Revista nº6 Julho-Setembro
O Cão no Sagrado Medieval, Representações e Ilustrações A Manía de Héracles A Loucura que a todos atinge Outras Conversas com José das Candeias Sales
Marvão de Supresa em Supresa
Editorial “A especialização paralisa, a ultra-especialização mata.” Não há melhor forma de definir e caracterizar uma das ideias dominantes na nossa (moribunda) civilização do que este pensamento atribuído ao Padre Pierre Teillard de Chardin. É claro que este grande sábio, infelizmente hoje pouco lembrado, se referia aos fenómenos da evolução hominídea, mas penso que é perfeitamente aplicável a algumas ideias que hoje por aí campeiam, e têm cada vez mais cultores. Louva-se e cobre-se com perfumes de incenso desta nova liturgia aquele que tudo sabe sobre uma determinada folha: a sua cor, textura, o número e a direcção das nervuras, os recortes, as alterações cromáticas segundo as estações do ano. Conhece com todo o rigor o tamanho do pedúnculo, e como se prende ao ramo. A que ramo? Bem, esse é o campo do colega do lado, que estudou o dito ramo até à exaustão, e a forma como os pedúnculos das folhas se lhe ligavam. Que folhas? Isso já é com o colega anterior. E quando se lhes pergunta a que árvore pertence essa folha ou esse ramo… Aí começam, realmente, as grandes dificuldades. Quem quer conhecer a árvore e perceber a floresta não passa, para alguns, de pobres diletantes. Não sabem que S. Bernardo escreveu, no seu tratado sobre a Razão: “o fruto não está no conhecimento, mas sim no acto de compreender”. Também há aqueles que nada sabem, e se limitam a dizer aquilo que outros pensam, e a pensar aquilo que outros dizem. Mas desses não me irei ocupar. No meio deste mar revolto há ilhas de resistência. Gente nova (e menos nova, evidentemente) que, não deixando de aprofundar do seu campo de trabalho, procura conhecer o mundo e a realidade em que está mergulhado. Que diferença entre os programas Cosmos. O de hoje, que nos explica, com muita profundidade e espectaculares efeitos técnicos, a Evolução deste (neste) Universo em que vivemos. Mas, explicará o sentido das coisas? Que saudades de Carl Sagan que, no “seu” Cosmos, nos conduzia de Alfa de Centauro à Grécia Antiga, da Grécia Antiga à composição do átomo, e da composição do átomo ao Renascimento Italiano, tudo no mesmo programa, guiando-nos numa viagem coerente e sábia. Aquilo que hoje alguns pretendem, e é em relação a esses que falo, e não os confundo com o todo, é ter uma sociedade que só se preocupe com a folha, ou esteja muito quietinha, para não “criar ondas”, e sobretudo para não se prestar a comparações. Que não se questionem ideias, que se seja mais um desumanizado número de uma qualquer estatística, apresentada num qualquer parlamento, por um qualquer governo, logo contestada por uma qualquer oposição. Porque pensar é perigoso, e pode ser subversivo. E não me estou a referir, infelizmente, apenas ao nosso “cantinho”. Foi disto, desta “apagada e vil tristeza”, que me lembrei quando pediram para escrever este Editorial. Porque o que sinto, ao olhar para este conjunto de jovens que realizam a Férula e fazem o Instituto Prometheus, é que eles são, no mínimo, subversivos. Atrevem-se a querer saber e a querer fazer. Imitando Prometheus, querem trazer alguma sabedoria aos Homens, apesar da oposição de alguns “deuses” que por cá andam. Mas, mais do que isso: sabem e fazem. Aos poucos, têm-se afirmado, e ganho apoio de pessoas e (algumas) instituições. A Férula, com a sua abertura a uma vasta temática, é claramente uma das poucas revistas nacionais viradas à criação e divulgação culturais, “provocando” o pensamento de quem a lê. Haverá apoio para quem tal obra leva a cabo? Duvido sinceramente. Fora este projecto ideia de estrangeiros que talvez tivesse hipótese de conquistar algum apoio, oficial ou não, a nível de financiamento para desenvolvimento do trabalho. Alguns considerarão este grupo como um bando de excêntricos, talvez com alguma graça, mas que se deveria preocupar com “arrumar a vidinha” (e não irei desenvolver o conceito). Que as boas coisas acontecem quando vêm lá de fora, ou imitamos o estrangeiro… Mas a ideia não é de hoje, se é que pertenceram a Simão Botelho, escritor da segunda metade do século XVI, uns versos que ouvi, e que cito de cor: “Não sei se por natureza,/ ou constelação do clima,/ esta nação portuguesa/ o pouco dos outros estima,/ o muito dos seus despreza.” É o destino? Se continuarmos neste marasmo, certamente que é, e será ainda pior. O futuro do País não está na sua juventude. Está na sua juventude conhecedora, inquieta, dinâmica, com ambição. O número de canudos não é, necessariamente, directamente proporcional à cultura e preparação de um Povo. Um sistema de ensino onde se “passa” para não estragar as estatísticas, onde não é necessário saber escrever, ou mesmo saber a tabuada, é um sistema que preparará futuros desempregados. É certo que muitos alunos fogem desta “deseducação”, e muitos estabelecimentos de ensino tentam combater este estado de ignorância. Mas, para além de se consumir o triplo do tempo e do esforço, ainda se pode ser admoestado por estar a estragar a mediocridade.
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Seria bom que os nossos dirigentes, e candidatos a, meditassem nestas palavras atribuídas a Winston Churchill, que li numa revista de História, e com as quais termino, já que estou em maré de citações: “Um político converte-se em estadista quando começa a pensar nas próximas gerações, e não nas próximas eleições”.
Pedro Gomes Barbosa Relembrando o Passado Pensando o Futuro
Índice Agenda Cultural Externa
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A manía de Héracles: A loucura que a todos atinge
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O Cão no Sagrado Medieval: Representações e Ilustrações Videojogos: História e Cultura
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O Grupo Surrealista de Lisboa: da formação às dissidências Outras Conversas com José das Candeias Sales O Navio-Tartaruga
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Comentário Crítico ao Filme: Paths of Glory (1957) Marvão de Supresa em Supresa
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Combate Medieval - um novo desporto à conquista de territórios
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Director da Publicação Francisco Isaac Redactora Chefe Catarina Almeida Conselho de Redacção Francisco Isaac, Amanda Coelho, João Camacho, Carolina Soares, André Silva, Ricardo Martins, José Magalhães e Catarina Almeida. Edição Laura Saldanha Laura Saldanha e Gonçalo Ribeiro
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Agenda Cultural Julho a Setembro de 2014 ESPLENDORES DO ORIENTE. Joias de Ouro da Antiga Goa 16 de Abril a 7 de Setembro 2014 Museu Nacional de Arte Antiga, Piso 1 - Sala do Torreão Em 1961, o espólio dos cofres do BNU foi trazido de Goa para Lisboa. Após um longo processo diplomático, parte destes bens, entretanto à guarda da Caixa Geral de Depósitos, foi analisada por um grupo de trabalho, de que o MNAA fazia parte. A importância histórica e artística das peças foi logo reconhecida. Assim, o Museu do Oriente apresenta pela primeira vez as joias de Goa incorporadas na coleção do MNAA, numa exposição que as contextualiza no panorama da produção indiana e indo. Para saber mais vá http://www.museudearteantiga.pt/pt-PT/destaques/ContentDetail.aspx?id=662. PORTUGAL E A GRANDE GUERRA 9 de Maio a 31 de Julho de 2014 Biblioteca Nacional de Portugal, Mezanine - Piso 1 A exposição Portugal e a Grande Guerra pretende assinalar a passagem do primeiro centenário do início do conflito mundial. Organizada pelo Instituto de História Contemporânea (IHC-FCSH-UNL) com o apoio da Biblioteca Nacional de Portugal, nela encontram-se dez núcleos
temáticos: Portugal
e
a
Guerra; Guerra
e
Paz:
Diplomacia
e
Relações
Externas; Guerra em África; Guerra na Europa – Flandres; Nas trincheiras; Frente interna; Crise/Questão social; Medicina; Arte e Letras; e Memória, que cruzam bibliografia, documentação e iconografia. Como sabemos a «idade dourada da segurança», expressão utilizada pelo escritor austríaco Stefan Zweig para caracterizar a Europa durante os anos da Belle Époque, foi interrompida com o assassínio do herdeiro do trono austro-húngaro, o arquiduque Francisco Fernando, em Sarajevo, a 28 de junho de 1914. A guerra que se seguiu adquiriu de imediato uma dimensão mundial. Apesar dos sinais, a Guerra surpreendeu, sobretudo pela extensão da brutalidade avassaladora que aprisionou o Mundo. Inicialmente neutral, formalmente beligerante a partir de 1916, Portugal participou na Grande Guerra, tendo mobilizado mais de cem mil homens. Entre estes, cerca de oito mil perderam a vida nas trincheiras da Flandres ou nos campos de batalha de África. Para mais informações:
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http://www.bnportugal.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=927:mostraportugal-e-a-grande-guerra-9-maio-31-jul&catid=164:2014&Itemid=949.
OS SABOIAS. Reis e Mecenas (Turim, 1730-1750) 17 de Maio a 28 de Setembro de 2014 Museu Nacional de Arte Antiga, Galeria de Exposições Temporárias Realizada a partir dos acervos do Palazzo Madama, da Galleria Sabauda e de vários outros museus e residências
reais
italianas,
esta
exposição tenta evocar o papel da cidade de Turim na primeira metade do século XVIII, enquanto capital do Reino do Piemonte e meta dos grandes
artistas
internacionais
ao
italianos serviço
e das
estratégias de poder da Casa de Saboia. Procurou-se evidenciar este processo extraordinário e os contributos das mais importantes personalidades artísticas. Concebida especificamente para o MNAA pelo Palazzo Madama, de Turim, a mostra decorre de uma parceria estabelecida entre as duas instituições. Para mais informações dirija-se a http://www.os-saboias.pt.
Curso de História da Europa. As Idades da Europa 16, 18, 23, 25 e 30 de Junho, 2, 7 e 9 de Julho, às 15h30 El Corte Inglês, Sala de Âmbito Cultural, Piso 7
Ao longo de oito sessões Lourenço Pereira Coutinho irá dirigir um curso que pretende sintetizar o crescimento europeu assinalando os movimentos que marcaram cada uma das idades do continente. Um espaço geográfico pequeno que ao mesmo tempo tfoi palco de “descobertas, batalhas, revoluções, transformações sociais e económicas”. O curso é gratuito mas requere inscrição prévia. Para mais informações dirija-se: http://www.elcorteingles.pt/actividades/cursos_ambito_cultural.asp#.U5hh-XKwI1k
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ESCRITAS NA ÁGUA. IMAGENS DO QUOTIDIANO DA ÍNDIA E DO JAPÃO
17 de Julho a 14 de Setembro de 2014 Museu do Oriente Escritas na Água apresenta as fotografias de Paul Kohl reunidas nos livros Wandering in Fertile Fields, sobre paisagem indiana contemporânea, e Two Fish, Out of Water, resultante do trabalho realizado no Japão. Paul Kohl é professor convidado de Fotografia na Nanyang Technological University, em Singapura. Os seus trabalhos têm sido apresentados em vários países do mundo, com mostras recentes no Japão, Canadá, Estados Unidos, Malásia, Portugal e Singapura. As suas obras estão incluídas nas colecções permanentes de vários museus, como o Museu Joaquim Vermelho, de Estremoz, Portugal, que adquiriu o portfolio completo da série Now and Then: Images from Portugal, o San Francisco Museum of Art e o Fogg Museum. O seu livro sobre paisagem indiana contemporânea, Wandering in Fertile Fields, e o seu trabalho realizado no Japão, Two Fish, Out of Water, foram publicados pela Datz Press e estão disponíveis na Amazon Da Índia trouxe-nos a rasa, filosofia indiana cujo termo designa a verdadeira essência da obra de arte e também o estado mental de toda e qualquer criação artística. Nestas fotografias, Paul Kohl aplica a rasa convidando o rasika a contactar com a verdade das imagens. Do Japão apresentanos o silêncio. O preto, o branco e os tons de cinzento, para criar um ambiente de serenidade e regressar à respiração pura, usando as fotos como marcadores de meditação. O lote destas fotografias que respiram serenidade causam um impacto profundo na medida em que transmitem uma estranha ilusão de paragem no tempo. Uma percepção comum aos fotógrafos do início do século XX mas a que Paul Kohl conseguiu dar nova vida com as suas harmoniosas composições.
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A manía de Héracles A loucura que a todos atinge Joana Pinto Salvador Costa
http://www.theoi.com/Ther/LeonNemeios.html
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Investigadora CHUL; Membra do IPAEHI
fig. Héracles luta contra o leão da Nimeia http://www.theoi.com/Ther/LeonNemeios.html
À primeira vista, falar de algo tão teórico poderá parecer um tanto especulatório; porém as provas existentes justificam algumas das afirmações que mais adiante serão apresentadas. A manía, popularmente mais conhecida por loucura, já havia sido observada na Grécia Antiga, quer em termos filosóficos, por Platão, quer em termos médicos, por Hipócrates. O discípulo de Sócrates via a origem da loucura de duas formas: ou de nascença ou adquirida por intervenção divina (Pl. Phdr.265a), contrariamente à ideia de Hipócrates, que defendia que doença de tal ordem nada tinha de sagrado(Hp. morb.Sacr. II). Quer isto dizer, que este estado psicológico é de natureza hereditária (Hp.morb.Sacr.V) e quem lhe atribui um lado sagrado são os mágicos e homens que declaram grande sabedoria e conhecimento superior. Como não tem tratamento conhecido era chamada por estes de sagrada, de modo que a sua ignorância não se manifestasse. (Hp. morb. Sacr. II).
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fig. Héracles e Cerberus. http://www.theoi.com/Ther/KuonKerberos.html
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As the fury of mine onrush to the breast of Hercules./ I will rive his roofs, will swoop adown his halls: his children first / I will slay; nor shall the murderer know he slakes/ On the children of his body, till my madness’ course is run/ See him, his head, he tosses in the fearful race/ See his gorgon-glaring eyeballs all in silence wildly rolled/Like a bull in act to charge(…)
Uma representação trágica, da doença supracitada, é a peça a Loucura de Héracles, escrita por Eurípides, o autor mais psicológico do século V a.C. Vemos presente o desenvolver de uma enfermidade no herói grego, bem como uma sequência de atitudes criminosas para com o seu próprio sangue. Héracles, filho de Zeus e Alcmena, uma mortal, tornou-se desde o seu nascimento vítima da fúria da esposa do seu pai biológico, Hera. Tendo sido desde muito novo sujeito aos desígnios dos ciúmes de Hera, ele teve naturalmente de começar a lutar contra o infortúnio do destino. Assim sendo, desde tenra idade, o herói odiado por Hera demonstrou a sua força monstruosa, tenha sido ao esmagar as serpentes, quando ainda se encontrava no berço, ao matar a hidra de Lerna ou o Leão de Némea. A família do filho de Zeus é vítima das ameaças de Lico (E.HF.142), que assassinou o sogro do herói. Com receio pela vida, Anfitrião, Mégara e os filhos de Héracles refugiam-se no altar de Zeus (E. HF. 47-49), até ao ponto em que Lico planeia incendiar o sítio. Héracles retorna e salva a família que ama. (E. HF.752-754). A loucura de Héracles é, do meu ponto de vista, uma peça dividida em duas partes: na primeira, Héracles salva a família e o sujeito criminoso acaba castigado, algo que à primeira vista parece um final feliz. Porém, sendo esta uma tragédia grega, o seu desfecho não poderia ser tão simples com um desenlace pouco simbólico. Deste modo seguimos para a segunda parte: a desgraça do herói, o assassínio dos filhos, da mulher e a tentativa de homicídio contra o pai, Anfitrião de Argos (E. HF.2). O espectro da loucura (E. HF. 815.) entra em cena, referindo que está a ir contra o seu desejo, mas seguindo a vontade de Hera (E. HF. 860). É portanto o diálogo das duas deusas, Íris e Lissa, que relata o acontecimento e a alteração do estado psicológico do herói. fig. Madrid Museu Arqueológico Nacional 11094 (L. 369).
καὶ καταρρήξω μέλαθρα καὶ δόμους ἐπεμβαλῶ, τέκν᾽ ἀποκτείνασα πρῶτον: ὁ δὲ κανὼν οὐκ εἴσεται παῖδας οὓς ἔτικτ᾽ ἐναίρων, πρὶν ἂν ἐμὰς λύσσας ἀφῇ. ἢν ἰδού: καὶ δὴ τινάσσει κρᾶτα βαλβίδων ἄπο καὶ διαστρόφους ἑλίσσει σῖγα γοργωποὺς κόρας. 2 ἀμπνοὰς δ᾽ οὐ σωφρονίζει, ταῦρος ὣς ἐς ἐμβολὴν ( E. HF. vv. 864-875.)
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Este diálogo indica que o que lhe vai acontecer será de extrema grandiosidade, tendo como indícios os aspectos catastróficos naturais, como o mar e o terramoto, ou seja com a presença de dois dos elementos (água e terra), que provocam mais danos em termos geográficos e consequentemente nas mais variadas áreas.
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No momento em que os filhos olharam para o pai, este não parecia o mesmo. Os olhos de Héracles encontravam-se numa rotação constante, juntamente com a espuma que caía pela sua barba espessa (E. HF. 931) dando risadas maníacas (E. HF. 935), enquanto falava. Héracles encontrava-se em tal estado eufórico, que inconscientemente cometeu o acto homicida, caçando os filhos como animais. O filho de Zeus feriu o primogénito no coração, o segundo na cabeça e apesar de Mégara ter fugido com a terceira criança foram ambos atingidos por uma flecha. O único que consegue sobreviver é o pai do herói, que foi salvo por Palas (E. HF. 977). As armas utilizadas por Héracles, que devido aos seus doze trabalhos estavam associadas a bravura e coragem, tornaram-se um símbolo da violência, do filicídio e de uxoricídio.
