Revista nº4 Setembro-Dezembro
D. João da Silva 2.º Marquês de Gouveia O labor da sua embaixada a Madrid Ibn Fadlan e os vikings do Volga
Ibn Fadlan e os Vikings do Volga
Problemas de Interpretação da
A Mitologia Comparada a Índia e as novas iniciativas do IPAEHI
Editorial A difícil crise por que passa Portugal tem levantado sérias questões e problemas para a investigação académica Nacional, sobretudo sobre o seu futuro. Como é sabido, a investigação universitária nacional é sustentada principalmente pela Fundação para Ciência e Tecnologia, particionando dezenas de bolsas para doutoramentos e pós-graduações, motivando assim jovens mundo laboral. Temos de ver que em troca por esta bolsa, o investigador tem de cumprir com uma investigação sólida e cumpridora, que possa trazer novos contributos para a sua área criando novos paradigmas, dúvidas e mesmo certezas. Tanto para o órgão que cede a bolsa como para o país tem atravessado nos últimos anos chegaram agora a este órgão que patrocina centenas de investigadores, obrigando-o a tomar medidas especialmente difíceis e que desvirtuam totalmente o futuro da investigação em Portugal. Vejamos que este discurso da crise económica actual pode servir para quase “aniquilar” a investigação jovem nacional. Dizemos quase, pois, certos investigadores tentaram fazer uma investigação pro bono ou suportada e apoiada por outros órgãos como a Fundação Calouste Gulbenkian ou a Casa Vélazquez. O decréscimo acentuado de ano para ano do número de bolsas vai criar menos mão de obra especializada para certas áreas gadores nas universidades e novo “sangue” para entrar nos quadros de docências das mesmas unidades educacionais. O efeito dominó é real e causará profundas debilidades a todo o sistema de outras – a questão dos júris da FCT é outro problema grave e complicado que vai causando mal-estar entre a instituição e novos candidatos às bolsas – travando uma querela entre a FCT e os centros de investigação por todo o país. A questão a que se pode chegar é se a Fundação para a Ciência e Tecnologia deverá ser a única entidade principal a patrocinar bolsas de investigação para doutoramentos e pós-graduações? Seria importante suscitar junto às grandes empresas e instituições nacionais a importância da investigação em Portugal e as vantagens em apoiar um investigador que consiga contribuir com esse trabalho profundo de investigação para a sua carreira e futuro e a própria empresa como entidade patrocinadora e fomentadora de investigação só na sua área de interesse. Talvez o sair da zona de conforto pode vir trazer novos benefícios e interesses para essas mesmas entidades económicas, nem que seja pela simples noção que têm um contributo para o futuro das universidades e da educação em Portugal.
O meu obrigado, de um colega e amigo, Francisco Isaac Lembrando o Passado, Pensando o Futuro
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Índice Agenda Cultural Externa A Hesed de Iahweh
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D. João da Silva, 2.º Marquês de Gouveia
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Ibn Fadlan e os Vikings do Volga
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A Mitologia Comparada, a Índia e as novas iniciativas do IPAEHI
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Comentário Crítico ao Filme: Al-Mummia – The Night of Counting the Years (Chadi Abdel Salam) Viagem à Síria - Mosteiro de S. Simeão Recriação da Batalha de Montiel
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Director da Publicação Francisco Isaac Redactora Chefe Catarina Almeida Conselho de Redacção João Camacho, Amanda Coelho, Catarina Almeida, André Silva, Mauro Costa, Ricardo Martins e Carolina Soares. Edição Laura Saldanha Laura Saldanha e Gonçalo Ribeiro Não nos pertencem quaisquer direitos de uso da imagem.
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Agenda Cultural do Instituto ...a não perder! A Violência no Mundo Antigo e Medieval. Congresso Internacional 17-19 de Fevereiro de 2014 Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa O Congresso, a realizar-se nos dias 17, 18 e 19 de Fevereiro de 2014 na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, pretende tratar, a partir da conjugação de vários campos de investigação, a temática da violência e o modo como foi interpretada, representada e narrada no Mundo Antigo e Medieval. Visando a partilha interdisciplinar do contributo das experiências e estudos de investigadores das várias áreas do saber, o Congresso Internacional “A Violência no Mundo Antigo e Medieval” pretende: - abordar os parâmetros da violência no contexto histórico-literário da Antiguidade; - analisar representações e leituras da violência na literatura e na cultura material; - pensar o Mundo Antigo e Medieval enquanto palco de violência nas suas diferentes manifestações. O congresso organiza-se em sessões plenárias, com participantes convidados, e sessões paralelas de comunicações por inscrição. Para mais importantes informações aceda a: http://www.fl.ul.pt/cec/2072-a-violencia-no-mundo-antigo-e-medieval.
3.º Ciclo de Conferências luso-italianas Circulação de mercadorias, pessoas e ideias (sécs. XV-XVIII) Janeiro de 2014 Centro de História Além-Mar
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Na sequência das problemáticas e pistas de investigação levantadas pelas intervenções que protagonizaram os dois ciclos de conferências luso-italianas (anos 2011 e 2012) surgiu um debate promovido pelos próprios investigadores da área e pelo público em geral que demonstrou um vivo interesse pelo assunto em questão. Assim, depois de ter sido feito um balanço das investigações mais recentes, bem como a apresentação dos novos estudos sobre a comunidade italiana em Lisboa na Idade Moderna (1º ciclo de conferências em 2011), prosseguiu-se com uma temática que permitiu cruzar os interesses dos investigadores da história da arte, história económica e história social. O ciclo Lisboa
dos Italianos (2012) despertou o interesse de um público heterogéneo que levantou questões ligadas ao tema da circulação de mercadorias, pessoas e ideias entre Itália e Portugal ao longo da Época Moderna. Por essa razão, este ano o CHAM organizou mais um ciclo de conferências que se tem debruçado sobre a importância das rotas comerciais e culturais entre Portugal e Itália, rotas repletas de agentes e intermediários, entre os quais os mercadores italianos residentes em Portugal e os cristãos-novos portugueses tiveram um papel de relevo, estabelecendo entre si relações de cooperação de extrema vitalidade e dinamismo. Já se deram a maioria das sessões, resta a de Janeiro de 2014, (data e hora a definir), na Embaixada de Itália em Lisboa, Gaetano Sabatini (Università degli Studi Roma Tre) trará o tema: Rapporti tra Roma e Lisbona nell’età dell’unione tra le corone; e Marigrazia Russo (Università degli Studi della Tuscia, Viterbo) falará das Oficinas tradutivas no século XVI entre Roma e Lisboa A entrada é livre, para mais informações aceda: http://cham.fcsh.unl.pt/actividades.aspx.
12 de Abril de 2014 “Marketing para a Cultura e Avaliação de Projectos e Actividades Culturais”, tem início a 12 de Abril de 2004 no Museu Nacional de Arqueologia, com a duração de (96 horas). É direccionado a todos os profissionais que exercem funções nas organizações culturais, tendo como objectivo actualizar conhecimentos, aperfeiçoar competências e adquirir novas ferramentas de trabalho. As inscrições podem ser feitas até 25 de Março. Para saber mais dirija-se a: http://www.museuarqueologia.pt/?a=17&x=3&z=3, telefone para 263 851 163 - 22 208 19 69 ou escreva para o E-mail: setepes@setepes.pt. Colóquio «O Frevor Religioso: Devoções e Sociabilidades Religiosas em Portugal» 20 Dezembro de 2013, das 14h30 às 17h30 Faculdade de Letras da Universidade do Porto Nesta sexta-feira irá decorrer na Faculdade de Letras do Porto o Colóquio «O Fevor Religioso: Devoções e Sociabilidades Religiosas em Portugal» com as conferências de: Deolinda Maria Veloso Carneiro (Estudante de Doutoramento em História da Arte Portuguesa, FLUP) A Pintura votiva e o estudo do traje; de Maria Inês Afonso Lopes (Estudante de Doutoramento em História da Arte Portuguesa e em Histoire des Religions, FLUP/École des Hautes Études en Sciences Sociales; CITCEM): Ritmos e matérias de religiosidade: as práticas e imagens ligadas ao culto das Almas do Purgatório no Este Transmontano; e de Nuno Resende(FLUP; CITCEM): Cruzeiros e invocações cristológicas no Barroco rural português: o caso da “espiritualidade dos caminhos” na região de Lamego. Para mais informações visite: http://www.citcem.org/index.php?codNode=411.
História da Europa 6 a 29 Janeiro de 2014, Segunda e Quarta-feira às 15h30 No El Corte Inglês Pequena em tamanho, mas grande em acontecimentos, a Europa das descobertas, batalhas, revoluções, transformações artístiLourenço Pereira Coutinho, licenciado em História, propõe uma viagem pelo velho continente desde a queda de Roma até aos nossos dias. Desta forma vão se proporcionar diversas conferências com a seguinte ordem: Da Queda de Roma ao Império de Carlos Magno (sécs. V-IX), a 6 Janeiro de 2014 Do Nascimento do Sacro Império ao Tempo das Cruzadas, a 8 Janeiro de 2014 Da Consolidação das Grandes Monarquias Ocidentais à Guerra dos 100 Anos, a 13 Janeiro de 2014 Dos Fins da Idade Média até ao Período da Contra -Reforma (sécs. XII-XVI), a 15 Janeiro de 2014 5 Da Contra-Reforma à Guerra de Sucessão de Espanha, a 20 Janeiro de 2014 Da Paz de Utrecht aos Tempos de Napoleão, a 22 Janeiro de 2014
Do Tratado de Viena à I Guerra Mundial (1815-1914), a 27 Janeiro de 2014 Da I Guerra Mundial ao Pós II Guerra Mundial (1914-1945), a 29 Janeiro de 2014 A Entrada é livre e as Inscrições estão abertas até 23 Dezembro de 2013. Para saber mais dirija-se a: http://www.agendalx.pt/ evento/historia-da-europa-0#.UrBDedJdXh4. Exposição: Arquitecturas – Testemunhos Islâmicos em Portugal Até 6 de Janeiro, todos os dias das 9h às 21h A exposição pretende dar a conhecer testemunhos arquitetónicos muçulmanos no atual território português. Apesar de pouco conhecido internacionalmente o legado islâmico encontrado em Portugal tem, nas últimas décadas, revelado estruturas e espólios de períodos com grande florescimento cultural, entre os séculos VIII e XIII. A exposição inclui obras como a pia de abluções de Cacela, um raro capitel do século VIII-IX, o bocal de poço de madraza, placa apotropaica e um importante conjunto de estuques pintados dos séculos XI, XII -XIII, proveniente de Silves, a última grande cidade muçulmana do extremo Garb al-Andalus. São ainda apresentadas uma talha proveniente de Mértola e um queimador de essências onde se regista temas arquitetónicos, tais como arcos ultrapassados ou polilobulados. Para melhor entendimento do público são incluídas na exposição maquetas dos principiais monumentos islâmicos existentes em Portugal como a Mesquita de Mértola, o Ribāt da Arrifana, em Aljezur, o palácio islâmico da alcáçova de Silves, tal como do Poço-Cisterna existente naquela cidade, hoje classificados como monumentos nacionais.
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A hesed de Iahweh no livro de Oseias: dispositivo de crítica, poética e renomeação do divino. Cátia Sofia Tuna1
Introdução
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Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR-UCP); Doutoranda em História e Cultura das Religiões pela FL-UL; Bolseira de investigação da FCT
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Mt 2, 15 (fuga para o Egipto), Mt 12,7 e 9,13 (citação de Os 6,6)
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KESSLER, S. Ch. – Le marriage du prophète Osée (Osée ,2) dans la literature patristique.
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Cf. Oseias 1,1.
LACY, J. M. Abrego de – Los libros proféticos. P. 75.
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Schökel afirma a seu respeito “Oseias é um poeta e profeta de marcada personalidade, obrigado a viver com enorme intensidade as experiências da sua vida, para as transcender até um sentido religioso.” SCHÖKEL, Luis Alonso – Los libros sagrados. (Introduccion). P. 11.
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O livro de Oseias, um dos primeiros livros da Bíblia a serem redigidos a par com o de Amós, tendo o seu processo redaccional terminado pelos finais do séc. VIII a.ec, é uma peça significativa na economia do corpus bíblico. Demonstra-o a influência que exerceu em autores ou correntes nele presentes, dos quais se destacam Jeremias e a escola isaíana (de modo particular o Trito-Isaías), e ainda em teologias bastante centrais no Novo Testamento. Ocorrem citações de Oseias no Evangelho de São Mateus2, a enunciação do messianismo de Jesus recorre a elementos expressivos da metáfora esponsal que retratam Jesus como esposo e a era messiânica como núpcias na tradição joanina, bem assim na tradição paulina, na qual tais elementos se inserem na afirmação quase apologética ou epopeica de uma comunidade minoritária como esposa de Cristo. Os primeiros autores cristãos perpetuaram o interesse por Oseias pelo modo como desenvolveram a chamada «metáfora esponsal», sobre a qual Santo Ireneu e Orígenes se debruçaram intensamente3, e ainda São Jerónimo, que afirmou que de todos os profetas, por ele comentados, foi Oseias que lhe colocou mais dificuldades. A representação do matrimónio espiritual no misticismo cristão é também devedora do encetamento empreendido por Oseias na consideração de Deus como exprimível no drama e na densidade as relações afetivas humanas.
1. Autor, estrutura e temáticas Oseias é um ator religioso e político, considerado por isso um profeta, do reino de Israel. Esta proveniência é provada pela nomeação dos reis de Israel na introdução do livro4, a alusão quase exclusiva às tradições e cidades do reino do Norte, o facto do livro ter sido escrito no Hebraico setentrional e com modos linguísticos que indiciam uma influência estrangeira5. A sua corrente de pensamento era comum à escola que inspirou o livro do Deuteronómio, e caracterizava-se pela adversidade aos santuários baalizados e à corte. O texto revela de si uma grande cultura e inteligência, sólido conhecimento das tradições históricas do povo hebreu e uma familiarização com os meios sacerdotais6. Revela ainda versatilidade e criatividade nos recursos estilísticos, caracterizando-se a sua linguagem pelo uso de comparações e imagens na descrição de Deus oriundas da vida relacional e familiar e do mundo animal e vegetal. Oseias joga com o sentido das palavras, explora as assonâncias, as aliterações, usa frases com estrutura elíptica, recorre a provérbios, evidenciando assim um cariz sapiencial. Na composição do livro de Oseias podemos identificar distintas camadas literárias: pa-
lavras do próprio profeta (ex.:3,1-5), a introdução de textos quer pelos seus discípulos (ex.:1,2-9) quer pelos judeus que o leram, depois dele ser difundido no Reino de Judá (ex.:12,1), e finalmente uma adição sapiencial que compõe a conclusão (14,10). Na constituição do próprio texto se afere a rápida popularização do mesmo que se explica pelo desejo dos refugiados do Reino de Israel no Reino vizinho de Judá quererem sensibilizar os seus habitantes, num passado recente seus compatriotas, para a tragédia que se abatera sobre o seu país, e serem por ele compreendidos e aceites. Isto justifica que em Os 1, 1 Jeroboão II seja o único rei de Israel mencionado, não fazendo referência aos seus sucessores que reinaram no período correspondente aos reis de Judá que são nomeados: Uzias, Jotam, Acaz e Ezequias. A maior referência que faz à monarquia do sul, em detrimento da do norte, seria para que os leitores de Judá melhor enquadrassem politicamente o texto e nele se reconhecessem como destinatários. Ao publicarem o livro introduziram ainda textos que revelam Judá como esperança de salvação7. A má conservação do texto hebraico, a mistura de oráculos de tipos diferentes (condenação e salvação), e o facto de ter sido escrito no dialeto do Norte em muito dificulta a compreensão da estrutura do livro de Oseias. Por conseguinte, multiplicam-se as propostas para uma organização do texto por parte dos exegetas. No entanto, são unânimes ao delimitarem um primeiro bloco (1 – 3). Estes três capítulos constituem uma unidade temática centralizada no tema da metáfora matrimonial, desenvolvida na imagem do esposo e da mulher e na dos filhos8. É constituída por um relato biográfico (1,2-9), um autobiográfico (3,1-5) e por oráculos de salvação, transição e maldição (2,1-25). O segundo bloco, sobre os crimes e castigos de Israel (4-14,9), é de forma geral, subdividido em duas partes. A primeira, de 4 a 11, é um conjunto de oráculos que denunciam a corrupção no culto e na política, na qual Jörg Jeremias distingue quatro secções: um «horizonte hermenêutico» inicial (4,1-3), oráculos da primeira época do profeta (4,4-5,7), oráculos do tempo da guerra siro-efraimita (5,8-9,9) e do período tardio (9,10-11,11); Andersen-Freedman decompõem-na por seu turno em duas secções: «o estado da Nação» (4-7) e «a História espiritual de Israel» (8-11). A segunda parte do segundo bloco, de 12 a 14, a qual Andersen-Freedman denomina de «visão retrospectiva e prospectiva» é um conjunto de reflexões históricas sobre o pecado de Israel, sendo os oito últimos versículos (14,2-9) um oráculo de salvação conclusivo9. Existe ainda uma introdução e uma conclusão, que correspondem ao primeiro e ao último versículo do livro respectivamente, acrescentadas possivelmente na última fase de redacção do livro. A introdução (1,1) apresenta sucintamente o autor e contextualiza a sua actividade profética, e o epílogo (14,10) é, como já referido, sapiencial.
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Cf. Dizer quais os textos.
ASURMENDI, J. – Amos et Osée (Cahiers Évangelie 64), p. 31.
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SICRE, José L. – “Com los pobres de la tierra” – La justicia social en los profetas de Israel. P. 171.
Uma das questões mais nucleares da obra é o contraste entre a infidelidade do povo de Israel com a fidelidade de Yahwé. Esta confere um novo horizonte à convicção de que as circunstâncias históricas negativas são sempre fruto das faltas do povo crente como castigo divino, uma aplicação da doutrina da retribuição num plano não individual mas histórico e coletivo. Deus castiga o povo, mas a punição não tem um fim em si mesmo, a finalidade é a reparação: «Ele nos feriu, Ele nos curará» (6,1). É nesta conceção que emerge o conceito de hesed como solução para a aporia «faltas do homem – castigo de Deus». Este conceito, traduzido comumente por «misericórdia» ou «compaixão», é a característica de Deus que causa e garante a Sua fidelidade.
