiramente importa sobre o deus Eros em cerca de 3 linhas da IsV.

A principal ideia a reter daqui é que o Vento Etéreo gerou Eros, ou a Ideia Divina, a partir do Caos. Na DS, HPB diz-nos praticamente o mesmo sobre o nascimento de Eros, designando estes ventos etéreos também como «Espírito das Trevas desconhecidas». (DS 1: 365) Acrescentando, de seguida, uma explicação sobre o ovo (de onde nasce o Eros órfico) enquanto símbolo da vida na imortalidade e na eternidade, estando associado com muitas outras divindades em diferentes culturas, como e.g. Ré no Egipto (DS 1: 365 e ss.), permitindo-nos entender que Eros nasce desta eternidade, surgindo com uma pós-eternidade, ou temporalidade. Noutro lugar, diz-nos sobre o mesmo Eros-Fanes, que este é o «ser primordial» que emanou da Mente Universal. O primeiro (a nascer das trevas) é a Ideia não manifestada, o segundo é um reflexo da Mente, a Ideia (ou o Lógos) manifestada. (HPB, “The Mind in Nature”, Lucifer 19, 1896: 267-268) Regressando à IsV, logo após a primeira referência a Eros, HPB, compara este Vento gerador de Eros, ou se preferirmos, do «desejo» de gerar (vida no Caos), com o Puruṣa upaniṣádico, em especial com aquele da Kaṭhopaniṣad, onde se diz que este pré-existe à matéria original. HPB utiliza a designação Kāṭhakopaniṣad (= Kaṭhopaniṣad) referindo-se em especial aos vv. 2.3.8-9, onde se diz que Puruṣa não tem atributos porque está para além do não-manifestado. Por este motivo ninguém o pode ver (tal como se diz de Protógono no fragmento de Hérmias). Versos que por sua vez terão influenciado a concepção de divindade tal como a encontramos na Bhagavadgītā. Desta união nasce Brahmā, o mahātmā e o espírito da vida. (IsV 1: 56) Diz-nos de seguida HPB, que todos estes termos, i.e., os Ventos Etéreos e Puruṣa, são termos análogos àqueles da Alma Universal (Anima Mundi) e da Luz Astral dos Teúrgicos e Cabalistas. (IsV 1: 56; cf. DS 1: 461) HPB compara assim os Ventos Etéreos a Puruṣa, e, aquilo que aqui nos interessa, compara Brahmā a Eros, aquele nascido da união desses Ventos Etéreos e da Matéria ou «ovo das trevas» (cf. DS 1: 365). Na DS, HPB sugere-nos que a “trindade indiana” presente algures no Viṣṇupurāṇa, é composta por Puruṣa, Praḍhāna e Kāla, correspondendo na Grécia a Fanes (ou Eros), Caos e Crono, respectivamente, i.e., divindade primordial, caos e tempo. (DS 1: 452)

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O Deus Eros na ísis sem Véu de H.P. Blavatsky

Foram estas ideias orientais que construíram o Eros grego, com provável origem nas Upaniṣads que “chegaram” à Grécia, de acordo com HPB, através de Pitágoras, tendo sido depois popularizadas por Platão (nas palavras de HPB: «para as mentes não-iniciadas»), que as compilou e libertou da complexidade numérica do primeiro. (IsV 1: 56) Não deixa de ser interessante que HPB defina estes dois deuses criadores (Eros e Brahmā), recorrendo ao momento da sua própria criação, regressando à sequência da Ideia nãomanifestada que gera a Ideia manifestada, ou se quisermos, no caso de Eros, o Desejo nãomanifestado (Ventos Etéreos) que gera o Desejo manifestado (Eros). Reforçando esta ideia, HPB compara na DS o deus Eros, enquanto princípio de criação, com o desejo (póthos) da Cosmogonia Fenícia e com o desejo de criar do Brahmā purāṇico. (DS 1: 107, 110) Eros, que por vezes é sugerido como o primeiro criador e o mais velho dos deuses, como e.g. na Teogonia e nos HO, é na realidade um deus secundário e (aqui) a segunda pessoa da criação. Diz-nos HPB na IsV de Brahmā (o mesmo que suporíamos de Eros): Brahmā é uma divindade secundária, que, como Javé, é “um movedor de águas”. (…) Nascido deste caos e trevas, Brahmā, o arquitecto do mundo, pousou num lótus que flutuava (movia-se?) sobre as águas, incapaz de discernir alguma coisa para além das águas e das trevas. (IsV 1: 91)

Mas não é assim tão fácil, veremos, afirmar que Eros seja a primeira ou a segunda pessoa da criação. Porque se por um lado este Eros-Brahmā é distinto do Lógos, e um segundo agente criador, um demiurgo, lemos também em HPB que Fanes (-Eros) é o Verbo, e o Lógos. (IsV 1: 146) Isto porque, diz-nos HPB, a forma geradora de ventos (Éter) representa o movimento vibratório da Luz Astral. E esta seria uma ciência bem conhecida dos Antigos, tal como o era já nas concepções científicas do séc. XIX, (IsV 1: 56-57) por isto, compreenderam o Éter enquanto Ideia Eterna que preenche todo o Universo, «a Vontade que se transforma em Força», que cria e organiza a matéria. (IsV 1: 57) Entendemos assim que o Éter se transforma em Eros. Mas mais interessante é a forma com que HPB define, logo depois, esta Vontade (transformada em Força), citando para o efeito Jan van Helmont e Paracelso, dando-nos, na realidade, uma definição sobre um Eros no mundo. Do primeiro lê-se: Esta vontade é o primeiro de todos os poderes. Porque através da vontade do Criador todas as coisas são feitas e colocadas em movimento. Esta vontade é propriedade de todos os seres espirituais, e vai-se revelando neles tanto quanto eles se vejam libertados da matéria. (IsV 1: 57)

Quem “faz” e põe “em movimento” é, efectivamente, Eros, e é também Eros aquele que, tendo uma natureza dual, representa essa Vontade em todos os seres e no mundo. E do segundo: [A] Fé deve sustentar a imaginação, porque a fé estabelece a vontade. Uma vontade determinada é o início de todas as operações mágicas. É porque os homens não imaginam perfeitamente nem acreditam no resultado, que as artes [mágicas] são incertas, ainda que eles possam estar perfeitamente certos. (IsV 1: 57)

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Seguindo na mesma linha de raciocínio, ainda que quase cem pp. adiante, diz-nos HPB: Desde a extensão ilimitada da matéria cósmica, que se formou sob o seu sopro (do princípio criador activo), ou vontade, esta matéria cósmica – luz astral, éter, fumo provocado pelo fogo, princípio da vida – não importa o que lhe possamos chamar, este princípio criativo, ou, como a nossa moderna filosofia [do séc. XIX] o designa, lei da evolução, colocando em movimento as potências latentes nela, formou os sóis e as estrelas, e os satélites; definiu o seu lugar através da imutável lei da harmonia, e povoou-os com “todas as formas e qualidades de vida”. (IsV 1: 146)

Diz-nos HPB que as duas forças primordiais e princípios do universo são, independentemente do nome que recebam: 1º) o Éter ou a Mente; e 2) o Caos ou a Matéria. O primeiro é o princípio intelectual vivificador (masculino), o segundo o Caos informe (feminino). Destes dois nasce o universo, ou mundo universal, que é a divindade andrógina (aqui HPB chama-lhe Protógono), com um corpo (o Caos) e uma alma (o Éter). (IsV 1: 341) Eros-Protógono é uma divindade andrógina, porque pode ser masculina (Adão Cadmo) ou feminina (Sefira), contendo em si os dois poderes. (IsV 2: 268) HPB apelida esta divindade andrógina, ou Protógono ( = Eros), de «primeira luz nascida», e «dis: ordenador de todas as coisas», citando Damásio. (IsV 1: 341) Desde modo, o deus Eros, para além de ser a primeira, a segunda ou a terceira fase da criação (conforme o quisermos ler), é também o seu resultado, contendo em si mesmo os dois aspectos da criação, que compreendemos como masculino e feminino. De facto, é isto mesmo que HPB nos diz sobre Eros noutro lugar: Eros é a causa e o efeito da criação. (HPB, “The Origin of the Mysteries”, Blavatsky Collected Writings 14: 255.) Eros é, portanto, inerente a todo o processo criativo. Quanto ao carácter andrógino, isto permite-nos compará-lo com várias outras divindades, mas também com o ser humano, que é masculino (espiritual) e feminino (material). Baseando-se num Fragmento de Hérmias (FO 86), HPB diz-nos que a trindade universal, que veio a gerar o Homem, é composta pelo Caos, pelo Espírito e por Protógono (Eros), sendo este último o brilho nascido do prazer resultante da união entre os dois primeiros. (IsV 1: 341) Na realidade, podemos entender Protógono, e por comparação, Eros, como a divindade que se forma a si mesma, auto-engendrada e que se reflectirá no Homem, possuidor de um corpo e de uma alma, já que o deus contém em si o casal criador. Ele é o criador e o criado. Encontramos assim a explicação de um dos atributos de Eros: a sua natureza dual (e.g., HO 6; Platão, Banquete 203b e ss.), que geralmente é explicada pelo facto de Eros ser filho de Afrodite, e de esta ser ouranía «celeste» e pándēmos «de todo o povo» ou terrena. Eros não se distingue assim, se nos lembrarmos do seu nascimento órfico, nem do Caos nem do Éter, ou, regressando à ideia anterior, do criador e do criado. De facto, a dualidade encontrada no Eros de Hesíodo, fomentada pelo seu nascimento do Caos e pelo seu acompanhamento secundário da deusa Afrodite (actividades que são, aos olhos dos académicos, inconjugáveis), é ilusória, já que HPB refere Afrodite nascida dos genitais castrados de Úrano como uma segunda forma de Gaia, sendo este Eros que a acompanha no seu nascimento, o poder da geração (esse Éter que age sobre a Matéria) agora aplicado à vida, i.e., um Eros pándēmos. (DS 2: 65)