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Give thee a home, and of my substance half./The gifts my people gave for children save/ Twice seven, when I slew the Cnossian bull, /These will I give thee. All throughout the land/ Have I demesnes assigned me: these shall bear/ Thy name henceforth with men while thou shalt live/ And when in death thou goest to Hades’ halls, /With sacrifice and monuments of stone/ Shall the Athenians’ Town exalt thy name:/For a fair crown to win from Greeks is this/ For us, the glory of a hero helped.
Depois da entrada no êxtase báquico, o herói adormece, acordando apenas para saber que quem amava tinha sido morto pelas suas próprias mãos, tomando noção do que fez, e as lembranças do mesmo começam a retornar à sua consciência: “sou eu o assassino da minha mulher?” (E. HF.1138.). Palavras ditas com uma certa perplexidade tendo certeza de que nunca magoaria pessoas inocentes (E. HF.1162.). No caso de Héracles, a sua loucura é mais uma vez enviada por um deus, mas neste caso, vemos Hera como incentivadora da alteração psicológica momentânea do enteado. Com a afronta à moral presente, o herói decide prosseguir viagem com Teseu, que indica a cidade de Atenas como local de exilio e de arrependimento: δόμους τε δώσω χρημάτων τ᾽ ἐμῶν μέρος. ἃ δ᾽ ἐκ πολιτῶν δῶρ᾽ ἔχω σώσας κόρους δὶς ἑπτά, ταῦρον Κνώσιον κατακτανών, σοὶ ταῦτα δώσω. πανταχοῦ δέ μοι χθονὸς τεμένη δέδασται: ταῦτ᾽ ἐπωνομασμένα σέθεν τὸ λοιπὸν ἐκ βροτῶν κεκλήσεται ζῶντος: θανόντα δ᾽, εὖτ᾽ ἂν εἰς Ἅιδου μόλῃς, θυσίαισι λαΐνοισί τ᾽ ἐξογκώμασι τίμιον ἀνάξει πᾶσ᾽ Ἀθηναίων πόλις. καλὸς γὰρ ἀστοῖς στέφανος Ἑλλήνων ὕπο ἄνδρ᾽ ἐσθλὸν ὠφελοῦντας εὐκλείας τυχεῖν.3( E. HF. vv 1325-1335)
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Héracles não aceita que a loucura tenha sido mais forte do que a sua vontade, coragem e poder de decisão. Este herói, que teve um impacte multicultural naquilo que fez parte da história grega, decidiu viver com o simples facto de a sua atitude ter sido maldita e com a culpa que persistiu no seu consciente. De facto, o acto funesto estaria sempre presente no seu ser. É necessário falar de Anfitrião e do seu papel nesta situação. Sendo este o pai de criação do herói adoptou uma postura parental ao longo de toda a peça, tendo escapado à tentativa de homicídio. Na verdade, é este que desperta Héracles e revela-lhe toda as acções realizadas até ao momento. Anfitrião funciona como um médico, no sentido contemporâneo, ou até mesmo como o choque de despertar para a realidade, situação semelhante a Cadmo e Agave em As Bacantes (E. Ba. 1264-1296). Uma regressão hipnótica é realizada pelo pai do uxoricida, na tentativa de um maior alcance ao inconsciente do filho e de uma transposição para a realidade. O filho de Zeus vê no luto uma forma constante de viver com o peso da culpa na sua consciência, atingindo assim o estado posterior da alucinação, a depressão da sua mente, o percurso da hybris bem como a sua força sobre humana. Assim sendo, e apesar de ser filho de um deus, isto revela que a sua superioridade não se equipara à de uma divindade, sendo portanto um sonho distante conseguir terminar com a fúria de Hera. O sonho momentâneo encontra-se num ponto intermédio entre a esquizofrenia mítica e o agente trágico teatral. Este papel ajustado à figura de Héracles proporciona assim um conhecimento do místico, demonstrando que um herói, salvador da sua família transformou-se num assassino cruel, que na mais pura frieza matou aqueles que mais amava, mesmo que tenha sido, sem estar na posse da totalidade das suas funções cognitivas. Vemos, portanto actuar uma união de catalisadores externos, em junção com características préexistentes e favoráveis à recepção da primeira. Deste modo, o aspecto louco de Héracles já existiria no seu ser, tendo sido apenas espoletado, em circunstâncias específicas e direcionadas para o mesmo. A personagem de Héracles teve como objectivo uma manifestação de conhecimento da altura de Eurípides, bem como o significado de uma alteração na sociedade do século V a.C. Este semideus, terá sido escolhido, provavelmente devido à sua firmeza cultural e importância social, sem contar com a sua ascendência religiosa e os cultos existentes, que corroboram a sua influência no meio das poleis.
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Vendo as provas do sucedido, sabendo o relato dos acontecimentos prepara a sua alma para morrer (E. HF.1241), mas no desenlace da representação, o herói acaba por sobreviver. Tendo como castigo a própria moralidade, viver a vida que repele, que lhe recorda das acções que cometeu, contra inocentes, contra o seu próprio sangue, contra a sua descendência. http://www.theoi.com/Ther/LeonNemeios.html
Héracles e a sua loucura têm sido abordadas por autores posteriores a Eurípides, como Diodoro e Apolodoro. Todavia, a interpretação de Eurípides e a sua forma de passar a mensagem são mais científicas, o que indica que textos médicos circulavam na altura. O autor soube assim aproveitá-los e utilizá-los na composição das suas peças de matrizes psicológicas. O tema da loucura tornou-se assim um substituto dos assuntos da morte, em período pósRenascimento, não marcando uma ruptura mas sim uma viragem no interior da mesma inquietude (Michel Foucault, História da Loucura na Antiguidade Clássica, p.16). Por conseguinte, este tema provocou repercussões ao nível cultural, em termos artísticos e literários, de forma inovadora, e com a busca no passado próximo. Esta peça, que retratou um momento da vida de Héracles, fez parte do círculo de aventuras ligadas a esta personagem. Este círculo inspirou a realização de vários projectos na indústria cinematográfica, tenha sido em 1985, com o filme Hercules, produzido por Luigi Cozzi ou até aos dias de hoje, com The Legend of Hercules, por Renny Harlin, em 2014. Todavia, este último direcciona-se para a massa populacional e os gostos urbanos, não tendo assim uma preocupação extensa com os pormenores culturais históricos. Fontes e Bibliografia 1.
Fontes Impressas
EURÍPIDES A loucura de Héracles, translation by Arthur S. Way, III, London, The Macmillan Co, 1817. PLATÃO Fedro, Tradução de José Ribeiro Ferreira, Lisboa, Edições 70, 1997.
2. Bibliografia 2.1. Obras de Referência GRIMAL, Pierre Dicionário da mitologia grega e romana, tradução de Victor Jabouille, 4ª ed., Lisboa, Difel, 2004. 3. Bibliografia Específica FOCAULT, Michael História da Loucura na Antiguidade Clássica, São Paulo, Editora Perspectiva, 1978.
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O Cão no Sagrado Medieval: Representações e Ilustrações Francisco Isaac
Este
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redigido
Em dedicação aos meus pais, Luís Miguel Isaac e Isabel Isaac por me terem sempre ensinado a conviver e demonstrado a importância dos animais na nossa vida;
na
sequência
da
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Investigador não-doutorado do CITCEM-UP; Presidente do Conselho Directivo do IPAEHI;
comunicação “O Cão no Sagrado Medieval”, apresentado no colóquio “Os Animais na Idade Média” que decorreu na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no dia 27 de Novembro de
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2013. Tentaremos neste artigo estabelecer algumas questões e problemas acerca do cão e a sua representação no Sagrado Medieval. Não iremos a todos os detalhes e pormenores acerca desta questão – pois seria impossível levar a cabo tal demanda – mas tentaremos apontar alguns factos e ideias acerca das representações e narrações do ou com o cão na Idade Média. Como observámos até este momento, pouco se tem discutido e investigado sobre a presença dos animais no quotidiano medieval, isto no contexto nacional.
fig. Ícon de São Cristóvão; Museu Bizantino de Atenas
É de relembrar que só alguns investigadores têm tentado apresentar novos dados sobre o vestuário, a alimentação, as convivências, o comércio, as festas, o profano, a estética e o imaginário da Idade Média. Destaco desde já a cadeira e os estudos levados na cadeira Os Quotidianos Medievais, a cabo pela Professora Manuela Santos Silva, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e a investigação levada a cabo pelo Professor Pedro Gomes Barbosa e pelo Professor Carlos Guardado da Silva na área do Imaginário Medieval. No que toca aos animais, destaco o papel e os estudos do Professor Paulo Drumond Braga sobre o Cão na Idade Média e Moderna.
Todavia, sobre o papel e a presença dos animais sabemos pouco no seio das comunidades medievais europeias. As fontes também não são abundantes, pelo contrário, são escassas e levam tempo a indagar e investigá-las. Porém, esta questão, não tem impedido aos argumentistas e realizadores de Hollywood de colocar a presença do cão no quotidiano medieval.
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No último filme/documentário acerca de Robin Hood e dos problemas que o Rei João I de Inglaterra enfrentou perante uma possível invasão a Inglaterra (séc.XII-XIII), observamos
3 Filme de Riddley Scott, estreou a Maio de 2010, tendo como cabeças de cartaz Cate Blanchett e Russel Crowe.
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numa cena que o arqueiro indomável, Robin, jantava e acabaria por dormir ao lado de alguns cães de pêlo sardoso. A imaginação dentro do Imaginário leva por vezes a embarcar numa viagem, que por vezes, foge à realidade dos acontecimentos ou das ideias. Não é do nosso
John Bouquet, “Saint Christopher”, A People’s Book of Saints, Londres, Longman’s, 1930 pp. 210.
interesse fabricar um rol ou uma lista de críticas negativas ao retrato do cão no cinema ou nos
A versão mais actual e traduzida do latim para inglês, foi levada a cabo por David Woods, tendo os dois textos diferentes datas e origens. O BHL 1764, mais conhecido por A Paixão de São Cristóvão, está inserido na sua versão original na Analecta Bollandiana, Tomo 1, Bruxelas, Sociéte des Bollandistes, 1882. O BHL 1766, que trata A Paixão de São Cristóvão, Tomo 1, Bruxelas, Sociéte des Bollandistes, 1882. Para ver uma versão mais actual, http://www.ucc.ie/ milmart/Christopher.html.
medieval.
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popularizado como Santo.
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A obra em questão foi reeditada e republicada no século XX que esteve a cabo de F.S.Ellis, sendo a última edição de 1931. O link que aqui partilhamos corresponde à tradução inglesa de William Caxton da obra do Arcebispo de Génova, http://www.fordham.edu/halsall/basis/goldenlegend/GoldenLegend-Volume4.asp.
livros contemporâneos. Mas é sim do nosso interesse analisar algumas gravuras e/ou narrações do cão dentro do Sagrado, tentando analisar, sempre que possível, a sua presença no quotidiano
Iremos ver no seguimento deste artigo o cão em diferentes prismas: fisicamente combinado com um humano, as qualidades e a comparação entre um Santo e o cão e um cão que foi
Iniciemos pela primeira que se trata de um dos relatos mais anómalos sobre São Cristóvão. A história do Santo, a qual relataremos brevemente, remonta ao século III, tendo vivido entre a Síria e a Anatólia. O seu nome de baptismo é Cristóvão, que provém do latim, Chirsto-ferens, ou seja, “aquele que carrega/traz Cristo”, e era descrito como um homem de grande envergadura – 4
por vezes como um gigante – e que tinha uma força fora do comum .
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Ver Legenda Aurea, (IV, p. 53) [edição F.S.Ellis, Londres, Temple Classics, 1931].
As histórias diferem em alguns pormenores sobre São Cristóvão. Para este artigo em questão vamos observar dois tratados sobre São Cristóvão intitulados como a Paixão de São Cristóvão 5
(BHL 1766 e BHL 1764 ) e a entrada sobre São Cristóvão na obra As Vidas dos Santos, 6
compilada pelo arcebispo de Génova, Jacobus de Voragine em 1275. Estes tratados denominados de BHL (Bibliotheca Hagiographica Latina) contém partes da vida de São Cristóvão, cada um tendo diferentes traços sobre a figura do Santo. Já a entrada na Legenda Aurea ou Vida dos Santos, compila a história de São Cristóvão. 7
Seguindo a entrada na Legenda Aurea , ficamos a saber que Reprobus era filho de um rei, que só desejava servir quem detivesse mais poder na terra. Serviu um rei da região de Canãa, e depois o Diabo, ambos seres de grande poder. Todavia, nenhum deles reunia outra característica que o futuro Santo desejava: coragem. Depois de uma série de peripécias, Reprobus, encontra fig. São Cristóvão a carregar Cristo, de Jacopus de Vorage, 1423.
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um eremita que lhe confidenciou o poder e a mensagem de Cristo, baptizando-o com o nome Cristóvão. Não estando ainda convencido dos poderes de Cristo, Cristóvão encarregou-se não de pregar a palavra ou de reflectir sobre a obra e graça do Senhor. Preferiu ficar-se por um trabalho mais “terreno”. Ou seja, encarregou-se a si próprio de carregar e levar todos os indivíduos que desejassem passar por um rio que não tinha ponte.
Numa noite, uma criança pede a Cristóvão que o auxilie na passagem, no qual, o que este aceitou. Evidente, como acontece nas histórias de diversos Santos – seja de Santiago ou de São Martinho – a criança era nada mais que Cristo. Percebendo a magnitude e a magnificência do Messias, Cristóvão torna-se um fervoroso pregador da palavra de Cristo, o que o condenou ao cadafalso e ao decepar da sua cabeça – igual a São Dinis de França. A história do Santo, ou lenda, imortalizou-se por entre o mundo do Sagrado Cristão, tendo assumido grande relevância a imagem e nome de São Cristóvão. Exemplo disso é uma ermida do século XII que estaria localizada perto de Ílhavo, estando assente perto de um caudal ou entrada de mar, como para proteger todos os que aí passassem ou fossem para o mar. A maioria das representações de São Cristóvão é de um homem ou um gigante a carregar um Cristo criança. Contudo, a representação de São Cristóvão não se ficou por aí.
A Igreja Ortodoxa teve outra visualização ou ilustração do santo. A imagem que apresentamos, é datada do século XV e a segunda do século XVII, mas têm a sua origem na medievalidade. Notamos que o Santo, identificado por carregar a cruz de Cristo, possui uma cabeça nada humana, mas sim de um canídeo. Ora, não significa que o Santo seja um demónio ou um resultado de uma experiência genética mal orquestrada, mas sim uma referência a uma história sobre o Santo que chegou a Roma por volta do século IV, durante o tempo do Imperador Diocleciano. Uma época de grande provação para as gentes cristãs, já que foi um tempo de grandes perseguições e proibições sobre o culto cristão. No documento BHL 1764, designado como “A Paixão de São Cristóvão”, o Santo é descrito desta forma:
“Havia um certo homem, que era um estrangeiro, vindo de uma terra onde comiam homens, que possuía uma horrenda aparência, pois, tinha uma cabeça de cão. (…). Contudo, o Rei lançou um Édito que proibia este homem de falar na nossa língua.”. Como vemos, o Santo, é descrito com a cabeça de um cão, e para além do mais, não conseguia falar a língua ou dos homens ou dos cristãos. Todavia, pediu a Cristo que o auxiliasse e lhe desse a benesse de poder falar como os homens, fig. Ícon de São Cristóvão; Museum Rostov Kremlin (sec. XVII)
“Ele saiu do palácio, e passando os portões, atirou-se para o chão, suplicando ao Senhor que lhe desse pela Virtude de Cristo a capacidade de falar a nossa língua. O Senhor, que ama a raça humana, não se demorou, e imediatamente surgiu ao seu lado (…). Disse-lhe: Levanta-te. E pegando-lhe na mão, endireitou Cristóvão, abrindo a sua boca no processo. Soprou e deu-lhe por conseguinte o espírito para entender e para falar o que bem desejasse.”.
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8 Leslie Ross, Medieval Art A Topical Dictionary, “Saint Christopher”, WestPort, Greenwood Press, 1996 p. 50.