2. Crítica políticas, sociais e religiosas de Oseias 2.1. Críticas político-sociais de Oseias no contexto de Israel do séc. VIII AEC Oseias começou a sua actividade profética nos últimos anos do reinado de Jeroboão II, após a saída de Amós, até aproximadamente à queda de Israel, à qual é provável que
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MATEOS, Juan; SCHÖKEL, L. Alonso – Nueva Bíblia Española. Introdução ao livro de Oseias. p.1038. 11
Em Os 1, 4-5 encontra-se um oráculo contra a dinastia de Jeú. Este rei tinha assassinado Jezabel, esposa de Acab e conhecida como propagadora do culto a Baal. Enquanto no livro dos Reis (2Re 9-11) o acto de Jeú é visto de forma positiva, para Oseias não é, porque derramar sangue é sempre contra os desígnios divinos. A dinastia de Jeú durou 100 anos, pertenceramlhe Jeroboão II e Zacarias e acabou com a subida ao trono de Menaém; em Jerusalém a mudança de dinastia ocorrida por exemplo com é muito frequente em Israel, ao contrário do que se sucede em Judá.
não tenha assistido pela total ausência de alusões a este facto. O restabelecimento das fronteiras nacionais realizadas por este rei, desde Hamat até ao Mar Morto, submetendo de novo o Reino Transjordânico de Moab, que fez com que Israel atingisse a sua maior dimensão geográfica de sempre, a juntar à estabilidade política proporcionada pela longa duração do reinado (cerca de 40 anos) e às dificuldades em que o Egipto e a Assíria se encontravam, originou em Israel um período de progresso e paz a que nunca se assistira nos reinados anteriores, depois da separação de Judá. Se, por um lado, esta situação acentuou a corrupção dos costumes e as injustiças sociais cuja denunciam pautam o livro de Amós, possibilitou também um incremento das artes: deu-se lugar a uma época de ouro literária à qual pertencem Amós, Oseias, Isaías, etc10. Esta fase favorável acabou após a morte de Jeroboão II, devido à grande instabilidade política que se gerou pela constante sucessão dos monarcas e pelo revigoramento do Império da Assíria que investiu no alargamento do seu território. Seis meses depois de o ter sucedido no poder, o filho de Jeroboão, Zacarias, é assassinado por Chalum que reinou no seu lugar, por sua vez assassinado por Menaém11. A Assíria era desde 745 governada por Tiglat-piliser III que, com a sua política expansionista, tinha o intuito de alcançar o Egipto; no âmbito da sua estratégia militar de expansão ou em vista a um reforço financeiro para melhor assegurar os gastos do exército, anexou pequenos estados vizinhos ou cobrava-lhes altos impostos. Foi este último caso que sucedeu primeiramente com Israel: em 742 a Assíria ocupou o reino e chantageou Menaém que, não querendo sofrer as consequências catastróficas de uma derrota militar, subjugou-se, através do pagamento de pesados tributos. Devido a isto ocorreu um aumento gigantesco dos impostos sobre os Israelitas, segundo afirma o Livro dos Reis (2Rs 15, 19-20). Na mentalidade deuteronomista, todos os pró-assírios são vistos de modo muito negativo, o que justifica a dureza com que Menaém é perspectivado em 2Rs 15, 17-22. Para além dos seus efeitos desastrosos, o pagamento dos tributos, pela humilhante dependência política que suponham, era inaceitável a nível religioso. A contestação ao poder assírio fez com que, morrendo Menaém e ascendendo o seu filho Pacaías ao trono, este fosse morto por Pecá, líder da conspiração, que subiu assim ao poder. Procura organizar uma coligação anti-assíria para impedir o avanço da Assíria até ao sul: alia-se a Damasco e tenta persuadir Acaz, rei de Judá, a integrar a sua coligação, mas este recusa. Isto motiva a que Israel e Síria declarem guerra a Judá, que pede ajuda ao Império Assírio, que vem em seu auxílio – dá-se a guerra siro-efraimita.
Fig. 1 : O Profeta Oseais (no canto superior esquerdo)
Em 732 a Assíria conquista Damasco e alguns territórios de Israel, expatriando para a Assíria uma parte considerável do povo. A guerra tem consequências nefastas: reina uma forte desilusão nos israelitas e neste contexto Oseias, homónimo do profeta, empreende uma conjura e mata Pecá, torna-se rei, pagando de novo pesados tributos à Assíria. Quando a certa altura deixa de os pagar, o imperador Salamanasar V inicia o cerco a Israel, em
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724, que termina em 721, já no reinado de Sargão. O reino de Israel desaparece definitivamente da História. Ocorre uma segunda vaga de deportação dos israelitas, uma estratégia como usada por povos conquistadores de modo a evitarem futuras rebeliões. Oseias critica comportamentos individuais, a corte, o rei, a monarquia em si (critica implicitamente as suas origens em 9,9.15 e 10,9), a dinastia de Jeú e os conluios que se seguiram à sua queda (7, 3-7.16). A monarquia era considerada em Israel e Judá, assim como no Antigo Oriente, uma instituição de salvação dada pelo deus nacional ao seu povo, para que este pudesse viver. Oseias, porém, defendia que o futuro não se apresentava sob a forma de uma monarquia, ainda que renovada (3,4) pois as instituições não se justificam a não ser que cumpram as funções para que foram chamadas, o que não acontecia com a monarquia de Israel12. Critica tanto Efraim (uma outra designação para Israel) como Judá, considerando que ambos estão sujeitos à cólera de Deus, embora por razões diferentes. A hipótese frequente que considera que o profeta, desiludido com o reino do Norte, olharia com carinho e esperança para a monarquia de Jerusalém é frágil pois os textos em que está presente são introduções posteriores de judeus; para ele ambos os povos estão, como tal, em pé de igualdade13. Reprova as alianças, quer com a Assíria quer com o Egipto, porque são a prova máxima duma política feita à margem de Yahwé, alienada ao Seu poder, enquanto que somente a relação única e privilegiada com Ele é a chave do sucesso político de ambos os Reinos. Na verdade, a aliança com determinado império implicava a submissão aos seus deuses, registando-se um cruzamento da situação política com a religiosa. Oseias critica as injustiças sociais, tal como Amós, mas com um estilo e objeto diferentes: «Ele nunca fala de pobres, oprimidos, débeis. O que o preocupa é realçar os grandes valores da justiça e da bondade, forma prática de buscar a Deus, única garantia duma sociedade em paz». 14 O pouco enfoque dado aos problemas socio-económicos é também justificado pelo ambiente de guerra em que se encontra, em que a maior preocupação é a morte, a violência, a política à deriva, relegando os problemas económicos para segundo plano15. Não eram apenas os pobres que sofriam com a guerra porque os reis, os sacerdotes e os príncipes eram responsáveis e também vítimas. A crítica de Oseias não é uma queixa superficial do caos político-social: ele pretende identificar a raiz profunda do mal. Não se trata de erros na estratégia da política e da economia do país, mas duma falha grave na vivência da relação com Yahwé: remete a solução do problema para a esfera pessoal e interior do homem, para a sua dimensão transcendente. Não são as alianças com os Impérios da Assíria ou do Egipto que asseguram a prosperidade de Israel, mas a aliança com Yahwé se o povo a viver com a fidelidade com que este a vive. Como nas exigências da aliança Deus e o outro estão estreitamente vinculados, isto acarretaria a desejada harmonia social porque o amor hesed de Yahwé e por Yahwé traduzir-se-ia em amor pelo próximo. 2.2. Críticas religiosas
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ASURMENDI, J. – Amos et Osée (Cahiers Évangelie 64). P. 42. 13 14
AIbidem. P. 41.
SICRE, José L. – “Com los pobres de la tierra” – La justicia social en los profetas de Israel. P.186 15
Neste âmbito Oseias faz apenas rápidas referências (comércio: 12, 8-9; assassinatos e roubos 4, 1-2) 16
Estas informações foram obtidas pelas recentes descobertas arqueológicas de Ougarit. Cf. ASURMENDI, J. – Amos et Osée (Cahiers Évangelie 64), p. 36-37.
No regime semi–nómada em que o povo se dedicava à pastorícia e à recolecção havia uma concepção de Deus como o protector que os acompanhava nas deslocações e nos combates frente às tribos e povos vizinhos. Com a sedentarização tornaram-se agricultores, e, fixando-se no território de Canaã, depararam-se com as divindades deste povo: Baal, El, Anat, Yam, Moutou, etc.16.
Fig. 2 : Estatueta do deus Baal
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Baal era o deus das chuvas, da tempestade, que favorecia assim a produção da terra, exercendo um fascínio sobre o povo judeu sedentarizado e dedicado agora à agricultura. Sendo visto como aquele que concedia quer os bens da terra quer os do ventre, era tendencioso confundir Yahwé com ele. Por conseguinte, no coração do povo ocorreu um confronto entre Yahwé e Baal, tornando-se inevitáveis as frequentes analogias e confusões, sendo este considerado «mestre» (tradução da palavra Baal) da vida, dos bens que o homem necessita, o que fazia com que lhe atribuíssem e agradecessem as boas colheitas e fosse a ele que suplicassem nas alturas de carência. Nesta mistura de referências religiosas em que ele era o deus do dia-a-dia, das necessidades primárias e Yahwé o deus da memória, Baal foi substituindo Yahwé na vivência religiosa do povo. Como exemplo deste sincretismo religioso temos as imagens de touros nos santuários de Dan e Betel, entronizadas por Joroboão I, que representavam Yahwé, facto que é criticado por Oseias (8,5.6; 13,2) e que mostra a exterioridade e formalismo em que caiu o culto a Yahwé. Na verdade, Baal era representado como um touro, sendo o deus da fertilidade e da fecundidade, o «progenitor» por excelência. Isto justifica também a prática da prostituição sagrada, que simbolizava a união do baal local com a terra ou imitava a união hierogâmica de Baal com Anat.17 A relação entre o «baalismo» e o «javismo» não consistia numa substituição da religiosidade mas uma influência profunda, atendendo à seguinte afirmação de Solá i Simon: «[…] nos tempos de Elias o tema de Deus é colocado em termos de alternativa (ou Yahwé ou Baal), em tempos de Oseias o problema não é de alternativa mas de baalização do Javismo»18. O monoteísmo já com um certo grau de estruturação e, consequentemente, a ausência de um panteão, perspetivou a infiltração de ritos concernentes a deuses como concorrência, sendo esta a leitura realizada por Oseias, que elabora a imagem de um deus que pede fidelidade e exclusividade. 17
É de referir que para muitos autores contemporâneos a prostituição sagrada é apenas um mito. 18
SOLÁ I SIMON, Teresa – Relació Esponsal Jahvè-Israel segons Osees i els três profetes majors. P.34. 19
SICRE DIAZ, J. L., SHÖKEL, L. A - Profetas Comentário II, p. 860. apud LACY, J. M. Abrego de – Los libros proféticos. P. 73. 20
ASURMENDI, J. – Amos et Osée (Cahiers Évangelie 64). P. 44.
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Neste contexto, Oseias intervém apelando ao regresso àquilo que ele considere ser uma vivência pura do Judaísmo19 e colocando Baal como alvo principal da sua crítica; é de notar que lhe faz referência directa sete vezes e, para além dele, não são nomeados outros ídolos em todo o livro. A sua crítica vai incidir sobre três pontos interligados e todas ligadas aos comportamentos rituais: corrupção no culto do povo em geral, dos sacerdotes em particular, e na prostituição sagrada. Os sacerdotes, em vez de ensinarem o povo sobre a Torah e as tradições religiosas, contagiam-no com a sua corrupção, encoberta pelo culto. Isto constitui um ciclo vicioso pois não estando o povo devidamente orientado por eles para o conhecimento de Deus, torna-se incapaz de reconhecer a Sua acção de Deus e a Sua soberania, e facilmente aderem a Baal, praticando os seus ritos considerados pelo profeta imorais (a prostituição sagrada). Não se encontra no texto nenhuma reprovação da prostituição sagrada nem dos cultos de fertilidade em si, mas do facto de Yahwe ser perspectivado como sendo da mesma categoria de divindade de Baal. Torna-se digno apenas de uns rituais obrigatórios, e é-lhe retirada uma parcela significativa do Seu poder sobre a vida do povo, nomeadamente a prática da justiça, da lei, exaltando-se o ritual em detrimento desta última, o que fez do Judaísmo uma idolatria mascarada. É nisto que consiste a corrupção religiosa que Oseias denuncia (como já o tinha feito Amós). O profeta não se limita a constatar e examinar criticamente estas duas graves situações de infidelidade, a do âmbito político e a do âmbito religioso, os pactos de Israel com os dois amantes (os impérios vizinhos e Baal), que levam ao esquecimento de Yahwé. Ele dá a solução, identificando o que Deus quer: a hesed. A censura de Oseias alcança assim um nível mais fundo afirmando que a resposta não se traduz pelo culto mas com base no reconhecimento da acção de Deus na História do povo que gera uma total confiança na sua total fidelidade e pelo amor que n’Ele se dá a um nível pessoal e afectivo e que se manifesta no amor aos irmãos. «O que é paradoxal nesta resposta, é que se introduz um elemento de comparação que não existia na “oferta” do povo. Só havia os holocaustos, tipicamente cultuais e eles foram superados por outra alternativa: a hesed. “Não quero sacrifícios mas misericórdia”».20 É quebrada a lógica: na situação de sofrimento e de castigo merecido pelo povo, a sua con-
versão traduzir-se-ia pelo culto, mas Yahwé considera-a uma atitude superficial e inadequada. Ao preferir a hesed Ele remete a vivência da fé de Israel para uma dimensão mais íntima e menos externa e ritualista. A apresentação desta resposta constitui a chegada ao âmago da Teologia de Oseias, pois ela é constituída por três elementos que estão interligados: a misericórdia, a fidelidade e o conhecimento de Deus. No primeiro bloco do livro, Oseias elabora com a roupagem da metáfora de um casamento e das suas peripécias, uma interpretação da história de Israel como um movimento dialéctico e dramático de procura e satisfação, de fidelidade e infidelidade21, e retrata a reação de Yahwé perante ele, particularmente do cenário de baalização do Judaísmo e das alianças políticas. É, inesperadamente, uma reação de misericórdia. 3. A metáfora esponsal O termo hesed aparece 6 vezes em Oseias (2,21; 4,1; 6,4; 6,6; 10,12; 12,7), sendo o profeta menor com maior número de ocorrências. Nos LXX, a tradução preferida para hesed é eleos (misericórdia, compaixão), mais que por «amor»; a tradução latina escolheu misericors, misericordia. A sua tradução é difícil porque o seu sentido muda consoante as épocas, os usos, os autores e os contextos semânticos. Os termos mais próximos são: misericórdia, amor, ternura, compaixão. É possível que a sua origem esteja associada à palavra árabe hasada, que é um verbo com duplo sentido: «germinar, brotar» ou «reunir-se». De facto, como Glueck afirma, pode advir daqui uma característica de hesed da mútua ajuda entre os membros de uma comunidade e que a liga à aliança (ex: a hesed entre hóspedes, o dever de hospedar, com sentido de obrigatoriedade)22. Para além do «querer bem» abrange o «fazer bem». Baseia-se assim nos vínculos estabelecidos entre as pessoas (parentesco, amizade, matrimónio, aliança, vassalagem) e espera-se que seja praticado: é um conjunto de direitos e deveres, tendo um carácter de obrigatoriedade social, daí a frequente combinação com a aliança, a fidelidade, a justiça e o direito.23 O significado de hesed adquire especial evidência e dramaticidade na rebuscada metáfora esponsal através da qual descreve e qualifica as relações entre Deus e Israel. Estabelece um paralelismo entre a sua relação com Gomer e a relação entre Deus e Israel, de tal maneira que é difícil situar as transições de um para outro nestes textos parabólicos. Para explicar a estrutura com que é apresentada a metáfora esponsal (aparentemente desordenada) recorremos ao esquema quiástico proposto por Good24: «1, 2-9 matrimónio de Oseias 3, 1-5 2, 1-3 os filhos e os seus nomes 2, 18-25 2, 4-17 A mulher = povo»
21
VAZ, Armindo – O matrimónio à luz da metáfora nupcial bíblica. P. 102 22
ASENSIO, Félix - El hesed y ‘emet divinos – su influjo religioso-social en la historia de Israel. P. 32. 23
ZOBEL – hesed. In Theological Dictionary of the Old Testament. 24
SICRE, José L. – “Com los pobres de la tierra” – La justicia social en los profetas de Israel. P. 172
3.1. O casamento de Oseias No início do texto identifica-se o problema do facto de Deus apelar ao profeta para se casar com uma prostituta. Entre as várias hipóteses propostas, adianta-se a tese de ter sido possivelmente uma forma do profeta fundamentar em Deus uma experiência de amor pessoal, isto é, de pôr na boca de Iahweh em forma de mandato aquilo que vivia. Neste âmbito é curioso reparar que 1,2-9 tem a mesma estrutura que os mandatos de missão: ordem («Vai, toma uma mulher»), explicação do porquê da ordem («porque o país abandonou Deus»), e execução («ele tomou Gomer»). Esta questão polémica fez com que na época da patrística o matrimónio de Oseias fosse olhado como uma alegoria ou como uma visão. Actualmente a análise do problema deixou de parte preocupações morais e baseiase apenas nas indicações que o texto fornece a esse respeito, há uma maior tendência para se considerar o casamento de Oseias com uma prostituta um facto em detrimento das outras hipóteses, a saber: Oseias ter-se baseado na experiência de outra pessoa ou ter criado uma história sem qualquer suporte real. Isto justifica-se porque se fosse uma alegoria não se repetiria a sua narração e não haveria necessidade de apresentar o nome da mulher nem do seu pai, nem de dizer o preço que pagar por ela, dado que não são elemen-
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tos importantes para o seguimento do texto, a expressão «tomar por mulher» é o termo técnico que o Antigo Testamento usa para falar de casamento, por ser nomeada uma filha de entre dois filhos e porque os relatos de ações simbólicas no Antigo Testamento são sempre acções reais e nunca relatos de parábolas, por exemplo: o celibato de Jeremias, a morte da mulher de Ezequiel25. Mas a existência de dois relatos diferentes do matrimónio de Oseias: 1,2-9 e 3, 1-5 pode dificultar a resolução desta questão. No primeiro relato o foco é na mulher prostituta e nos filhos e é um texto feito pelos discípulos narrado na 3ª pessoa. É um oráculo de esperança que retoma os grandes temas da imagem pai/filhos sendo considerado pela quase totalidade dos exegetas como tardio. O segundo é narrado na primeira pessoa (dado que nos oráculos anteriores são também escritos na 1ª pessoa, é lógico que aqui continue) e destaca-se o período de continência sexual que há-de seguirse ao seu reencontro, insiste-se no adultério, mas não há referência aos filhos e a mulher também não é nomeada. Parece mais coerente tomar os dois textos como expressão da mesma história, considerando que a mulher do 2,2-9 e de 3,1-5 são a mesma pois um põe em evidência alguns aspectos e o outro põe outros: «[…] um único casamento contado e explorado teologicamente de duas maneiras diferentes, com uma prostituta (sagrada?) para simbolizar, como se diz em Os 3,1 “o amor do Senhor pelos filhos de Israel».26 Segue-se uma análise das várias personagens que compõem o enredo da metáfora. 3.2. As personagens 3.2.1. Gomer
25
ASURMENDI, J. – Amos et Osée (Cahiers Évangelie 64). P. 34-35. 26
ASURMENDI, J. – Amos et Osée (Cahiers Évangelie 64). P. 34-35. 27
LACY, J. M. Abrego de – Los libros proféticos. P. 78.