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O Deus Eros na ísis sem Véu de H.P. Blavatsky

Esta dupla natureza de Eros aliada de uma totalidade e continuidade, já a encontramos no HO 58 (a Eros), onde lemos: Invoco-te, grandioso, puro, / belo e encantador Eros, / arqueiro alado que corre / rapidamente num caminho feito de fogo, / que influencia tanto os deuses / quanto os homens mortais. / Inventivo, de dupla natureza, / tu és senhor sobre todas as coisas: / do éter celeste, do mar e da terra, / de todos os ventos gerados, / que para os mortais a deusa [Deméter] / do pasto e do cereal alimenta, / de tudo aquilo que está no Tártaro, / de tudo o que está no mar rugidor; / apenas tu governas / todas as suas correntes. / Ó bem-aventurado, aproxima-te dos iniciados / com pensamento puro, / e afasta deles / os indignos impulsos.

Sobre Protógono, que foi referido acima, diz-nos HPB que ele é a Hipóstase, ou a união entre o Verbo e a natureza divina, aquele que permite a união e a não-diferenciação, comparando-o com a primeira emanação de En-Soph (a sabedoria), o Adão Cadmo dos cabalistas, o Brahmā dos hindus, o Lógos platónico, e o «início» do Evangelho de João, o arquitecto que pré-existe ao deus criador cristão, sendo este último um agente executivo e um «simples poder». (IsV 2: 37) Protogóno é representado como uma serpente, com asas e com quatro cabeças: de homem; de falcão (ou de águia); de touro; e de leão. As quatro cabeças (como as de Brahmā) representam o zodíaco e as quatro estações do ano, enquanto que a serpente representa o «ano mundano» ou a divindade não-revelada. (IsV 1: 146-147) O tempo é alado, como tal a serpente tem asas (IsV 1: 147) tal como Eros, pois representa uma Vontade (temporal) que atravessa o espaço. Muitas das interpretações avançadas sobre Protógono por HPB correspondem ao HO 6 (a Protógono): É ao Protógono («primeiro nascido») de dupla natureza, / grandioso e atirado do etér, que eu invoco; / o nascido do ovo, / que se deleita nas suas asas douradas, / o criador dos deuses bem-aventurados e dos homens mortais; / ele que muge como um touro. / Ericepeu («primordial»), afamado sémen, / presente em muitos rituais, / indescritível, oculto, rebento brilhante, / sempre em movimento giratório, / tu dispersaste a obscura neblina, / a neblina que estava diante dos teus olhos. / Agitando as tuas asas, rodopiaste / através do mundo / e trouxeste a luz pura. / Por tudo isto eu invoco-te, ó Fanes («brilhante»), / sim, invoco-te senhor Príapo, / invoco-te Antauges («aquele que reflecte a luz») de olhos brilhantes. / Ó bem-aventurado [portador] de muitos conselhos / e de muitas sementes, aproxima-te com alegria / dos oficiantes deste rito sagrado, / deste complexo ritual.

Protógono é ainda o «Homem Celeste», a Forma e a Ideia universais, que passam a existir no Homem e na criação que possuem em si mesmos todas as formas. (IsV 2: 276) Este Homem Celeste, recorda-nos rapidamente, no panorama Indo-Europeu, de Puruṣa e de Dioniso, ambos representativos do Homem Celeste que é desmembrado com o fim de gerar o Homem terreno e restantes formas, i.e., a unidade sacrificada e desmembrada, que posteriormente, desde a (aparente) pluralidade, procura regressar a essa mesma unidade primeira. Portanto, esta leitura de HPB permite-nos comparar Protógono com Puruṣa e Dioniso (todos comparáveis a Eros). Burkert (566) conta o mito do desmembramento de Dioniso da seguinte forma: Zeus violou a sua mãe Reia-Deméter e gerou Perséfone; violou Perséfone na forma de uma serpente e gerou Dioniso; Entregou o poder sobre o mundo ao pequeno Dioniso, sentou-o num trono e deixou-o à guarda dos Coribantes. Mas Hera enviou os titãs que distraíram o pequeno Dioniso com brinquedos, e enquanto a criança estava a olhar para um espelho foi arrancada do trono, morta, despedaçada, cozida, assada e comida. Depois, Zeus lançou o seu trovão e fulminou os titãs, e da fuligem que se levantou nasceram os homens, rebeldes contra os deuses, mas que mesmo assim possuíam em si o divino. Dos restos que foram salvos e reunidos renasceu Dioniso.

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O Deus Eros na ísis sem Véu de H.P. Blavatsky

Encontramos novamente uma serpente (Zeus) que percorre o submundo (Perséfone) ou a terra (enquanto filha de Deméter), gerando Dioniso, que foi desmembrado quando criou a sua própria dualidade, reflectindo-se (à maneira de Narciso) num espelho. Devido ao seu renascimento, os Homens possuem, tal como Eros-Dioniso, uma natureza dual, semelhante à de Protógono. Nos FO este surgimento do Homem estava já associado à transmigração das almas, (Kern: 224) e quando Platão alude ao mito do desmembramento de Dioniso no Crátilo (400c), refere-o no contexto do castigo que todos os homens, ao encarnar, receberam por esse pecado ancestral de “desmembrar” o deus (a criação), justificando assim o motivo para a reencarnação (retorno à unidade). Acrescenta-se ainda a citação que Platão faz de Píndaro: Daquelas [almas] que Perséfone recebe como recompensa pelo pecado antigo (o desmembramento de Dioniso), no nono ano ela devolve-as novamente ao sol (à vida), das quais nascerão nobres reis, homens poderosos em força e grandes em sabedoria, e daí em diante, são chamados heróis e santificados pelos homens. (Platão, Ménon 81b-c)

No caso de Puruṣa, deus igualmente desmembrado e sacrificado, surgem, não apenas o Homem, mas todas as formas do universo, sendo descrito como aquele que ocupa toda a terra e o seu redor, (Ṛgveda 10.91.1) tal como Prajāpati, que detém o céu com os dois braços. (Ṛgveda 10.121.4) Na literatura védica, Puruṣa é o Homem Celeste e Primordial, vindo mais tarde a designar qualquer animal masculino. Na filosofia sāṃkhya será o Espírito ou o Eu, por oposição à matéria (prakṛti). O poema do homem primordial, o puruṣasūkta, (Ṛgveda 10.90) dá origem à criação do universo, mas também à organização social dos quatro varṇas, ou castas: Quando [os deuses] dividiram Puruṣa, em quantas porções o fizeram? Que nome dão à sua boca, aos seus braços? Que nome dão às suas coxas e aos seus pés? Brahman é a sua boca, dos seus braços nasceram os rājanyas. As suas coxas tornaram-se nos vaiśyas, dos seus pés nasceram os śūdras. A lua foi criada a partir da sua mente, e do seu olho nasceu o sol. Indra e Agni nasceram da sua boca, e Vāyu do seu sopro. Do seu umbigo nasceu o ar e o céu da sua cabeça. A terra dos seus pés, e dos seus ouvidos as regiões. Juntos formaram os mundos. Set e estacas delimitadoras (ramos verdes) tinha ele, e três vezes sete estacas de madeira -combustível foram -lhe preparadas, quando os deuses, sacrificando, aprisionaram a sua vítima, Puruṣa. (Ṛgveda 10.90.11-15)

No último verso subentende-se que das 28 estacas, 7 estavam verdes e delimitaram o sacrifício, i.e., impediram que o fogo se preparasse. De acordo com a Constituição Septenária (e.g., DS 1: 157) podemos ler que a mente delimitou o sacrifício dos três corpos inferiores, ou que a criação está presente na mente, sobre os outros corpos, que são consumidos. De qualquer forma, o desejo de criar estende-se a todos os corpos e sub-corpos. No caso de Eros, o desejo de criar nasce do Caos e estende-se à função mundana (da Afrodite hesiódica) de criar. A Afrodite acompanhada por Eros nasce ela mesma de um sacrifício (aquele de Úrano), que também é um “desmembramento”, símbolo da expansão de algo deste a sua unidade até à pluralidade. Numa das Estâncias de Dzyan (5.2), Fohat é responsável por chamar e unir as inúmeras centelhas, tal como Bṛhaspati chama as vacas aurorais (e.g.: Ṛgveda 4.50.4-5). É neste contexto que HPB menciona pela primeira vez Eros na DS e o compara com Fohat. (DS 1: 108-109) Eros, que HPB descreve como «terceira pessoa na trindade primordial», juntamente com Caos e Gaia (DS 1: 109), trindade que corresponde ao En-Soph cabalístico: o Todo, Shekinah e o Antigo (Espírito Santo). (DS 1: 109)

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O Deus Eros na ísis sem Véu de H.P. Blavatsky