9 David Woods, S. Christopher, “The Origin of the Cult”, Cork, University College of Cork, 1999.
A partir desse momento, nunca mais se calou Cristóvão, fazendo-se ouvir, alertando para todos os homens que cultuavam diferentes ídolos, que estariam a prestar culto ao Demónio, e que só através de Cristo receberiam a redenção do Senhor. Entre os diversos acontecimentos que se seguem, Cristóvão, que é levado agrilhoado até ao Rei, avisa que se não estivesse a ser possuído por Cristo naquele momento, atacaria e mataria os soldados e aquele Rei. Nesta história, antes de ser baptizado como Cristóvão, o seu nome é Reprobus (“reprova”), e só depois virá a receber o tal nome de Santo. Noutra versão da Paixão de São Cristóvão, BHL 1766, Cristóvão surge com uma história mais complexa. Mantém o aspecto de homem com a cabeça de cão, mas sabemos agora que ele tinha vindo da terra dos “canineus” ou seja, dos canídeos. Apesar de possuir esta aparência bestial, Deus nunca o renega, aliás, escolhe-o para ser o seu mensageiro por entre as pessoas da terra de Samos (Anatólia). fig. Cinocéfalo – Nuremberg Chronicle 1463
Analisemos agora, o porquê de São Cristóvão possuir a cabeça de um cão. Alguns investigadores contemporâneos têm vindo a apresentar algumas questões sobre a questão do cão em São Cristóvão. É da opinião de Leslie Ross, que
“Uma variante, que provém do oriente, apresenta Cristóvão com a cabeça de um cão – isto aconteceu, possivelmente, por uma confusão entre a palavra cananeus (latim para cananitas da região de Canãa) com canineus (latim para canino ou com aparência de um cão).”.8
A confusão entre palavras e expressões do latim para traduções medievais foi sempre um problema para os historiadores contemporâneos. É normal encontrarmos diversas gralhas ou falácias em diferentes documentos. David Woods, na sua introdução à A Paixão de São Cristóvão, refere também,
“Em suma, os habitantes do mundo greco-romano acostumaram-se a descrever, a aqueles que viviam no limiar e para lá fim do Mundo, como gentes estranhas, canibais e com a cabeça de cão ou pior. Por isso, quando o autor, que redigiu o documento sobre o martírio de São Cristóvão, descreveu o Santo com a cabeça de cão numa alusão que ele teria vindo de terras longínquas, ele não compreendeu que tal noção viria a ser mal compreendida em épocas posteriores ao tempo
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de Roma, e tomado à letra por diferentes povos e civilizações.”
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Mas, tentemos interpretar a cabeça do cão de outro ponto de vista. A assimilação da cabeça de
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cão em São Cristóvão poderá provir das qualidades que este animal tem para um homem santo.
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Como vimos, antes de possuir a língua dos homens, Cristóvão, não se podia fazer ouvir, ou melhor, fazer se entender para o mundo dos homens. Recebeu a dádiva de Deus, e pode finalmente “latir”, mas com a voz dos homens, fazendo-se ouvir como um cão que incessantemente não pára de latir perante os devaneios e erros dos
Ap 22, 15. Fil 3, 2.
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Patrice Berthon, Françoise Berthon, L'imaginaire du sauvage aujourd'hui, “Une Interface nature/culture”, Paris, L’ Harmattan, 2011, p.260.
restantes homens. Como o cão representa o seu símbolo da fidelidade, Cristóvão é fiel até à sua morte – literalmente – a Cristo e a Deus. Apesar da Bíblia não tratar bem o cão, como podemos ver na seguinte passagem,
“Ficarão de fora os cães e os feiticeiros, e os que se prostituem, e os homicidas, e os idólatras, e qualquer que ama e comete a mentira.”
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Ou “Guardai-vos dos cães, guardai-vos dos maus obreiros, guardai-vos da circuncisão;” 11, os hagiógrafos e poetas da idade medieval viram neste animal outras características e qualidades. Gaston Fébus, conde de Foix, na Gasconha descrevia no Livre de Chasse, datado do século XIV, o cão desta forma,
“É a besta mais nobre, mais inteligente/razoável e fiel que Deus jamais fez, não se exceptuando, o homem também desta comparação” 12 Sendo, o leal companheiro das caçadas e montarias assim como do quotidiano. No que toca ao usa da imagem do cão como servo fiel de Deus, podemos divagar por Guilherme de Saint Thierry (Séc. XII) e na biografia que este dedicou a um teólogos e santos da medievalidade, São Bernardo de Claraval. É importante abordar esta do Sagrado, para encontrarmos um argumento importante para a conclusão da análise à representação canídeo de São Cristóvão e da relevância do cão no Sagrado.
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13 Pedro Gomes Barbosa, A Luz e as Sombras,
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Não perderemos muito tempo a falar de São Bernardo de Claraval, pois, o homem que melhor percebeu o papel, acção e mensagem do monge de Cister, é o Professor Pedro Gomes Barbosa, 13
No artigo “A Luz e as Sombras” contem parte da Vita prima Bernardi traduzida por Pedro Gomes Barbosa. Edições actuais da mesma obra de Guilherme de Saint Thierry, é de G.R. Evans, Bernard of Clairvaux, Ozford, Oxford Unversity Press, 2000.
que escreveu dois artigos intitulados “A Luz e as Sombras”. Fiquemos com alguns dados. Bernardo de Claraval, foi o grande impulsionador da Ordem de Cister (séc. XI-XIII), tendo dinamizado um novo movimento religioso dentro do cristianismo que passava pela entrega do corpo, mente e espírito a Deus, procurando o conhecimento, não pela curiosidade nua e crua, mas para tentar conhecer e compreender melhor a obra e a mensagem do Senhor na terra. Homem que abriu a “porta” para que os exércitos dos cruzados viessem libertar Lisboa das mãos do Islão, foi também um acérrimo crítico dentro do cristianismo, atacando todos aqueles que embarcassem numa viagem pelo devaneio espiritual, como acontecia, com a Ordem de Cluny ou o seu maior adversário, Abelardo. O seu trabalho fora tão bem reconhecido que alguns homens da sua época trataram de registar a sua obra, compondo uma biografia de São Bernardo de Claraval. Importa-nos abordar a que foi escrita pela mão de Guilherme de Saint Thierry, teólogo do século XII, nascido na actual Bélgica, foi um monge beneditino, grande companheiro e confessor de Bernardo de Claraval. 14
Na vita prima Bernardi,
Guilherme relata que
durante a gravidez da mãe de Bernardo, Alice, se tinha deparado com um sonho fora do normal. Numa certa noite, viu nos seus sonhos, uma imagem que a deixou perturbada: estaria grávida com um cão branco. Preocupada com tal assunto, como relata Guilherme, pediu que alguém interpretasse tal mensagem. Faremos uso do artigo de Pedro Gomes Barbosa, pois a tradução realizada à vita prima é a melhor, fig. Bermardo de Claraval - Iluminura de um manuscrito séc. XIII
“E o biógrafo dá-nos a explicação, ainda que sumária, e que teria sido transmitida a Alice por um santo homem, cheio de sabedoria: o cão branco significava que aquele que estava a gerar tinha sido escolhido por Deus para levar a cabo uma missão de extrema importância para a Igreja. Ouçamos Guilherme: «À agitada e ansiosa mulher respondeu: não temas, trata-se de um assunto bom, serás mãe de um óptimo cachorro que se tornara um guarda da casa de Deus e por Ele lançará grandes latidos contra os inimigos da Fé. Será um brilhante pregador e, como bom cão, por graça da língua medicinal há-de curar muitas doenças da alma.”. É evidente que a imagem do cão que late contra os estranhos da Fé, e que a língua que cura é para salvar todos aqueles que se afastavam do caminho do Senhor. Como refere Pedro Barbosa, “O simbolismo aplicado a Bernardo é claro. A língua que cura não é, neste caso, a confissão dos pecados, mas sim a pregação do Santo, tanto entre os seus irmãos do claustro quanto entre os
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laicos que são convertidos, ou então levados para o bom caminho, de que se estavam a afastar.”,
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Sendo que também é o guarda da casa de Cristo, “no sentido mais geral, o da Igreja, e do mais restrito, o da Ordem de Cister, ou, pelo menos, da casa de Claraval. Na idade média, o cão aparece também como símbolo da fidelidade conjugal. Neste caso, da fidelidade de Bernardo à Igreja, que tinha desposado”,
A passagem sobre São Cristóvão de Walter de Speyer pode-se encontrar na reedição da obra Karl Strecker e Gabriel Silagi [ed.], Monumenta Germaniae Historica, “Vita et Passio Sancti Christopher Martyris”, vol. V, Munique, Monumenta Germinae Historica, 1978.
E por fim, o cão é também aquele que ao guardar o seu Senhor vai defende-lo, avançando sobre todos aqueles que atentarem ao seu senhor, “Mas, tal como o cão guarda a propriedade e os rebanhos do seu amo, também ataca aqueles que querem fazer mal ao que é guardado.”:
São três as qualidades associadas ao santo essenciais para o nosso raciocínio: fidelidade, protecção e cura. Não será por acaso que Guilherme escolheu tal animal para servir de metáfora de São Bernardo de Claraval. É evidente que houve uma mudança de imagem do cão da Bíblia para o Cão que surge no Sagrado do Cristianismo. Só para encerrarmos a curiosidade, sobre a cor branca e o raiado vermelho que estão no cão dos sonhos da mãe de São Bernardo, Pedro Gomes Barbosa refere o seguinte: “O branco é a cor da pureza e da inocência, tanto do corpo quanto, principalmente, do espírito. (…) Mas o cão tinha, no seu dorso, uma manha vermelha. Confesso que o significado me escapa, e só poderemos entrar na pura especulação. A imperfeição daquele que não era tão puro quanto Cristo? O sinal do sangue que Cristo tinha vertido pelos Homens? A cor do martírio? Tantas hipóteses para não menos incertezas.”. Notemos que as Paixões de São Cristóvão, terão tido o seu pico de construção no século XI, e que a imagem do cão poderá ter sido aproveitada no sentido que foi aproveitado para São Bernardo: A do servo fiel de Deus, que grita e inflama contra todos aqueles que não caminham no trilho da palavra do Senhor. Walter de Speyer, na actual Alemanha, ainda foi mais a fundo 15
na questão de São Cristóvão. Na Vitaet Passio sancti Christopher martyris , o monge diz que Cristóvão, homem que habitava na terra de Canãa, tinha a cabeça de um cão e entre outros comportamentos atrozes, devorava por vezes carne humana. Mas, após carregar Cristo, pediu perdão e conheceu uma nova sabedoria e caminho.
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Outro caso do uso do cão no Sagrado, é numa situação que remonta ao século XIII, na região de Lyon. Um caso, não comum mas também não único, é de um santo ser um cão, como aconteceu, com São Guinefort. Esta história remonta ao século XIII e foi documentada por Estevão de Bourbon, monge e pregador da Igreja Cristã, que relatou diversos casos das mais diferentes heresias praticadas durante a sua época. Uma delas, é o da prática ao culto de São Guinefort. Conta o próprio, Estêvão na sua obra, De Supersticione, “Este caso acontecia principalmente na Diocese de Lyon. Quando ali pregava contra a feiticeiria, ouviu umas confissões de algumas mulheres, que diziam que o filho que carregavam no seu ventre era de São Guinefort. Eu pensava que se tratava de um Santo local, contudo, fiz uma breve investigação/inquirição e descobri que se tratava de um galgo, que fora morto da seguinte forma. Junto à diocese de Lyon, havia uma vila povoada sobretudo por freiras, chamada de Villeneuve, cuja terra pertencia ao senhor de Villar-en-Dombe. Aí, nessa terra, existia um castelo cujo vivia um senhor, a sua mulher e o seu filho. Mas quando o senhor e a senhora e a aia saíram da sua morada, uma vil serpente entrou na casa e avançou para o berço da criança. O galgo/cão, que tinha ficado na morada do senhor, vendo a serpente, rápido se moveu, tentando atacar a serpente antes que esta chegasse ao berço da criança. No processo, deixou o berço cair ao chão, tendo contudo
a
criança
permanecido
bem.
Atacando com as suas mandíbulas, dentada após dentada,
derrotou
a
serpente e a arremessou para longe do berço. O cão encontrava-se num estado selvagem, já que a sua boca jorrava sangue da serpente e via-se a fadiga e cansaço pela luta contra o vil monstro. Quando a aia entrou e notou todo o aparato, gritou, pensando que a criança jazia morta, comida em parte pelo cão. Nisto a mãe, entra no quarto e com a sua aia gritaram de tristeza e dor. O senhor, valoroso guerreiro, acreditou também na mesma história, e retirando a sua espada degolou o seu cão. Só quando se aproximaram da criança, notaram que estava bem, dormindo em paz. Encontraram no meio da investigação o corpo da serpente, todo corrompido pelas
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dentadas incessantes daquele cão.
Agora que perceberam a verdade, ficaram envergonhados de tal forma, que perante a morte injusta que o seu cão levou, atiraram o corpo do fiel guarda pelo poço, colocando em seu redor pedras e plantando árvores em memória do nobre feito do cão. Por divina vontade, o castelo
16 De supersticione, p. 370.
17 Ap 20:2.
ruiu e a terra que era verde tornou-se num deserto. Todavia, aos poucos, pessoas e peregrinos 16
deslocavam-se à campa do dito animal para prestar um género de culto.” .
A história é no mínimo fantástica, tendo alguns dados preciosos para análise. Antes de passarmos a essa análise, permitam-me só dizer como terminou o problema do monge dominicano. Estêvão de Bourbon, que nada tinha contra os cães, achou que este culto se prestava não a um santo enviado por Deus, mas ao Diabo, o que invalidava desde o prestar culto a São Guinefort. Decidiu o monge que todos os que tentassem voltar ao local – agora dessacralizado – veriam as suas posses retiradas e entregues à Igreja local. Porém, o culto ao cão Guinefort manteve-se até 1930, nunca sendo aceite como um santo pela Igreja Católica. Passemos à análise: O cão que salvou a criança da serpente, pode ser visto, como o representante da salvação, e a serpente, o mal, animal muito ligado à imagem de Lúcifer, podendo ser visto no Apocalipse de São João, “Ele prendeu o dragão, a antiga serpente, que é o Diabo e Satanás, e amarrou-o por mil anos.” . 17
A criança como a representação da inocência e da pureza, que a todo o momento pode ser alvo
da fome do mal. Este tipo de história é comum dos contos de cavalaria, onde podemos encontrar elementos comuns, como o cavaleiro, o castelo, a demanda, o mal, o deserto, entre outros. Quando Estêvão fala num deserto, não significa que a terra tenha ficado árida, mas sim, que deixou de conhecer o toque e som da civilização, da comoção dos homens e mulheres. O “deserto” do Sagrado e do Imaginário Medieval, é todo esse local fora do mundo civilizado, ou seja, tudo o que esteja mergulhado no caos. De certa forma, o altar construído ao tal cão, é como uma ermida no meio do nada, posto de milagres e pedidos divinos. Estêvão viu, como São Martinho de Dume viu séculos antes, que este Santo com várias aspas, se tratasse de um ritual pagão, e por conseguinte, ligado ao demónio. Mas é fulcral, retirarmos desta história o essencial. O cão como representante máximo da protecção e salvação, algo que vimos em São Bernardo de Claraval e em São Cristóvão Teríamos, com toda a certeza, mais casos para observar e analisar acerca do cão no Sagrado Medieval. O caso de São Domingos, fundador da Ordem dos Dominicanos, que também no sonho da mãe – como Bernardo – foi identificado como um cão carregando uma tocha. Esta situação foi entendida que São Domingos viria a “incendiar o mundo” com a
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sua Fé e luta pelo Cristianismo. fig. São Domingos e o cão; Ilustração de um manuscrito séc. XIV
O próprio nome de São Domingos, Domini Canis, ou seja, o “Cão do Senhor”, demonstra mais uma vez a força da imagem do cão usado como símbolo da lealdade, luta e ardor pela Fé. Toda a informação e propostas são escassas no que toca ao cão na medievalidade. É-nos impossível, ir a todos os parâmetros do cão no quotidiano medieval, pois, não possuímos os dados e as fontes que nos possibilitem realizar esse trabalho. Propusemo-nos a ver o cão no Sagrado Medieval, tentando entender qual o seu papel na composição de hagiografias em dois principais santos da medievalidade europeia. Recordemos, que na Odisseia, Argos o cão de Ulisses, fiel companheiro do herói “grego”, permanece à porta da casa do seu senhor durante vinte anos sem o ver, alvo de maus-tratos a cabo dos diversos pretendentes de Penélope, e quando tem o vislumbre do seu senhor, Ulisses, falece nas suas mãos. Como tal, São Bernardo fiel e leal à casa de Cristo, fará uma obra imensa, latindo contra os inimigos da fé, sendo que vai sofrendo de uma maleita, que pouco a pouco retira o conforto da pele humana, mas não pára, até à sua morte, de servir o seu senhor. E São Cristóvão, cabeça de cão e corpo de Homem, deforme aos olhos dos seus companheiros, irá “latir” tanto contra os adoradores de ídolos, que o único caminho para silenciá-lo, é tirando-lhe a vida. O cão no Sagrado Medieval é um símbolo de lealdade, fealdade, de agressividade e de luta pela Fé cristã.
Termino por deixar um trecho da Odisseia, em que Ulisses regressado a casa revê o seu cão, Argos: “É o cão daquele chefe que morreu longe de nós. Se o tivesses visto, em plena força, no dia em que Ulisses, partindo para Troia, o abandonou, bem louvarias seu vigor e rapidez! Jamais, nas profundezas da floresta, nenhum bicho feroz lhe escapou, tão depressa o visse. Que grande farejador! Mas hoje é presa da decadência; e o real dono pereceu alhures, longe da pátria. Assim falando penetrou nos aposentos senhoriais e, indo directamente
ao
salão,
aí
encontrou
os
pretendentes. Já então Argos recebera a negra morte, cumprindo seu destino logo após rever Ulisses, vinte anos depois que ele partira.” Canto XVII
fig. Ulisses e Argos. Ilustração contemporânea
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Bibliografia 1. Fontes Analecta Bollandiana , BHL 1764 e BHL 1766, 1, Bruxelas, Sociéte des Bollandistes, 1882. Bíblia Sagrada, Lisboa, Paulus, 2008. Odisseia, “Canto XVII”, Eduardo Lourenço (Tradução), Lisboa, Cotovia, 2003. DE LA MARCHE, A. Lecoy (Ed.), “De Supersticione”, Anecdotes historiques légendes et apologues tirés du recueil inédit D’ Étienne de Bourbon, , Paris, Société de L’Histoire de la France, 1877.