Mulher que Oseias tomou por esposa a mandato de Deus, que é acusada de prostituição e de adultério. Fica em aberto se esta prostituição é ou não cultual. Neste segundo caso, a prostituição podia ser um rito de iniciação em que a mulher sacrifica a sua virgindade à divindade a fim de obter fecundidade, ou como um rito realizado com frequência para promover a fertilidade do solo. Esta segunda hipótese é mais viável, devido ao emprego do termo zenûnim (4, 12), que pode designar metaforicamente as práticas cultuais idolátricas. De qualquer modo, ao praticar prostituição cultual, Gomer não só seria infiel ao seu marido mas a Iaweh, abandonando aquele que assegura a Israel a sua fertilidade. Em 2,4 aparece a expressão «sinais de prostituição» que eram adornos e modo de vestir que fazia com que as prostitutas fossem reconhecidas como tal mas poderiam ser também sinais visíveis associados à adoração de Baal nos locais de culto; o adultério assim consistiria no culto que pratica. Representa, deste modo, o povo infiel de Israel na medida em que o seu adultério e prostituição é o culto a Baal. 3.2.2. Os Filhos É dito que da relação entre Oseias e Gomer nasceram três filhos, cujos nomes são simbólicos. Pretendem exprimir os frutos da relação Yahwé - Israel. O primeiro, Jezrael, tem o nome duma planície cobiçada por todos, militares e políticos, pela sua fertilidade, o que fazia dela um campo de guerra, e foi onde Jeú tinha assassinado Jezabel. Pode assim simbolizar a guerra, o culto a baal, o corte com a dinastia de Jeú e com a própria monarquia. A seguir tiveram uma filha chamada Lo-Ruhama, que significa «Não-Amada» ou «NãoCompadecida», e simboliza a decisão de Deus de não se compadecer mais. O terceiro filho, Lo-ami, isto é, «Não-Povo-meu», representa o fim da aliança. Daqui podemos depreender algo importante para a nossa reflexão sobre o conceito de hesed (misericórdia): o corte da misericórdia da parte de Deus implica o corte da aliança, o que significa que a hesed é uma condição da aliança. Este crescendo foi exprimido por Gebhard (1737) da seguinte maneira: no primeiro filho não havia problema familiar, no segundo ocorreu a descoberta da infidelidade, e no terceiro não o reconhece27. Do que se pode concluir do texto, os três filhos não seguiram o comportamento da mãe e não concordaram com o pai, mas participaram na sua vergonha. O papel que eles desempenham no desenrolar da metáfora
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é interessante na medida em que estabelecem a relação entre pecado colectivo e pecado pessoal. «O povo representado pelo país ou pela cidade é a esposa de Jahvé, os indivíduos sozinhos são os filhos nascidos do matrimónio»28. 3.2.3. Oseias Oseias, marido traído, representa Deus, ferido na sua dignidade enquanto tal. Apresento a análise do percurso que Ele realiza entre essa mágoa e a hesed manifestada no Seu apogeu: o perdão. O conteúdo desse percurso são os oráculos que se encontram em 2,4-25. Inicia-se com três oráculos de Acusação / Maldição (4-6; 7-9; 10-15). Neles há sempre uma acusação, seguida de um «senão», ou, nos dois últimos, por um anúncio de castigo traduzido por «por isso…». Segue-se em 16-17 um oráculo de transição em que coexistem dois elementos: o de acusação e de restauração. Até aqui, 2,4-17, o género literário é um processo, (2,4, por exemplo, é semelhante a uma ameaça de divórcio ou divórcio oficial) o que é uma prova de que os profetas se inspiravam no mundo judicial para construírem os seus oráculos29. Por fim em 18-25 expõem-se três oráculos de salvação, cada um introduzido por «nesse dia», e com a existência duma promessa e dum acto de submissão, de resposta. O esquema é portanto este: três anúncios de maldição (começa com pelas infidelidades de Israel, de que se tira o castigo de Deus) – transição – três anúncios de salvação (começa com a acção salvífica de Deus e acaba com a submissão de Israel), no qual ocorre esta dupla transição: do homem para Deus, e de Deus para o homem. Nota-se aqui um entrecruzamento entre a história de Oseias e a de Deus. Nos oráculos de salvação, Deus prometeu a restauração o que faz com que Oseias também se sinta chamado a agir do mesmo modo com a mulher, a infidelidade de Gomer e Israel desemboca em ambas as situações numa boa relação e bons filhos; Deus e Oseias são companheiros do mesmo percurso de subida e descida.30 Em todo este texto, as relações entre os personagens são complexas, os actores parecem desempenhar vários papéis (quem fala é acusador, testemunha, vítima, juiz… enfim tudo menos acusado) e são perspectivados de pontos de vista distintos (os filhos tanto são acusados como testemunhas), no desenrolar do processo passa-se frequentemente da imagem à realidade, e o desfecho do processo é surpreendente: o perdão31. 3.3. Castigo e perdão de Gomer A relação entre Deus e Israel, personificada na relação entre Oseias e Gomer processa-se em quatro fases: o casamento (a aliança), a ruptura, o castigo e o perdão. Tendo já analisado os dois primeiros momentos, passamos à análise dos dois últimos, uma vez que são os únicos motivados pela pura iniciativa de Iaweh. Segundo o texto, o castigo imposto por Oseias a Gomer, era aquele que se infligia ás adúlteras em Israel: o despojamento (2,5). Não podemos saber ao certo se efectivamente foi assim ou se é um elemento metafórico para apresentar, o castigo de Deus32. Na verdade, lapidação era o castigo prescrito, e não matar à sede. Por isso, ele também pode ter origem na experiência do deserto, em que o povo murmura contra Moisés pois morria de sede (Ex 17,3). De qualquer modo, o castigo aplica-se na perfeição ao que foi dado por Deus a Israel: é despojada de todos os bens, transformada em terra não cultivada. A miséria com que o marido “castigou” a sua esposa é interessante do ponto de vista que o papel do marido era dar tudo à esposa, todos os bens de que necessitava: alimentos e roupa. Uma vez divorciada, a mulher perdia o direito de os reclamar. Aplica-lhe o castigo não para se desfazer dela mas para fazê-la voltar. A perca das comodidades que tinha enquanto casada faria com que a mulher a mudasse de ideias.33 Este processo de desprendimento e de vazio é uma condição prévia para a reconciliação e consiste em viver sem monarquia (ambições) e sem o culto (deformação da ideia de Deus). Depois do período de purificação, «não somente “apesar das infidelidades” mas “por causa das infidelidades”», Deus acorda o Seu perdão.”34O castigo fica aberto à obra da restauração, não pelo povo mas por Deus, tendo uma função pedagógica35.
28
SOLÁ I SIMON, Teresa – Relació Esponsal Jahvè-Israel segons Osees i els três profetes majors. P.46. 29 30
Ibidem. P.41.
VOGELS, Walter – Osée-Gomer” car et comme “Yahweh-Israël”: Os 1-3. P. 716-720. 31
ASURMENDI, J. – Amos et Osée (Cahiers Évangelie 64). P. 33. 32
«O problema é se se podem tirar conclusões a partir de textos simplesmente metafóricos, a força da metáfora quase sempre recorre a referências a coisas e factos reais.”SOLÁ I SIMON, Teresa – Relació Esponsal Jahvè-Israel segons Osees i els três profetes majors. P.43. 33 34 35
Ibidem. P.45 e 53. Ibidem. P.56.
«O amor de Yahwé pelo acusado é mais forte que as acusações, e se castiga não é para destruir, mas para reabilitar». RETAMALTES, Santiago Silva – Tradición del “Êxodo” en Oseas. P. 174.
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Deus está de tal modo ansioso pela reconciliação que adianta o perdão de forma a que, enquanto na história deuteronomista, em que a seguir ao pecado é esperado o arrependimento para advir o perdão, em Oseias o perdão antecede a conversão, isto é, Deus não espera por ela para perdoar.36 De facto, apesar das terríveis denuncias (10, 11-13; 4, 1-3) Oseias é um profeta otimista (2, 21-22): o marido perdoa a mulher infiel (2, 4-25); o pai ofendido sente que se lhe revolvem as entranhas e tornasse-lhe impossível não perdoar o filho (11, 1-9) 37 e revela que Deus não se deixará levar pela violência porque prefere violentar-se a si do que aos seus filhos (11, 8-9)38. Mas este perdão tem em si uma enorme amplitude e carrega consigo uma mensagem teológica muito profunda e fraturante: segundo a lei, a mulher adúltera poderia ser mesmo morta (Lv 20, 10), mas Yahwé rejeitou o direito de lhe aplicar esse castigo. Por outro lado, se ela, após o divórcio, esposasse outro homem uma segunda vez e dele se divorciasse, e quisesse voltar para o marido anterior, este «não poderá retomá-la como esposa, após ela se ter tornado impura: isso seria um acto abominável diante de Yahwé» (Dt 24, 1-4). Ao perdoar Israel, Deus aceita cair na contradição humilhante de praticar um acto abominável diante dele próprio. Não é a lei que tem a última palavra sobre Deus, é Ele que está acima dela. Deus prefere identificar-se com a hesed do que com a Lei, e deste modo, o amor supera a Lei. O papel principal é-lhe retirado e passa a ser dado ao estilo como Deus vive e se relaciona com o povo, a hesed, o que faz com que Oseias compreenda como agir para com Gomer: Deus perdoou, ele perdoa, ao contrário da lógica «a Lei não perdoa, eu não perdoo». Não há possibilidade de solução se Deus não actuar contra as suas próprias leis, se o amor de Yahwé não for maior que a compreensão do povo das leis.
36
VAZ, Armindo – O matrimónio à luz da metáfora nupcial bíblica. P. 102. 37
SICRE, José L. – “Com los pobres de la tierra” – La justicia social en los profetas de Israel. 38
Neste âmbito é de salientar que o termo ben, filho, só se utilizava (11,1) até Oseias para exprimir as relações entre Deus e o rei: ele era filho de Deus, uma representação comum na ideologia do Oriente antigo. A sua aplicação a Israel, tomado no seu conjunto, é uma novidade arrebatadora. Este alargamento da fililiação divina é apenas comum no reino do Norte, o Reino do Sul conservou sempre o primeiro significado do termo.
39
VAZ, Armindo – O matrimónio à luz da metáfora nupcial bíblica. P. 103. 40
SOLÁ I SIMON, Teresa – Relació Esponsal Jahvè-Israel segons Osees i els três profetes majors. P.31. 41
LACY, J. M. Abrego de – Los libros proféticos. P. 81.
«Oseias dá um salto na lógica do amor humano (superando-a) ou então assume o comportamento do amor humano mais elevado, em que a última palavra é a do amor reencontrado e renascido. Esta novidade converte Oseias em percursor da mensagem central do Novo Testamento».39 «Na reflexão de Oseias fica patente a tese do primado do amor de Deus por sobre qualquer determinismo do pecado».40 É uma contra-lógica de Deus, na qual se expressa em ideias contrapostas a surpresa da misericórdia e da imprevisibilidade de Yahwé ao mostrar-se disposto a romper a sua própria lei: Ele quer que a sua esposa volte, apesar de estar impura. Contrariar a Lei, o que em significa ir contra si próprio, é a única alternativa que resta a Yahwé para salvar a aliança que a infidelidade do povo colocou por um fio. Posto que a fórmula da aliança é: «Vós sois o meu povo e Eu sou o vosso Deus», é de esperar que com «Não-Povo-meu» (o nome do terceiro filho) seja dito também: eu já não sou o vosso Deus. Mas continua a alusão ao Seu nome, o que se poderia traduzir por «e eu não sou Iaweh»; isso indica que se desaparecer o povo também desaparece Deus. Na concepção israelita da época a existência de um deus dependente da existência de um povo. «O Deus de Israel encontra-se ante o problema da sua própria existência, ao ameaçar o povo com o desaparecimento”. Como resolverá isto? Indo contra a sua própria lei. 41 3.3.1. A acção da metáfora expressa na dinâmica Anti-êxodo - Egipto - Novo-êxodo Oseias expressa este percurso também através da tradição histórica do povo Judeu, reproduzindo no presente e no futuro o caminho de amor que Deus tinha feito com o seu povo no passado. Ele prevê a repetição deste trajecto feito desde o Egipto até Canaã. Ao anunciar a volta ao Egipto ele está a reler acontecimentos históricos colocando Deus em relação com a História, o que o singulariza como profeta. Identifica os seguintes momentos chave desse percurso: a época do primeiro amor, realizada no êxodo no deserto, o momento da
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ruptura, em que a situação grave da sua comunidade constitui uma ruptura radical das relações da aliança. Como este rompimento da relação se manifesta sobretudo ao nível do amor, justiça, direito e da verdade, realidades que são dons divinos, que fundamentam as relações dadas no interior da comunidade, logo se conclui que ruptura com Deus implica rupturas sociais. Segue-se o castigo, a esterilidade radical, em que se está sob a ameaça suprema, a supressão da aliança. Por fim vem a salvação, em que o povo regressa, refazendose assim a história do começo42. Deus ao chamar Israel do Egipto libertou-o dos seus deuses e faraó mas uma vez em Canaã, em vez de conquistar a terra, Israel foi conquistado pela sua religião. Voltou deliberadamente a ter outros deuses e outros governantes: a exigência da Assíria com os tributos, a ameaça e o seu domínio é um retorno à opressão. Egipto é agora todo o rei que queira controlar Israel. Tem portanto um valor duplo na pregação de Oseias. É considerado um actor político da região (parceiro de alianças e conluios, força militar) e é também um símbolo de ordem teológica: o país onde Israel se formou, onde começaram as suas relações com Deus. “Sempre se procurou no Egipto o apoio necessário para resistir aos assírios e é muito provável que, em 734, um bom número de habitante do Reino do Norte tenha fugido para esse país perante o avanço das tropas assírias. Para Oseias, todos estes factos históricos demonstram que Israel procura a sua salvação fora do seu Deus e o Egipto torna-se símbolo histórico e teológico desta teimosia. Querer voltar ao Egipto para buscar a vida supõe anular toda a História de Israel e as suas próprias possibilidades de existir, o que significa a morte, enquanto que voltar ao Senhor significa a vida. Escolheram o Egipto: dá-se o seu retorno – o anti-êxodo (e depois terá de ser o Senhor a fazê-los voltar: dá-se o Novo Êxodo)»43. Enquanto que o anti-êxodo é paradigma de anti-salvação, o Êxodo é de salvação44 e não se esgota na saída do Egipto e na posse da terra. Emprega-o com um carácter positivo (destaca o amor de Deus por Israel) mas também negativo (sobressai a rebeldia de Israel e ingratidão). O novo êxodo tem muitas características escatológicas (2, 17 e 11,11.) e permite que se faça uma nova aliança com repercussões cósmicas. Leva-a assim ao deserto onde passam a «lua de mel», depois do êxodo e da aliança do Sinai. Por tudo isto podemos concluir que é muito provável que Oseias esteja na origem desta imagem muito usada no Deuteronómio para falar da relação Iaweh/Israel: a aliança. Na verdade, a fórmula que encontramos em 4,37-38 «tu és o meu povo e ele dirá “meu Deus”» é uma variante da fórmula do casamento.
42 43
Ibidem. P. 92-94.
ASURMENDI, J. – Amos et Osée (Cahiers Évangelie 64). P. 40. 44
RETAMALTES, Santiago Silva – Tradición del “Êxodo” en Oseas. P. 163. 45
SOLÁ I SIMON, Teresa – Relació Esponsal Jahvè-Israel segons Osees i els três profetes majors. P48-54.