Eros é assim, à semelhança de Fohat, dual, isto porque ele «é uma coisa no Universo ainda nãomanifestado e outra no mundo fenoménico e Cósmico». (DS 1: 109) No Universo nãomanifestado, Eros é: [O] poder Oculto, eléctrico e vital, que, respondendo à Vontade do Lógos Criador, traz e reúne todas as formas, dando-lhes o primeiro impulso que se transforma na lei do tempo. (DS 1: 109)

Esta natureza dual está presente também nos filhos do Caos, o qual, por intermédio de Eros, dá à luz o Éter e a Hemera, a luz superior e a luz inferior, respectivamente. (DS 1: 110) Estendendose esta interpretação a todas as dualidades, os dois céus, os dois fogos, etc. Em termos cosmogónicos, o próprio desejo desenvolve-se com natureza dual (Vontade e desejo). É por este motivo que HPB compara Eros ao deus Kāma «desejo» que no Ṛgveda (10.129) é a personificação do desejo que leva à criação física, mas também o primeiro dos deuses. (DS 2: 175) Na literatura posterior, Kāma nascerá do coração de Brahmā (o Todo personificado), sendo ātmabhū «auto-existente» e aja «não-nascido» (DS 2: 176), da mesma forma com que Eros nasce de Zeus no HO a Zeus. (Estobeu apud: IsV 1: 235) Já no Harivaṃśa, Kāma será filho de Lakṣmī (= Afrodite), tal como acontece com Eros. (DS 2: 176) Da mesma forma, Eros representa o desejo divino presente nos deuses, bem como na natureza, de criar e de dar vida aos seres, semelhante, segundo HPB, ao que faz a serpente do Génesis. (DS 2: 234) HPB diz-nos ainda que Eros é o termo “esotérico” para a palavra amor (phílos) no composto philosophía (da qual propõe a significativa e “oculta” tradução: «sabedoria do amor», em vez do «amor à sabedoria»). E diz-nos do deus: Eros, esse princípio primordial na criação divina, sinónimo de póthos, o desejo abstrato que a Natureza tem de procriar, resultando numa série eterna de fenómenos. Ele significa «amor divino», esse elemento universal da omnipresença divina que se espalhou pela Natureza e que é ao mesmo tempo a sua causa e o seu efeito. (HPB, “The Origin of the Mysteries”, Blavatsky Collected Writings 14: 255)

III) CONCLUSÃO Eros é, assim, o desejo, ou melhor, a Vontade, de criar em todos os seus sentidos, sendo a causa e o efeito dessa mesma Vontade criadora. Vontade essa que se mantém presente em todas as fases da criação, divindindo-se e transformando-se ao longo do processo criativo de uma Ideia divina. Como tal, não é diferente o Eros que cria o universo daquele que, no Homem, cria verdadeiramente qualquer coisa. Essa Vontade foi associada ao Amor, porque, obviamente, todo o acto de criação é um acto de amor, é mais dar do que receber, e neste trabalho da vida todos somos chamados ao nosso dever, e todos temos, em certa medida, esse Eros em nós: pois fomos criados com a capacidade de criar, e toda a criação (incluindo a humana) leva consigo esse “desejo” de criar. Compreendemos assim que na obra de HPB, que é um estudo feito de comparações que geram proto-significados (ou se preferirmos, de formas comparadas que permitem entender significados esotéricos: Ideias), a fim de encontrarmos uma significação para cada referência temos também de aplicar um método comparativo.

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O Deus Eros na ísis sem Véu de H.P. Blavatsky

Aqui as divindades não podem ser lidas isoladas umas das outras, e por muito escassa que seja a informação e as referências a determinada divindade ou princípio (como é o caso de Eros), somos capazes de encontrar respostas comparando os diversos nomes que HPB vai dando ao mesmo deus. Mas aqui, e concretamente no caso da mitologia comparada de HPB, não se requer apenas uma leitura horizontal entre deuses, epítetos e contextos (que só nos levará à elaboração de catálogos excessivos, confusos e igualmente horizontais), mas principalmente a investigação de uma origem comum (vertical), de um proto-deus e de um proto-significado, se lhe quisermos chamar assim, que HPB não nomeia, mas que evidencia. Em última análise, comparando os vários comparanda de HPB, poderemos chegar a imaginar o que poderia estar a “imaginar” HPB enquanto escrevia, aproximando-nos mais daquilo que a autora nos legou. (IV) ANEXOS

a) referências a Eros na IsV

1: 56: Eros (comparado a Fanes, à Ideia Divina e a Brahmā) 1: 263: Eros (enquanto criação de Zeus) 2: 142: Eros ou Er (Platão) 2: 171: nobre Eros (Axieros) b) Bibliografia ATHANASSAKIS, Apostolos; WOLKOW, Benjamin, The Orphic Hymns, Maryland, Johns Hopkins University Press, 2013. BLAVATSKY, Helena P., Isis Unveiled: A MasterKey to the Mysteries of Ancient and Modern Science and Theology, 2 vols., California, Theosophical University Press, 1877. ——— The Secret Doctrine: The Synthesis of Science, Religion, and Philosophy, 2 vols., California, Theosophical University Press 1888. ——— “The Origin of the Mysteries”, Blavatsky Collected Writings, vol. 14, Illinois, Theosophical Publishing House, 1966. BURKERT, Walter, Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.

52

BREITENBERGER, Barbara, “The Origins of Eros”, in Aphrodite and Eros: The Development of Erotic Mythology in Early Greek Poetry and Cult, New York, Routledge, 2007. CHANTRAINE, Pierre, Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque: Histoire des Mots, Paris, Éditions Klincksieck, 1977. KERN, Otto, Orphicorum Fragmenta, Berlin, Weidmann, 1922. LAROCHE, E., "Correspondanc es lexicales hittites, latines et grecques," RPh 42/2, 1968. LUDWIG, Paul W., Eros and Polis: Desire and Community in Greek Political Theory, Cambridge, Cambridge University Press, 2002. MALLORY, J.P.; ADAMS, D.Q., Encyclopedia of Indo-European Culture, London, Fitzroy Dearborn Publishers, 1997.

WEISS, Michael, “Erotica: On the Prehistory of Greek Desire”, Harvard Studies in Classical Philology, 98, 1998. WEST, Martin L., Hesiod. Theogony, Oxford, Oxford Univeristy Press, 1966. WILSON, Paul, A Linguistic and Philological Study of Selected Greek Verb Forms, diss. Cornell University, 1993.


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19

40


Sá da Bandeira e a Marinha na Implatação do Liberalismo (1832-1870)

Sá da Bandeira e a Marinha na implantação do Liberalismo (1832-1870) Fernando David

1

2

Academia de Marinha; Centro de Investigação Naval; f.david.silva@ gmail.com

Bernardo

Nogueira

de

Figueiredo pode ser considerado

Antiga expressão francesa usada para qualificar o vassalo cuja fidelidade ao senhor feudal ultrapassava as formas tradicionais de ligação e dependência.

com um dos personagens que

Oliveira Martins, Portugal Contemporâneo, Vol. II, Porto, Lello e Irmão, 1981 pp. 64-65.

complexo e atribulado processo de

tiveram maior impacto no séc. XIX português, em especial pela sua acção nas diferentes fases do

3

4

de

implantação do liberalismo. Entre o muito que já se disse sobre o

Valentim Alexandre, A questão colonial no Portugal oitocentista, Valentim Alexandre e Jill Dias (Coordenação), O Império Africano (1825-1890) Nova História da Expansão Portuguesa. Direcção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, Volume X, Lisboa, Editorial Estampa, 1998, pp. 39-40.

marquês de Sá da Bandeira, terá sido Oliveira Martins quem melhor descreveu a sua personalidade, considerando-o bandeira,

“Militar

súbdito

fiel

fiel ao

à rei,

cidadão fiel à Pátria, espírito fiel aos princípios […] Sereno e firme, estóico e virtuoso, julgava-se o homme-lige 2

da

liberdade

3

portuguesa” . Bernardo de Sá Nogueira tem recebido uma merecida atenção da historiografia, tanto pela sua acção como militar e político, como pela que desenvolveu em relação aos territórios africanos, para os quais defendia uma prática de colonização em que, na tradição vintista, a abolição da escravatura e do tráfico negreiro desempenhavam um lugar central. A questão da abolição era crucial no seu pensamento sobre o estado em que se encontravam o que designou como os “fragmentos decadentes da monarquia ultramarina”, que era consequência do “mau governo que tem tido a metrópole” e da atenção “quase exclusiva” antes dada ao Brasil 4. Neste texto darei relevo ao papel importante que, em diversas circunstâncias, caracterizou a sua acção junto da Marinha, pelouro governamental que era exercido conjuntamente com o Ultramar. A sua influência pode ser directamente ilustrada pelo facto de, entre 1832, na regência de D. Pedro, durante o cerco do Porto, e 1870, no 32º governo Constitucional (a que também presidiu), Bernardo de Sá Nogueira ter ocupado por sete vezes o cargo de ministro da Marinha e Ultramar. Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo nasceu em 1795 em Santarém, numa família de proprietários próximos do Paço, primogénito de 14 irmãos. Alistou-se em Cavalaria quando tinha 14 anos. Em 1814, integrado no exército anglo-português, combateu nos Pirinéus, foi ferido e feito prisioneiro

54

pelos franceses, sendo libertado no ano seguinte depois da Paz de Paris.