2. Bibliografia BARBOSA, Pedro Gomes, Tarouca-Cister: Espaço, Espírito e Poder, “A Luz e as Sombras”, Tarouca, Câmara Municipal de Tarouca, pp. 100 a 115, 2002. BERTHON, Patrice, BERTHON, Françoise, , “Une Interface nature/culture”, L'imaginaire du sauvage aujourd'hui, Paris, L’ Harmattan, 2011, p.260. CORBIN, Alain (dir.), História do Cristianismo, Lisboa, Presença, 2008. ROSS, Leslie, “Saint Christopher”, Medieval Art A Topical Dictionary, WestPort, Greenwood Press, 1996 p. 50. STRECKER, Karl e SILAGI, Gabriel (Ed.), “Vita et Passio Sancti Christopher Martyris”, Monumenta Germaniae Historica, vol. V, Munique, Monumenta Germinae Historica, 1978. VORAGINE, Jacobus de, F. S. Ellis (ed.), “Saint Christopher” The Golden Legend, Tomo IV, Filadélfia, Temple Classics, 1931 p. 53. WOODS, David, “The Origin of the Cult”, S. Christopher, , Cork, University College of Cork, 1999.
Links para Consulta: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k206395z http://www.fordham.edu/halsall/basis/goldenlegend/GoldenLegend-Volume4.asp. http://www.ucc.ie/milmart/Christopher.html. http://www.trentu.ca/english/documents/IssueTwoAbhorrence_002.pdf
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Videojogos: História e Cultura Filipe Soares Gonçalves
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Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
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Os videojogos desempenham cada vez mais uma forma alternativa expressão artística e cultural. Ainda que não sejam percepcionados pelo público geral como algo mais do que entretenimento interactivo, longe de poder rivalizar com os meios tradicionais e eruditos como o cinema ou a música, a verdade é que desde o seu aparecimento e através dos avanços tecnológicos que permitiram o desenvolvimento dos suportes de videojogos, cada vez mais se produziu, e se continua a produzir, títulos dignos de serem interpretados como veículos de arte. Porém, não podemos concluir que os videojogos são, de facto, arte. A discussão é profunda e, em muitos casos, os próprios criadores não estão preocupados com esse rótulo (Gibson, 2006). Pode-se, no entanto, notar que todos os requisitos constituintes das sete artes tradicionais, a elaboração de uma ideia, o movimento, a harmonia, são fielmente representados em casos particulares de simulação virtual. Tenha-se em consideração certos títulos que utilizam os gráficos para a construção de um mundo visualmente rico como o Okami, que se baseia na mitologia e arte japonesa, o Shadow of the Colossus, que coloca o jogador num vasto mundo atmosférico a lutar contra monstros gigantescos, e o Journey, um jogo com cenários minimalistas mas bastante imersivos e possuidor de uma notável banda sonora nomeada para os Grammy. Este tipo de cuidado com a estética gráfica dos videojogos, complementada pelas emoções e as mensagens que transmitem acabam por reforçar os argumentos a favor da sua qualidade enquanto veículos artísticos. Outros jogos, como os de desporto, não possuem, nem ambicionam, este género de experiência cultural. São, à primeira vista, simples meios de entretenimento, excepto na característica do trabalho empregue pelas equipas que os desenvolvem. Com o aperfeiçoamento dos gráficos e a aplicação dos árduos níveis de trabalho na consecução de melhores, e mais realistas, dinâmicas de jogo, é difícil não apreciar o cuidado dos produtores como uma forma de arte.
fig. Journey
A criação de um videojogo, actualmente, pelo menos nos casos mainstream com maiores orçamentos, é um processo conjunto que envolve múltiplas pessoas. Desde os designers, responsáveis pela criação da narrativa e do mundo onde se desenrola o projecto; aos designers de níveis, que dão vida às ideias apresentadas, concebendo a estrutura do jogo; aos programadores, que criam a matriz matemática potenciadora da jogabilidade, desenvolvendo a mecânica do jogo, a inteligência artificial, a interface do utilizador, o processamento de input, entre outras tarefas; aos engenheiros de som, responsáveis pela componente musical, como os efeitos sonoros e a música ambiente; aos actores de voz; até aos analistas, que testam as várias versões experimentais do videojogo antes de ser lançado. Todos contribuem, em maior ou
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menor nível, para a concretização do projecto.
Logo, é natural a absorção de elementos históricos de forma a inspirar na elaboração de videojogos. São incontáveis os títulos de first-person shooters (FPS) que utilizam como cenário a Segunda Guerra Mundial, só para citar um exemplo. Mas outros géneros, os real-time strategy (RTS), ou turn-based strategy (TBS), servem-se da narrativa cronológica humana para contextualizarem a sua mecânica. Videojogos como o Age of Empires e o Civilization colocam o jogador a controlar a humanidade desde as suas origens, na Idade da Pedra, e a fazer com que ela progrida ao longo dos vários períodos. Outros casos manobram de forma deveras original a História, como é o caso da série Assassins’s Creed, partindo do uso de factos e personagens reais (as cruzadas, o renascimento, a guerra de independência americana, a revolução francesa – com vários indíviduos reais ligados a estes acontecimentos) para expor a sua narrativa, alterando e criando variáveis históricas de forma a criar um enredo interessante ao jogador, atribuindo, dentro do universo do Assassin’s
Creed,
essas
omissões
ou
alterações
historiográficas aos interesses dos vilões – os Templários. É, sem dúvida, uma temática intrigante a utilização de damnatio memoriae, ou tentativa de manipulação da História, com objectivos políticos. Esta rubrica pretende, portanto, olhar, à luz da História e de outras ciências sociais, o desenvolvimento da indústria dos videojogos e como as pessoas envolvidas nelas contribuem para uma forma ainda recente de entretenimento e, quiçá, cultura. Para o efeito, iremos observar os seus primórdios numa tentativa de entender o aparecimento, as acções tomadas, e o progresso dos videojogos. Primórdios: As primeiras experiências de simulação digital foram iniciadas nas décadas de 40 e 50 do século XX por académicos e investigadores de universidades e centros de pesquisa que exploraram as potencialidades dos primeiros computadores de programa memorizado. Até à comercialização dos videojogos ocorreram uma série de tentativas de transmigração virtual, tendo sido criadas versões digitais de variadas inspirações: um exemplo inicial foi o do Cathode Ray Tube Amusement Device, cuja patente foi inscrita em 25 de Janeiro de 1947 (US Patent 2455992), da autoria de Thomas J. Goldsmith Jr. e Estle Ray Mann, em que o jogador tinha a oportunidade de imitar disparos de um míssil contra pontos fixos no écran através de um ponto controlável desenhado em vector; outro foi o jogo do galo, chamado Noughts and Crosses, ou OXO, um projecto de A.S.
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Douglas, doutorando da Universidade de Cambridge, em 1952 (Egenfeldt-Nielsen, 2013); as simulações de ataques nucleares num cenário representativo do mundo que opõe os países membros da NATO contra a U.R.S.S., o Hutspiel, de 1955, criado num centro de investigação da Universidade John Hopkins (Djaouti, 2011); foi criado, também, um computador especializado para a jogabilidade de Nim, um jogo de estratégia matemática, no Nimrod, colocado em exposição no Festival of Britain na Exibição de Ciência; o influente Tennis for Two, desenvolvido por William Higinbotham em 1958 no Laboratório Nacional de Brookhaven, em Nova Iorque, que permitia uma partida de ténis, ou ping pong, já que o os visuais eram perspectivados de cima, num osciloscópio; e, inclusive, o Spacewar!, considerado um dos videojogos mais importantes de sempre (Chaplin, 2007), que foi concebido em 1962 por estudantes do Massachusetts Institute of Technology e coloca na sua experiência duas naves espaciais em luta enquanto tentam evitar a gravidade de uma estrela no meio do campo de batalha. Um dos problemas iniciais que desencorajou a produção de videojogos foi o elevado preço do hardware capaz de os fazer funcionar, impossibilitando a capacidade de consumo das massas. Ainda na década de 60 a utilização de computadores estava limitada a locais muito específicos, sendo sobretudo nas
faculdades
computadores.
com
investigação
Contudo,
desenvolvimento
com
tecnológico,
de o que
proporcionou a diminuição dos custos de produção
e
venda
de
computadores,
aumentou a possibilidade de conseguir lucrar com a criação de videojogos nos anos 70. fig. Hutspiel (1955)
Em 1972 assiste-se ao lançamento da primeira consola, a Odyssey, da empresa Magnavox – um projecto que levou seis anos a realizar-se pelo considerado “pai dos videojogos”, Ralph Baer. A biblioteca de jogos da Odyssey era reduzida, contando principalmente com simuladores desportivos, destacando-se os jogos Table Tennis e Tennis, que serviram de inspiração ao engenheiro e empreendedor Nolan Bushnell (Baer, 2005), responsável pela fundação da Atari, Inc., em conjunto com Ted Dabney, e o consequente lançamento de um dos jogos mais populares de sempre, o Pong. Bushnell foi capaz de prever a adesão de um determinado público alvo – os adolescentes – ao consumo de videojogos e, desta forma, criou em 1971 a primeira arcada operada por moedas com o jogo Computer Space, um clone do já referido Spacewar!.
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Alguns erros foram cometidos na concepção do Computer Space, nomeadamente a sua pouco acessível jogabilidade, difícil de dominar, que não apelou nem aos investigadores que tinham apreciado na década anterior o Spacewar! nem ao público frequentador de estabelecimentos com arcadas. Apesar disto, Bushnell concentrou-se de imediato na rectificação deste problema, e apostou na simplicidade dos controlos e na componente multijogador, e o resultado foi o Pong. Ao contrário do primeiro jogo de Bushnell, o Pong tornou-se um grande sucesso comercial, e abriu o caminho para o predomínio das arcadas na indústria dos videojogos durante as décadas de 70 e 80. A ambição dos programadores, no entanto, era outra. Interessava-lhes levar os jogos para a casa das pessoas, para que estas jogassem nas suas televisões. Assim, paralelamente ao êxito das arcadas dispostas em vários locais, foi lançada a consola Home Pong, que vendeu 150 mil unidades apenas na quadra natalícia de 1975 (Dillon, 2011). Outras empresas aventuraram-se rapidamente no negócio dos videojogos, sendo lançados vários modelos de consolas após 1975: a Fairchild Channel F da Fairchild Semiconductor (1976); a Telstar da Coleco (1976); a Color TV Game, o primeiro hardware produzido pela Nintendo, lançada apenas no Japão (1977); a Atari 2600, ou VCS (1977); e a Odyssey 2 da Magnavox (1978). O Grande Crash dos Videojogos de 1983-85 e a revitalização nipónica: Um dos sinais que indústria dos videojogos estava a crescer exponencialmente foi a abrupta e massiva recessão que se deu entre os anos de 1983 e 85, e que levou na altura aos especialistas desconfiarem de qualquer possível regeneração do mercado das consolas. Neste curto período de tempo a indústria perdeu cerca de 3 mil milhões de dólares (Gallagher, 2002, p.72).
As causas desta crise foram compostas por diversos erros cometidos pelas principais empresas, nomeadamente a competição das consolas com os home computers – uma definição dada a computadores chamados domésticos, para uso pessoal, especialmente para jogos, e que se distinguiam dos business computers – que baixaram muito de preço e devido à sua potência maior em comparação com as consolas, tornaram-se uma alternativa mais desejável, ainda que mais tarde também o mercado destes computadores domésticos sofreu com a quebra económica da indústria dos videojogos;
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A saturação provocada pelo grande número de modelos de consolas e jogos de fraca qualidade no mercado ao mesmo tempo, resultando em enormes fiascos como a versão do Pac-Man criada para a Atari 2600, considerada muito inferior em relação ao original, e a adaptação do filme E.T. do Steven Spielberg, que se esperava vir a tornar num grande sucesso graças à popularidade do filme. Foram produzidos imensos cartuchos que não foram vendidos, uma despesa que se juntou aos altos custos dispendidos pela Atari para adaptar o filme. Para além disso, não foram só estes dois exemplos que se provaram um falhanço, inúmeros outros títulos inundaram o mercado que não os consumiu, levantando um problema entre o comércio de retalho e as produtoras. Muitas empresas faliram e outras abandonaram o negócio dos videojogos. Outra grande consequência foi a transferência do centro de produção de consolas dos Estados Unidos para o Japão, que se manteve mais ou menos estável durante este período. Desta forma, a Nintendo, que lançou a Nintendo Entertainment System (NES) em 1985, conseguiu praticamente monopolizar o mercado mundial. As medidas tomadas pela empresa
fig. Atari 2600
japonesa, muito mais pragmáticas e racionais do que as que tinham sido até então seguidas pelas companhias americanas, foram o factor decisivo para o seu sucesso. Quais foram? Para evitar a proliferação desenfreada cometida antes da derrocada da indústria foi imposto um sistema muito mais controlador no lançamento dos jogos para a NES, através de uma chave incorporada em cada cartucho de videojogos – a produção e distribuição destes para as empresas terceirizadas de software era da exclusiva responsabilidade da Nintendo – que impossibilitou as companhias não autorizadas de lançarem os seus jogos. Isto significou um cuidado extraordinário na categoria dos produtos, que foi simbolicamente materializado com a inclusão de um “selo de qualidade” assegurador do cumprimento das padrões estabelecidos pela Nintendo. Além disto, a relação entre a Nintendo e as empresas de software licenciadas foi redefinida segundo novos parâmentos que visaram uma maior aproximação. Em primeiro lugar, entre ambas era assinado um contrato de exclusividade para os jogos que eram produzidos não serem lançados noutras plataformas durante dois anos. Isto fortalecia o catálogo da NES, e cercava outros potenciais rivais. Depois, as companhias licenciadas fig. Selo de Qualidade da Nintendo.
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tinham uma quota máxima determinada pela Nintendo de cinco jogos por ano. Tal limite obrigava a um empenho maior na elaboração dos jogos.
Com estas medidas, a confiança no mercado dos videojogos foi recuperada e as vendas da NES subiram de 1.5 milhões em 1986 para 9 milhões em 1989 (Gallagher, 2002, p.73). Durante este período os únicos competidores da Nintendo com alguma relevância, embora miníma, eram a Sega, com a sua Master System, e ainda a Atari, muito mais enfraquecida, com a Atari 7800. O predomínio japonês: Como já foi referido, o Japão emergeu do Grande Crash como o principal centro da indústria de videojogos. Isto deveu-se muito às decisões acertadas da mais forte companhia nipónica da altura, a Nintendo. A competição na década de 90 foi travada principalmente por marcas japonesas. A Sega inaugurou a 5ª geração das consolas com o lançamento, em 1988 no Japão e no ano seguinte na América, da Sega Genesis – ou Mega Drive, dependendo da zona –, uma consola tecnologicamente superior à NES. Porém, a Genesis precisou de expandir o seu catálogo de software antes de poder ter sido considerada um rival significante. Em 1990/91 a Nintendo juntou-se à geração 16-bit com a Super Nintendo, e a Sony, depois ter falhado negociações com a Nintendo para a produção de uma componente periférica de cd-roms destinada à Super Nintendo, que utilizava cartuchos, criou a sua própria consola, a Playstation (1995). A nova consola da Sony foi a primeira a conseguir sucesso utilizando um sistema de leitura de Compact Discs (CDs) apesar de não ter sido a primeira a ter essa função incorporada no hardware; veja-se os casos da Philips CD-i, da 3DO Interactive Multiplayer, e da Sega Saturn, todas anteriores à Playstation mas que não obtiveram a mesma recepção. Até então, o formato mais recorrente de distribuição dos videojogos tinha sido os cartuchos, tendo a Nintendo 64 sido a última consola a utiliza-los com sucesso, mas os custos de produção destes eram maiores que os dos CDs, uma razão pela qual levou várias companhias a preferirem utilizar a Playstation como transmissora dos seus produtos como, por exemplo, a Squaresoft com a sua célebre série de Role Playing Games (RPGs), o Final Fantasy, que até
à
quarta
exclusivamente
geração
de
consolas
ligada
à
Nintendo.
esteve Os
programadores preferiram a acessibilidade da consola da Sony, muito mais fácil de programar jogos que a Sega Saturn, com toda as suas especificações técnicas complexas.
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fig. The Legend of Zelda The WindWaker
Com a falta de sucesso da Saturn, a Sega parou de apoiar a sua própria consola e começou a preparar a seguinte geração. O projecto Dreamcast materializou-se na consola com o mesmo nome lançada em Novembro de 1998 – passados meramente quatro anos desde o aparecimento da Saturn – estreando a sexta geração. A Dreamcast não foi capaz de se transformar num êxito em vendas mas destacou-se por ter sido a primeira consola com um modem incorporado no seu hardware e, também, suportar um serviço de jogabilidade online. Embora inovadora, a Dreamcast teve a dura tarefa de lidar com o tremendo sucesso da Playstation 2, e as suas vendas baixaram quase de imediato após a Sony ter anunciado a sequela da sua primeira consola. Demorou até o início do século XXI para que alguma empresa ocidental conseguisse entrar em força no mercado dos videojogos e competir com as companhias japonesas, quando, em 2001, a Microsoft lançou a X-Box. Uma luta de três gerações: A Dreamcast, a primeira consola da sexta geração, foi descontinuada em 2001, no mesmo ano em que a Gamecube, da Nintendo, e a X-Box, da Microsoft, foram lançadas. O problema da última consola da Sega, para além da competição com as outras companhias, foi a má recepção no mercado japonês (apesar de ter tido fortes vendas nos mercados americanos e europeus), o que se traduziu num enorme prejuízo liquído de 412 milhões de dólares, e obrigou a empresa nipónica a concentrar-se na produção exclusiva de software, após a descontinuação da Dreamcast. Este abandono da corrida por parte da Sega deixou o mercado dos videojogos a ser disputado pelas três maiores companhias, a Sony, a Nintendo e a Microsoft com a Playstation 2, a Gamecube, e a X-Box. Na sexta geração foi indiscutível a vitória da consola da Sony, tendo vendido – até 2012 – cerca de 155 milhões de unidades, contra os números muito mais reduzidos da Gamecube e da X-Box: 22 milhões e 24 milhões de unidade, respectivamente. Em termos de títulos destacam-se nesta geração os vários Grand Theft Auto’s: o III, que passou a utilizar pela primeira vez gráficos em três dimensões; o Vice City e o San Andreas, este último foi o jogo que mais sucesso obteve na Playstation 2, com cerca de 20 milhões de unidades vendidas; os Metal Gear Solid 2 e 3; os Final Fantasy; na X-Box a série Halo, que tanto em singleplayer offline como multiplayer online conseguiu tornar-se numa marca por si só capaz de vender consolas; Ninja Gaiden e, temporariamente como exclusivo, o Tom Clancy’s Splinter Cell; já a Gamecube encontrou sucesso com o lançamento do The Legend of Zelda: The Wind Waker; Super Mario Sunshine; Super Smash Bros. Melee.