4. Considerações finais: a metáfora no contexto do Baalismo Tendo em consideração de que a família israelita é patriarcal, e que o marido é tomado como mestre, “provedor” da sua família, a traição da mulher significava que não considerava que o marido lhe satisfizesse plenamente as suas necessidades básicas da vida. A sua infidelidade coloca o esposo numa situação vergonhosa, pois significa que ele não é um bom pai de família. A culpabilidade do povo não é apenas a adoração de Baal, mas o facto de considerarem Baal e não Yahwé aquele que lhes dava o necessário: põe a sua confiança mais nos amantes do que em Yahwé. Se o povo estivesse convencido do poder absoluto de Yahwé sobre a sua mulher, não adoraria os ídolos.45 Por outro lado, o termo baal era usado na linguagem corrente, o mais usado pelas mulheres para designar os seus maridos, tendo vários significados em Hebraico que se podem distribuir em três grandes grupos: baal senhor, baal marido, baal possessor. Como o nome simboliza a pessoa, a integridade do seu ser, o profeta através do texto deseja fazer desaparecer a própria palavra, extirpá-la da linguagem corrente. Quem é digno de ser chamado «marido» é Yahwé, que o é dum modo diferente de Baal. Deste modo, a metáfora esponsal é a adaptação duma mentalidade religiosa que não era própria dos israelitas mas dos Cananeus. Ou antes uma aclaração ou rectificação de uma mentalidade religiosa pouco correcta que o povo fez: não me chamarás mais baal meu mas homem meu. A religião cananeia usava esta linguagem
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sexual para exprimir as realidades fundadoras que dão vida, por causa dos seus cultos de fertilidade através dos quais se convencia de estar a participar na vida divina. Oseias inspirou-se no mito do matrimónio de Baal mas revelou-se original na sua aplicação à fé judaica. A metáfora esponsal bíblica que constrói é muito diferente do matrimónio mítico entre um deus e uma deusa. Na metáfora esponsal é o homem que tem de responder positivamente ao divino marido e é precisamente este aspecto da metáfora que a enfatiza. O encontro entre os dois elementos da relação não é um mito nem um rito, ele acontece na História; é nela que Deus encontra Israel e é aí que ele o deve encontrar: «Não se trata de repetir um gesto fundador, mas de inventar gestos de amor a cada instante, hic et nunc.»
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Bibliografia Fontes: BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Editora Paulus, 2002. MATEOS, Juan; SCHÖKEL, L. Alonso – Nueva Bíblia Española. Madrid: Ediciones Cristandad, 1975. Outra Bibliografia: ASENSIO, Félix - El hesed y ‘emet divinos – su influjo religioso-social en la historia de Israel. Analecta Gregoriana. Romae. Vol. XLVIII, sectio B: n. 19 (1949). ASURMENDI, J. – Amos et Osée (Cahiers Évangelie 64) Cerf: Paris, 1988. BONS, E. - Osée 1,2 - un tour d’horizon de l’interprétation. Revue des Sciences Religieuses. 73 (1999) 205-222. CAMBIER, Jules; LÉON-DUFON, Xavier - Misericórdia. In Vocabulário de Teologia Bíblica. Dir. Xavier Léon-Dufon. Petrópolis: Editora Vozes, 1972. p. KESSLER, S. Ch. – Le marriage du prophète Osée (Osée ,2) dans la literature patristique. Revue de Sciences Religieuses 73 (1999) 223-228. LACY, J. M. Abrego de – Los libros proféticos. Estella: Editorial Verbo Divino, 1993, p. 71-96. RETAMALTES, Santiago Silva – Tradición del “Êxodo” en Oseas. Estúdios Bíblicos. Madrid. LVI: 2 (1998) 145-178. SARRO, G. – Misericórdia. In Enciclopédia de la Bíblia. Vol. V. Dir. Macho, R.P; Alejandro Diez, Bartina; R.P. Sebastián. Barcelona: Ediciones Garraga, 1963. p. 182-188. SCHÖKEL, Luis Alonso – Los libros sagrados. Traduccion, Introduccion, notas. Madrid: Ediciones Cristiandad. 1966. P. 9-39. SERRA, R.M. – A las fuentes de la metáfora esponsal del amor de Dios. Claretianum. Romae. XX (1980) 387-404. SICRE, José L. – “Com los pobres de la tierra” – La justicia social en los profetas de Israel. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1984. p. 169-190. SKESSLER, S. CH - Le marriage du prophète Osée (Osée 1,2) dans la literature patristique. Revue des Sciences Religieuses. 73 (1999) 223-228. SOLÁ I SIMON, Teresa – Relació Esponsal Jahvè-Israel segons Osees i els três profetes majors. Barcelona: 2004. VAN SCHAIK, A. – Misericórdia. In Dicionário enciclopédio da Bíblia. Org. A. van den Born. VAZ, Armindo – O matrimónio à luz da metáfora nupcial bíblica – Communio. XIV: 2 (1997) 101- 112. VOGELS, Walter – Osée-Gomer” car et comme “Yahweh-Israël”: Os 1-3. Nouvelle Revue Théologique 103 (1981) 711-727. YANGUAS, José Maria - “Dives in misericórdia”: ela amor msericordioso, fuente y perfeccion de la justicia. Scripta Theologica. Pamplona. XIV: 2 (1982) 601-613. ZOBEL – ds,x. In Theological Dictionary of the Old Testament. Ed. G. Johannes Botterweck, Helmer Ringgren. USA: Eerdmas Publishing, vol. V. p. 44-65
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D. João da Silva, 2.º Marquês de Gouveia O labor da sua Embaixada a Madrid (1670-1673)
Carolina Soares1
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Investigadora do Instituto PAEHI; Licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 2
Vide Carta de Wateville à rainha regente, Lisboa, 3 de Abril de 1670, AGS, E, leg.2617. 3
Vide «Voto do Duque para a Instrução secreta da Embaixada do Marquês de Gouveia a Castela», BNP, Fundo Geral. Cód. 11234//44, Lisboa, 9 de Junho de 1670, fol.75.
Foram muitos os esforços do poder real para (re)construír o Estado português após sessenta anos de Monarquia Dual, redefinindo a atuação política portuguesa e discernindo-a da orientação da monarquia espanhola. A manutenção da independência exigia um esforço contínuo de afirmação, tanto no plano militar, como no diplomático. Uma vez assinado o Tratado de Paz com Espanha, em Lisboa, a 13 de Fevereiro de 1668, a diplomacia portuguesa orientou-se no sentido de um distanciamento relativamente às questões europeias, procurando manter de neutralidade. O principal objetivo era assegurar a paz no reino, tarefa que não foi fácil uma vez que a conjuntura internacional era de extrema complexidade. A primeira embaixada portuguesa a Madrid foi chefiada por Henrique de Sousa Tavares, 3.º Conde de Miranda, que durante dois anos (1668-1670) trabalhou para manter a paz com Castela e fazer cumprir o acordado no Tratado. A crise dinástica espanhola levou a que Lisboa construísse diferentes objetivos para a segunda embaixada, esta protagonizada por D. João da Silva, 2.º Marquês de Gouveia, havendo cada vez mais dificuldade na gestão das várias influências que se formavam entre potências, tanto que na Primavera de 1670 Wateville informou Madrid que D. Pedro se encontrava “com contínua diferença de influências, e como endereça todas as linhas do seu saber a que nenhum há-de ser valido, anda vagueando entre ondas” 2 D. Pedro pediu o parecer do Duque de Cadaval relativamente à Instrução secreta que entregaria ao Marquês de Gouveia. Não sabemos ao certo se este parecer foi um pedido exclusivo ao Duque ou se também foi solicitado aos restantes membros do Conselho de Estado. As preocupações tomadas pelo governo de D. Pedro mostram que, em Madrid, a situação de instabilidade não era menor do que aquela a que os espanhóis atribuíam a Portugal. A debilidade do rei Carlos, regência da Rainha Mariana e a tensão criada pelas pretensões de João de Áustria parecem ser a causa da volubilidade política de Castela, e é nesta perspetiva que as reflexões do Duque de Cadaval se mostram lapidares. No entender do Duque de Cadaval as instruções “ (…) dispoem as negociações conforme os tempos, he precisso falar no prezente e por discurso no futuro; advirtindo que he mais facil ler hũa instrucção que executa-la (…) ” 3. Neste sentido, apresenta seis cenários que considerava possíveis e nos quais entendia diferentes comportamentos por parte de D. João da Silva. Um primeiro em que apesar das pressões de D. João, a Rainha permanecia no governo de Castela, e neste caso aconselha-se que:
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“ (…) deve o embaixador da parte de Vossa Alteza insinuar a Raynha o grande gosto que Vossa Alteza tem de conservar esta paz, e que sera hũa a firme aliança, e hũa boa correspondencia, e que este he o primeiro fim de sua assistencia naquella Corte. Deve fazer tudo quanto estiver na sua mão, por conservar a desconfiança e continuar a separação da Raynha, e D. João, fazendo entender a Raynha a voa vontade de Vossa Alteza pois foi a com quem se tratou, e ajustou a paz, e que esta obrigação está muito prezente para
Vossa Alteza ajudar as conveniencias da Raynha”
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Esta hipótese revelava-se como uma das mais vantajosas para Portugal pois proporcionava a oportunidade de jogar com as duas partes. Devia-se apoiar a Rainha para que permanecesse no governo, oferecendo um acordo entre as coroas no qual Castela cederia uma ou duas praças a Portugal. O duque esclarecesse mesmo o momento oportuno de apresentar este negócio à Rainha: “E como esta preposição a há-de fazer o Embaixador por interposta pessoa, e procurar que a Raynha lhe proponha este negocio, poder-se-ha medir o estado em que ella então se acha, e ver Vossa Alteza que praça ou praças lhe ha de pedir, conforme o socorro que de Vossa Alteza intentar. Para se ensinuar este meio, he próprio o tempo prezente por que a Raynha vesse oprimida, e para se conservar quererá antes perder antes perder hũa pequena parte, do que arriscar aquelle todo, e se dos embaraços de Castella tirar Vossa Alteza esta utilidade 5”
4 5
Vide Idem, ibidem, fol. 75v. Vide Idem, ibidem, fol. 76.
6
Vide «Voto do Duque para a Instrução secreta da Embaixada do Marquês de Gouveia a Castela» (…) , fols. 76 – 76v. 7 8
Vide Idem, ibidem, fol. 76v Vide Idem, ibidem, fol. 77.
Revela igualmente o imenso trato exigido ao embaixador, um conhecimento profundo da corte em que se insere, e das lógicas de quem lida, dominando a arte de negociar, compreendendo os melhores momentos e o melhor discurso para ter sucesso nos negócios que acarreta. Num segundo cenário prevê-se a hipótese de se entregar a tutela a D. João de Áustria, excluindo a Rainha do Governo. Caso tal se verificasse o embaixador devia reconhecer esse governo em sintonia com os restantes embaixadores e ministros na corte. Seria também vantajoso para o Reino que as atenções de D. João se direcionassem para a conjuntura da Flandres e para os franceses, de maneira a que os castelhanos se afastassem das fronteiras portuguesas 6. No caso D. João se tornar Governador ou Rei de Aragão, numa terceira hipótese, o embaixador português não o devia reconhecer nem ter trato com ele, já que era vantajoso para Portugal manter Espanha dividida, tentando conservar boas relações com Castela para que a Paz permanecesse. Acrescenta, por outro lado, a necessidade de um jogo duplo por parte do Marquês de Gouveia, de forma a se manter o apoio à Rainha e, oficiosamente e ocasionalmente se favorecesse D. João. Uma atuação híbrida, muitas vezes característica das relações externas, que daria a D. Pedro mais espaço de manobra 7 . No quarto desfecho possível desta conjuntura estava a morte do príncipe Carlos e subida ao trono de D. João de Áustria, casando ou não com a atual Rainha. E nesse caso: “Há-de procurar mostrar o embaixador a D. João, que Vossa Alteza tem particular gosto da paz, e Castella huã singular conveniencia de ter hum amigo tamanho como Vossa Alteza e tão vezinho: Há-de encarecer muito o esforço, e potencia das Armas de Vossa Alteza e persuadir que a guerra de França, que neste cazo será certa com Espanha, não he útil a Portugal, porque será muito arriscado a Castella, Não fará o embaixador de Vossa Alteza oferta de suas armas contra França, mas não despersuadirá de que Vossa Alteza há-de ouvir toda a pratica que estiver bem a se conservar Espanha separada de França 8” Foi também na eventualidade da morte de Carlos II que desenhou uma outra possibilidade, nesta, D. João não interviria e a Rainha regente manteria o poder, fazendo cumprir o testamento do rei antecedente. Adverte que o mais provável, se este fosse este o caso, era a convocação de Cortes, e nestas tentar-se-ia chamar para Governar quem de direito, o que não era o caso de D. Pedro. No entanto, na opinião do Duque de Cadaval seria benéfico para Portugal tentar que D. Pedro ascendesse ao trono espanhol, evitando uma união de Madrid com França ou com Viena. O último cenário traçado tem em conta a possibilidade do início de uma guerra entre D. João de Áustria contra França ou contra o Império, em caso do príncipe Carlos morrer. O embaixador português deve reconhecer D. João mesmo que os restantes embaixadores na corte não o façam. Percebemos assim que Cadaval resume a sua proposta em quatro objetivos fundamentais: conservar a paz com Castela, ganhar adesões na corte de Madrid, dificultar o governo da Monarquia espanhola mediante o fomento de parcialidades, esperando-se que o seu parentesco com a nobreza castelhana o ajudasse a cumprir esta missão.
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Como é natural, Madrid seguia com atenção os desenvolvimentos da corte vizinha, cujos rumores foram sempre escutados com interesse, nomeadamente, a partir de Agosto de
1670, as autoridades fronteiriças espanholas fizeram chegar à regente as alterações na comarca de Almeida, tendo-se ouvindo gritos a favor de D. Afonso VI. Chegou mesmo a correr o rumor que o arquipélago dos Açores se tinha sublevado contra D. Pedro e que com a ajuda do rei inglês estava a ser planeado um desembarque para introduzir em Portugal uma força militar, e mesmo que estes boatos fossem recebidos com algum ceticismo, a estabilidade do regime político português era visto como frágil do lado de Madrid. Por outro lado, a proximidade do governo português a França e as vantagens que D. Pedro obteria se apoiasse Luís XIV levaram a que, na Primavera de 1671, Madrid ordenasse a concentração de cavalaria na fronteira 9.
9
Vide «Carta da rainha regente a D. Diogo de la Torre», 7 de Maio de 1671, AGS, E, leg. 2619.
10
Vide «Cartas do Marquês do Gouveia para a Secretaria de Estado e para D. Pedro II», Talavera, 29 de Outubro de 1670, BGUC, Reservados. Ms. 2967, fols.1-2.
Fig. 3 : A new map of the kingdoms of Spain and Portugal with their principal divisions – London, Robt. Sayer, 1790, BNP, Biblioteca Digital, cc-1769-a.
A primeira carta que temos do Marquês de Gouveia foi enviada de Talavera dirigida a D. Pedro fazendo o relato da sua viagem. De Elvas seguiu para Badajoz, onde foi recebido por um Tenente que tinha consigo cinquenta cavalos, sendo depois levado até mais meia légua onde se deu uma cerimónia de saudação. Concluídas todas as visitas, realizou-se a despedida com o bater das bandeiras três vezes. Atos relevantes, protocolos de imensa importância para a demonstração de boa vontade e de reciprocidade em regalias e tratamentos dos representantes dos reinos vizinhos. Refere o Marquês de Gouveia que apenas não teve uma salva de artilharia porque aquela praça estava desmontada. Dá notícia que o embaixador castelhano a Lisboa iria ser o Conde de Humanes. Descreve igualmente a praça de Badajoz, onde deviam estar acampados mais de seiscentos homens, alguns dos quais alojados na fortificação já degradada 10. O caminho prosseguiu por Mérida cujo governo estava a cargo de mestre de Campo D. Diego de Rueda que o hospedou. Pela sua descrição, e tendo em conta que não se teve acesso a toda a correspondência do diplomata no percurso até Madrid, fez-se uma reconstituição do caminho percorrido, no mapa anteriormente apresentado, possibilitado pelo cruzamento de dados entre este mapa com um outro do século XVIII e com uma Carta de Fronteira de 1650, tornando-se então possível identificar as várias localidades relatadas. Desta forma, a viagem deve ter
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demorado sete dias, sendo que a primeira carta expedida de Madrid data de 20 de Novembro, mas não sabemos quanto tempo ficou hospedado noutros locais até essa data. Na carta de 20 de Novembro o Marquês de Gouveia destaca a importância dada por D. Pedro para que se consiga uma boa correspondência com o Conde de Oropeza. Nas primeiras impressões comunicadas pelo embaixador e tendo em conta todas as cortesias que havia recebido até Madrid, é do seu entender a grande estima que o príncipe Carlos parecia ter por D. Pedro. Iniciado o trato na corte, deu-se início aos procedimentos de ordinários, os quais revelaram um problema imediato. Segundo o Marquês de Gouveia, na Instrução que recebera D. Pedro ordenou que não fossem feitos os mesmos avisos ao embaixador de Lucca como se iria fazer aos restantes, uma vez que o mesmo na chegada do Conde de Miranda a Madrid este embaixador não tinha feito os cumprimentos ordinários que eram devidos. Contudo, não foi esse o procedimento escolhido pelo Marquês de Gouveia, entendendo que era obrigado a fazer-lhe aviso do dia da sua entrada pública por correspondência devido à visita que o embaixador de Lucca lhe fez. A necessidade de pequenas adaptações e desvios à Instrução revela a necessidade de intervenção do embaixador com base no seu juízo e entendimento, necessidade que fazia parte do funcionamento da política externa e do comportamento do diplomata, para que se conseguisse jogar de forma rápida e eficiente na corte em que se inseriam 11.
11
Vide «Cartas do Marquês do Gouveia para a Secretaria de Estado e para D. Pedro II» (…), Madrid, 22 de Novembro de 1670, fols. 3-3v. 12
Vide «Cartas do Marquês do Gouveia para a Secretaria de Estado e para D. Pedro II» (…), Madrid, 13 de Novembro de 1670, fol. 3.
13
Vide «Tratado de Paz entre El –Rei
II Rei de Espanha, por mediação de Carlos II Rei da Gran-Bretanha, feito e concuido no convento de Santo Eloy da cidade de Lisboa, a 13 de Fevereiro de 1668 (…)» Op. Cit., p. 369-370. Todas as privações de heranças deveriam ser repostas, e “(…) os dous Reys perdoão a culpa de huns, e a outros vassalos em virtude deste Tratado, havendo-se de restituir as fazendas o lucro deste bens até ao dia da restituição dos mesmos, permaneceria com possuidor das mesmas durante a guerra (art.º8). 14
Vide «Cartas do Marquês do Gouveia para a Secretaria de Estado e para D. Pedro II» (…), Madrid, 22 de Janeiro de 1671, fol. 10v.