1


Sá da Bandeira e a Marinha na Implatação do Liberalismo (1832-1870) 5

Simão José da Luz Soriano, Vida do Marquez de Sá da Bandeira e Reminiscencia

De regresso a Portugal iniciou um percurso de estudos que Luz Soriano descreveu apologeticamente:

de alguns dos sucessos mais

“Sabedor de que os mais ilustres capitães d´entre os gregos e romanos foram os que mais se alliaram

notáveis que durante ella tiveram logar em Portugal,

com as prendas da sabedoria, com as do valor e coragem militar […] resolveu-se a ir […] frequentar

Volume I, 2 volumes,

os estudos mathemathicos da antiga Academia Real da Marinha, para depois seguir […] os da antiga

Lisboa, Typographia da

5

academia de fortificação e desenho […]” . Concluída esta fase, cursou Matemática e Filosofia em Coimbra entre 1818 e 1820, prosseguindo os estudos em Paris (onde em 1821 estudou no Museu de História Natural e no Conservatório de Artes e Ofícios) e em Londres (onde estudou engenharia, em

Viuva Sousa Neves, 1887

6

A. H. da Oliveira Marques, História da Maçonaria em

1825 e 1826). Esta prolongada formação contribuiu para a sua condição de homem culto, versado em

Portugal. Política e Maçonaria 1820

diversas línguas, atributos que em conjunto com as suas opções políticas o converteram numa

(2ª parte)

personalidade fundamental e singular na vida política portuguesa ao longo dos segundo e terceiro quarteis do séc. XIX.

mesmo ano de 1820. A expressão é utilizada para

capital, para uma actividade tida por episódica7. A partir de então vamos encontrá-lo em quase todas

com um maçon que abandonou os trabalhos

as situações importantes da vida militar e política portuguesa, num permanente alinhamento anti-

da Maçonaria. Ver A. H.

absolutista, democrático, adepto da Constituição de 1822 mas defensor da Carta Constitucional de

de Oliveira Marques,

1826 quando esta foi combatida pelos defensores do Antigo Regime, assumindo posição ao lado dos

Dicionário da Maçonaria Portuguesa, Volume I,

radicais sempre que as suas acções não o confrontaram com as suas convicções mais profundas de

Lisboa, Editorial Delta,

fidelidade ao Trono. 8

estrangeiro os anos seguintes à Revolução de 1820. De regresso a Portugal empenhou-se ao lado dos liberais no combate às convulsões militares de 1826-1827, desencadeadas pelos absolutistas em reacção à outorga da Carta Constitucional por D. Pedro em 1826. Depois do fracasso do pronunciamento de 1828 contra D. Miguel, Bernardo de Sá acompanhou a retirada das tropas liberais para a Galiza, partindo depois para Inglaterra, onde se juntou aos restantes exilados. Em 1830, depois de uma tentativa gorada de tomar a Madeira para a causa liberal e de uma viagem ao Brasil, onde se encontrou com

p. 377.

Terá passado a “coberto” no

Em 1820, era capitão, aderiu à causa liberal e foi iniciado na Maçonaria numa Loja militar da

Como mencionámos, ocupou com estudos no

1986, p. 350.

Tinha como navios principais as fragatas “Rainha de Portugal” e “D. Maria II”, pela corveta “Amélia”, pelo brigue “Conde de Vila Flor” e as escunas “Terceira”, “Liberal”, “Boa Esperança e “Eugénia”, que deram protecção a quarenta e dois navios de transporte. Ver Charles Napier, An Account of the War in Portugal between Don Pedro and Don Miguel, Volume 1,

2

Volumes, Londres, T. & W. Boone, 1836, p. 28. Para a origem dos navios de escolta, ver António Marques Esparteiro,

o imperador, viajou para a ilha Terceira onde, a

Catálogo dos Navios

partir daquele ano, se instalou o Conselho de

Brigantinos (1640 -1910),

Regência nomeado por D. Pedro. Combateu pelo controlo das ilhas açorianas, consumado em

Lisboa, Centro de Estudos de Marinha, 1976, passim.

Agosto de 1831, onde permaneceu até ao Img. 2: Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo quando jovem tenente (c. 1820)

-1869

, Lisboa,

Editorial Presença, 1997,

7

6

e 1888.

desembarque do Mindelo, em Julho de 1832.

55


Sá da Bandeira e a Marinha na Implatação do Liberalismo (1832-1870)

8

Tinha como navios principais as fragatas “Rainha de Portugal” e “D. Maria II”, pela corveta

As forças que partiram dos Açores para a expedição ao continente eram compostas por cerca de

“Amélia”, pelo brigue

7.500 homens, embarcados em cinco navios armados e mais de quarenta velas de transporte ,

“Conde de Vila Flor” e

esquadra que foi comandada pelo almirante George Sartorius 9. O exército liberal desembarcou em 8

as escunas “Terceira”, “Liberal”, “Boa

de Julho na praia do Pampelido (também conhecida então por praia dos Ladrões, depois praia da

Esperança e “Eugénia”, que deram protecção a quarenta e dois navios de transporte. Ver Charles War in Portugal between

Entrou depois no Porto com D. Pedro, sendo nomeado governador militar da cidade. Promovido a

Don Pedro and Don 2

Volumes, Londres, T. & Para a origem dos navios

Depois da instalação do duque de Bragança no Porto, o almirante Sartorius continuou a comandar a

de escolta, ver António Marques Esparteiro,

esquadra constitucional. Exerceu este comando em condições progressivamente mais difíceis, tendo

Catálogo dos Navios Brigantinos (1640 -1910), Lisboa, Centro de Estudos de Marinha,

1885) co

-

mandou a

esquadra constitucional entre 7 de Junho de 1832 e 8 de Junho de 1833. Foi contratado em Londres, em 1831, para fazer parte da “comissão de aprestos”, que foi encarregada da preparação de navios e tropas para uma futura expedição dos constitucionais a Portugal. Era oficial da Royal Navy e estava fora do serviço activo quando o marquês de Palmela o convidou para servir a causa dos

10

liberais.

Resultantes dos

atrasos no

pagamento de soldos, bem como do mau estado dos navios e da progressiva degradação das suas

11

capacidades de combate.

Comandada pelo chefe -de-divisão (posto hoje correspondente a contra-almirante) João Félix

Pereira de Campos, dispunha da nau “D. João VI”, uma

fragata, uma corveta e três brigues. A esquadra de

Sartorius era composta por

duas fragatas, uma corveta, dois b rigues, uma escuna e um vapor.

56

que enfrentar surtos de cólera, insubordinações10 e divergências com os círculos próximos de D. Pedro. Logo depois do desembarque no Mindelo, Sartorius recebeu a missão de estabelecer um bloqueio ao

1976, passim.

George Rose Sartorius (1790

tenente-coronel participou no combate do Alto da Bandeira, em Gaia, onde em consequência de um ferimento de bala, lhe foi amputado o braço direito.

W. Boone, 1836, p. 28.

9

primeiros a desembarcar, enviado a terra para parlamentar, uma iniciativa que foi rejeitada pelos realistas.

Napier, An Account of the

Miguel, Volume 1,

Memória, situada uma légua a sul da povoação do Mindelo). O capitão Bernardo de Sá foi dos

porto de Lisboa, em cuja sequência se deu o primeiro confronto naval com a esquadra realista11.


Sá da Bandeira e a Marinha na Implatação do Liberalismo (1832-1870)

Regressou ao Porto e largou de novo para o mar em Agosto, para tentar um segundo bloqueio naval

12

Saldou-se por 20 mortos e 49

da capital, a que de novo se opuseram as forças de D. Miguel. As duas esquadras acabaram por se

feridos para a esquadra

confrontar no dia 11 de Outubro ao largo de Vigo, num combate de resultado indeciso .

de D. Miguel e 10

De novo no Porto, o almirante inglês foi recebido com frieza por D. Pedro e pelos do seu círculo

dos liberais. Ver Simão

12

mortos e 40 feridos para José da Luz Soriano,

próximo, que consideraram um fracasso o não apresamento ou destruição dos navios absolutistas. Para procurar encontrar uma saída para a situação, Bernardo de Sá Nogueira foi, em 10 de Novembro de 1832, nomeado ministro dos Negócios da Marinha do governo da Regência, o primeiro cargo político desempenhado pelo futuro marquês de Sá da Bandeira. As boas relações existentes

Vida do Marquez […]

13

,

Tomo I, pp. 306-307. Id., ibid., pp. 306-307.

14

1

entre Sá e o inglês acabaram por restabelecer uma certa confiança entre o almirante e o governo de

Charles John Napier (1786 1860) era oficial da Royal Navy e esteve fora

13

D. Pedro condição que, no entanto, o futuro próximo revelaria muito precária.

do serviço activo entre

De facto, a situação no Porto continuava a agravar-se, sobretudo na frente terrestre e na frente

1815 e 1829, situação

financeira, já que continuava a ser muito difícil a obtenção de empréstimos que permitissem a

efectivos depois das

que se alargou a números pazes de Viena. Tal

continuação da resistência e a preparação de uma ofensiva para Sul. Em Janeiro, Luz Soriano relatou

como Sartorius, era

da seguinte forma o ambiente que se vivia na sede da Regência: “Não admira […] que o […] governo

capitão-de-mar.-e-

[…] julgasse já impraticável na segunda quinzena do citado mez de Janeiro [1833] poder durar muito

guerra, tendo sido promovido a vice

a nossa lucta civil. Chegadas as cousas a este estado, julgou-se necessário empreender alguma

almirante

expedição, que tirasse a causa liberal do desgraçado estado a que se via reduzida”.