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A sétima geração teve o seu início em 2005 com a X-Box 360, a sucessora da primeira consola da Microsoft. Seguiram-na as duas consolas da Sony e da Nintendo, a Playstation 3 e a Wii. Cada consola contou com desenvolvimentos tecnológicos relevantes implementados no seu hardware, sendo que a Playstation 3 adoptou a leitura do formato blu-ray; a X-Box 360 incorporou a resolução HD nos seus videojogos; e a Wii apostou na jogabilidade accionada por detectores de movimento, quebrando com a forma tradicional de jogar apenas através do pressionamento de botões. O sucesso da consola da Nintendo foi tanto – para além de ter sido a consola da sétima geração com mais unidades vendidas, 100 milhões – que a Sony e a Microsoft criaram as suas próprias versões de dispositivos para o a captação de movimento, o Playstation Move e o Kinect. Talvez a particularidade mais interessante desta geração tenha sido o crescimento das comunidades online, não só nas consolas, também nos computadores, em torno da experiência de jogar. Se nas gerações anteriores a atenção dos produtores era, sobretudo, para jogos singleplayer (individuais), sem desprezar, claro, vários videojogos que iam de dois a quatro jogadores, a verdade é que, através da propagação da internet, os jogos multi-player online tornaram-se bastante mais populares. Videojogos de First Person Shooter como o Call of Duty, Battlefield, e, novamente, Halo, aproveitaram esta nova tendência para o seu sucesso. Outros géneros, como os Massive Multi-player Online Role-Playing Games (MMORPG), também foram capazes de lucrar através do novo universo partilhado pelos possuidores de uma conexão online. Assim, na presente oitava geração, que está ainda a dar os seus primeiros passos e conta com os mesmos protagonistas, encontra-se uma adesão cada vez maior do público em geral nesta forma alternativa de entretenimento, consubstanciadora de vários aspectos artísticos como a música, a literatura a partir dos enredos criados, o design, etc. 1ª Geração
2ª Geração
3ª Geração
4ª Geração
5ª Geração
6ª Geração
7ª Geração
8ª Geração
(1972-1977)
(1977-1983)
(1983-1995)
(1988-1999)
(1993-2006)
(1998-2013)
(2004 -)
(2012-)
Lista de Consolas -Magnavox
-Fairchild
-SG-1000
-Mega
-3DO
-Dreamcast
-Wii
-Wii U
Odyssey
Channel F
-Nintendo ES
Drive/Sega
Interactive
-Gamecube
-Playstation 3
-Playstation 4
-Atari/Sears Tele-
-Atari 2600
-Sega
Genesis
Multiplayer
-Playstation 2
-Xbox 360
-Xbox One
Games Pong
-Atari 5200
Mastersystem
-Super
-Sega Saturn
-Xbox
-Binatone
-Magnavox
-Atari 7800
Nintendo ES
-Playstation
-Coleco Telstar
Odyssey
-Neo Geo AES
-Nintendo 64
-Nintendo
-Intellivision
-TurboGrafx-16
-Atari Jaguar
Color
TV Game
-Philips CD-i
Lista de Consolas Portáteis -Microvision
-Game Boy
-Sega Nomad
-Game
-Atari Lynx
-Virtual Boy
Advance
-Sega Game Gear
-Game
-Nokia
-TurboExpress
Pocket -Game
Boy
Tbaela Lista cronológica das diferentes gerações de consolas. Apenas incluídas as mais relevantes.
N-
-Nintendo
-Nintendo 3DS
DS
-Playstation
- PSP
Vita
Gage Boy
-Tapwave Zodiacv
Color -Neo
Boy
Geo
Pocket Color -Wonderswan
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A dúvida explícita na introdução persiste: serão os videojogos arte? – No fundo, o seu objectivo é entreter, mas assim o é também o de vários formatos cinematográficos/televisivos/musicais, que continuam a ser considerados arte. Se é a imaginação, a visão, a imagem, a concepção e a mensagem que tornam as manifestações dos criadores de diferentes em produtos culturais, certo é que determinados jogos electrónicos conseguem igualmente transmitir conteúdos representativos do impulso criativo do ser humano.
Bibliografia: http://www.gamespot.com/articles/is-this-the-last-console-generation/1100-6418785/ http://www.jstor.org/discover/10.2307/30036988?uid=3738880&uid=2&uid=4&sid=2110401 7661843 EGENFELDT-NIELSEN, Simon. SMITH, Jonas Heide. TOSCA, Susana Pajares. Understanding Video Games: The Essential Introduction. Oxon, Routledge, 2013. The Game Theorists - Game Theory: Why you play video games: https://www.youtube.com/watch?v=MyUC_28HIvA DJAOUTI, Damien. ALVAREZ, Julian. JESSELL, Jean-Pierre. RAMPNOUX, Olivier. Origins of Serious Games. 2011 CHAPLIN, Heather. Is That Just Some Game? No, It’s a Cultural Artifact. The New York Times. 2007. http://www.nytimes.com/2007/03/12/arts/design/12vide.html?ex=1331352000&en=380fc9bb 18694da5&ei=5124&partner=permalink&exprod=permalink&_r=0 Consultado em 23-04-2014 BAER, Ralph H. Videogames: In the Beginning. Rolenta Press, 2005. DILLON, Roberto. The Golden Age of Video Games: The Birth of a Multibillion Dollar Industry. Boca Raton, FL, AK Peters/CRC Press, 2011. GALLAGHER, Scott & PARK, Seung Ho. Innovation and Competition in Standard-Based Industries: A Historical Analysis of the U.S. Home Video Game Market. IEEE Transactions on Engineering Management, vol. 49, no. 1, February 2002 GIBSON, Ellie. Games aren’t art, says Kojima. 2006, http://www.eurogamer.net/articles/news240106kojimaart [Consultado a 19-05-2014]
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Instituto PAEHI - Prometheus Associação para Estudos Históricos Interdisciplinares O Instituto PAEHI vai iniciar diferentes cursos com os mais diversos temas entre 18 de Setembro de 2014 a 30 de Janeiro de 2015. Desde conhecer a Mitologia Nórdica, a compreender as raízes da Cultura Hindu, navegando com a História dos Vikings ou a saborear a História e Cultura Moçárabe poderemos conhecer melhor o nosso Passado como forma de pensarmos melhor o Futuro. A Calendarização dos cursos será divulgada no dia 24 de Junho. Todos os cursos realização-se na Sede do Instituto ou em local a designar. Os cursos terão um custo de vinte euros (20€) e inclui oito a dez aulas e toda a documentação do curso em questão. Para mais informações: Email: conselho.cientifico@instituto-prometheus.org ou inst.prometheus@gmail.com; Tlf.: 213010005
O Grupo Surrealista de Lisboa: da formação às dissidências 1
Rosa Azevedo
) Começo por avisar que este texto pretende desmistificar ou mesmo desvalorizar o seu próprio
1
FCSH-UNL; Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas - variante Português Francês;
conteúdo. A existência de um grupo Surrealista é sobrevalorizada face ao cenário surrealista português muito maior e mais abrangente. O Grupo Surrealista Português existe apenas porque surgiu a determinada altura a necessidade de trazer para Portugal o termo surrealismo, passando o surrealismo a existir quase por decreto, criando-se um movimento que, numa primeira fase, se identifica à imagem dos outros surrealismos, nomeadamente o francês, que tinha à cabeça Andre Breton. Essa necessidade surge quando, como veremos, um grupo de jovens artistas percebe que a sua linha de actuação artistica se liga aos surrealismos que tinham surgido na Europa uns anos antes. António Pedro já se tinha envolvido com o movimento surrealista inglês (1936) e começa a referir o movimento em Portugal. Publica em 1941 Apenas uma narrativa, uma antologia de textos automáticos, algo absolutamente inédito no país. Para além disso alguns dos futuros membros do movimento surrealista português vão a Paris e conhecem Breton e trazem as ideias do surrealismo francês para cá.
O grupo de alunos da escola António Arroio, que por volta de 1942 se começa a juntar no café Hermínius, tinha já em comum uma série de ideias que se aproximavam
das ideias dos
surrealistas franceses, sobretudo. Acreditavam na necessidade da criação de uma suprarealidade porque a realidade existente não era material artístico satisfatório. Para aí chegar teriam de afastar qualquer tipo de racionalidade para chegar a uma arte pura, longe de estereótipos e preconceitos. Preconizavam o fim da ditadura da razão. Ramos Rosa definia esta poesia como ilegível mas não inaudível, ou seja, imagens que não fazendo um sentido real e palpável criassem através do acaso ou da sensação um poema significante no leitor
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transformando-o numa parte fundamental e imprescindível da escrita.
Estes artistas não acreditavam que a arte fosse de elites, estaria por isso ao alcance de todos. Não queriam uma elite, não acreditam na separação entre arte e pessoas, não se queriam fechar em regras de arte ou dogmas relacionados com a história da literatura – ser surrealista era uma forma de ser e de estar na arte, não algo que se decida ser. Cesariny afirmou: "Eu acho que se se é surrealista, não é porque se pinta uma ave, ou um porco de pernas para o ar. É-se surrealista porque se é surrealista!" Em 1942 já se reuniam algumas pessoas no café Herminius, alunos da António Arroio, mas é em 1947 que se forma o primeiro grupo surrealista, o Grupo Surrealista de Lisboa. Em 1948 deram-se as primeiras discussões dissidentes. Havia vários surrealismos, mas Cesariny defendia nesta altura que o Grupo não parecia defender o que ele denominava surrealismo literário que defendia a absoluta liberdade de criação, a autonomia de cada um face à supra-realidade que procurava e o não prender-se a qualquer convenção.
fig. Mário Cesariny
Este surrealismo torna-se então incompatível com a ideia da existência de um grupo, ou seja, a existência de um grupo não trazia nada de novo, apenas impedia a livre criação, sem preconceitos, onde cada artista deveria ser absolutamente livre. A revolução possível seria sempre uma revolução interior e pessoal e não uma revolução exterior, só assim seria possível chegar à revolução exterior que almejavam, fruto da situação política do País. Em 1949 dá-se a separação e criam-se dois grupos. Por um lado o já existente, Grupo Surrelista de Lisboa de onde faziam parte O'Neill, Dacosta, António Pedro, Fernando de Azevedo, João Moniz Pereira, José Augusto-França e Vespeira. Destes afastaram-se os Dissidentes ou os Surrealistas (uma melhor definição para que não se identifiquem por oposição) com Cesariny, Pedro Oom, António Maria Lisboa, Henrique Risques Pereira. Toda a história da Literatura Portuguesa se criou à volta de dissidências perante os movimentos anteriores. Neste caso é no próprio movimento que se dão as dissidências. Os movimentos criavam-se como questionamento de gerações anteriores e das próprias gerações. Esta ideia de grupo ou de geração terminou em Portugal por volta dos anos 1970 sendo que os surrealistas continuaram a existir, cada um dentro das suas regras próprias que subscreviam as regras deste primeiro movimento.
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O
surrealismo
não
pode
ser
datado, nem podemos falar de percursores e herdeiros. Apenas o conceito e o seu entendimento fez com que se criassem estes grupos que
aparentemente
mesmo.
No
queriam
entanto
o
ser-se
surrealista era uma forma de estar na arte por isso teriam existido antes e depois e sempre. O que houve foi um grupo que se definiu surrealista, mas que não se
fig. «Grupo Surrealista de Lisboa»: (Em cima) Mário Cesariny, José-Augusto França e Vespeira; (Em Baixo): António Pedro, Alexandre O'Neill e João Moniz Pereira, 15 de Maio de 1948.
limitava aos seus membros nem excluía ninguém. As dissidências deram-se apenas porque alguns membros do grupo não levavam a bom porto a liberdade necessária para se ser surrealista. Os grupos tiveram sobretudo a função de os pôr a pensar, reflectir, ainda que muitas vezes fosse pela negativa, daí o tão grande número de discussões, problemas e querelas. Os Surrealistas formaram-se pela negação de uma postura artística com a qual não se identificavam, nem eles nem o surrealismo bretoniano. Durante as dissidências os surrealistas puderam perceber que liberdade era esta. Não “inventaram” o surrealismo, pensaram-no e reflectiram-no a partir de algo que eles próprios eram e a partir da forma como faziam arte. É preciso perceber o que é ser surrealista, em que é que isso acrescenta o autor, o transforma, o melhora, o torna consistente. É isso que importa discutir e entender e espero que este género de reflexões e textos sirva para nos aproximarmos mais desse entendimento do que é o surrealismo, nos termos em que os próprios tentaram entender, e menos fecharmo-nos em discussões históricas e factuais. Que sirva também este texto para reflectir no que os surrealistas ainda podem significar e que sentido nos fazem (que é tanto) na nossa contemporaneidade. Não podemos estender-nos em considerações e temos de trabalhar o pensamento livre como os surrealistas quereriam, um pensamento que nos tire do nosso espaço de conforto e nos liberte. De outra forma estaríamos a ser os nossos próprios inimigos. Para tudo isto o importante é ler os surrealistas, não podemos entender o surrealismo em textos e comunicações. É necessário compreender esta revolução interior de forma autónoma e livre. Só nos livros e nos poemas e nos quadros essa revolução poderá ser não só entendida como atingida em absoluto. Não há outra forma.
38 fig. Cruzeiro Seixas
Outras Conversas 1
com José das Candeias Sales João Camacho1 1 - Professor, concluiu a sua licenciatura em História em 1985, numa altura em que a investigação em História Antiga em Portugal (e concomitantemente a Egiptologia) estava ainda numa fase inicial. Como é que ganhou o interesse particular pelo antigo Egipto até optar pela especialização nesta área, e o que é que destaca nesse percurso?
Investigador do Instituto PAEHI; Membro integrado do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa; Mestre em História Antiga pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;
Talvez não seja totalmente correcto dizer-se que, em 1985 ou no final dos anos 80 do século passado, a investigação em História Antiga estava «numa fase inicial». De facto, havia já conceituados investigadores em História Antiga, com importantes trabalhos publicados, como, entre outros, os Professores António Augusto Tavares, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, ou José Nunes Carreira, na Universidade dos Açores e, depois, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Aquilo que não existia ainda entre nós era uma assumida compartimentação dos estudos de Antiguidade em grandes ramos, como a Egiptologia, a Hebraística ou a Assiriologia. Em regra, os estudos sobre a Antiguidade ficavam-se pelo aprofundamento possível no âmbito das disciplinas do 1º ano da licenciatura em História e não havia ainda a possibilidade de ulteriores e mais consistentes aprofundamentos ao nível de mestrado. Nesse aspecto, estava-se ainda, realmente, numa fase inicial. Basta recordar que o primeiro mestrado em História das Civilizações Pré-clássicas surge na Universidade Nova de Lisboa, em 1992, consagrando já, justamente, essa divisão em áreas ou domínios científicos de especialidade. Em relação ao meu interesse particular pelo antigo Egipto, ele remonta ao primeiro ano da licenciatura em História, altura em que, a par da Pré-História e da História das Civilizações Clássicas, se considerava igualmente a História das Civilizações Pré-Clássicas. As temáticas de carácter religioso e as questões inerentes aos ritos e rituais do poder político ou, se quisermos, da ideologia real, captaram, desde logo, a minha atenção. Não dispondo de outro tipo de ofertas formativas em disciplinas de opção, acabei por realizar todas as disciplinas de História Antiga que docentes da Universidade Nova disponibilizavam, nomeadamente no campo das línguas, como era o caso do Hebraico I e Hebraico II. Paralelamente, fazia todos os cursos livres e assistia a todas as conferências sobre temas de História Antiga realizadas em Lisboa. Lembro-me de assistir, maravilhado, às conferências de reputados nomes da cena internacional como Pierre Amiet, Paul Garelli ou Francis Joannès. Nem sempre eram egiptólogos, mas eram especialistas em História Antiga que partilhavam as suas experiências, técnicas e métodos o que, para um «jovem aprendiz de feiticeiro» era uma oportunidade única de aprendizagem e «especialização». Esta «vertente de especialização» só pôde, porém, ser ampliada e aprofundada, de forma sistemática, já durante o mestrado, onde estudei também a Língua Acádica e o Egípcio Hieroglífico, no campo das línguas antigas, a que se juntaram outras disciplinas como Literatura Sapiencial na Antiguidade, Profetismo na História do antigo Médio Oriente, Antropologia e Cosmologia no antigo Egipto, História das Culturas Semíticas, Estruturas Político-Económicas dos Impérios da Antiguidade Oriental ou Diáspora Judaica. Muitas destas disciplinas permitiram-me, na altura, um «mergulho em profundidade» em alguns dos temas e problemas da Egiptologia, sem descurar, todavia, uma visão de conjunto e de pormenor de outros temas e assuntos da história das civilizações «vizinhas» da Egiptologia. Pessoalmente, creio que esse momento inicial do meu percurso foi decisivo para uma ponderação equilibrada do peso, importância e valor das civilizações antigas como um todo, embora o meu gosto e apreço particular se tenham fixado, de forma mais consistente e permanente, no domínio da Egiptologia.