15
Vide «Cartas do Marquês do Gouveia para a Secretaria de Estado e para D. Pedro II» (…), Madrid, 30 de Abril de 1671, fols. 15v-16.
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É também neste período inicial que o Marquês de Gouveia dá início a todo o protocolo, ministrando as ofertas do Rei Católico e efetua os contactos primários com os diplomatas na corte de Madrid e com outros representantes de Portugal nas restantes cortes europeias ao serviço de D. Pedro, nomeadamente em França, na Alemanha, em Inglaterra e na Holanda12. Desencadeia igualmente a procura de outras fontes de informação na corte que começam a revelar o seu granjeio no final de Novembro, quando o embaixador português ficando a par do conteúdo de algumas correspondências, nomeadamente no que tocava à guerra na Flandres e às relações e movimentos de França. A audiência com a Rainha deu-se numa terça-feira à tarde, dia 20 de Janeiro de 1671, tendo esta sido requerida no dia anterior. O Marquês de Gouveia fez saber que D. Pedro pretendia conservar em Paz e que para tal se deveria cumprir o acordado no Tratado especificando o artigo 8º sobre a restituição das fazendas detidas por vassalos de cada reino no outro e sobre os juros, lembrando que o processo em Portugal estava mais adiantado do que em Castela 13. Propôs-se, por outro lado, que D. Pedro de Meneses recebesse o título de Duque de Caminha que iria contra o acordado no Tratado, argumentando que: “ (…) não estando a conservação da paz so nos afectos mas nos efeitos estes emcontra o effeito a duração da Paz entre estas duas Coroas e devia Sua Magestade revocar convenientes consiquensias (…) “ 14 Ao longo das cartas são-nos dadas muitas informações relativas a outras cortes, com mais frequência de França e do Pontificado Papal, relativas a outros embaixadores e à sua missão, a correspondências com a corte de Madrid ou mesmo da Rainha, opiniões relativas à economia e ao papel e atuação relativa aos cristãos-novos, ou mesmo a indicação e recomendação de resolução de alguns distúrbios de portugueses na fronteira e vice-versa. Numa carta do final do mês de Abril de 1671 o Marquês de Gouveia fez saber a D. Pedro que, a mando da Rainha, o Duque de Albuquerque o informou que os embaixadores extraordinários tinham tomado a iniciativa de não só terem privilégios concedidos às casas e famílias onde estavam como a todo o «Bairro de Freguesia» em que moravam, proibindo a entrada no mesmo de ministros de justiça, pelo que a Rainha requereu que se deixassem entrar os ditos ministros que não desrespeitariam os privilégios dos embaixadores e suas famílias. Tendo em conta que os embaixadores do Império e de França foram de encontro à vontade da Rainha, e que ambos o precediam, decidiu o Marquês admitir o mesmo 15. O tópico da posição francesa passou a ser cada vez mais recorrente a partir do Verão de 1671, quando o embaixador avisa D. Pedro do perigo de Castela se juntar a França,
presumindo que provavelmente Portugal passaria a ter dois inimigos. Considerava que França ajudaria Castela com base no rumor de uma possível invasão de Portugal por parte de Espanha e com o apoio de França, pelo que o embaixador aconselha a que se preparem medidas preventivas 16. Seria um erro arriscar a paz com os espanhóis, pelo que o embaixador português apressou-se a travar as veleidades francesas de D. Pedro, sabia que no final de 1671 Luís XIV estava preparado para se lançar nas Províncias Unidas 17, e entendeu que a política de Lisboa devia de ser a oposta daquela defendida pelo duque de Cadaval, já que eram os espanhóis aqueles que os portugueses deviam auxiliar discretamente até que a Monarquia se envolvesse em novo conflito com França, ficando Portugal remetido a uma posição de neutralidade. Nada garantia que na subida ao trono de D. Carlos II se continuasse a respeitar a Paz assinada. O contrário apenas se deveria considerar caso o objetivo fosse recuperar as perdas na Índia, ainda que o mais certo neste caso seria entrar num conflito aceso com os Holandeses, não tendo Portugal meios para os enfrentar 18. Mais tarde, o Marquês apercebe-se que também esta abordagem não seria a mais correta 19. Assim, mais do que a vigilância dos movimentos franceses tinha-se grande apreensão relativamente ao próprio comportamento de Castela, ficando em dúvida se este se colig aria com França contra a Holanda ou se optaria pela neutralidade 20, importava antes a Portugal que se verificasse “ (…) o estado do Reino os cabedais com que se acha Coroa, a forma en que estado de Inglaterra se ela nesta Liga, e o que fará castela.” 21. Duvidava o embaixador que Inglaterra quisesse entrar nessa Liga de França tendo em atenção o seu crescente poderio na Europa. A 5 de Fevereiro o Duque de Albuquerque propôs a D. João da Silva a constituição de uma Liga ofensiva e defensiva. O embaixador informou que antes teria de informar D. Pedro, justificando que: “Não era rezão emtrar em tratado sem primeiro fazer aviso a Vossa Alteza e querer com segunda hordem sua, reforçar mais as minhas instrunções, eporque eu não era daqueles Ministros que emtravão em tratado semelhante para o deixar embrião (…)” 22 Os trabalhos em torno desta circunstância foram considerados de maior importância pelo embaixador. Permaneceu a favor da manutenção da paz com Castela considerando mais perigoso o adversário que se encontra mais perto de Portugal do que tremer o que se encontra mais distante. Para além disso, permaneceu igualmente em desconfiança relativamente às intenções francesas reforçando normalmente nas cartas a D. Pedro o pouco que o reino deve à França e a pouca consideração que estes têm relativamente a estes negócios, já que nem notificaram Portugal 23. Comunica o embaixador no princípio de Março que os conflitos não devem demorar muito a encetar já que se verificam cada vez mais tropas francesas nas fronteiras da Catalunha e Navarra 24. De facto em Londres as negociações dos embaixadores de Cas tela e da Holanda não resultaram. A guerra foi declarada por Inglaterra a 18 de Março de 1672, França fez o mesmo a 6 de Abril imediatamente a seguir à despedida do embaixa dor holandês marcada para 27 de Março. Luís XIV esperou alguns dias para que Grotius saísse do território francês. Paralelamente, Carlos II justificava a intervenção militar por violações do Tratado de Breda alegando o não cumprimento do capitulado relati vamente à regulamentação do comércio, nas Índias Orientais, e à libertação dos súbdi tos britânicos e restituição dos seus bens na colónia de Surinan, nas Índias Ocidentais. Acrescentava acusações de violação ao «direito de estandarte» nos mares do Norte – onde os holandeses tinham apenas autorização de pescar mediante o pagamento de um tributo – de povoações anti-britânicas junto do governo francês e de atrevimento e in solência contra a sua real pessoa, em retratos ridículos, medalhas falsas ou colunas com inscrições satíricas e publicamente expostas 25. É a 24 de Março que Castela, através do Duque de Albuquerque, informa quais as condições e pretensões destes perante Portugal na formação de uma Liga. O Marquês de Gouveia transmite que Castela pretendia dez ou doze navios para se juntar à sua ar mada ou em esquadra e para juntar à cavalaria espanhola deveria Portugal fornecer até cinco mil homens de infantaria. Segundo conta na carta que enviou ao regente, o em
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Vide Idem, ibidem, Madrid, 10 de Julho de 1671, fol. 23. 17
Vide Idem, ibidem, Madrid, 24 de Dezembro de 1671, fol. 43v.
18
Vide «Cartas do Marquês do Gouveia para a Secretaria de Estado e para D. Pedro II» (…), Madrid, 3 de Janeiro de 1672, fols. 44 – 46. 19
Vide Carta do Marquês de Gouveia a D. Pedro, Madrid, 3de Dezembro de 1671, BPA, 49-X-6, fols. 81-82v.
20
Vide «Cartas do Marquês do Gouveia para a Secretaria de Estado e para D. Pedro II» (…), Madrid, 31 de Dezembro de 1671, fol. 43v-44. 21
Vide Idem, ibidem, Madrid, 3 de Janeiro de 1672, fol. 44v.
22
Vide Idem, ibidem, Madrid, 5 de Fevereiro de 1672, fol. 52-54. 23
Vide Idem, ibidem, Madrid, 5 de Fevereiro de 1672, fol. 52-54.
24
Vide Idem, ibidem, Madrid, 10 de Março de 1672, fol. 60. 25
Vide Ana Leal Faria, Duarte Ribeiro Macedo. Um diplomata moderno. 1618-1680. Instituto Diplomático e Ministério dos Negócios Estrangeiros, Portugal, 2005, apresentada originalmente como tese de doutoramento em História Moderna, à Universidade de Lisboa através da Faculdade de Letras, 2004, pp. 669-670.
25
baixador em toda a negociação pôs em realce que esta Liga seria defensiva para Castela e ofensiva para Portugal, pois decerto que se abririam hostilidades com o Estado que Castela rompesse. Desta forma, a Liga apresentava-se nitidamente de maior benefício para Espanha mesmo considerando numa possível ameaça por parte de França. Por outro lado, não concedeu nem as conveniências que Portugal pretenderia desta liga nem passou para escrito estas negociações como havia pedido o Duque de Albuquerque, uma vez que D. Pedro o instruíra a não passar nada a escrito, escusando-se dizendo “(…) que o era tão pouco, que a qualquer memoria por fraca que fosse lhe podia lembrar quanto mais a sua que elle se presava tanto (…) poes não era o mais de duas palavras que conveniencias queria, e que conveniencias fazia pella liga (…)” 26. O resultado acabou por ser a satisfação da Rainha pela procura constante de Portugal para manter a paz e a abertura a uma aliança que se opusesse ao poderio francês que a todos ameaçava, aconselhando a que se desse o primeiro passo com a permissão de D. Pedro para o Marquês de Gouveia principiar o tratado 27.
26
Vide «Cartas do Marquês do Gouveia para a Secretaria de Estado e para D. Pedro II» (…), Madrid, 24 de Março de 1672, fol.63v. 27
Vide Idem, ibidem, Madrid, 25 de Março de 1672, fol. 64. A discussão em torno dos poderes de um embaixador extraordinário já foram explanados super, pp. 10-11
28
Vide Ana Leal Faria, Duarte Ribeiro Macedo (…), pp. 684-689.
29
Vide «Cartas do Marquês do Gouveia para a Secretaria de Estado e para D. Pedro II» (…), Madrid, 25 de Abril de 1673, fols. 123v-124.
30
Vide «Cartas do Marquês do Gouveia para a Secretaria de Estado e para D. Pedro II» (…), Madrid, 22 de Outubro de 1671, fols. 34-34v.
Apenas a 12 de Julho, França e Inglaterra assinaram um novo acordo, confirmando o tratado de amizade de 12 de Fevereiro desse ano. Contudo a paz ainda não estava decidida, nomeadamente por se aguardar a posição de Madrid relativamente à exigência apresentada pelos ingleses a Monte Rey, governador da Flandres, no sentido de se retirarem guarnições castelhanas das praças do Brabante holandês. A sua recusa acarretaria nova declaração de guerra e o consequente prolongamento das hostilidades, aos castelhanos não convinha a aceitação das cedências territoriais impostas como condição de paz, na medida em que a Flandres ficaria cercada de praças e guarnições francesas. Paralelamente trabalhavam os enviados de França para formar uma Liga com Portugal e quebrar a paz com Castela. Entretanto o governo português procedia com cuidado e tomava as suas precauções relativamente ao país vizinho. O Marquês de Gouveia recebeu instruções para auscultar discretamente a posição de Madrid. Era necessário mostrar segurança e agir de forma a evitar provocar alguma hostilidade evitando que D. Pedro tivesse de se envolver forçadamente, ainda que o Secretário de Estado acreditasse que o permanecer neutral não era a postura mais certa e honrosa 28. Parece que uma Liga com Castela e Inglaterra também foi posta em discussão, sendo um dos grandes impulsionadores o Conde de Humanes, passando o trato igualmente por D. Francisco de Melo, embaixador em Inglaterra. Adverte igualmente que o embaixador de Castela “ (…) alem dos gastos secretos, ajudas de custo e mesadas tem pedido grandes dobrões para negociação de Portugal (que são as suas formaes palavras) e que se lhe tem mandado para este negocio 6 mil dobões (…) ” 29. Não só pediu D. João da Silva por mais informações como aconselhou que fazer uma Liga com Castela e Inglaterra ao mesmo tempo lhe parece impossível tendo em conta que os interesses destes reinos eram diferentes, sendo forçoso caso se verificasse estas Ligas, não cumprir o acordado com algum destes Estados. Tendo em conta o grande empenho, pelo menos aparente, de Castela neste negócio entendia quase certo que se iniciasse um conflito armado. Nada disto se colocava caso este fosse de facto o intento de D. Pedro. Persistiu nesta embaixada a preocupação na resolução de problemas que começaram a ser tratados por Henrique de Sousa Tavares, principalmente no que toca à restituição dos bens das duas Coroas. De todos os negócios que se encerram neste campo talvez tenha sido a resolução do caso do juro relativo aos Agostinhos Recoletos, à restituição de S. Lucar e à revocação do título do Duque de Caminha e restituição do Ducado, que de maior dificuldade se apresentaram pelo desacordo entre a Rainha Mariana e D. Pedro. No tratamento destes casos o Marquês de Gouveia teve essencialmente trato com o Duque de Albuquerque, entre encontros e constante correspondência, alguma da mesma que o embaixador enviava cópia a D. Pedro. Por outro lado, continuavam os problemas de confiscos de propriedades ou bens a portugueses, nomeadamente o caso de Manuel Quaresma em Buenos Aires considerado pelo embaixador uma ação pouco justificada o que o levou a que impugnasse esta decisão 30. Por outro lado, a obstinação de Lisboa em adiar as devoluções era motivada por razões mais profundas que a simples intriga. Entre os apoiantes da nova ordem portuguesa
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deu-se por adquirido que Madrid pretendia a restituição dos Aveiro, Vila Real e Castelo Rodrigo, tendo em vista fomentar em Portugal uma revolta pró-Habsburgo. Não se põe de lado que essa possibilidade não tenha ficado em aberto no governo espanhol mas também tem de se ter em conta a necessidade da coroa portuguesa de manter os bens devido à sua debilidade. Por exemplo, a casa do Infantado tinha sido construída a partir dos bens de Vila Real e de Castelo Rodrigo, pelo que se percebe a oposição de D. Pedro em 1672 em devolver os bens de Vila Real ao seu presumível herdeiro em Castela. Se bem que o Marquês de Castelo Rodrigo jamais tenha recuperado o seu património, o seu caso foi motivo de reflexão por parte do Marquês de Gouveia, que depois de uma reunião conjunta no palácio de la Florida foi pedido ao embaixador que intercedesse junto de D. Pedro para obter os bens que lhe tinham sido confiscados 31. Numa carta enviada a Lisboa o diplomata faz considerar vantajosa atrair uma personalidade de tamanha importância para o lado português: “Se Vossa Alteza aprovar o ajustamento deste negócio, só direi que, se não encontra com a consciência e caso se conforme com a política comprar em reino estranho a todo o preço um Ministro de iguais suposições às que o Marquês logra (…) ” 32. Para D. Pedro, ainda assim, era melhor assegurar o seu património do que receber um «ministro» tão pouco fiável como Castelo Rodrigo. A questão das precedências e dos procedimentos também se colocou quando o Marquês de Gouveia deu conta do comportamento dos embaixadores de Madrid a Lisboa, poisestes por norma procuravam em primeiro lugar o título de juiz do povo do que ser recon hecido por D. Pedro enquanto embaixador de Castela, exemplificando com os casos do. Marquês Deliche, do Barão de Bateville e do Conde de Humanes mais recentemente 33 Estas não foram as únicas inquietações análogas entre as duas embaixadas, para além do próprio desgaste dos embaixadores que notamos essencialmente pelas constantes referências à falta de saúde, a logística dos correios e da vinda dos dinheiros persisteconfusa e inconsistente. D. João da Silva chegou a enviar ao soberano correspondên cias com questões de maior importância das embaixadas de D. Francisco de Melo ou de Duarte Ribeiro Macedo pela necessidade de brevidade da resposta tentando evitar a demora dos «coreios ordinarios» e ficar atento às reações na corte de Madrid a estas mesmas notícias.34 Em Agosto de 1672 o embaixador avisa o Rei de que daí a dois meses se acabaria os provimentos das mesadas essenciais para que continue a exercer este cargo, o problema continuou pelo menos até Novembro desse ano, causando grande inquietação uma vez que a falta de dinheiro interfere diretamente nas suas atividades.35 Atividades estas que eram, como já realçamos, relatadas ao Príncipe regente e, princi palmente a partir de 1671, algo que parece repetir-se noutras embaixadas. O Secretário de Estado nomeado por D. Pedro era Francisco Correia de Lacerda e com o tempo parece que se acentuou a sua ligação com os representantes diplomáticos. Era com ele que o Marquês de Gouveia discutia aspetos técnicos, ainda que a Secretaria de Estado não fosse um órgão dotado de capacidade para resolver alguns dos principais problemas dos diplomatas, nomeadamente o atraso das mesadas que tanta angústia causava, talvez por isso na correspondência D. João da Silva insista neste percalço com o regente e não com Francisco Correia de Lacerda.
31
Vide Rafael Valladares, A Independência de Portugal. Guerra e Restauração 1640-1680. A esfera dos livros, [Lisboa], Novembro de 2006, pp. 325-326. 32
Vide Carta do Marquês de Gouveia a D. Pedro, Madrid, 27 de Dezembro de 1670, BPA, 49-X-6, fols. 14-14v.
33
Vide «Cartas do Marquês do Gouveia para a Secretaria de Estado e para D. Pedro II» (…), Madrid, 11 de Agosto de 1672, fol. 91v. 34
Vide Idem, ibidem, Madrid, 25 de Outubro de 1671, fol. 34v.
35
Vide «Cartas do Marquês do Gouveia para a Secretaria de Estado e para D. Pedro II» (…), Madrid, 3 de Novembro de 1672, fol. 100v.