-

da Armada

portuguesa em 8 de Junho de 1833, ao ser nomeado para a

As “Linhas do Porto” durante o Cerco da cidade pelas forças de D. Miguel (1832-1833)

comandar. Napier foi contratado por D. Pedro

Foi neste contexto que, logo nos finais de Janeiro de 1833, foram feitas diligências para encontrar um

com o nome suposto de Carlo de Ponza, um

substituto de Sartorius, que a regência considerava incapaz de comandar a sua esquadra naquelas

expediente para procurar

circunstâncias, ainda que se reconhecesse a escassez de poder de fogo que tinha sido possível colocar

escapar às limitações que

à sua disposição, factor que era também indispensável remediar. Como referiu também Luz Soriano:

a lei britânica (o “Foreign Enlistment

“Era […] necessário chamar um homem de heroico arrojo, pois só por uma empresa de extremado

Act”) colocav

valor se podia fazer cousa que tirasse a causa liberal do grande desalento a que tinha chegado. Lembrou pois [Bernardo de Sá] o capitão Charles Napier14, que se andava oferecendo ao serviço da causa liberal”.

súbditos por poderes estrangeiros.

15

O conhecimento entre Sá Nogueira e Napier vinha de um anterior encontro entre ambos em Angra,

a ao

alistamento dos seus

Charles Napier,

ob. cit. ,

Volume I, pp. 322-324.

quando o inglês comandava a fragata “Galatea” que tinha sido enviada para as “Ilhas Ocidentais” em missão de protecção de navios britânicos de comércio. O encontro foi breve mas Napier pode ter produzido uma boa impressão junto de Sá, provavelmente contribuindo para o convite que lhe foi feito em Londres, em 1 de Fevereiro de 1833, para assumir o comando da esquadra de D. Pedro nas mesmas condições e posto de Sartorius. A carta da regência com o convite chegou a Napier 15

acompanhada de uma outra de Bernardo de Sá na qual o ministro da Marinha dava conta ao inglês da composição da esquadra constitucional e do estado dos seus navios, pedindo que qualquer acordo com os enviados portugueses fosse mantido secreto por tanto tempo quanto possível. Napier manteve o segredo e Sartorius continuou a exercer o seu sobressaltado comando, aparentemente ignorante do que o futuro lhe reservava.

57


Sá da Bandeira e a Marinha na Implatação do Liberalismo (1832-1870)

16

Simão José da Luz Soriano, A vida do Marquez […]

,

Nos dois meses seguintes a situação continuou crítica na esquadra comandada por Sartorius, já que

Tomo I, p. 342.

não tinham desaparecido os atrasos nos pagamentos às guarnições nem as intrigas junto do círculo

Chronica Constitucional do

do duque de Bragança no Porto. Sartorius estava aparentemente esgotado da luta que tinha que

17

9

Porto, 13 de Março de 1833. Foi nomeado para o seu lugar o capitão -demar-e-guerra Thomas Crosby, comandante de um dos navios da

18

travar nos palácios para que a vida no mar lhe corresse de melhor feição. Foi assim que escreveu ao regente em palavras ásperas ameaçando mesmo, em último recurso, desertar com a esquadra para Inglaterra ou para França16. D. Pedro reagiu com uma carta régia a exonerar Sartorius, em 13 de Março de 183317. O almirante recusou-se a aceitar a exoneração e, embora lhe tivesse reprovado a

esquadra, substituição

conduta, foi Bernardo de Sá quem conseguiu uma vez mais mantê-lo no cargo18, até pela ausência de

que não chegou a

uma alternativa imediata.

consumar-se.

Também à custa das diligências do ministro da Fazenda José da Silva Carvalho junto do barão de Quintela (depois conde d e Farrobo), que conseguiu obter dinheiro por conta da concessão do contrato do tabaco, que lhe estava prometida. Ver Simão José da Luz Soriano,

A vida do

Marquez […], Tomo I, p.

19

342.

Simão José da Luz Soriano, ibid., Tomo I. Eram cinco vapores, segundo Charles Napier,

An

Account of the War […] , Volume I, p. 146.

Img. 3 e 4: Os almirantes George Sartorius e Charles Napier, comandantes da esquadra liberal durante a fase final da Guerra Civil (1832-1833)

Sá Nogueira, entretanto, tinha sido ferido em 24 de Março num ataque das forças de D. Miguel ao monte das Antas, onde se bateu com valentia. Deve ter sido esta a razão da sua substituição no cargo de ministro da Marinha que, a partir do dia 26, passou a ser interinamente exercido por José da Silva Carvalho. No dia 4 de Abril, Sá Nogueira recebeu de D. Pedro o título de barão de Sá da Bandeira e, a 21 deixou de exercer a chefia da Marinha. Quanto às relações entre Sartorius e o regente, tinham atingido o ponto de ruptura. O almirante acabou por abandonar o cargo em 11 de Junho de 1833, sendo finalmente substituído por Charles Napier. O novo comandante da esquadra constitucional tinha chegado ao Porto no dia 2, acompanhando os reforços que a “comissão de aprestos” tinha enviado de Londres: 1.200 soldados, 200 marinheiros “e um número de barcos de vapor suficiente para transportar de 2:500 a 3:000 homens a qualquer parte do reino” 19 .

58


Sá da Bandeira e a Marinha na Implatação do Liberalismo (1832-1870)

Quanto às relações entre Sartorius e o regente, tinham atingido o ponto de ruptura. O almirante acabou por abandonar o cargo em 11 de Junho de 1833, sendo finalmente substituído por Charles Napier. O novo comandante da esquadra constitucional tinha chegado ao Porto no dia 2, acompanhando os reforços que a “comissão de aprestos” tinha enviado de Londres: 1.200 soldados, 200 marinheiros “e um número de barcos de vapor suficiente para transportar de 2:500 a 3:000 homens a qualquer parte do reino” . Em 5 de Julho de 1833, menos de um mês depois de assumir o comando da esquadra liberal, o almirante Napier venceu o combate naval do cabo de S. Vicente, selando em definitivo a sorte do partido absolutista. Depois de abandonar o cargo de ministro da Marinha no Porto e de ter convalescido do combate do monte das Antas, o barão de Sá da Bandeira, de novo na sua condição de militar, continuou a tomar parte nas operações contra as forças de D. Miguel, em particular no Algarve para onde, em Fevereiro de 1834, tinha sido designado governador militar. Em Setembro, já depois da concessão de ÉvoraMonte, Sá da Bandeira foi nomeado par do Reino e em Dezembro agraciado com o título de visconde. Em 1836 voltou a envolver-se directamente na vida política nacional, tomando parte activa na revolução de Setembro. A vida parlamentar portuguesa tinha então atingido um nível de acentuado descrédito, as instituições funcionavam mal por falta de capacidade dos eleitos, opunham-se vintistas e cartistas, digladiavam-se os poderes legislativo e executivo, que se acusavam mutuamente pelas responsabilidades na conflituosa situação política, agravada pela crise agrícola e pela carestia da vida. Adepto da Constituição de 1822 mas respeitador da Carta por lealdade à Rainha, Sá da Bandeira assumiu a chefia militar do pronunciamento de 9 de Setembro mas não aceitou presidir ao governo então nomeado, cargo que foi entregue ao conde de Lumiares. No entanto, não se manteve à margem, tendo assumido as pastas da Fazenda e dos Estrangeiros. Passos Manuel, o chefe civil do movimento, tomou conta da crucial pasta do Reino. Durante o setembrismo, Sá da Bandeira presidiu ao 7º (Novembro de 1836 a Junho de 1837) e ao 9º governo (entre Agosto de 1837 e Abril de 1839). Neste segundo executivo, Sá Nogueira ocupou de novo a pasta da Marinha e Ultramar, distinguindose pela iniciativa (em conjunto com o ministro da Guerra, o padre Vieira de Castro) da criação da Escola Politécnica de Lisboa e da Academia Politécnica do Porto, ambas de perto relacionadas com a Marinha, bem como da Escola do Exército. A sempre presente questão constitucional, que agora opunha adeptos e adversários da revolução de Setembro, encontrou desta vez saída na convocação de novas Cortes Constituintes, que aprovaram um novo texto fundamental que D. Maria II jurou em Abril de 1838, e que que procurava conciliar a Constituição de 1822 com a mais conservadora Carta de 1826. A Constituição de 1838 manteve-se em vigor até Fevereiro de 1842. Por falta de apoio das Cortes, o visconde de Sá da Bandeira, que se tinha assumido como um moderado entre os “radicais”, abandonou a chefia do governo em Abril de 1839, situação que colocou um ponto final nas aspirações dos setembristas assistindo-se, a partir de 1841, à sua progressiva substituição pelos adeptos da Carta, chefiados por António Bernardo da Costa Cabral.

59


Sá da Bandeira e a Marinha na Implatação do Liberalismo (1832-1870)

20

Maria de Fátima Bonifácio, “Figueiredo, Bernardo de Sá Nogueira de (1857 1876)”,

-

Dicionário

Biográfico Parlamentar (1834-1910), Volume II,

Durante a sua subsequente carreira política, Sá da Bandeira, escreveu Maria de Fátima Bonifácio “ver-se-ia repetidamente confrontado com o dilema vivido em 1838: servir o “radicalismo” sem se deixar tragar pela revolução que, no entanto, regularmente o convocava para que a restaurasse e salvasse” 20 .

Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2004, p.

21

173, col. 2.

Durante o período de vida política activa de Bernardo de Sá Nogueira, os trinta e oito anos decorridos entre 1832 e 1870, a pasta da Marinha e Ultramar

às violentas convulsões que a situação política nacional continuou a atravessar até 1851, entre as quais é indispensável relevar as da Maria da Fonte (1846) e a da Patuleia (1847). Em 1851, depois do vitorioso pronunciamento

mudou de mãos sessenta

encabeçado pelo duque de Saldanha, no qual Sá da

e três vezes. Ver Manuel

Bandeira

Pinto dos Santos, Monarquia Constitucional. Organização e Relações do Poder Governamental com a Câmara dos Deputados (1834-1910), Lisboa,

22

O visconde regressou mais uma vez à vida militar e

não

promovido

a

teve

qualquer

intervenção,

marechal-de-campo

e

foi

nomeado

director da Escola do Exército, cargo que exerceu até morrer. Entre 1856 e 1859 foi de novo ministro da Marinha e

Assembleia da

Ultramar, no 22º governo Constitucional, chefiado

República, 1986, Anexo

pelo então marquês de Loulé. Neste relativamente

III.

Sá da Bandeira, Documentos

longo ministério21 deixou mais uma vez a sua marca

nº 7 e 8 in Sá da

na evolução da Marinha, que tinha entrado numa

Bandeira,

espiral de declínio desde a transferência da Corte

Diário da

Guerra Civil , Recolha, posfácio e notas José

para o Brasil.

Img. 5: Visconde de Sá da Bandeira em litografia de 1837

Tengarrinha, 2 volumes, Volume II, Lisboa, Seara Nova, 1975 -1976, pp. 223-228.

Sá da Bandeira teve então a visão de acolher o essencial das propostas feitas no relatório de uma Comissão de Inquérito da Câmara dos Deputados às Repartições da Marinha, que tinha desenvolvido o seu trabalho entre 1853 e 1856. Foi pois com base nas conclusões daquele relatório que, para além de medidas de reforma orgânica que abrangeram diversas áreas da Marinha, Sá da Bandeira promoveu a aquisição das primeiras corvetas de propulsão mista, numa tentativa de iniciar a renovação da Esquadra através da aquisição de um conjunto de meios navais tanto quanto possível coerente, e tecnologicamente actualizados. Bernardo de Sá era senhor de uma sólida formação em engenharia, sendo também conhecidas as suas preocupações com as inovações da ciência e da técnica e com o desenvolvimento do País. A prová-lo, logo em 1830, deixou as suas propostas quanto a medidas para remover os “estorvos ao adiantamento de toda a espécie de indústria”, defendendo a abolição dos dízimos (passando o clero a ser pago pelos fregueses de cada paróquia); a abolição dos dias de guarda e dos dias de jejum (com os quais apenas a Inglaterra ganhava porque “fornece o bacalhau que em Portugal é levado até aos confins do reino”); a “abertura de canais e carris de ferro” (que iriam permitir ao “habitante do Porto [comprar] ao grego e ao holandês o trigo que atravessou centenas de léguas”); o estabelecimento de manufacturas e a instrução pública “e com muita especialidade o ensino das ciências físicas e matemáticas aplicadas às artes industriais, ensino de que a Inglaterra e a França vão hoje tirando

60

grandes vantagens” 22 .


Sá da Bandeira e a Marinha na Implatação do Liberalismo (1832-1870)

23

Os navios foram recebidos em Lisboa debaixo de misto de alegria e de críticas, designadamente por parte do rei D. Pedro V. Vítor Braga Paixão tratou esta questão no Centro de

Estudos de

Marinha, em comunicação apresentada em 1976, “Sá da Bandeira, na pasta da Marinha”, Memórias, Volume VI, Lisboa, Centro de Estudos de Marinha, 1977, pp. 243 -

24

295.

Tinha como fins “indagar as causas que tinham influído, ou podiam

Img. 6: A corveta “Bartolomeu Dias” envergando o pavilhão da rainha na sua chegada a Lisboa; (óleo de João Pedroso, 1858 – colecção do Museu de Marinha)

influir na dec linação da marinha; tanto militar como mercante; indicar

Em 1858 foram aumentadas ao efectivo da Armada as primeiras três corvetas de propulsão mista, a

os meios da sua

que se fez referência. Os navios foram construídos em Londres e a sua contratação e relações com os

ao publico todos os

estaleiros ficaram a cargo do almirante Sartorius, convidado e pago pelo seu velho conhecido visconde de Sá da Bandeira 23 . A mudança de governo e de ministro em 1859, as dificuldades de financiamento, a demora na modernização da Marinha, que declinava desde 1807 e a pressa com que acabou por se realizar a aquisição dos três novos navios em 1858, levou a que os objectivos do programa de Sá da Bandeira tivessem sido apenas parcialmente alcançados. No entanto, foi graças ao seu espírito aberto à inovação e à sua visão política, que se deram passos importantes para a inversão da frágil situação em que a Marinha se encontrava nos meados do século. O seu nome foi dado à quarta corveta de propulsão mista (1862-1884), a primeira construída no Arsenal da Marinha em Lisboa, quando já reinava D. Luís I. Em 1864, quando ocupava a pasta da Guerra no mais longo governo da monarquia constitucional, de novo chefiado pelo marquês de Loulé, Sá Nogueira recebeu de D. Luís o título de marquês de Sá da Bandeira e foi depois promovido a general-de-divisão. Continuando politicamente activo, presidiu ao 26º (1865) e ao 29º (1868-1869) governos, durante os quais voltou a ocupar-se também das pastas da Marinha, da Guerra e dos Negócios Estrangeiros. As suas últimas funções políticas foram desempenhadas na chefia do 32º governo constitucional, no qual acumulou ainda a pasta da Marinha e Ultramar, entre Agosto e Outubro de 1870.

restauração; e ministrar conhecimentos, todas as reflexões e todos os arbítrios que pudessem ser adequados a tão importante fim; concorrendo ao mesmo tempo para estreitar cada vez mais as relações commerciais dos estabelecimentos ultramarinos com a mãepatria, e d´esta com os differentes pontos e nações do globo que se empregam nas operações do commercio”. Ver Annaes Maritimos e Coloniaes, nº 1, Novembro de 1840, Lisboa, Imprensa Nacional, 1840, pp. 9-10. Estes Annaes foram o órgão de imprensa da Associação, tendo sido publicados sem periodicidade fixa entre Novembro de 1840 e

A importância que Sá da Bandeira atribuía ao desenvolvimento do País e da Marinha ficou desde cedo demonstrada pela sua participação na lista de personalidades que se juntaram ao grupo de vinte

Abril de 1846 (1ª à 6ª séries).

e quatro oficiais da Marinha que, em Dezembro de 1839, fundaram a Associação Marítima e Colonial 24 , dedicada ao estudo e promoção das marinhas militar e mercante.

61


Sá da Bandeira e a Marinha na Implatação do Liberalismo (1832-1870)

25

Maria de Fátima Bonifácio, ob. cit., p. 172, col. 2.

Anos mais tarde, em 1852, viu ser-lhe atribuída a qualidade de sócio honorário do Instituto de Coimbra e, em 1875, fez ainda parte do grupo de 74 personalidades que em 10 de Novembro desse ano, enviaram um requerimento ao rei D. Luís, propondo a fundação da “Sociedade de Geografia de Lisboa”. A morte colheu-o em 6 de Janeiro de 1876. No epitáfio que mandou gravar na sua placa tumular, tinha mandado escrever “Servindo o seu país, serviu as suas convicções; morreu satisfeito; a Pátria nada lhe deve”. Bernardo de Sá Nogueira não foi tido como um comandante militar de grande capacidade, ainda que tivesse sempre demonstrado a sua bravura no campo de batalha25. No entanto, pode ser considerado, de entre o grupo de militares-políticos que intervieram de forma relevante na vida portuguesa dos segundo e terceiro quarteis do séc. XIX, o que demonstrou maior habilidade política, fazendo uso das suas qualidades pessoais e dos alargados e profundos estudos que empreendeu no início da sua vida adulta. A sua acção militar e política foi subordinada ao princípio da liberdade, uma liberdade concreta, materializada num direito de voto alargado e livremente exercido, e na sua fidelidade ao trono, nem sempre traduzida na obediência absoluta, que não era essa a sua forma de servir a Coroa e a Nação.

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auxilio

apontamentos mesmo

em

informações

de

prestados

1873

e

fidedignas,

valiosos

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Typographia

da

Neves, 1887-1888. SERRÃO,

Viuva

Joaquim

Lisboa, Sousa

Veríssimo,

História de Portugal¸16 volumes,

Volume VIII - Do Mindelo à Regeneração (1832-1851), Lisboa, Editorial

[Reimpressão].

Verbo,

2003



Comentário Critíco ao Filme: Idi i smotri (1985)

Comentário Crítico ao Filme:

Idi i smotri (1985), Elem Klimov João Camacho

«E quando Ele abriu o quarto selo, ouvi a voz do quarto ser vivente que dizia: “Vem”. Na visão apareceu o cavaleiro esverdeado. O cavaleiro chamava-se “Morte”; e o “Abismo” seguia atrás dele. Foi-lhe dado poder sobre a quarta parte da terra, para matar pela espada, pela fome, pela morte e pelas feras da terra.»