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2 – A implementação do «Processo de Bolonha» na Academia trouxe profundas mudanças na estruturação e planeamento dos cursos. Partindo das suas funções de Professor universitário e Pró-Reitor da Universidade Aberta, que avaliação geral faz das modificações ocorridas? Quer se concorde ou não com as ideias que lhe estão subjacentes, o chamado «Processo de Bolonha» foi das maiores alterações introduzidas no Ensino Superior Europeu nos últimos 30 anos com vista à construção de um espaço europeu de ensino superior globalmente harmonizado. A ideia de estabelecimento e generalização de um sistema de créditos académicos (ECTS, European Credit Transfer System), não apenas transferíveis mas também acumuláveis, independentemente da instituição de ensino frequentada e do país de localização da mesma, parece-me ser uma excelente ideia, num momento de assumida globalização. Salvaguardando as diferenças e especificidades nacionais, a ideia base inerente ao Processo é que um estudante de qualquer estabelecimento de ensino europeu pode desenvolver e concluir os seus estudos superiores e obter um diploma europeu reconhecido em qualquer universidade de qualquer Estado-membro. Para o efeito, foi preciso que as instituições de ensino superior passassem a funcionar de um modo integrado, num espaço aberto antecipadamente delineado e regido por mecanismos de formação e de reconhecimento dos graus académicos homogeneizados à partida. Na maioria das vezes, porém, fixamo-nos na «espuma do Processo» e olhamos apenas para a semestralização das unidades curriculares, para a alteração das designações (de «disciplinas» para «unidades curriculares», por exemplo) e para a redução do período global das formações (em regra, de quatro para três anos) e, em consequência, esquecemo-nos de outras virtualidades da Declaração de Bolonha como o aumento da competitividade do sistema europeu de ensino superior e a promoção da mobilidade e empregabilidade dos diplomados do ensino superior no espaço europeu. Pessoalmente, ou não fosse actualmente Pró-Reitor da Universidade Aberta para a Aprendizagem ao Longo da Vida, há uma outra linha de acção ou compromisso assumido em Bolonha que me parece ser extremamente relevante: a promoção da aprendizagem ao longo da vida. A aprendizagem ao longo da vida (ALV) é, em minha opinião, o verdadeiro motor de qualquer processo de aprendizagem e de formação: o aprofundamento ou prosseguimento de estudos ao nível de mestrado, de doutoramento, de pós-doutoramento ou no campo de formações profissionais ou profissionalizantes com uma forte componente académica são, no fundo, momentos e movimentos de ALV. O Processo de Bolonha reconhece-os, integra-os e valoriza-os e isso é, em minha opinião, extraordinariamente importante e meritório. A competitiva e dinâmica economia do conhecimento, acelerada pelos ritmos e estilos de aprendizagem e de acesso ao conhecimento em que hoje vivemos, gera e exige diferentes respostas a antigos problemas e isso aplica-se em particular ao campo da educação superior.
3 – Voltando à Egiptologia, como caracteriza o estado actual deste ramo da ciência em Portugal? Em termos gerais, como é recepcionada a investigação desenvolvida no nosso país, pela comunidade egiptológica internacional?
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Para ser sincero, acho que nunca houve tanta oferta e interesse em Portugal, no campo da Egiptologia, como actualmente. Há vários índices que suportam esta minha opinião: nunca houve tantos doutorados e mestres em Egiptologia como hoje; nunca houve tantas revistas especializadas editadas em Portugal, com a colaboração de autores portugueses, como hoje; nunca houve tantos cursos livres, colóquios, seminários abertos ao público, em geral, ou destinados a potenciais especialistas; nunca houve tantas publicações de autores nacionais, em língua portuguesa ou noutras línguas, como hoje. Isto não significa, todavia, que as condições existentes sejam excelentes ou as melhores para o desenvolvimento dos estudos de Egiptologia.
De facto, continuam a faltar as bibliotecas especializadas, onde se possam encontrar os «grandes títulos» deste ramo do saber e, talvez o mais importante, uma consistente política de bolsas destinada ao apoio à especialização dos nossos jovens mais motivados e interessados, nomeadamente noutros lugares de formação a nível europeu. Esta vertente, apoiada de forma programada e continuada, poderia ajudar, eventualmente, a aumentar a recepção da investigação desenvolvida no nosso país pela comunidade egiptológica internacional. Continua a haver, ainda, um deficit significativo neste aspecto. As honrosas excepções existentes são fruto mais de um «trabalho individual» de afirmação internacional do que de um «esforço da escola portuguesa de Egiptologia». Aliás, creio mesmo que não podemos falar de uma «escola portuguesa de Egiptologia»: nem ao nível de uma temática ou época de estudo em que os Egiptólogos portugueses sejam reconhecidamente especialistas, nem tampouco ao nível da sua participação colectiva em redes internacionais. 4 – Regularmente chegam até nós, através da comunicação social e da internet, notícias de graves problemas políticos e sociais no Egipto (sobretudo no Cairo). Simultaneamente vão surgindo, com uma regularidade assinalável, novas descobertas que enriquecem os conhecimentos e colocam a História do antigo Egipto em permanente discussão e reformulação. Quais as suas principais preocupações perante os conflitos no país, e eventuais consequências destes para o estudo da notável civilização africana? Os meus sentimentos em relação à situação política do Egipto são muito contraditórios. Se, por um lado, lamento profundamente a forma como a «Primavera árabe», essa onda revolucionária que, desde 2010, percorreu países do Médio Oriente e do Norte de África, incluindo o Egipto, se transformou, em alguns casos num «Outono invernoso», com inúmeras mortes, violências e destruições, onde o respeito pelos valores humanos têm sido sistematicamente violentados, por outro, isso não significa que achasse que a situação vivida no Egipto nos últimos anos de Hosni Mubarak fosse a mais desejável e aceitável para a maioria dos Egípcios. Esta vertente política e social da situação não pode deixar-nos impávidos e serenos, como cidadãos, independentemente das nossas posições e opiniões políticas. Como estudiosos e investigadores interpela-nos também de outra forma: o receio de que o património já descoberto ou a descobrir não seja convenientemente estudado e preservado ou de que não sejam concedidas as adequadas condições para que as pesquisas arqueológicas, por exemplo, possam prosseguir. Sabendo que muito da preservação patrimonial derivava das avultadas somas que o turismo internacional deixava no Egipto e sabendo que a agitada situação política tem afastado muito desse turismo dos roteiros em território egípcio, é preocupante pensar no que uma dezena de anos pode fazer a um país milenar… Espero sinceramente que as coisas possam serenar politicamente, sem que isso ponha em causa os direitos cívicos e sociais dos Egípcios e a sua luta por melhores condições de vida, designadamente mais democráticas e participativas, para que a breve trecho se possam retomar as viagens, as investigações, as escavações. 5 – Para terminar, o antigo Egipto atrai sempre muitos interessados no seu estudo. Que sugestões daria aos jovens que pensam enveredar por especializações em Egiptologia? Isto de fazer sugestões, «universalmente válidas», é muito complicado, até porque cada caso é um caso, cada situação individual coloca questões particulares. Seja como for, talvez fizesse duas ou três sugestões, aos jovens e aos «menos jovens», que se apaixonam por este domínio de estudos ou que nele se querem especializar: prudência, humildade e perseverança. Prudência, para não se deixarem iludir pelas facilidades de acesso ao conhecimento egiptológico que hoje a internet, por exemplo, lhes pode proporcionar.
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É reconhecido que uma das principais dificuldades que os estudantes de mestrado da área de História Antiga – Egiptologia enfrentam se relaciona com o acesso a bibliografia especializada. Os consideráveis ganhos que a Internet trouxe, com a consulta e acesso a sites específicos de associações e/ ou revistas especializadas, onde se podem descarregar artigos e livros em pdf, com o recurso ao Google books, para consultas rápidas, parcelares, de obras e com a disponibilização por parte de muitos autores dos seus textos em versão integral, não deve inibir a correcta percepção do que é principal e acessório. Os estudantes devem, por isso, estar atentos à falsa sensação de conhecimento e saber que esse acesso pode conter. Hoje é fácil aceder a sites, fotos, pdf’s de livros, artigos ou outros textos. Nem sempre, todavia, a sua «apreensão» é integral, sistemática e adequada. Humildade, porque o domínio egiptológico é muito diversificado e tem gerado, ao longo dos anos, inúmeros contributos que só com tempo e dedicação se podem conhecer, avaliar, reutilizar e criticar. Pensar, ao fim de meia dúzia de meses ou anos, que já se sabe e conhece tudo é errado e contraproducente. Talvez aqui a recomendação principal fosse «dar tempo ao tempo» e apostar no estudo e na dedicação sistemática. Pode haver quem se arvore em Egiptólogo ao fim de duas conferências ou dois artigos…mas um Egiptólogo só se vê ao fim de muitos anos. A humildade do investigador deve, portanto, em minha opinião, fomentar respeito pelo trabalho de outros e um profundo desejo de aprender com eles, sem que isso, todavia, tolha a criatividade e o fulgor que cada um deve transportar e demonstrar. Perseverança, porque o percurso não é fácil nem está isento de escolhas complicadas. Nem sempre os resultados se alcançam rapidamente; nem sempre se atingem os patamares de formação e de aprofundamento desejados em pouco tempo; nem sempre se caminha exactamente como se planeou… O investigador em Egiptologia deve, assim, munir-se de uma boa dose de perseverança e tenacidade para trilhar este caminho, com os seus altos e baixos... Quem já viajou pelo Nilo sabe que o rio é aparentemente sempre igual. Mas é uma ilusão ou aparência. Cada curva do rio, cada nova panorâmica dos campos ou dos desertos envolventes confere particularidades próprias a cada troço e faz descobrir novas sensações. Assim é também o percurso pela Egiptologia — e pela Vida —: com encantos, desencantos, paixões e frustrações…
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O Navio-Tartaruga 1
Catarina Almeida
FCSH-UNL;
1
2
Stephen Turnbull, Fighting Ships of the Far East 2 – Japan and Korea AD 612-1639. New Vanguard Collection n.63, Oxford, Osprey Publishing, 2003, p. 16
A tradição de construção naval coreana descende, naturalmente, da tradição chinesa, tanto no que diz respeito às técnicas usadas como aos modelos dos navios. Os navios coreanos seriam, porém, mais robustos, e terão vindo a ter as suas características distintivas logo desde cedo. Mas como não seria
pertinente
apanhado
fazer
histórico
um da
fig. Kobukson (navio-tartaruga) War Memorial Museum Seoul, Coreia do Sul.
construção naval na Coreia por inteiro em tão poucas páginas, começaremos com a dinastia de Choseon (1392-1897), visto ser com esta dinastia que a construção de navios para fins militares ganha especial ênfase. É também nos inícios desta dinastia, nos Anais de 1413 e 1415, que surge a primeira referência a navios-tartaruga, embora de uma geração cujo modelo difere substancialmente dos navios do Almirante Yi Sun Si, quase dois séculos mais tarde. Estes navios seriam uma versão melhorada dos antigos 귀선 (kweson), passando a ser chamados de 거북선 (keobukseon). Apesar de se tratar de um modelo melhorado, a sua principal função está de facto muito aquém do famoso modelo do Almirante. Segundo a documentação de 1415 “o navio-tartaruga é capaz de investir 2
contra a frota inimiga e causar dano aos veleiros inimigos sem incorrer em nenhum ele próprio”.
Na verdade, o navio-tartaruga do famoso Almirante trata-se de uma evolução do navio de uso militar mais recorrente na Coreia, sobretudo a partir desta altura, o 판옥선 (panokseon). O panokseon é o resultado de uma evolução natural nas embarcações coreanas, se tivermos em conta o constante assalto às suas costas por piratas japoneses, também conhecidos por wako. O tipo de ataque preferido destes piratas, aliás, de qualquer guerreiro japonês, é a abordagem directa aos tripulantes no convés, transformando assim as embarcações numa plataforma que prolonga o estilo de combate usado em terra para o mar.
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Procurando defender as tripulações do confronto directo com os atacantes, é desenvolvido um segundo convés, criando uma cobertura que protegia os tripulantes do navio, ao mesmo tempo que oferecia uma plataforma para os combatentes. A embarcação apresentava um castelo rudimentar no convés para o capitão do navio. Tipicamente coreanos, eram de construção robusta, e teriam por regra entre 15 e 21 metros, aproximadamente, sendo que o maior a ser registado teria 33 metros. A tripulação seria de 125 homens, e todos teriam velas e remadores como sistemas de propulsão. Seriam também ornamentados com pinturas de dragões nos lados. Estes navios constituíam a maioria das embarcações militares da frota coreana, mesmo durante as invasões japonesas no ano de 1592.
O navio-tartaruga do Almirante Yi Sun Sin Sendo o grande herói da invasão japonesa da Coreia,
a
comummente
tradição a
autoria
histórica do
atribui-lhe
navio-tartaruga.
Contudo, sendo ele o impulsionador da construção deste modelo melhorado, nunca em toda a narrativa de Nanjung Ilgi (o seu diário de guerra) se afirma como criador deste navio, admitindo terse servido de desenhos pré-existentes para a construção do mesmo. Não sendo o criador original deste modelo, as alterações feitas por Yi Sun Sin resultam numa melhoria tão significativa que merece, sem dúvida alguma, ter o navio-tartaruga associado ao seu
fig. Estátua de Yi Sun Sin em Seol, Coreia do Sul.
nome. Este navio-tartaruga desenvolvido pelo Almirante e os seus subordinados tem como base a estrutura do panokseon, larga e de construção sólida. Apesar de ser suficientemente robusto para investir contra navios inimigos, a sua principal função não seria essa, divergindo bastante da descrição do modelo que o antecedia por 200 anos. A construção de uma cobertura também não seria exactamente uma novidade nas embarcações coreanas (uma vez que na tradição chinesa existem alguns géneros de navios cobertos). Mas seria precisamente nesta cobertura que estaria a inovação mais significativa: o castelo era removido, e esta abrangia todo o convés, tornando-o completamente fechado. Ao cobrir todo o espaço, adquiria uma curvatura que se assemelhava a uma carapaça de tartaruga, recebendo assim o seu nome característico.
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Yi Sun Sin recebe autorização para a construção de alguns destes navios para a sua frota graças a muita persistência da sua parte, pois ainda que a iminência de um ataque japonês não fosse 3 Roger Tennant, A History of Korea, New York, Kegan Paul International, 1996, p. 164.
4
Stephen Turnbull, op. cit., p. 18.
5
desconhecida, intrigas e jogos de influências procuravam desacreditá-lo e até demovê-lo do seu 3
posto . Não fosse pela convicção e emoção com que o Almirante arguiu a sua causa ao Rei Seonjo, a frota coreana teria permanecido como se encontrava, enfraquecida em número e em prontidão. As primeiras referências ao navio-tartaruga surgem no seu diário apenas meses antes da primeira invasão japonesa de 1592, e o último disparo de ensaio dos canhões apenas um dia antes da chegada dos japoneses a Busan e da Batalha de Tadaejin.
Idem, ibidem, p. 18.
Mas é apenas durante a Batalha de Sacheon que o Almirante nos descreve mais detalhadamente o navio, que transcrevemos em seguida não directamente da fonte, uma vez que não conseguimos acesso à mesma, mas da já citada publicação da Osprey: “Anteriormente mandei construir especialmente um navio-tartaruga com uma cabeça de dragão, da qual pudéssemos disparar os nossos canhões, e com espigões de ferro na sua carapaça para perfurar os pés dos nossos inimigos quando tentassem abordar o navio. Por ter a forma de uma tartaruga, os nossos homens conseguem ver do seu interior, mas o inimigo não consegue ver pelo exterior. Move-se com tal agilidade que se consegue lançar para o meio de centenas de navios inimigos em qualquer clima para os atacar com balas de canhão e 4 lança-chamas.” Esta descrição, embora eloquente, não nos oferece informação muito detalhada. Só após a sua morte em batalha, no ano de 1598, conseguimos pormenores mais específicos sobre o respectivo navio, mas escritos pelo seu sobrinho: “Foi desenvolvido outro navio de guerra especial. De tamanho aproximado ao panokseon, com a superfície feita de pranchas de madeira, com passagens estreitas onde os marinheiros se podem movimentar. Toda a superfície do navio, além destas passagens, é coberta de espigões para que o inimigo não possa caminhar sobre ela. Na proa encontra-se uma cabeça de dragão, de onde pode ser disparado um canhão; outro canhão está instalado na popa. Existem seis portas de armas em cada lado. É chamado de naviotartaruga pela sua aparência. Durante a batalha, os espigões são escondidos com tapetes de palha ao investir contra a frota inimiga.”
5
Da escassa informação que podemos extrair destas descrições, e a crer nas suas semelhanças com o já conhecido panokseon, embora ligeiramente mais compridos (entre 30 e 37 metros), parece-nos seguro afirmar que este navio-tartaruga, de estrutura larga, apresentasse um casco com um formato em “U”, o que, embora lhe retirasse velocidade de cruzeiro, o tornaria bastante manobrável, capaz de rodar sobre o seu próprio eixo, agilidade que o próprio Almirante destaca no seu diário.