O término da sua embaixada foi preparado com alguma antecedência, processo que tevede ser acelerado com o fervilhar das contendas junto ao local onde morava e com o aumento das brigas entre os seus criados e os castelhanos. Notou acontecimentos deste tipo durante toda a semana sendo necessário a meio da mesma ser deslocado com a sua família para casa do Conde de Atalaia. Segundo as suas descrições os motins chegaram a ter cinco mil pessoas, que atacavam constantemente os seus criados, apedrejavam a sua casa, tentaram arrombar a porta, queimá-la e roubá-la. Sabendo destes acontecimentos a Rainha enviou D. Pedro de Proas, seu mordomo e familiar do embaixador, para tratar de uma segurança mais eficaz. Informou a sua intenção de pedir audiência de despedida, na primeira semana de Outubro, pois já concluíra as visitas aos Ministros e tinha sido bem-sucedido nos negócios confiados a esta embaixada. Informando D. Pedro de uma votação recente no Conselho
27
de Estado, pelos vistos singular, que ainda não temos por certo qual o assunto discutido, pediu que esta se mantivesse secreta o mais tempo possível. Despede-se pedindo licença para que Miguel da Silva Pereira regressasse a Portugal com ele e que estando em Lisboa “(…) despoes de Vossa Alteza me ouvir, resolverá se comvem mandar Menistro a Castela, quem e com que carather.” 36 Em modo de conclusão, percebemos, através da correspondência, que a estrutura das instruções e por conseguinte o intuito da embaixada do Marquês de Gouveia devia de ser muito semelhante à de Henrique de Sousa Tavares, não só em questões de protocolo, de contactos e da rede de comunicações entre os embaixadores portugueses, como também a abordagem solicitada para aquela corte, e acima de tudo com o principal objetivo de manter a paz com Castela e o esforço constante de permanecer neutral perante a instabilidade Europeia. Este propósito de neutralidade continuou dúbio perante as várias Ligas que se formavam, não só na escolha entre Inglaterra e Holanda ou França, como na primeira embaixada, mas entre estes e Castela, num leque que se abria com diversas combinações, deixando Portugal numa posição difícil de manter. Neste campo D. João da Silva expôs por diversas vezes a sua opinião, indo ao encontro da do Secretário de Estado, admitindo que a neutralidade era um caminho necessário mas que não se mostrava digno para o Reino.
36
Vide «Cartas do Marquês do Gouveia para a Secretaria de Estado e para D. Pedro II» (…), Madrid, 29 de Setembro de 1673, fols. 148v-151.
Entendemos que todos estes pontos revelam uma continuidade de propósitos e preocupações. Acrescentamos a reportação dos atrasos da correspondência e principalmente das mesadas e um crescente desgaste e cansaço. Este desgaste parece ser suscitado em parte dos conflitos cada vez mais imperantes dos castelhanos, tanto por parte do Conselho de Estado e da corte espanhola, como diretamente da população madrilena. Como vimos a agressividade cresceu no final do Verão de 1673 num ataque direto ao embaixador português, forçando-o a mudar de casa e de ter guardas junto à sua residência. Terminando esta embaixada a 18 de Outubro de 1673, apenas em 1676 Diogo Gomes Figueiredo se desloca a Madrid enquanto enviado extraordinário. No ano seguinte assume novamente destaque a embaixada portuguesa na corte castelhana através de Duarte Ribeiro de Macedo.
28
1 – Fontes Fontes Manuscritas Parecer do Duque de Cadaval sobre a embaixada a Castela do Marquês de Gouveia, Lisboa, 9 de Junho de 1670, BNP, Fundo Geral. Cód. 11234//44, fls. 75-78v. Carta de Wateville à rainha regente, Lisboa, 3 de Abril de 1670, AGS, E, leg.2617 «Cartas do Marquês do Gouveia para a Secretaria de Estado e para D. Pedro II», de 22 de Outubro de 1670 a 18 de Outubro de 1673, BGUC, Reservados. Ms. 2967, fls. 1-155. Carta do Marquês de Gouveia a D. Pedro, Madrid, 27 de Dezembro de 1670, BPA, 49-X6, fols. 14-14v. Carta da rainha regente a D. Diogo de la Torre, 7 de Maio de 1671, AGS, E, leg. 2619. Carta do Marquês de Gouveia a D. Pedro, Madrid, 3 de Dezembro de 1671, BPA, 49-X-6, fols. 81-82v. Fontes Impressas «Tratado de Paz entre El –Rei o Senhor D. Affonso VI e Carlos II Rei de Espanha, por mediação de Carlos II Rei da Gran-Bretanha, feito e concuido no convento de Santo Eloy da cidade de Lisboa, a 13 de Fevereiro de 1668; ratificado por parte de Portugal, em 3 de Março e pela de Hespanha, em 23 de Fevereiro do dito anno», Collecção dos tratados, convenções, contratos e actos publicos celebrados entre a coroa de Portugal e as mais potencias desde 1640 até ao presente. Tombo I, Compilação coordenada e anotada por José Ferreira Borges de Castro, Imprensa Nacional, Lisboa, 1856-1858, pp. 357-372. 2 – Estudos FARIA, Ana Maria Homem, Duarte Ribeiro de Macedo. Um diplomata moderno. 16181680. Instituto Diplomático e Ministério dos Negócios Estrangeiros, Portugal, 2005, apresentada originalmente como tese de doutoramento em História Moderna, à Universidade de Lisboa através da Faculdade de Letras, 2004. VALLADARES, Rafael, A Independência de Portugal. Guerra e Restauração 1640-1680. A esfera dos livros, [Lisboa], Novembro de 2006.
29
1
Investigador do Centro de Estudos de História Religiosa; Bolseiro de Doutoramento da FCT. 2
Alguns Problemas de Interpretação da
Sobre o género das inscrições
Strudwick, Texts from the Pyramid Age, 42-46. 3
Acerca das relações entre Egipto e Núbia durante o Império Antigo egípcio vide Carita, «As Relações do Antigo Egipto com a Núbia», 16-38, e Török, Between Two Worlds, 53-73. 4
André Silva
1
«Old Kingdom», 129.
5
Sobre o debate acerca da localização de Iam e de outros topónimos – nomeadamente Uauat, Irtjet, e Setjau – vide, inter alia, as discussões de: Carita, «As Relações do Antigo Egipto com Yam»; Goedicke, «Harkhuf ’s Travels», 14-20; Kemp, «Old Kingdom», of Yam and Kush and their Historical Implications»; O’Connor, Ancient Nubia, 32, 36; Török, Between Two Worlds, 18 n. 61, 59 n. 44, 61 n. 58.
From Slave to Pharaoh, 32, 166 n. 8, e Trigger, «Kerma», 8, é possível que Iam fosse o nome dado à cidade de Kerma durante o Império Antigo. 6
Sethe, Urkunden des Alten Reichs, p. 124 ll. 9-12 (daqui em diante citado como Urk. I). Por razões de espaço não nos é possível apresentar uma Horkhuf. Para uma tradução integral o leitor poderá consultar, inter alia, as traduções de Roccati, La littérature historique, 200-207, e de Strudwick, Texts from the Pyramid Age, 328-33. Os termos aqui discutidos são assinalados a negrito.
7
Faulkner, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, 58; Kadish, «Old Kingdom Egyptian Activity in Nubia», 24-25. 8
Kadish, «Old Kingdom Egyptian Activity in Nubia», 25; Török, Between Two Worlds, 68; Strudwick, Texts from the Pyramid Age, 150.
9
Referências em Kadish, «Old Kingdom Egyptian Activity in Nubia», 25 com n. 3. Nem todos os autores traduzem a primeira e a uba fia de Horkhuf da mesma forma. Por exemplo, Strudwick, Texts from the Pyramid Age, 330, traduz a primeira g) Merenre, my lord, sent me […] to Iam to open up the way to this foreign land.» E na segunda por: «I returned in the region of the house of the ruler of the lands of Setjau and Irtjet, after having explored those foreign lands.» A ênfase é minha. A segunda ocorrência será discutida mais à frente.
10
«Old Kingdom Egyptian Activ ity in Nubia», 25-26.
Fig. 1: Mapa do antigo Egipto e da antiga Núbia que inclui os principais oásis do deserto ocidental. Fonte: Alan B. Lloyd, ed. A Companion to Ancient Egypt, vol. 1 (Oxford: Blackwell, 2010), xliv.
Nesta breve exposição pretendemos dar a conhecer alguns dos problemas de interpretação da biografia de Horkhuf, e algumas das sugestões que têm sido feitas para os resolver. A biografia deste alto funcionário de Elefantina (vide figs. 1 e 2) da VI dinastia é uma das mais extensas do Império Antigo 2, e é uma das que mais informação sobre as actividades egípcias na Núbia contém. Por esse motivo, tem sido amplamente usada nos estudos sobre a história das relações entre o Egipto e a Núbia 3. Mas, devido à ambiguidade de alguns termos e de alguns passos, o que Barry Kemp diz acerca do uso da biografia de Horkhuf para localizar Iam é válido para outros usos da sua narrativa biográfica: «The internal evidence of Harkhuf’s narrative is, despite much debate, too insubstantial for locating this place» 4. Neste artigo concentrar-nos-emos apenas em alguns problemas linguísticos e semânticos das descrições das três viagens de Horkhuf a Iam 5. O relato da primeira viagem de Horkhuf a Iam inicia-se da seguinte forma: «A Majestade de Merenré, meu Senhor, enviou-me juntamente com o meu pai, o Amigo Único e Sacerdote Leitor Iri, a Iam para abrir-uba o caminho para esta terra estrangeira» 6. O verbo uba, que traduzimos aqui por «abrir», refere-se ao objectivo de Horkhuf e do seu pai e, por conseguinte, é de especial importância para a compreensão das suas actividades no âmbito das relações entre o Egipto e a Núbia no Império Antigo tardio. Pode ser traduzido por «abrir (tanto uma porta como uma rota comercial, por exemplo)», «revelar», e «explorar» 7 . O mesmo termo é repetido na descrição da segunda viagem de Horkhuf a Iam – quando é afirmado que Horkhuf uba as regiões de Setjau e Irtjet –, e ocorre também noutros textos da VI dinastia referentes a expedições egípcias ao estrangeiro 8 . É por isso plausível que o sentido de uba seja similar nesse tipo de documentos. Contudo, o envio de expedições egípcias ao estrangeiro não constitui um contexto suficientemente claro para que seja elucidativo acerca do significado de uba, uma vez que a interpretação das actividades de Horkhuf e de outros funcionários enviados à Núbia, enquanto exploração do território núbio, é tão possível como a interpretação de que essas actividades tinham por objectivo estabelecer rotas comerciais com Iam, recorrendo à força militar se necessário. Vários autores aderiram à tese de que Horkhuf seria um explorador 9, mas, como argumenta Gerald Kadish 10, uma das inscrições em Tomas refere que o funcionário Khunes foi enviado à Núbia por Pepi I – rei anterior ao soberano Merenré que enviou Horkhuf a Iam – para uba Irtjet (uma região certamente já conhecida pelo
31
11
Ibid., 26-28.
12
Egypt, 109-10. 13
Török, Between Two Worlds, 53-54. 14
Ibid., 60.
15
-
16
Veja-se Strudwick, Texts from the Pyramid Age, 133-34, e Török, Between Two Worlds, 60. 17
Urk. I, p. 125 ll.8-9; Strudwick, Texts from the Pyramid Age, 330. 18
A tradução deste termo na literatura egiptológica não está isenta O’Connor, Ancient Nubia, 6: «Egyptians called both Near Eastern and Nubian rulers heka or wer. Scholars translate these words as “ruler” or “king” for the Near Eastern rulers, but as “chief ” for the Nubian, although nothing in the texts warrants the differentiation.» Esta questão prende-se com o grau de complexidade das sociedades núbias: é difícil asseverar se, à excepção de Kerma, houve estados, ou mesmo chefaturas complexas, na Núbia antes dos reinos de Napata e de Meroé, ou se até à emergência destes reinos apenas haveria pequenas chefaturas (O’Connor, Nubia, xi, 1, 3; Török, Between Two Worlds, 41-42). Por esta razão, optamos aqui pelo termo mais neutral «governante». 19
Urk. I, p. 125 ll. 6-7.
20
Török, Between Two Worlds, 6869. Veja-se uma discussão do termo Gift in Ancient Egypt. 21
Gift in Ancient Egypt, 202. 22
Sobre esta designação veja-se
e Goedicke, «Harkhuf ’s Travels», 10, 18 n. 109. 23
Acerca do uso de «soberano-itu» em vez do tradicional «rei-nesu», vide Goedicke, «Harkhuf ’s Travels», 13.
24
Urk. I, p. 125 ll. 13, 15-17, p. 126 ll. 1-4; Strudwick, Texts from the Pyramid Age, 330-31. 25
Török, Between Two Worlds, 69 n. 98. 26
of Yam», 45, esta seria à primeira vista a reacção mais expectável. 27
«Harkhuf ’s Travels», 11.
28
Veja-se por exemplo a tradução de Strudwick, Texts from the Pyramid Age, 331: «I followed him to the land of the Tjemehu.»
32
menos desde a IV dinastia), e a própria biografia de Horkhuf menciona outros funcionários que haviam sido enviados a Iam anteriormente. Por conseguinte, a tese de Horkhuf enquanto explorador da Núbia deixa de fazer sentido. Kadish 11 propõe uma alternativa porventura mais interessante, segundo a qual a palavra uba teria, pelo menos na biografia de Horkhuf, o sentido de «inspeccionar». Efectivamente, não é de descartar a hipótese, também sugerida por Toby Wilkinson 12 , de que Horkhuf aproveitasse as suas expedições de índole comercial e diplomática ao território de Iam para manter sob vigia os desenvolvimentos políticos na Núbia. Com 13 efeito, entre a II e a V dinastias egípcias a Baixa Núbia esteve praticamente despovoada mas a partir de meados da V dinastia os egípcios abandonaram os postos avançados na Baixa Núbia, como o de Buhen Norte (vide figs. 1), e esta região foi ocupada por sucessivas vagas de migrações de populações da cultura do Grupo-C. László Török 14 sugere ainda que as vias comerciais teriam de ser reabertas em cada novo reinado. A confirmar-se, esta prática encontra paralelos nas campanhas militares durante os primeiros anos do reinado de vários reis, sobretudo do Império Novo. Sabe-se que após a acessão de cada novo rei, os «vassalos» estrangeiros do Egipto tinham de renovar a sua fidelidade ao rei, e é possível que as campanhas durante o início dos reinados se destinassem a punir os dissidentes15 . Algumas inscrições do reinado de Merenré podem também inserir-se neste costume da renovação de fidelidade ao rei egípcio: em duas ocasiões – a primeira possivelmente no início do reinado de Merenré, e a segunda alguns anos depois –, o rei esteve presente primeiro em Filae e depois na Baixa Núbia para que os governantes de Irtjet, Medja, e Uauat se prostrassem perante ele e o louvassem 16. O verbo uba volta a ocorrer na narrativa da segunda expedição de Horkhuf – desta vez sem o seu pai – a Iam: «regressei a partir da região do domínio do gover nante-heka de Zatju e Irtjet, depois de ter inspeccionado-uba estas terras estrangeiras» 17. O seu sentido permanece ambíguo, mas o autor da biografia acrescenta uma informação relevante após o uso do termo uba: os territórios de Irtjet e de Setjau estavam agora unidos sob o mesmo heka (HqA)18, «governante», o que reforça a tese de que um dos principais objectivos de Horkhuf seria a inspecção e recolha de informações acerca da situação política na Núbia. Na descrição da segunda viagem de Horkhuf, o uso do termo inu (inw) torna explícita a dimensão comercial e/ou diplomática da expedição do alto funcionário de Elefantina: «Foi trazendo grandes quantidades de tributo-inu – cujo equivalente nunca foi trazido para esta terra anteriormente – que eu regressei» 19 . Este termo é também difícil de traduzir, mas no contexto das actividades de Horkhuf pode ser entendido como «tributo» ou «presente oficial» 20. Num sentido alargado, inu pode ser lido como «saque» 21, mas na biografia de Horkhuf parece designar bens que foram adquiridos pacificamente. A descrição da terceira viagem de Horkhuf a Iam apresenta novos problemas de interpretação: «Ora, sua Majestade enviou-me pela terceira vez, a Iam. […] Descobri que o governante de Iam foi para Ta-Tjemeh, para escorraçar os Tjemehu até ao “canto ocidental do céu” 22. Fui atrás dele até Ta-Tjemeh. Pacifiquei-o-sehetep para que ele louvasse os deuses em prol do soberano 23» 24. Após ter chegado a Iam e descoberto que o governante iamita havia partido em campanha militar contra os Tjemehu – possivelmente tribos nómadas que habitavam o deserto ocidental 25 –, Horkhuf partiu no seu encalço, em vez de esperar pelo regresso do governante de Iam 26. Autores como Goedicke 27 , fizeram uma leitura diferente da expressão em-sa-f (m-sA=f), e propuseram que, ao invés de «ir atrás» do governante iamita, Horkhuf «escoltou-o» para ganhar a sua confiança e gratidão. Mas no geral considera-se que Horkhuf foi atrás do governante de Iam 28. A questão que se coloca é, com que intento? O texto diz que Horkhuf sehetep (sHtp) o governante de Iam para que este louvasse todos os deuses pelo rei egípcio. Tal como os vários termos que temos visto até aqui, sehetep tem mais do que uma acepção. À letra, significa «satisfazer» e «tornar
pacífico (isto é, pacificar)». Este verbo é usado tanto em contextos diplomáticos como bélicos 29. As opiniões dividem-se entre se Horkhuf satisfez o governante de Iam ao comerciar com ele, ao demovê-lo da intervenção militar com um bom negócio, ou ainda se o pacificou/subjugou recorrendo à força militar ou à ameaça de força. Qualquer uma destas hipóteses é possível, mas a que parece enquadrar-se melhor no contexto das actividades egípcias na Núbia durante a VI dinastia é a última. Mas analisemos primeiro as outras duas. Não é impossível que Horkhuf se tenha juntado ao governante de Iam para lhe anunciar que estava disponível para comerciar. O parceiro comercial egípcio era o rei, de quem Horkhuf era apenas um intermediário 30, e é provável que as trocas comerciais com comerciantes iamitas precisassem também do aval do governante de Iam 31. Por conseguinte, é possível que Horkhuf tenha ido atrás do governante de Iam para lhe oferecer presentes oficiais do rei Merenré de modo a obter autorização de comércio com os iamitas 32, sobretudo se havia previsões de a campanha iamita ser demorada. É possível também que Horkhuf tenha tentado fazer o governante de Iam abandonar a sua campanha militar, uma vez que a existência de conflitos na região poderiam dificultar o comércio entre o Egipto e Iam 33. Além disso, a Baixa Núbia seria já um foco de tensões e hostilidades que dificultavam a passagem de funcionários egípcios pela região. Quanto à última hipótese que foi aqui elencada, a de que Horkhuf teria subjugado o governante de Iam, há vários indícios que a suportam – sem no entanto serem necessariamente decisivos –. Pelo menos desde a IV dinastia, as relações com a Alta Núbia, onde se situaria Iam, eram de natureza ambígua: por um lado os egípcios precisavam dos núbios dessa região para acederem a uma série de produtos luxuosos, mas por outro conduziam raides com o objectivo de capturarem largas quantidades de prisioneiros 34. Este precedente histórico lembra-nos que Horkhuf poderia facilmente também comerciar com o governante de Iam numa ocasião e desafiá-lo militarmente noutra. Mas se a força militar que o acompanhava seria suficiente para derrotar o governante de Iam é menos certo, segundo autores como Bruce Trigger 35. E, qualquer que tenha sido a natureza da interacção entre Horkhuf e o governante de Iam, Horkhuf regressa ao Egipto com trezentos asnos carregados de produtos de luxo, como incenso, ébano, e presas de elefante, e acompanhado de uma escolta de soldados iamitas (possivelmente mercenários) que, juntamente com a escolta egípcia, impressionaram o governante do agora vasto território de Irtjet, Setjau, e Uauat (na sua segunda viagem, Horkhuf havia observado que apenas os dois primeiros territórios estavam unidos sob o mesmo governante) 36. Com base neste dado, podemo-nos interrogar até que ponto é que a força militar de Horkhuf conseguiria enfrentar um exército núbio, e até que ponto é que, ainda que obtivesse uma vitória, Horkhuf se podia dar ao luxo de sofrer várias baixas entre as suas fileiras. Contudo, é também possível que Horkhuf tivesse ao seu comando uma força expedicionária de dimensão considerável para lidar com escaramuças pelo caminho. Com efeito, as intervenções militares egípcias na Núbia tornaram-se mais frequentes na VI dinastia, e o epíteto, aplicado também a Horkhuf, de «aquele que coloca o medo de Hórus (isto é, do rei) nas terras estrangeiras» torna-se também mais usual durante a mesma dinastia 37. A biografia do sucessor de Horkhuf, Pepinakht Heqaib, é inequívoca quanto à associação entre o uso da violência na Baixa Núbia e o termo sehetep. Este alto funcionário de Elefantina foi enviado duas vezes pelo rei Pepi II para «devastar a terra de Uauat e Irtjet» 38: segundo a sua narrativa biográfica, na primeira expedição matou um grande número de núbios, e fez um considerável número de prisioneiros; e na segunda expedição capturou os governantes de Uauat e de Irtjet 39. Na descrição da segunda expedição de Pepinakht é dito que Pepi II o enviou para «sehetep aquelas terras estrangeiras» 40. Aqui sehetep tem claramente o sentido de subjugação pela força. Se o contexto das actividades de Horkhuf na Alta Núbia não dista muito do
29
Török, Between Two Worlds, 68.