Ap. 6:7-8 Vem e Vê é o título em forma de «convite» da obraprima do realizador soviético Elem Klimov. Esse «convite» não é só dirigido ao espectador, que pode, desde logo, ficar certo de ir assistir, não só a um filme (mais um) sobre a Segunda Guerra Mundial (ou a Grande Guerra Patriótica como é mais conhecida no contexto soviético), mas a uma obra sobre os horrores e loucuras dessa guerra. Esse «convite» é para Florya (Alexei Kravchenko), o rapaz de 14 ou 15 anos que surge logo no início a escavar a terra em busca de uma arma que possibilitasse a sua integração na resistência.

Fig. 1: Cartaz russo de Idi i smotri

A ofensiva alemã começara no verão de 1941 com a Operação Barbarossa. Por essa altura o general Kirponos, do comando militar soviético em Kiev, escrevera a Estaline fazendo um pedido de evacuação das regiões fronteiriças, perante o iminente ataque, ao que este responde: «Isso seria um gesto de provocação. Não faça nada.» Fosse por não dispor, ainda, de recursos suficientes para um confronto decisivo, fosse por ter esperança na situação diplomática ou por qualquer intenção de ordem política, os territórios da «Rússia Branca» acabaram por ser conquistados. A resistência organizada começa logo depois, juntando soldados sobreviventes do Exército Vermelho e muitos guerrilheiros locais, voluntários, os «partizans». Florya deseja ir, «como todos», e o espectador acompanha o percurso do jovem, todos os horrores que vê e que não vê: destacado para sentinela após a partida do grupo de guerrilheiros, Florya relaciona-se com Glasha (Olga Mironova), e deslocam-se à aldeia desta para reencontrar os familiares; o local está deserto, a panela de sopa ainda quente mostra que talvez eles não estejam longe; correm, ao som de corvos e certos de chegar à sua presença, mas apenas Glasha repara no monte de corpos empilhados atrás de um celeiro. Florya é quase uma criança, inocente e sem grande agilidade mental. Nunca chega sequer a matar alguém, mas quando a

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guerra termina, as suas feições estão muito diferentes das da anterior jovialidade.


Comentário Critíco ao Filme: Idi i smotri

Quase todo o filme se desenrola numa ambiência

carregada,

pela

noite,

nevoeiro, sujidade (terra, esterco, lama), ou até pelo pântano em que Florya e Glasha caem e de onde lutam para sair, sublinhando-se

assim,

excessivamente,

a

acontecimentos.

por

vezes

malevolência uma

dos

cadência

pautada pela brutalidade, não raras vezes em tom realista (também na realização: Florya e os seus companheiros partem em busca de comida; encontram uma vaca, abençoada - fartura de leite e carne! - «vamos encher a cara de boa vida», dizem; mas ninguém sobrevive para além dele, nem o próprio bovino - que é morto para o efeito). O que se passa a seguir baseia-se no típico método nazi.

Fig. 2: «Glória aos resistentes que destruíram a rectaguarda inimiga» (cartaz soviético)

Chegados a uma aldeia, os habitantes são reunidos e organizados no largo «para viajar para a Alemanha»; «é proibido levar frutos e legumes para não contaminar a Europa!», anunciam. Segue-se, porém, o massacre, o clímax - ao estilo de um «turismo bestial» a racionalidade é posta ao serviço barbárie. Esta tem a sua figura mais simbólica no oficial alemão, figura sinistra que caminha com um pequeno símio em torno do pescoço. Será um retracto exagerado da acção alemã em terras eslavas? Não parece: centenas de aldeias bielorrussas foram destruídas e seus habitantes mortos. De resto, Ales Adamovich, o outro argumentista, forneceu as recordações da infância que passara nesse território. A catarse vem no final e ao som de Wolfgang A. Mozart. Idi i Smotri estreou em 1985, marcando os quarenta anos do fim da Segunda Grande Guerra. Da realização releva-se o aprimorado rigor formalista, típico do cinema russo, com extremos cuidados técnicos e recurso a bons actores. Maurice Pialat disse um dia: «Felizmente para o cinema, Hitler existiu!» Mas estamos longe do cinema hollywoodiano que heroiciza o indivíduo (aqui, talvez, o grupo, os «partizans») e explora a técnica de «fazer mortos». No ano em que se celebra os setenta anos do fim do grande conflito mundial, esta é uma obra que dá a «outra» perspectiva (do ponto de vista ocidental), e sem eufemismos. Ficha técnica: Argumento: Ales Adamovich e Elem Klimov, baseado em textos de Adamovich, entre os quais A História de Katyn e Um Esquadrão / Diretor de fotografia (35mm, Sovcolor): Alexei Rodionov / Cenários: Viktor Petrov / Guarda-Roupa: E. Semenova / Música: Oleg Yanchenko e trechos do Requiem de Mozart / Montagem: Belova / Som: V. Mors / Interpretação: Alexei Kravchenko (Florya), Olga Mironova (Glasha), Liubomiras Laucevicius, Vladas Bagdonas, Victor Lorents entre outros. Produção: Mosfilm.

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Video-jogos e a História: Age of Empires... um Império em minutos

Video-jogos e História:

Age of Empires... Um Império em minutos Francisco Isaac Age of Empires um dos maiores franchises de vídeo-jogos de sempre, conquistou o seu lugar na História pela forma como nos conseguiu levar a viajar no tempo vivendo e revivendo momentos únicos da humanidade (seja na Magna Grécia, ou nas conquistas de Genghis Khan). Lançado em 1997 pela Microsoft, o jogo foi o primeiro da sua “espécie”, em que um mix de estratégia e história envolviam-se para dar ao gamer toda uma nova experiência. A Microsoft tinha acabado de acertar num dos seus “melhores e maiores diamantes” de sempre, já que só no primeiro ano vendeu mais de um milhão de cópias (tendo atingido três milhões no final de de 1999), numa

Fig.1: A capa do Age of Empires

época em que os computadores ainda não estavam em toda e qualquer habitação.

No total de todos os jogos do AOE foram vendidas mais de oito milhões de cópias o que garantiu, à Microsoft, a entrada directa para o Top-10 de franchises mais vendidos para Personal Computer (PC). Como já referimos, o 1º AOE a ser lançado foi o de 1997, seguindo-se mais oito edições (não contamos com o spinoff do Age of Mythology): em 1998 com “The Rise of Rome” onde acompanhávamos Roma desde o seu “nascimento” até à sua queda já no século V d.c.; em 1999 com o Age of Empires II: The Age of Kings revisitando a idade medieval, encontrando as rápidas e eficazes incursões de de Genghis Khan ou participando na demanda de Saladino de recuperar a Terra Santa no seculo XII; no ano seguinte, 2000, obtivemos o “The Conquerors”, tendo à nossa disposição os nefastos e famosos exércitos de Atila, o Huno, ou tentar expulsar os conquistadores espanhóis da terra dos aztecas; O Age of Empires III, especial em particular devido à inclusão de Portugal como uma das opções de civilização, remonta já aos séculos XVII/XVIII/XIX tendo como pano de fundo os descobrimentos, a formação dos grandes impérios modernos e a industrialização.

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Video-jogos e a História: Age of Empires... um Império em minutos

Por isso desde o 1º jogo, onde convivemos com a Babilónia, Assíria, até ao último onde batalhamos na Guerra Civil Norte-Americana já em pleno século XIX, o jogador pôde conhecer, observar, estudar e apreciar momentos e personalidades da história da humanidade. Claro, que o jogo em si assume algumas características hiperbolizantes, como o facto de construímos uma sociedade em menos de 4/5 minutos (no Age of Empires II começamos na famosa Dark Age ou Idade das Trevas) ou o facto de o videojogo distorcer certos aspectos da História, caso de alguns dos episódios da história de Atila, Joana D’Arc, entre outros. Mas o jogo não falha em providenciar ao utilizador aquilo que pretende: viver a história, poder jogar com diversas civilizações, interagir no comércio activo entre “equipas” (cada jogador escolhe a sua civilização e depois inicia do mais básico até atingir o topo da sua evolução tecnológica) e construir um Império que pode durar eternamente…ou, uma questão de minutos, ou mesmo segundos, pois a qualquer momento podemos ser alvo de ataque de outro grupo civilizacional. É um videojogo que nos permite viajar no tempo, e graças à sua jogabilidade simples e rápida, o jogador não perde interesse em nada deste grande franchise. Em particular, neste artigo, vamos referir – brevemente -o Age of Empires II que se dedica à Idade Média (Alta e Baixa) até à entrada para as conquistas além-mar de Espanha (Portugal não é referenciado). Podemos jogar em modo História, optando por seguir as pisadas do Highlander William Wallace, ou libertar a França com Joana D’Arc, conquistar a Bavária e boa parte da actual Alemanha com Frederico Barbarossa, cavalgar com as hordas infindáveis de Genghis Khan ou recuperar a Terra Santa aos Cruzados com Saladino. Isto é, podemos jogar com Celtas, Francos, Godos, Mongóis e Sarracenos, tendo todos as suas particularidades e individualidades (tipos de tropa únicas, edifícios com formas diferentes, actualizações tecnológicas dispares, etc.). Para além destas podemos jogar com outras civilizações: chinesa, japonesa, azteca, inca, espanhóis, eslavos, teutões, turcos, vikings, persas, hunos, maias, magiares, coreanos, italianos, indianos, bizantinos, e claro, bretões. É uma lista infindável de grupos civilizacionais que nos permitem recordar ou aprender pedaços da nossa história. Se quisermos jogar algo mais “caseiro”, podemos optar pela campanha de El Cid, que nos conta a história de Rodrigo Diáz Bivar, cavaleiro da corte de Sancho I e de Afonso VI. Esta, talvez, é a história que sofre mais modificações, já que trata Afonso VI como um vilão (ele próprio terá encomendado o assassinato do irmão, Sancho, Rei de Castela) que atropela os direitos de tudo e de todos, dando sempre um enfoque de “santo” a El Cid que lutava pelos mais fracos, pela justiça e verdade. Na boa verdade, o jogo respeita só 50% da verdadeira história (quando dizemos verdadeira é a partir das fontes e dados documentais que possuímos), mas entendemos que assim seja para adensar não só a trama, mas para complexificar as nossas “missões” (no modo campanha/história temos de completar objectivos para obter a vitória). Como dissemos, cada civilização tem as suas particularidades, sendo uma delas, as unidades especiais, ou seja, unidades históricas daquele grupo civilizacional. Caso dos bretões com os longbowman, que se criarem dezenas destas unidades conseguem ser um autêntico “rolo compressor”, já que as milhares de setas lançadas a cada segundo destroem tudo e todos por onde passam.