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Teria também dois mastros e duas velas, bem como remos que lhe conferiam a agilidade já referida. Independentemente de algumas incongruências com as descrições que o Almirante e o seu sobrinho fizeram do navio, as várias representações do navio, bem como a sua semelhança com o já conhecido panokseon, tornam mais provável a presença de oito remos de cada lado, podendo ser manobrado por cerca de 70 remadores, dispondo geralmente de seis canhões de cada lado (chegaria a ter até onze portas de canhão por lado), bem como duas portas na proa e na popa do navio. Apesar de nas descrições constar o uso da cabeça de dragão com um canhão no seu interior, nenhuma das representações, bem como as actuais réplicas, apresentam o espaço ou a estrutura necessárias para albergar um canhão, por mais pequeno que fosse, de maneira que nos parece muito mais provável o uso da cabeça de dragão para a libertação de alguma espécie de fumo, com o objectivo de obstruir a visão dos navios inimigos e incapacitar as suas manobras. Aos cerca de 70 remadores acresciam entre 50 a 70 soldados e o capitão.
fig. Navio-Tartaruga, ilustração de Wayne Reynolds, Osprey.
Apresentados todos estes dados, que só por si já levantam muitas dúvidas, sobretudo em questões de quantidade, referiremos por último a característica mais emblemática deste navio mas ao mesmo tempo a mais controversa, mais concretamente no que concerne ao material que a constituiria, a “carapaça” do navio. O principal tema de debate em torno desta cobertura é o do uso ou não de placas de ferro na sua composição. A tendência apresentada pela historiografia coreana é a de pura e simplesmente não questionar esse facto (todas as réplicas que descobrimos do navio apresentam chapas de ferro na carapaça), o que faz deste navio-tartaruga o primeiro navio revestido a ferro do mundo.
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Contudo, não existe qualquer fonte coreana deste período que nos indique essa informação; a única
6 Idem, ibidem, p. 20.
7
Idem, ibidem, p. 21.
referência feita quanto à existência de ferro na cobertura será a que Yi fez no seu diário relativamente aos espigões, como já mencionámos anteriormente. Existem, contudo, fontes japonesas que se referem a estes navios como cobertos de aço, facto que teria
fig. Couraça de uma réplica de um Navio-Tartaruga. War Memorial Museum Seul, Coreia do Sul.
motivado um pedido de Hideyoshi para usar placas de ferro na protecção dos seus navios, após uma estrondosa derrota . Também várias réplicas de hoje em dia, das que temos conhecimento, exibem placas de ferro na cobertura, supostamente resultado da interpretação dos desenhos do século XVIII. Mas o historiador Samuel Hawley discorda deste uso tão facilitado de ferro, um material relativamente caro, sobretudo se tivermos em conta os poucos recursos de que o Almirante Yi Sun Sin dispôs para construir estes navios. Para além dos custos de construção, pesa também o facto de os japoneses não se servirem de artilharia pesada nos seus navios (nem no campo de batalha), não havendo por isso uma necessidade imperiosa de defender tão robustamente um navio que apenas seria alvo de artilharia de baixo calibre e de tentativas de abordagem. Também existe uma forte possibilidade, hipoteticamente, de as fontes japonesas exagerarem as qualidades dos navios inimigos, de maneira a tornar a derrota o menos vergonhosa possível. Turnbull por sua vez argumenta que o uso de placas de metal nas embarcações chinesas não era um facto desconhecido (o que teria referido no volume publicado anteriormente a este que já citámos), e que seria perfeitamente possível o seu uso nas embarcações coreanas. Naturalmente seria possível, mas parece-nos improvável simplesmente porque não havia necessidade, além do facto desses navios chineses, muito primários e de frágil construção em comparação com os coreanos, não apresentarem semelhanças suficientes com este modelo do navio-tartaruga para comparação. Quanto ao armamento utilizado, mais uma vez destaca-se a tradição chinesa presente nas técnicas militares navais dos coreanos, preferindo sempre o bombardeamento à distância por oposição à abordagem, preferida pelos japoneses. Desde cedo os coreanos desenvolveram a sua artilharia a partir da tecnologia Ming, e o uso de canhões a bordo de navios é quase imediato. Apesar de também se servirem de artilharia leve a bordo dos navios, o uso de canhões era preferido. Existiriam quatro tipos de canhões, do maior para o mais pequeno, o chonja (céu), chija (terra), hyonja (preto) e hwangja (amarelo). O uso de arcabuzes também está documentado, mas apenas a partir do primeiro cerco de Chinju em 1593. Utilizavam como projécteis bolas de pedra e ferro, mas o preferido era sem dúvida setas de madeira com pontas de ferro. As maiores teriam quase três metros, disparadas dos chonja. Além do seu impacto com a ponta de ferro ser tão destrutivo como o de uma bola de canhão, podiam também ser
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facilmente usadas como setas incendiadas.
A batalha de Sacheon – 1592 Apesar dos vários avisos recebidos e das poucas iniciativas por parte de oficiais coreanos que conseguiram antecipar os acontecimentos, no dia 23 de Maio a impressionante força de cerca de 160.000 homens lançada por Toyotomi Hideyoshi sobre a Coreia não encontrou qualquer resistência ao atingir Busan, varrendo guarnições e cidades sem encontrar qualquer oposição
7 Michael E. Haskew, et al, Fighting Techinques of the Oriental World AD 12001860, New York, Thomas Dunne Books – St. Martin’s Press, 2008, pp. 238-239.
com o mínimo de eficácia ao longo da península. Apesar de uma boa parte dos oficiais coreanos terem abandonado os seus postos, deixando as já escassas forças coreanas desorganizadas e sem liderança, a frota liderada pelo Almirante Yi Sun Sin procurou encurralar os invasores através da destruição sistemática dos seus navios de transporte e de provisões. Combinando o conhecimento perspicaz de Yi sobre as correntes e marés com a tecnologia do navio-tartaruga, os japoneses perderam qualquer justificação possível para o excesso de confiança que exibiram em Sancheo, ao lançarem o seu levemente armado atake bune sobre a frota coreana aparentemente em retirada. Sabendo do estado das marés naquele local e da ostentosa soberba dos japoneses, o Almirante consegue atrair a frota inimiga para uma emboscada catastrófica para o invasor. A frota japonesa, reunindo-se junto ao porto
de
importantes
Sacheon, da
um
Coreia,
dos
mais
procurava
o
controlo das águas meridionais de modo a garantir um apoio logístico para a sua campanha na península. Ao receber a confirmação dos movimentos da frota inimiga, o Almirante Yi Sun Sin parte com uma força de 27 navios da sua base em Yeosu. No dia 29 de Maio, efectuado o reconhecimento às forças japonesas em fig. Ilustração da Batalha de Sacheon. War Memorial Museum Seul,
torno de Sacheon, o Almirante lança um
Coreia do Sul.
ataque simulado. Os seus navios aproximam-se rapidamente do porto, virando de seguida em direcção a mar aberto, atraindo os navios japoneses para fora da zona segura onde se encontravam ancorados. Assim que os japoneses se encontram dentro de alcance, os navios coreanos devastam um elevado número de navios inimigos com os seus canhões, antes que estes atinjam a distância necessária para o uso da sua artilharia de baixo calibre. Com o seu keobukseon, o Almirante Yi Sun Sin mergulha entre a frota japonesa, gerando o pânico e destruição entre as tripulações inimigas. Ao cair da noite a frota japonesa encontrava-se completamente destruída por uma flagrante superioridade táctica e de armamento.
7
Apesar de ainda ser um tema envolto em controvérsia, a verdade é que, revestido a ferro ou não, este navio era único no seu tempo pelas suas características particulares, navegabilidade ágil, estrutura sólida e fortíssimo poder de fogo, e terá sido absolutamente indispensável para marcar a diferença nos conflitos que sucederam a invasão japonesa à Península Coreana em 1592.
49
Bibliografia Bibliografia Geral HAN, Woo-Keun The History of Korea, Korea, The EUL-YOO Publishing Company, 1970. LEE, Ki-Baek A New History of Korea, London, Harvard University Press, 1984. TENNANT, Roger A History of Korea, New York, Kegan Paul International, 1996. Bibliografia Específica HASKEW, Michael E., et al Fighting Techinques of the Oriental World AD 1200- 1860, New York, Thomas Dunne Books – St. Martin’s Press, 2008. TURNBULL, Stephen Fighting Ships of the Far East 2 – Japan and Korea AD 612-1639. New Vanguard Collection n.63, Oxford, Osprey Publishing, 2003.
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Sabores com História ... A primeira referência história à pesca do atum no nosso país data do ano 151 da nossa era, no actual território do Algarve, sendo os cónios (povo ibérico submetido pelos romanos) quem se encarregavam da pesca. com vísceras de vários peixes e mariscos, depois de rigorosamente confeccionado, constituindo um manjar muito apreciado no entanto apenas acessível aos mais abastados. Esta pesca foi prosseguida pelos romanos e pelos árabes (responsáveis pela evolução tecnológica das pescas posteriormente),que nos legaram alguma da tecnologia e terminologia. Em 1249, data da conclusão da conquista do território nacional aos mouros, o rei D. Afonso III decide reservar para a coroa todos os direitos sobre a pesca do atum, sob a chancela das "Pescarias Reais". Com D. Fernando (meados do séc. XIV, cerca de um século depois) estabeleceram-se no Algarve os primeiros sicilianos e genoveses. Foram estes povos italianos que iniciaram os portugueses na arte da pesca do atum, com grande sucesso, uma vez que se tornou imediatamente numa actividade extremamente próspera, matendo-se assim até ao séc. XVII.
... A História com sabor www.tastin-gourmet.com
Comentário Crítico ao Filme:
HORIZONTES DE GLÓRIA (1957), DE STANLEY KUBRICK João Camacho 1
Investigador do Instituto PAEHI; Membro integrado do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa; Mestre em História Antiga pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;
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Há precisamente 100 anos (completados no dia 28 de Junho de 2014), o activista político Gavrilo Princip, membro da «Mão Negra» (também conhecida como «Unificação ou Morte»; em colaboração com outros activistas), organização sérvia de carácter nacionalista, dispara sobre o arquiduque Franz Ferdinand, vitimando desta forma o herdeiro do Império Austro-Húngaro. Um mês depois, na sequência de um extenso ultimato feito pelo Império, que a Sérvia recusou observar na totalidade, os Austríacos declararam guerra ao país balcânico. Foi este acto que catalisou as diversas tensões geopolíticas, despoletando sucessivas declarações de guerra que desencadearam a Primeira Guerra Mundial, originando, na Europa dos nacionalismos, numa Europa excessivamente «confiante» na improbabilidade de um conflito global após mais de quatro décadas de contínuos desenvolvimentos técnicos e convivência «pacífica», uma contenda que vitimou cerca de dez milhões de pessoas, desalojou e/ ou desestruturou as vidas de outras dezenas de milhões, para além de ter lançado alguns dos principais alicerces do segundo e (ainda) mais sangrento tumulto militar, à escala mundial. É em 1957, ainda com todas as consequências dos eventos militares bem presentes na geração de então (não era preciso ser muito velho para ter «vivido» duas guerra mundiais!), que o jovem Stanley Kubrick, em fase de afirmação, aceita o convite de Kirk Douglas feito através da sua companhia de produção Bryna, para dirigir e escrever Paths of Glory, baseando-se no romance homónimo de Humphrey Cobb (de 1937). A acção desenrola-se na França, em 1916 (as filmagens decorreram na Alemanha), numa fase em que o «furor» militarista da «guerra relâmpago» havia esmorecido, sobretudo na opinião pública, em virtude do imobilismo que caracterizou largos períodos da «Frente ocidental». O absurdo das posições é sentido, no filme, pelas alusões ao «optimismo» das tropas, que remetia, no fundo, para avanços territoriais insignificantes e temporários. Não obstante, o jogo militar esboçava-se na rectaguarda. Na reunião inicial giza-se um plano para conquistar a Ant Hill, um pequeno monte a meio caminho da «terra de ninguém» (locais que ficaram conhecidos como as «colinas dos cem mil mortos»), entre as linhas de trincheiras de ambos os oponentes.
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A guerra havia chegado a um impasse, muito devido às insuficiências técnicas da indústria militar no fornecimento de soluções eficazes para transpor esse método de posicionamento. Porém, era necessário manter a «máquina» a funcionar: «Achamos que estamos a fazer um bom trabalho a comandar esta guerra», diz o general Broulard (Adolphe Menjou) ao coronel Dax (Kirk Douglas) ao transmitir-lhe o plano de uma ofensiva pejada de irrealismo. O desastre é inevitável: o ataque gora-se, os soldados batem em retirada e, para espanto de Dax, os sobreviventes são acusados de cobardia e três deles condenados à morte, servindo de exemplo para futuros recalcitrantes e ajudando a encobrir a incompetência do oficial. O filme consiste num retrato satírico, não só da desumanidade intrínseca da própria guerra, mas principalmente do exército francês e dos seus oficiais superiores (integrados no lado «bom» da contenda), que por sua vez se viam confrontados, em 1957, com graves problemas pelas notícias de torturas e massacres na caótica guerra da Argélia. Naturalmente, o filme é censurado em França (e em Portugal), tendo sido exibido apenas na década de 70. Mas a sátira vai mais longe. A Marselhesa colocada na abertura do filme dá o mote para o que constituiu o grande impulsionador das «massas» para a guerra, o «instinto de manada» citado pelo major Saint-Auban (Richard Anderson), parafraseando a expressão de Friedrich Nietszche (em que este designa uma moral específica, inerente a uma grupo, que dispensa qualquer moral individual que não esteja em consonância com a comunidade), é na verdade, aqui, a aderência cega ao patriotismo. O patriotismo é o grande engodo nesta real politik, aqueles três homens não morreram pela pátria (curiosa a cena da execução, em que a disposição dos condenados, a presença do padre e dos símbolos religiosos remete para um qualquer tribunal inquisitório), antes acabam por ser vítimas dos seus próprios compatriotas. A execução tem efeitos nas «massas» de soldados, mas Dax compreende e confronta o general Mireau (George Macready), a quem se devia a irresponsável acção: «O patriotismo é o último refúgio de um canalha». Foi Samuel Johnson (1709-1784), um religioso e conservador escritor britânico, quem o disse, alertando, no século XVIII, ainda antes da Revolução Francesa, para os perigos da instrumentalização desse patriotismo, destrinçando-o do genuíno amor à pátria. No final, o desrespeito à hierarquia (que por si se opõe à aprazível fraternidade que, essa sim, agrada ao espírito humano – veja-se os dois únicos momentos de alegria em todo o filme, no contacto com as mulheres e a música), não tem resultados práticos: Dax volta à frente de batalha, conduzindo outros soldados num gesto que se adivinha suicida. Quanto ao general Mireau, ficamos sem saber qual o seu destino, mas na obra de Humphrey Cobb há alusões a um general Géraud Réveilhac que, não obstante ter ordenado a um comandante que disparasse sobre parte das suas tropas após um ataque falhado a uma posição alemã, acabou condecorado no final da guerra.
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Na senda de outras obras como J’Accuse, de Abel Gance (1919), The Big Parade, de King Vidor (1925), ou do aclamado All Quiet On The Western Front, de Lewis Milestone (1930), Paths of Glory é um importante filme anti-militarista, de um realizador que dedicaria ainda outra obra à temática com Full Metal Jacket, de 1987. O estilo de Stanley Kubrick está já, em Paths of Glory, bem delineado. Tecnicamente, o uso dos travellings descritivos (especialmente o que acompanha a visita do general Mireau às trincheiras, onde interroga alguns soldados, entre eles os futuros fuzilados, o que leva os condenados ao poste de execução) e da grande angular (o julgamento, as cenas de batalha), a atenção à fotografia e à iluminação (a exploração da luz solar no julgamento e na execução, e das sombras e contrastes na cenas da prisão e do ataque falhado à trincheira inimiga), mostram traços característicos da sua realização, para além de ter proporcionado determinadas inovações (nomeadamente nos referidos travellings). A temática, sobretudo, pelo impacto e escândalo (à altura) é também um dos seus mais importantes e transversais registos. Marcando o centenário do início da Primeira Guerra Mundial, esta é uma importante obra cinematográfica que prescrevemos à memória histórica.
BIBLIOGRAFIA
HOBSBAWM, Eric, A Era dos Extremos: história breve do século XX: 1914-1991, Lisboa: Presença, 2002. KROHN, Bill, Masters of Cinema: Stanley Kubrick, London: Phaidon Press, 2010.
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Roteiro Histórico: Marvão, de Supresa em Supresa 1
Semião Pólvora
Professor de História;
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Para compreendermos a importância histórica de Marvão e do seu termo, devemo-nos remeter ao século V da nossa era. Encontramos uma cidade próspera na planície junto ao rio (atual Sever), protegida dos ventos agrestes por montanhas a norte a oeste e parcialmente a sul. Edificada num terreno ligeiramente inclinado a leste, com a sua porta sul virada para Emerita Augusta, a militarizada capital da Lusitânia. Claro que estamos a falar de Ammaia, a próspera. Desta civitas partiam caravanas carregadas de cristais e vidros para todo o império, onde eram vendidos a bom preço, já que a sua qualidade era superior. Com o fim do império, muitas são as cidades romanas que perdem importância. Edificadas em terrenos planos e desprotegidos, estas civitas estavam à mercê das investidas dos povos que foram invadindo os territórios imperiais. Ammaia foi uma dessas urbes que foi perdendo importância. Consta também que terá sido vítima de uma catástrofe natural que a terá parcialmente destruído. Foi assim abandonada pelos seus habitantes, sendo a partir dessa época substituída pela fortificada Marvão, muito mais adaptada à conjuntura que então se vivia. Hoje encontra-se pedra talhada, oriunda desta antiga urbe, em inúmeras construções dos concelhos limítrofes, alguns destes vestígios estão bem visíveis em casas e arruamentos das redondezes. Durante séculos foi considerada a “pedreira dos padres”, tal era a frequência com que ali se iam levantar carradas de pedra para as construções religiosas. Não obstante esta contínua delapidação, ainda se encontram no local onde existiu a cidade vestígios em abundância, que nos permitem confirmar a sua enorme importância no contexto do império romano. Esses vestígios estão atualmente a ser levantados por arqueólogos que ali estão a efetuar escavações.