30
Kadish, «Old Kingdom Egyptian Activity in Nubia», 30 com n. 7. 31 32
Trigger, «Kerma», 9. Ibid.
33 34
Carita, «As Relações do Antigo Egipto com a Núbia», 17; Kemp, «Old Kingdom», 123-24; Török, Between Two Worlds, 55-56. 35
«Kerma», 9.
36
Urk. I, p. 127 ll. 4-11; Strudwick, Texts from the Pyramid Age, 331. 37
Kadish, «Old Kingdom Egyptian Activity in Nubia», 31. 38
Strudwick, Texts from the Pyramid Age, 334. 39
Ibid., 335.
40
Urk. I, p. 134 ll. 3-4; Kadish, «Old Kingdom Egyptian Activity in Nubia», 31; Strudwick, Texts from the Pyramid Age, 335.
33
contexto das actividades de Pepinakht Heqaib, isto é, a protecção dos interesses da monarquia egípcia na Núbia, então podemos inferir, como Gerald Kadish 41, que Horkhuf de facto defrontou e derrotou o governante de Iam. Vemos assim como a biografia de Horkhuf pode ser alvo de diferentes interpretações. A partir do seu texto biográfico, pode ser inferido que Horkhuf era um explorador, um comerciante, um diplomata, um observador dos desenvolvimentos políticos na Núbia, e um líder militar. Não sabemos ao certo quais destas actividades foram exercidas por Horkhuf, ou se exerceu cada uma delas em momentos e circunstâncias diferentes. O que é importante é termos em consideração, na redacção de uma história das relações entre o Egipto e a Núbia durante a VI dinastia egípcia, as diversas possibilidades interpretativas que o texto nos oferece.
41
«Old Kingdom Egyptian Activity in Nubia», 32.
Fig. 2 : The Oriental Institute of the University of Chicago, «Oriental Institute Map Series – Site Maps», http://oi.uchicago.edu/research/lab/map/maps/sudan.html (acedido a 1 de Agosto de 2013).
34
Bibliografia Carita, Maria Joaquina. «As Relações do Antigo Egipto com a Núbia», tese de m e s t r a do. Universidade de Lisboa, 2012. Dixon, D. M. «The Land of Yam». Journal of Egyptian Archaeology 44 (1958): 40-55. Faulkner, Raymond O. A Concise Dictionary of Middle Egyptian. Oxford: Griffith Institute, 1962. Goedicke, Hans. «Harkhuf’s Travels». Journal of Near Eastern Studies 40 (1981): 1-20. Gordon, Andrew H. Recensão de The Official Gift in Ancient Egypt, por Edward Bleiberg. Journal of American Research Center in Egypt 35 (1998): 201-203. Kadish, Gerald E. «Old Kingdom Egyptian Activity in Nubia: Some Reconsiderations», Jounal of Egyptian Archaeology 52 (1966): 23-33. Kemp, Barry J. «Old Kingdom, Middle Kingdom and Second Intermediate Period c. 2686-1552 BC» em Ancient Egypt: A Social History, editado por Bruce G. Trigger, Barry J. Kemp, David O’Connor, e Alan B. Lloyd, 71-182. Cambridge, Cambridge University Press, 1983. Morris, Ellen F. «The Pharaoh and Pharaonic Office». Em A Companion to Ancient Egypt, editado por Alan B. Lloyd, 1:201-17. Oxford: Blackwell, 2010. O’Connor, David. «The Locations of Yam and Kush and their Historical Implications». Journal of the American Research Center in Egypt 23 (1986): 27-50. ———. Ancient Nubia: Egypt’s Rival in Africa. Philadelphia: The University Museum, 1993. Redford, Donald B. From Slave to Pharaoh: The Black Experience of Ancient Egypt. Baltimore e Londres: The Johns Hopkins University Press, 2004. Roccati, Alessandro. La littérature historique sous l’ancien empire egyptien. Paris : Les Éditions du Cerf, 1982. Sethe, Kurt. Urkunden des Alten Reichs, vol. 1. Leipzig: J. C. Hinrichs’sche Buchhandlung, 1933. Strudwick, Nigel C. Texts from the Pyramid Age. Atlanta: Society of Biblical ture, 2005.
Litera-
Török, László. Between Two Worlds: The Frontier Region between Ancient Nubia and Egypt 3700 BC-500 AD. Probleme der Ägyptologie 29. Leiden: Boston, Brill, 2009. Trigger, Bruce G. «Kerma: The Rise of an African Civilization». International J o u r n a l of African Historical Studies 9 (1976): 1-21. Wilkinson, Toby. The Rise and Fall of Ancient Egypt: The History of a Civilisation from 3000 BC to Cleopatra. Londres: Bloomsbury, 2010.
35
36
Ibn Fadlan e os vikings do Volga Hélio Pires1
1
Doutorado em História Medieval pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas na Universidade Nova de Lisboa.
Se o título deste artigo traz à memória qualquer coisa de familiar, na volta é porque viu ou ouvir falar do filme O último viking com Antonio Banderas. Um viajante árabe encontra um grupo de nórdicos, assiste ao funeral de um deles, fica a conhecer hábitos de higiene pouco recomendáveis e depois segue para a Escandinávia, onde ajuda a combater um grupo de guerreiros. Esta é, resumidamente, a narrativa cinematográfica. E uma das perguntas que me fazem com alguma frequência é se há alguma coisa de verdadeiro no filme. A resposta é sim. Pelo menos no que diz respeito ao episódio inicial à beira-rio, o grande ecrã reflecte parte da descrição de Ibn Fadlan, que passou pelo Volga durante a sua viagem no início do século X. Mas antes de olharmos para esse texto, convém esclarecer como é que os vikings chegaram ao leste europeu. A presença nórdica na Europa oriental data pelo menos de meados do século VIII. Terá sido nesse período que surgiu uma comunidade escandinava em Staraja Ladoga, um posto comercial perto do Báltico e actualmente no norte da Rússia. O pequeno povoado teria já cerca de cem anos de existência e um historial de contactos com o que é hoje a Suécia (Androshchuk 2008: 520), mas a fixação de nórdicos em Staraja Ladoga representou uma nova fase na actividade comercial no Báltico. Por um lado, porque coincidiu com o aparecimento de mercados permanentes na Escandinávia; por outro, porque resultou num maior envolvimento de nórdicos no tráfego e rotas orientais. Dedicar-se-iam à ferraria, à joalharia e ao comércio de peles. E teriam outro móbil na prata árabe que, de mercado em mercado, ia subindo os rios russos em quantidades crescentes. Atraídos por esse metal precioso e por lucros maiores, os nórdicos começaram a seguir as rotas fluviais que ligavam o Báltico ao Mar Negro e Mediterrâneo. O processo terá começado no final do século VIII ou início do IX, numa altura em que irrompiam também as investidas piratas no outro lado da Europa. Mas enquanto a ocidente os atacantes eram chamados de vikings, normandos ou apenas pagãos, a leste recebiam o nome de Rus. O termo está relacionado com a palavra finlandesa para Suécia (Ruotsi) e poderá ter origem em rodd (remar), com o sentido provável dos homens que viajam remando (Brink 2008: 7). Mas não era só no nome que os vikings da Europa oriental se distinguiam dos da ocidental: a ausência de mosteiros e a escassez de povoados a leste tornava a actividade pirata menos lucrativa, motivo pelo qual os Rus agiam mais como mercadores e mercenários.
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Fig. 5 : Os Rus segundo Nicholas Roerich (1901)
Poucas décadas terão bastado para que os nórdicos descessem os rios russos até ao Mar Negro e estabelecessem bases ao longo das rotas fluviais. Um indício claro disso mesmo surge numa fonte franca, os Anais de São Bertino, que registam a chegada de uma embaixada bizantina à corte de Luís, o Pio, sucessor de Carlos Magno (Nelson 1991: 44). O ano era 839 e entre os embaixadores contava-se um grupo de Rus que, diz o texto, eram enviados do seu rei ou khan e que tinham chegado a Constantinopla por via de terras selvagens. O imperador bizantino pedia, por isso, ao seu congénere franco que os ajudasse a regressar a casa, algo que não terá acontecido: quando Luís, o Pio, descobriu que aqueles Rus eram oriundos da Suécia, ordenou a sua prisão por suspeita de espionagem. O episódio é revelador do temor causado pelos ataques vikings em território franco, mas diz-nos também que, passadas as primeiras décadas do século IX, os nórdicos já tinham percorrido os rios russos ao ponto de terem representantes em Constantinopla. Um laço diplomático que talvez tenha sido impulsionado pelo processo inverso, isto é, a presença de embaixadores bizantinos no norte da Europa (Shepard 2008: 497), mas que acabou, também, por abrir caminho ao primeiro ataque viking a Bizâncio, em 860. Quanto ao Volga, a julgar pelos achados arqueológicos, os contactos com a Escandinávia datam pelo menos do século IX (Androshchuk 2010: 523). Dada a expansão nórdica noutros pontos da actual Rússia, pouco espanta que, na década de 920, os vikings ou Rus (Figura 5) navegassem já por aquele rio. É neste contexto que Ibn Fadlan encontra um grupo de escandinavos. Oriundo de Bagdad, integrava uma embaixada Abássida aos Búlgaros do Volga, cujo líder mostrara interesse no islamismo. Da viagem ficou-nos um relato dos anos de 921 e 922, preservado num manuscrito do século XIII de forma descontínua (Montgomery 2008: 553), o que levanta dúvidas quanto à sua exactidão. Mas é, ainda assim, um texto valioso por ser uma das mais vivas descrições dos nórdicos antigos. Em primeira mão, sem floreados de maior, sem preconceitos avassaladores e com a vantagem de nos oferecer um vislumbre do cerimonial fúnebre e religioso. O que, sem surpresa, está ausente do registo arqueológico. Porque aquilo que se encontra nas escavações é o resultado final: o túmulo, os restos mortais e os objectos que foram depositados com o/a defunto/a ou o que restar da cremação. É, por assim dizer, a “fotografia de grupo” depois da cerimónia, fixa e muda.
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Podemos retirar algumas pistas, mas desconhecemos detalhes como o cortejo, as vestes envergadas por quem estava presente, as músicas ou canções que terão acompanhado o morto até à sua última morada, os contornos das festas que celebraram a sua memória ou a forma como era expresso o luto. E o mesmo podemos dizer a respeito dos ritos religiosos. Nada disto deixa vestígios físicos interpretáveis séculos depois, pelo que dependemos das descrições feitas por quem assistiu às cerimónias. Lamentavelmente, são escassos os textos que nos transmitem essa informação: os autores cristãos da Europa ocidental são breves ou nada dizem sobre o ritualismo pagão; as sagas escandinavas são tardias e uma forma de memória romanceada. E é por isso que o relato de Ibn Fadlan é uma agradável excepção à regra, mesmo tendo em conta os problemas de preservação do texto. O autor começa por descrever os Rus como sendo altos, comparáveis a palmeiras, e com um tom de pele corado. A roupa consistia numa peça que cobria um lado do corpo e deixava uma mão livre e tinham sempre consigo uma arma – machado, faca ou espada. A respeito da última, Ibn Fadlan refere que os nórdicos usavam lâminas semelhantes às dos Francos, o que não surpreende, dado que as espadas francas eram valorizadas na Escandinávia (Androshchuk 2008: 530). Mas se aquele grupo em particular possuía originais ou apenas imitações, é algo que não temos como saber. Até pode ser apenas uma forma de um autor árabe dizer que eram armas do tipo ocidental. Ainda a respeito da aparência e indumentária dos Rus, diz Ibn Fadlan que, das pontas dos dedos até ao pescoço, tinham os corpos cobertos de tatuagens e que as mulheres exibiam uma peça de joalharia ao peito, da qual pendia uma faca (Lunde e Stone 2012: 45-6). Torques e colares de contas eram outros dos ornamentos usados, o que também encontra eco nos achados arqueológicos, nomeadamente em postos comerciais nórdicos (Skre 2008: 90).
Fig. 6 : Figura de uma peça da sepultura Imagem 2:madeira Figuradede madeira de umade Oseberg (c.820). As imagens e estacas esculpidas referidas por Ibn Fadlan talvez peça um da aspecto sepultura de Oseberg (c. 820). tivessem sememlhante
As imagens e estacas esculpidas referidas por Ibn Fadlan talvez Segue-se a descrição dos hábitos de higiene, algo que está, em parte, presente no filme. tivessem um aspecto semelhante.