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Video-jogos e a História: Age of Empires... um Império em minutos

Fig. 2: Montar cerco e destruir a civilização adversária Há outras unidades interessantes, caso dos tarkans dos Hunos que com as suas tochas destroem edifícios com grande velocidade, ou os cavaleiros teutónicos (sem cavalo) que apesar de andarem a uma velocidade vagarosa, são letais para quem os enfrenta. É uma outra forma de viver e conviver com a História, podendo aprendê-la de forma diferente, existindo também uma enciclopédia do jogo que explica a história de cada civilização, técnica, unidade ou região. O que demorou dezenas, centenas ou milhares de anos a ser feito…podemos fazê-lo e destrui-lo no clicar de um botão – ou vários – e numa questão de segundos podemos ser o Império dominador ou estar de joelhos face à nossa aniquilação. Age of Empires foi um jogo que ganhou de tal forma destaque, que existem diferentes mapas e cidades criadas por programadores e jogadores. É possível irmos à internet e fazer download de Bizâncio, Paris, Londres, Génova, entre outras. Para os jogadores que se querem manter só no jogo, dispensando a ida à web, aconselhamos ir ao Age of Empires II: Conquerors e escolher o modo grande batalhas, optando depois pela famosa Batalha de Lepanto ou pela Vindlansaga, quando os vikings viajaram até ao norte das Américas. O franchise não só conquistou um lugar nos tops de melhores jogos de sempre, mas também na nossa prateleira, mente e coração. É uma forma de “contar” as histórias e os mitos civilizacionais, compreender melhor o factor evolução e como o Mundo foi moldado, permitindo ao jogador ter nas suas mãos as maiores e melhores civilizações da humanidade. Age of Empires é sem dúvida o jogo mais marcante do Século XX/XXI no que toca ao factor história e estratégia.

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As Grandes Datas Julho a Outubro de 2015

1 de Setembro de 70 1945 Anos Destruição de Jerusalém pelas tropas de Tito.

18 de Julho de 64 1951 Anos Início do Grande incêndio de Roma, que duraria cerca de seis dias e acabaria por consumir cerca de metade da cidade

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15 de Julho de 1099 916 anos Conquista de Jerusálem por exércitos cristãos durante a 1ª Cruzada

24 de Agosto de 410 1605 Anos Roma é saqueada, pela segunda vez na sua história, pelo rei visigodo Alarico I.

14 de Agosto de 1385 630 Anos Batalha de Aljubarrota entre as tropas portuguesas e castelhanas que culmina na vitória portuguesa, garantindo a independência do reino.


22 de Agosto de 1415 600 Anos Conquista de Ceuta pelas tropas portuguesas, iniciando o processo de expansão do reino de Portugal.

3 de Setembro de 1759 256 Anos A Companhia de Jesus é expulsa dos domínios portugueses.

20 de Setembro de 1519 496 Anos Fernão de Magalhães inicia a primeira viagem de circum-navegação global da história da Humanidade.

2 de Agosto de 1934 81 Anos Adolf Hitler é eleito führer da Alemanha.

8 de Agosto de 1864 151 Anos Fundação da Cruz Vermelha

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O projeto A Sua Casa, A Sua Energia pretende ser uma iniciativa de referência nacional na promoção da eficiência energética no setor residencial. Desenvolvido ao abrigo do PPEC – Plano de Promoção da Eficiência no Consumo da Energia Elétrica, uma iniciativa promovida pela ERSE – Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, pretende contribuir de forma decisiva para a redução do consumo elétrico no sector doméstico. Disponibilizando informação especifica sobre medidas de melhoria na sua habitação e alterações comportamentais que o ajudam a poupar energia sem abdicar do seu conforto, este projeto é o apoio que precisa para mudar. Clique aqui para saber mais.

Contatos Instituto Superior Técnico Tagus Park Av. Prof. Dr. Aníbal Cavaco Silva 2744-016 Porto Salvo casaenergiapt@gmail.com


REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PARA ESTUDOS HISTÓRICOS INTERDISCIPLINARES Revista nº7 Outubro-Dezembro

Revista nº6 Julho-Setembro

Revista nº4 Setembro-Dezembro

D. João da Silva 2.º Marquês de Gouveia O labor da sua embaixada a Madrid Ibn Fadlan e os vikings do Volga

Ibn Fadlan e os Vikings do Volga

Palavras Animadas Animais em Pedras Rúnicas

O Cão no Sagrado Medieval, Representações e Ilustrações

Algumas Situações Temidas pelos Antigos Egípcios

A Manía de Héracles A Loucura que a todos atinge

Outras Conversas com Byung-goo Kang

Outras Conversas com José das Candeias Sales

Marvão de Supresa em Supresa

Ilhas Afortunadas - Espólio do Naturalista Francisco Furtado

Problemas de Interpretação da

A Mitologia Comparada a Índia e as novas iniciativas do IPAEHI

Instituto PAEHI - Prometheus Associação para Estudos Históricos Interdisciplinares Convidamos todos os interessados a participar com artigos para a Revista Férula; Para mais informações: conselho.cientifico@instituto-prometheus.org/inst.prometheus@gmail.com

Revista nº2 Dezembro

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PARA ESTUDOS HISTÓRICOS INTERDISCIPLINARES

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Revista nº8 Janeiro-Março

Revista nº3 Março 2013

Revista nº5 Abril- Junho

O Institutionum Disciplinae: uma proposta de análise comparada

Controvérsias sobre a Causa do Prior do Crato

Matrix,

a Herança Clássica num êxito cinematográfico

Políbio e a Causa

da Terceira Guerra da Macedónia

Outras Conversas com Ana Leal de Faria

Os Aventureiros no Mar Tenebroso Um Breve Olhar sobre Lisboa Antiga

Roteiro Histórico do Egipto Breve Resenha Histórica do Fundamentalismo, Fanatismo e Radicalismo

Outras Conversas com Pedro Estácio

Guilherme de Vasconcelos Abreu Breve Nota Biográfica

Os Judeus no Império Persa Avis - a Imponência de outrora As Potencialidades de Agora

O Itinerário de João dela Câmara

Lisboa

da cidade-fronteira à cidade-capital 1147- 1383

A Núbia do Neolítico à XXV Dinastia A CIDADE MEDIEVAL ISLÂMICA

As Ralações da História Uma visita... Museu São João de Deus História e Psiquiatria

Outras Conversas... com Paulo Fontes


In Memoriam João Inês Vaz - Universidade Católica de Viseu (1952- 2015)

João Inês Vaz, professor da Universidade Católica de Viseu, arqueólogo doutorado pela Universidade de Coimbra em Pré-História e Arqueologia. Participou em inúmeros congressos, conferências e sessões com diversos temas: desde as histórias e História de Viriato às pontes e diferentes travessias humanas nas diversas eras da humanidade. Participou no nosso Congresso em 2013, dos Ambientes e Conteúdos Medievais, com a comunicação “Os caminhos, as peregrinações e aventura”, numa sessão recordada com enorme apreço e estima. Membro de diferentes Associações e Institutos (presidia até ao momento o Centro de Estudos Aquilino Ribeiro), antigo Governador Civil de Viseu e professor universitário do polo da Universidade Católica de Viseu, João Inês Vaz marcou as áreas da Arqueologia e História. Não só deixou uma marca bem vincada nessas áreas, mas também na Arquitectura (leccionou História de Arquitectura) e no Turismo, onde se dedicou a trabalhar a pertinência e o estado da questão do património português. Numa nota mais “pessoal”, o Instituto relembra o Professor João Inês Vaz pela facilidade e humildade com que ensinava e trabalhava com os mais jovens, “despertando” o interesse das novas gerações pelo Património, Cultura e História. Um obrigado sentido a um Professor que recebeu o Instituto com o maior dos prazeres e que nos aconselhou em diversos momentos. Neste momento de pesar deixamos as nossas mais sentidas condolências à família.

Um Obrigado a um Homem da Cultura, Património e História

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