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À medida que estes trabalhos arqueológicos avançam vão surgindo documentos históricos, escritos e não escritos, da maior importância: lucernas, jóias e outros objetos de adorno, moedas em grande quantidade, objetos de uso doméstico, cerâmicas (sigillata e comum) além de uma assinalável quantidade de aras votivas. No terreno, a descoberto vão ficando as ruínas das edificações (casas particulares, edifícios públicos), os arruamentos e, claro, o esplêndido fórum. O, ainda pequeno, museu ali existente expõe uma quantidade assinalável dos materiais que vão sendo encontrados, prova material da grandiosidade desta civitas. Merece igualmente destaque o moderno laboratório ali instalado, o qual permite o tratamento de muitos dos materiais, nomeadamente metálicos e cerâmicos. Tivemos o privilégio de o poder visitar, este contacto direto com os trabalhos de limpeza e recuperação ali desenvolvidos, permitiram-nos observar o “milagre do renascimento” de alguns documentos históricos que pareciam irremediavelmente corroídos pelo tempo.
O uso de tecnologias de ponta no terreno, nomeadamente o geo-radar, permitem antever a grandiosidade de toda aquela cidade, ao mesmo tempo que orientam as equipas de trabalho no terreno, poupando muito tempo. Seria injusto esquecer que tudo isto tem sido possível graças à ação da Fundação Cidade de Ammaia, a qual tem estabelecido protocolos com Institutos e Universidades portugueses e estrangeiras, permitindo uma intensa atividade de natureza científica, ao mesmo tempo que dá a possibilidade aos estudantes e professores de praticarem in loco. De Ammaia avista-se a leste a muralha de Marvão, e logo uma crescente admiração se apodera do visitante. Situada no alto da montanha, para quem a observa de longe, transmite imediatamente a ideia de segurança, pela altivez que adquire no alto da montanha de encostas abruptas e inacessíveis. Para o visitante atual, turista pacífico sem a motivação da conquista, esta visão da vila muralhada provoca uma enorme curiosidade. Antes de subirmos à vila de Marvão, desloquemo-nos até à chamada Portagem e, passando um complexo de lazer que aproveita inteligentemente a frescura das águas do rio Sever, deparamos com uma ponte de traça antiga.
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Nela ainda se podem observar traços da primitiva construção romana, mas é uma outra particularidade, que a torna importante e única. Na margem direita do Sever, junto a esta ponte, está uma placa em pedra com uma inscrição. Nela se indica ao visitante que por ali passaram os primeiros judeus expulsos de Castela (ver foto…) Entre eles estariam os progenitores de Garcia de Orta, (o médico e botânico, autor do célebre livro “Colóquio dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia”), que acabariam por se fixar na vizinha Castelo de Vide onde viria a nascer o citado botânico e médico. Esta migração veio engrossar a imensa população de judeus e cristãos novos que povoavam esta região raiana, como nos diz Maria José Ferro.
Faz todo o sentido formular aqui uma pergunta direta e banal. -Conhece Marvão? Alguns dirão que não, outros, mais convictos, pensarão que sim. Contudo esta vila fortificada esconde pormenores, e são esses pormenores que fazem diferença, uma grande diferença. Não temos a pretensão de conseguir revelar aqui todo o encanto desta vila. Por mais palavras que possamos escrever, ou fotografias que acrescentemos não será possível uma descrição fiel deste conjunto que se deve visitar. As particularidades são uma constante em cada rua que se percorre. Numa das principais entradas da vila, o visitante lê as boas vindas em inúmeros idiomas. Claro que são bem vindos, os pacíficos visitantes são para muitos dos habitantes de Marvão a principal fonte de receita. É preciso andar devagar em Marvão, pois a cada passo descobre-se um motivo de interesse que pode estar numa portada de uma casa particular, num nicho embutido numa parede, no pano de tradicional rendilhado que decora uma janela. O próprio Museu Municipal, sendo de pequena dimensão, é uma mescla de assuntos e de épocas, ali temos vestígios da pré-história, passando pela proto-história de Portugal chegando até aos nossos dias. Contém um pouco de tudo, tanto da História local até à História nacional. Vamos subindo e, ao chegarmos ao topo do castelo, olhando em redor desfruta-se de um horizonte de 360 graus, que nos permite observar desde terras de Espanha até ao interior do Alentejo.
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Como na esmagadora maioria dos castelos de Portugal, também em Marvão encontramos as sólidas muralhas da guerra da restauração, foram elas que permitiram aguentar o embate das investidas das tropas espanholas, cujo comando Filipe IV entregou a D João de Áustria. Claro que para se erguerem estas muralhas deitaram-se abaixo as velhas torres medievais, perfeitamente obsoletas face ao poder de fogo dos canhões do século XVII. No entanto, em Marvão ainda encontramos muralhas medievais misturadas com as eficazes fortificações seiscentistas, (ver foto) numa equilibrada simbiose, coisa rara nas nossas vilas e cidades que apresentam vestígios de fortificações. Devemos acrescentar que existe um grupo de trabalho a reunir argumentos para que esta vila e o seu enquadramento sejam classificados como património da humanidade da UNESCO. Desejamos-lhes os maiores êxitos, para que com esse reconhecimento, se faça justiça a esta vila museu.
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Vale a pena investigar mais um pouco e, antes de partir para terras de Marvão, pode consultar alguma da bibliografia que aqui indicamos. Bibliografia: Corsi, C., Vermeulen, F. Elementi per la ricostruzione del paesaggio urbano e suburbano della città romana di Ammaia in Lusitania. Archeologia Aerea III: 13-30 2006. Ficalho, Conde de. “ Garcia de Orta e o seu tempo” Lx 1866. Paço, Afonso do. “ População pré e proto- histórica do concelho de Marvão”, Lx 1952. »
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“ Carta arqueológica do concelho de Marvão” Lx 1953.
Pereira, S. A Cidade Romana de Ammaia. Escavações Arqueológicas 2000-2006. Ibn Maruán, Nº. Especial, Marvão. 2009. Sidarus, A. Ammaia de Ibn Maruán: Marvão. Ibn Maruán 1: 13-26. 1991 Tavares, Maria José ferro. “Os Judeus em Portugal no século XIV” Guimarães Vasconcelos, José Leite de. “Religiões da Lusitânia” Edição/reimpressão” Lx 1988
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As Grandes Datas Julho a Setembro Batalha de São Gotardo 1 de Agosto de 1664 – 350 Anos
Conquista de Coimbra 9 de Julho de 1064 – 950 Anos Fernando I de Leão e Castela conquista Coimbra ao Islão. Nunca mais cairá em mãos muçulmanas.
Os Habsburgos, liderados por Raimondo Montecuccoli, enfrentaram E derrotaram o Império Otomano, Liderado Köprülü Fazıl Ahmed. A Paz de Vasvár é celebrada entre as Duas forças.
London Agreement 5 de Setembro de 1914 – 100 Anos As forças dos aliados, Inglaterra, França e Rússia assinam este acordo Que visa que nenhum dos lados procure estabelecer paz com as Impérios Centrais.
Balduíno IV Rei de Jerusalém 11 de Julho de 1174 – 840 Anos Após a morte do pai, Balduíno IV Sobe ao trono com 13 anos. Será Relembrado como o rei “Leproso” Devido à doença que padecia.
Grande Fogo de Roma 19 de Julho de 64 – 1950 Anos Destruição parcial de Roma Por um grande incêndio. Criação Da lenda de que Nero teria sido o principal instigador do incêndio.
Restabelecimento da Companhia de Jesus 7 de Agosto de 1814 – 200 Anos O Papa Pio VII restabelece a Companhia De Jesus, que teria sido declarada extinta Em 1773, através da Bula Papal Sollicitudo omnium ecclesiarum.
Batalha de Chaldiran 23 de Agosto de 1514 – 500 Anos
Batalha de Bouvines 27 de Julho de 1214 – 800 Anos Filipe II da França derrota Otão IV Do Sacro Império Romano pondo fim à Guerra Anglo-Francesa.
Selim I, do Império Otomano, Derrota Ismail, do Império Safávida. O Império Otomano Passa a controlar grande Parte da Anatólia e o Norte do Iraque.
Estreia da Mary Poppins 27 de Agosto de 1964 – 50 Anos O filme da Disney que obteve mais Prémios a nível de cinema, estreou Mundialmente neste dia. É ainda hoje O filme que gerou maior recorde De bilheteira da Walt Disney.
Tibério Imperador de Roma 18 de Setembro de 14 – 2000 Anos Tibério é confirmado como Princeps, Pelo Senado e ascende ao poder em Roma.
Tratado de de Blois 22 de Setembro de 1504 – 510 Anos O Tratado de Blois é assinado por Filipe I de Castela, Maximiliano I De e Luís XII de França assinam Este Tratado que visava ligar as Famílias reais através de um Futuro matrimónio.
Batalha de Auray 29 de Setembro de 1364 – 650 Anos Batalha decisiva para a Guerra da Sucessão da Bretanha. João de Montfort Apoiado pelos ingleses, derrotou Carlos de Blois. Com esta vitória Os Monfort são reconhecidos como A linha vigente no ducado da Bretanha. João V, filho de João de Monfort, não Prestará homenagem ao Rei de Inglaterra, Apoiando o Rei de França, Carlos V.
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Combate Medieval
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Um novo desporto à conquista de territórios 1
Licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;
Alexandra Duarte
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Com um número de adeptos cada vez maior e com praticantes em todos os Continentes, surgiu há alguns anos, uma nova modalidade desportiva – o combate medieval – que na realidade pouco tem de novo. Esta modalidade, que conta já com praticantes em Portugal, é o resultado de uma conjugação entre as modalidades desportivas do tipo full-contact, a esgrima medieval e o estudo da História militar da Idade Média. Já há cerca de 10 anos que vários países, principalmente da Europa de Leste, têm eventos nacionais, associados ou não a eventos de recriação histórica, onde, se recriam batalhas medievais ou mesmo torneios, com combates nas modalidades de 1 contra 1 ou 5 contra 5 ou mesmo “melées” onde a dureza dos confrontos nos faz pensar em como seriam os confrontos armados na Idade Média e a semelhança entre esta e a actualidade. Ora, em 2009 uma união de alguns desses países viria permitir a criação de um projecto que resultou num primeiro campeonato “mundial” da modalidade de combate medieval, intitulado por Batalha das Nações (Battle of the Nations) que teve lugar na Ucrânia, onde combatentes oriundos de 4 países se defrontaram sob um conjunto de regras comuns, estipuladas de forma a aproximar a modalidade às competições desportivas modernas, diminuindo-se os riscos de outrora, mas também mantendo um elevado rigor histórico tanto em armas e armaduras usadas, como na indumentária medieval dos participantes. A organização do evento, a HMB (Historical Medieval Battles), criou um conjunto de regras e estipulou a criação e formação de juízes de liça, permitindo assim aos apaixonados pela História militar medieval e desportos de combate defrontarem-se em duelos ou combates de grupo ou mesmo em grandes batalhas, desde que cumpram com as normas de segurança que estipulam desde a espessura mínima de aço admitida para os elmos, ao peso, dimensões e espessura das armas, as zonas corporais admitidas para impacto e as interditas, bem como facto de o combatente ter o dever de apresentar-se na liça com equipamento historicamente coerente com uma determinada época de modo a evitarem-se miscelâneas ou adicionarem-se peças de equipamento ou indumentária fantasistas a uma modalidade que se pretende com elevado rigor histórico.
62 fig. Combatente dos U.S.A. em Belmonte – Espanha (2014).
Fig. 2 – Momento da grande batalha “todos contra todos” – Aigues – Mortes / França (2013)
No acto de inscrição para um campeonato/torneio da modalidade, os combatentes, além dos seus imprescindíveis dados pessoais, devem enviar fotografias onde envergam a armadura que pretendem usar na competição, indicando qual o período histórico que pretendem recriar. As fotografias são analisadas por um comité criado propositadamente para o efeito, que irá verificar se as peças coincidem com mesmo período histórico e decidir se permitem a participação ou não desse candidato, podendo dar-lhe indicações preciosas sobre determinadas falhas ou situações a corrigir. Sempre que um combatente pretenda fazer uso de uma determinada peça de equipamento ou arma considerado “invulgar” ou menos conhecida deve de apresentar uma pequena pesquisa onde se terá fundamentado para poder fazer uso dessa peça, indicando as suas fontes. Embora em Portugal já houvesse há alguns anos a esta parte, alunos de salas de armas e recreadores históricos que elevassem a fasquia da dureza dos seus combates, a verdade é que então se praticavam estes combates como meios de demonstração ao público ou pelo prazer de desafiar um companheiro de armas para um duelo mas sem um objectivo verdadeiramente competitivo a nível de modalidade. Ora em 2012, pela primeira vez, um combatente português, Maurício Ramos, resolveu aventurar-se para além das fronteiras lusas e a título individual participou num torneio francês da modalidade, na localidade de Montbazon – França. Foi aqui criado o estímulo necessário para que mais amantes portugueses da modalidade se lhe juntassem e em Maio de 2013, na localidade de Aigues-Mortes no sul de França, havia já 3 combatentes presentes num campeonato do mundo “Batalha das Nações”. Neste mesmo cantinho francês, banhado pelo sol e pelo mar e com o cenário fantástico da muralha medieval da cidade ao fundo, encontraram-se e confrontaram-se combatentes de países tão diferentes como o Japão, a Nova Zelândia; a Argentina; França; Dinamarca; Austrália; Polónia; USA; Ucrânia; Alemanha; Espanha; Rússia; Israel; etc… todos partilhando a mesma paixão. À primeira vista, para o espectador menos preparado, principalmente os confrontos por equipas podem assumir um aspecto de violência brutal, desnecessária talvez e até causar arrepios a quem vê. Num confronto de 21 contra 21 ou 16 contra 16 é vulgar ver-se o pó que é levantado no ar após a ordem do juiz de liça: Fight! Principalmente para quem procura numa primeira abordagem os vídeos publicados abundantemente na internet, maioritariamente feitos por particulares que só gravam determinados momentos dos confrontos, pode ficar com uma impressão muito negativa da modalidade e a respeito dos seus praticantes. Mas no fundo, não será muito diferente de qualquer outra modalidade desportiva de combate como o Karaté ou Taekwondo.
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Fig.4 – Portugal defronta o Japão na categoria masculina de 5 contra 5 (Belmonte – Espanha 2014).
O objectivo primário será o mesmo: marcar pontos e/ou colocar o adversário no chão, a grande diferença sem dúvida que reside no equipamento: a troca de um kimono em tecido por uma armadura em aço que pode atingir os 30 Kg. Desferir golpes poderosos num corpo fracamente coberto e com as mãos nuas ou atingir um corpo revestido a aço e camadas de acolchoamento com réplicas de armas. O que importa salientar nesta modalidade é que apesar de toda essa “violência” em campo, há um profundo respeito pelos oponentes e pelos juízes presentes e espírito de interajuda. O erguer um oponente do chão, após o final do confronto ou o abraçar quem nos defrontou momentos atrás faz parte dos gestos habituais entre os combatentes. A agressividade restringe-se ao necessário para cumprir as “regras do jogo” e fora da liça o convívio entre os diversos membros de nações diferentes é uma constante. Muito recentemente, entre os dias 1 e 4 de Maio, Portugal teve a sua maior representação de sempre num campeonato do mundo da modalidade com a participação de seis combatentes masculinos e duas combatentes femininas no campeonato da International Medieval Combat Federation que teve lugar na povoação de Belmonte (Cuenca) – Espanha, no espaço acolhedor do seu castelo do século XV. A divisão masculina competiu nas categorias de duelos com espada de 2 mãos e arma de haste e depois no confronto por equipas de 5 contra 5 onde defrontaram as já experientes equipas nacionais do Japão e Espanha. A divisão feminina, competiu nas categorias de duelos com arma de haste onde obtiveram para Portugal um 4º lugar e duelos com espada de 1 mão e escudo e depois na competição por equipas de 3 contra 3, onde foi obtida a medalha de prata. De referir que foi a primeira vez na história da modalidade que foi admitida a competição oficial de mulheres num campeonato mundial. A aderência das mulheres ao desporto não se fez esperar e para além de Portugal, estiveram presentes combatentes femininas de variadíssimos países: Espanha; Suíça; Bélgica; USA; Nova Zelândia; Luxemburgo; França; Japão; Polónia.
Fig.5 – Combatente feminina de Portugal defronta em duelo de espada e escudo a combatente da Polónia. (Belmonte – Espanha – 2014).
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Em Portugal, a disciplina de combate medieval continua pouco conhecida do público em geral e os custos do equipamento necessário são um pouco desmotivadores para quem procura praticar a modalidade. Para já, uma única equipa existe em território nacional: Manifestis Probatum e é desta equipa que têm saído os representantes nacionais para as diversas competições. Espera-se que com o tempo e uma maior e melhor divulgação, mais praticantes se deixem conquistar por esta modalidade e que no futuro seja possível a organização de torneios nacionais e internacionais em Portugal e que o público possa vibrar de emoção com estes eventos históricos.
Fig.6 – Cerimónia de abertura do Campeonato do Mundo em Belmonte- Espanha (2014)
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