Os Rus, diz Ibn Fadlan, não se limpam depois de terem sexo, urinarem ou defecarem e também não lavam as mãos depois das refeições. A excepção parece ser ao acordar, quando uma rapariga traz o pequeno almoço e uma taça com água, a qual entrega ao seu senhor. E o que se segue, na descrição do autor, é aquilo que se vê no grande ecrã: um a um, os homens lavam o cabelo e a cara, limpam o nariz e cospem para a taça. A mesma
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que todos eles usam e sem que a água seja alguma vez trocada. Já quanto a hábitos sexuais, o texto fala de como, após desembarcarem, os Rus construíam grandes casas de madeira onde viviam dez a vinte pessoas e que cada homem tinha um trono ou cadeira elevada. Com eles estavam escravas, para venda ou para prazeres imediatos, dado que, diz Ibn Fadlan, qualquer um dos homens podia ter sexo com elas, mesmo que não estivesse sozinho e mesmo que entrasse um mercador durante o acto (Lunde e Stone 2012: 46-7). Como é óbvio, nada disto deixou vestígio discernível no registo arqueológico e só o sabemos porque alguém assistiu e produziu um relato escrito. E o que é verdade para os hábitos de higiene e sexuais aplica-se também às práticas religiosas. Na descrição do autor árabe, após desembarcarem, os Rus levavam comida e bebida até junto de um grande poste de madeira com a cara de um homem esculpida (Figura 6). Representaria um deus e à volta estavam pequenas figuras, referidas no texto como as mulheres e os filhos da divindade, enquanto atrás de todo o conjunto erguiam-se estacas. Prostrando-se diante da imagem, cada um dos Rus declarava quais as mercadorias que tinha consigo – escravos, peles, etc. – para depois pedir sucesso comercial ou, nos termos do texto, um mercador endinheirado que comprasse tudo sem regatear o preço (Lunde e Stone 2012: 48). Em troca, oferecia ao deus comida e bebida. Na ausência de lucro fácil, o rito era repetido uma segunda e terceira vez. Se, ao fim de três tentativas, o sucesso comercial continuasse por concretizar, os Rus traziam oferendas às mulheres e filhos da divindade, esperando ter melhor sorte com eles. Mas quando conseguiam vender bastante, então agradeciam sacrificando ovelhas e vacas cujas cabeças espetavam nas estacas atrás das imagens. Parte da carne era ainda oferecida ao deus e, chegada a noite, quando as oferendas eram comidas por cães, os Rus viam nisso um sinal de satisfação divina. É difícil perceber até que ponto o relato de Ibn Fadlan é fidedigno, dado a falta de outras fontes para comparação, mas muito do que o autor árabe nos diz pode ser considerado válido com alguma segurança: a utilização de imagens de madeira, oferendas de comida e o sacrifício de animais não constituem uma surpresa e são completamente críveis; a possibilidade de regatear indica uma espiritualidade orientada para objectivos práticos, o que vai de encontro ao conteúdo de outras fontes; a ideia de filhos e mulheres de uma divindade traz à memória os laços familiares na mitologia nórdica. Infelizmente, Ibn Fadlan não acrescenta nomes e desconhecemos se as falas contidas no texto são exactas ou enfabulamento – de um tradutor, do autor ou de quem redigiu a cópia do relato. Se a cerimónia religiosa está ausente da adaptação cinematográfica, o mesmo não se pode dizer do funeral de um nobre (Figura 7). A versão original é, no entanto, bas tante mais longa e violenta (Lunde e Stone 2012: 49-55). Segundo Ibn Fadlan, um dos primeiros passos consistia em enterrar temporariamente o morto, que permanecia numa sepultura durante dez dias enquanto eram produzidas as vestes que envergaria na cerimónia. Ao mesmo tempo, era escolhida uma vítima para um sacrifício humano. Na descrição do autor árabe, os familiares do defunto reúnem os escravos e perguntam qual deles quer acompanhar o seu senhor, ao que uma rapariga se oferece para morrer. São depois escolhidas duas outras escravas que servem e acompanham a vítima voluntária enquanto ela passa dias a beber e a cantar. Terminadas as vestes do morto, o seu barco é trazido para terra, colocado sobre uma estrutura de madeira e os presentes proferem palavras que Ibn Fadlan diz não entender. Trazem ainda uma cama, lençóis e almofadas, tudo posto na embarcação, num pavilhão erguido no convés, e preparado por uma mulher a quem o texto dá o nome de Anjo da Morte. Só depois é que retiram o corpo da sepultura temporária, já negro e ainda com a roupa com que morreu, para o vestirem com vestes novas e ricamente trabalhadas. Levam-no para o barco, sentam-no na cama com o apoio das almofadas e põem comida junto do cadáver. E tudo isto parece ser uma fase preparatória, dado que é apenas quando o corpo se encontra pronto para a sua derradeira viagem que se iniciam os sacrifícios. A primeira vítima é um cão, que acaba esquartejado e as partes do seu corpo atiradas
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Imagem 3: O funeral de um Rus segundo o pintor polaco Heinrich Siemiradzki (1883).
Fig. 7 : O funeral de um Rus segundo o pintor polaco Heinrich Siemiradzki (1883).
para a embarcação. As armas do morto são depois colocadas junto dele e de seguida dois cavalos são obrigados a correr antes de também eles serem mortos, esquartejados e atirados para o barco. O sacrifício repete-se com duas vacas, uma galinha e um galo. Enquanto isso, a rapariga que se ofereceu para ser sacrificada percorre cada das casas nórdicas e tem sexo com o senhor de cada uma delas antes de ser levada para aquilo que Ibn Fadlan descreve como o contorno de uma porta. De pés apoiados nas mãos de vários homens, é elevada três vezes: na primeira diz ver o seu pai e a sua mãe, na segunda todos os seus antepassados, na terceira o seu senhor no Paraíso, para junto do qual pede que a levem. Depois sacrifica uma galinha e é conduzida até ao navio. Uma vez lá, um grupo de homens com escudos e varas serve-lhe duas bebidas e ela canta antes de as tomar, encorajada pelo “Anjo da Morte”. Ibn Fadlan nota que, a dada altura, a rapariga perdeu a noção do que estava a fazer, como se estivesse embriagada ou noutro estado mental alterado. E é, por fim, levada para o pavilhão no convés do navio: no interior, a escrava é violada por seis homens antes de ser executada pelo “Anjo da Morte”; no exterior, os ruídos são abafados pelo bater de varas em escudos. O corpo da rapariga é colocado junto do do seu senhor e o convés é abandonado pelos presentes. A fase final do funeral é praticamente icónica: um familiar do morto aproxima-se com um archote e pega fogo ao navio. Sobre as cinzas, os nórdicos erguem uma colina de terra e colocam no topo um poste de madeira onde gravam o nome do defunto. Diz o texto que, enquanto o barco era consumido pelas chamas, um dos nórdicos dirigiuse ao intérprete de Ibn Fadlan e explicou-lhe o porquê da cremação: enquanto os Árabes enterram os seus entes queridos e nobres, deixando que vermes e insectos os comam, os Rus queimam os defuntos para que eles entrem no Paraíso sem demora (Lunde e Stone
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2012: 54). Se o relato reproduz fielmente as palavras de um viking, a opinião dele não seria, no entanto, unanime entre os nórdicos. Isto porque encontram-se vários tipos de sepulturas na Escandinávia, da cremação ao enterro num barco ou numa câmara funerária. Podemos estar, por isso, perante um indício flagrante da diversidade de crenças e de práticas que existiam no norte da Europa. Isso é um aviso sobre como o episódio descrito por Ibn Fadlan não deve ser confundido com a totalidade das práticas fúnebres da Escandinávia antiga. Ainda assim, não deixa de ser um rito nórdico, motivo pelo qual encontra eco nos achados arqueológicos. Por exemplo, numa sepultura norueguesa datada do início do século X, foram encontrados os restos mortais de um cavalo e de um cão. Em Oseberg, também na Noruega, o túmulo continha até vinte cavalos decapitados, assim como os restos mortais de pavões e mochos (Price 2008: 265 e 268). De cadáveres sentados conhecem-se vários casos, como em Birka, a alguns quilómetros de Estocolmo, onde há até registo de duas câmaras tumulares onde o corpo de uma mulher foi sentado ao colo do de um homem. E um pouco a norte, em Vendel, uma sepultura de século X continha vários cadáveres sentados no convés de uma embarcação (Price 2008: 263). Quanto a sacrifícios humanos, refira-se, por exemplo, um homem que foi sepultado em Birka com armas, chifres de veado e um jovem decapitado. Ou um caso semelhante na Dinamarca, onde o defunto fez-se acompanhar de um homem amarrado e decapitado (Price 2008: 266). Nestes como noutros exemplos e conforme foi dito, temos apenas os vestígios do resultado final. O relato de Ibn Fadlan dá-nos uma ideia do contexto e das cerimónias fúnebres. Podemos, é claro, duvidar de algumas coisas ditas pelo autor árabe, como a referência a um paraíso, que pode ser uma interpretação islâmica de uma crença nórdica. Ou então achamos alguns elementos suspeitos porque, subjectivamente, eles parecem improváveis. Mas, não havendo outras fontes que permitam comparar a informação, é impossível dizer ao certo se há ou não floreados de Ibn Fadlan e onde. O relato acrescenta ainda outros dados, como a punição que os Rus davam aos ladrões ou o funeral de um homem pobre, que se resume à cremação do corpo num pequeno barco (Lunde e Stone 2012: 49). E atente-se num último elemento: o autor árabe inclui informação sobre o estilo de vida do rei dos Rus, que tinha um séquito de quatrocentos homens e, ao que parece, não podia tocar no chão, de tal forma que, cada vez que queria andar a cavalo, montava e desmontava o animal directamente do e para o trono. A descrição faz lembrar um monarca sagrado imbuído de uma potência tal que tem o mínimo de contacto possível com o mundo comum. Por isso, o rei dos Rus fazia-se representar por alguém que comandava as suas tropas e lidava com os seus súbditos, algo que Ibn Fadlan repete linhas depois, mas a respeito do monarca dos Kazares, um povo que, à época, dominava o Cáucaso e parte da actual Ucrânia (Lunde e Stone 2012: 54-5). Porque à medida que os nórdicos desciam os rios russos e estabeleciam bases de poder, passavam também a estar abertos a influências regionais e das populações com as quais entravam em contacto. Daí que, em 839, os Rus que se apresentaram diante de Luís, o Pio, chamavam ao seu rei khan, que era também o título dos líderes Kazares. À semelhança do que aconteceu na Normandia e nas Ilhas Britânicas, os colonos nórdicos no leste europeu foram sendo assimilados e, no final do século X, eram já mais eslavos do que escandinavos. E povoados como Kiev e Novgorod, que foram centros de poder dos Rus, estão entre as origens distantes da Rússia.
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Bibliografia Fontes primárias Lunde, Paul e Stone, Caroline (eds.). 2012. Ibn Fadlan. Ibn Fadlan and the Land of Darkness: Arab Travellers in the Far North, Londres: Penguin Books. Nelson, Janet L. (ed). 1991. The Annals of St-Bertin, Ninth-Century Histories I, Manchester: Manchester University Press.
Fontes secundárias Androshchuk, Fjodor. 2008. “The Viking in the East”, in The Viking World, eds. Stefan Brink e Neil Price [3ª edição: 2010], Londres e Nova Iorque: Routledge, 517-542. Brink, Stefan. 2008. “Who were the Vikings?”, in The Viking World, eds. Stefan Brink e Neil Price [3ª edição: 2010], Londres e Nova Iorque: Routledge, 4-7. Montgomery, J. E. 2008. “Arabic sources on the Vikings”, in The Viking World, eds. Stefan Brink e Neil Price [3ª edição: 2010], Londres e Nova Iorque: Routledge, 550-561. Price, Neil. 2008. “Dying and the dead: Viking Age mortuary behaviour”, in The Viking World, eds. Stefan Brink e Neil Price [3ª edição: 2010], Londres e Nova Iorque: Routledge, 257-273. Shepard, Jonathan. 2008. “The Viking Rus and Byzantium”, in The Viking World, eds. Stefan Brink e Neil Price [3ª edição: 2010], Londres e Nova Iorque: Routledge, 496-516. Skre, Dagfinn. 2008. “The development of urbanism in Scandinavia”, in The Viking World, eds. Stefan Brink e Neil Price [3ª edição: 2010], Londres e Nova Iorque: Routledge, 83-93.
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A Mitologia Comparada, a Índia e as novas iniciativas do IPAEHI. Ricardo Louro Martins1
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Doutorando em História Antiga pela FLUL (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa). É membro do IPAEHI (Instituto Prometheus: Associação para Estudos Históricos Interdisciplinares), membro do ICLEO (Instituto Correia de Lacerda de Estudos Orientais), investigador do CHUL (Centro de História da Universidade de Lisboa) na linha de História Antiga e Memória Global e membro do CEOV (Centro de Estudos Orientais Vyāsa da Nova Acrópole).
Nos passados dias 27 e 28 de Março, realizou-se no Museu do Oriente o Colóquio Internacional de “Mitologia Comparada” consagrado à comparanda Indo-Grega, realizado pelo IPAEHI. Alguns meses após da sua realização e antes ainda de editarmos as esperadas Actas deste colóquio, vemo-nos na obrigação – dado que não há memória de um colóquio assim em Portugal, e contam-se pelos dedos exemplos semelhantes à escala mundial – de elaborar um pequeno ensaio sobre os seus motivos, resultados, e lugar nas futuras iniciativas do Instituto.
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O IPAEHI perante um trato epidérmico Portugal teve, se o quisermos romancear, uma percurso semelhante ao de Alexandre. Partindo de uma base greco-romana espartilhada, que foi digerindo e segurando nas mãos como uma semente preciosa, levou-nos pouco a pouco, através de mares desconhecidos, até ao Oriente, até essa Índia culturalmente inconquistável e que só controlou epidermicamente. Ora, epidérmico é também o conhecimento que nos chegou dela, dessa cultura indiana plural e demasiado extensa para que lhe dediquemos tempo. O que representam as conquistas de Alexandre naquela-e-para-aquela Índia quando comparadas com a extensa história do subcontinente, é o mesmo que representa a leitura da gītā ou o alistamento no yoga prático, tão amados pelos portugueses, naquele-e-para-aquele universo literário indiano: nada. E “nada” foi precisamente a palavra que mais proferimos e aquela que mais ouvimos quando conversávamos sobre a elaboração de um colóquio deste tipo: “nada” é o que nos chega da Índia, e “nada” é o que de Portugal interessa à Índia. “Nada” é o que da Índia se compara com a Grécia, “nada” é o que da Índia se estuda em Portugal. Mas se “nada” de facto deriva de nata (nascer), então poderemos dizer que fizemos nascer em Portugal uma esperança a partir do “nada”, respondendo à necessidade dos poucos que sabem, e à curiosidade dos que sabem nada saber, a partir de uma base bem reconhecida: a grega. Foi por este “nada” epidérmico que humilde e heroicamente se juntaram a nós, na plateia e na cátedra, vários interessados. Antes do colóquio, vimo-nos por todo o lado mergulhados na ignorância e enclausurados numa terra, que interpretando as palavras do Prof. Luís Filipe Thomaz , é a dos que tendo um olho são reis, e daqueles que tendo dois, depressa lhes é vazado o segundo para que não reinem mais do que aquilo que devem reinar, e onde se criou uma unidade formal nivelada por baixo, respondendo aos apetites pessoais e à falta de um sentimento do bem-comum, procurando uma selecção natural de académicos, de academias e de matérias a ser leccionadas, baseada num sentimento tudo menos académico, mas que fomenta apenas a estupidez darwinista para dentro deste campo de concentração português: o trabalho liberta, mas só se nos deixarem trabalhar. Depois do colóquio, continua tudo na mesma. A mesma desconfiança e a mesma ignorância. Mas são mais as pessoas que se juntam a nós, mais aqueles que respeitam o Instituto, e mais os que reclamam por mais iniciativas inovadoras, sejam elas focadas na Índia ou noutras epidermices académicas. A iniciativa do IPAEHI foi precisamente a de reverter esta realidade, esta epidermofilia generalizada, convidando para um único colóquio vários especialistas, que compararam intensivamente a Índia com a Grécia e outros espaços como o Próximo e Médio Oriente, de forma a alertar o público português para uma realidade que está mais além da Antiguidade Clássica, mais além da Face Oriental da Grécia (que só chega à Mesopotâmia), mais além de rotas marítimas e mais além de orientalismos e europeismos. A Índia é de facto aquilo que se esconde por detrás de uma cortina chamada Grécia, e por muito que os cegos digam que não passa de um palco vazio ou de uma parede (recorrendo aqui à metáfora indiana dos cegos que tocando em diferentes partes de um elefante, garantem tratar-se de uma serpente, de uma lança afiada, de uma parede, e assim sucessivamente), nós comprovámos nestes dois dias de colóquio que há muito mais para estudar a Grécia na Índia do que julgávamos, e muito mais nessa Índia do que as usuais idiotices que nos chegam dos novos turistas
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desse povo além-Indo. Há quem acredite que inovar ideologicamente é o mesmo que esquecer-se da fonte, ora, nós não esquecemos a fonte, e por esse motivo nos quisemos dirigir a ela, e por não querermos deixar de inovar, analisámos a Grécia à luz indiana. Pois só quando o Homem pensou mais longe do que pré-conceitos e pensou diferente do ducado académico é que surgiram as inúmeras respostas e realidades que marcaram sempre os períodos “dourados” da humanidade. A História sempre foi feita pelos vencedores, mas nós, que invocando a geração de 70 somos os orgulhosos “vencidos da academia”, não a queremos dar aos vencedores, a esses que detentores de um fátuo fogo sapiencial o escondem atrás das costas (ou nos mais rebuscados esconderijos) para que melhor se veja a sua silhueta, em vez de a darem ao próximo, independentemente de serem reconhecidos ou não pelo público. Nós queremos dar a História e a Cultura aos portugueses, retirando a Sabedoria dos seus circuitos esotérico-elitistas das academias e colocá-la na sociedade, na rua, no nosso dia-a-dia, que é onde deve estar, pois esta não pertence a ninguém, muito menos a quem a quer aprisionar por meio de patentes. E porquê realizar um colóquio sobre a Índia, ou um colóquio sobre as influências mitológicas indo-gregas? Bem, a resposta faz-se com outra pergunta: o que será estudar a Antiguidade sem estudar a cultura indiana e indo-europeia? É que o próprio estudo da Grécia e Roma antigas se torna epidérmico quando não nos damos conta da forte presença de elementos indianos (e orientais) na sua cultura, ou dando conta, os deixamos de lado para que quiçá, alguém lhes dedique tempo. A verdade é que poucos lhe têm dedicado tempo, e os que o tentam, têm sido simultaneamente desvalorizados no panorama nacional, obrigados a dar filhos a outros que se interessem pela sua criação.
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Este carácter epidérmico da presença portuguesa na Índia deu-nos um saber tão externo sobre o subcontinente que, se o quisermos estudar, vemo-nos obrigados a deixar o nosso cais das naus onde tanta riqueza indiana chegou e procurar portos secos e longínquos onde aprender e exercer. Os corajosos e obrigados que o fizeram ao longo dos anos, ao regressar à pátria cansados da viagem, tal Ulisses disfarçado, viram-se rodeados pelos antigos vampiros e pretendentes, mas enlaçados na teia de māyā, não chegaram a armar o arco para o qual se prepararam a vida toda, deixando a sua fiel Penélope casar-se com outro qualquer... vagueando sem tecto, sem Argos e sem uma Atena para os guiar. Por um lado, certos académicos decidiram não dedicar o seu tempo a temas que mereçam a pena ser estudados, preferindo reescrever tudo aquilo que já foi escrito inumeráveis vezes de forma a não correrem riscos e também não terem de se esforçar demasiado a apresentar ao país um tópico do qual ninguém sabe, pois não conseguem fazer mais por muito que tentem, ou então, afirmando que compreendem bem o que é a Índia, arrancam aplausos com as mais infantis especulações, no cada vez mais país-dos-investigadores-criança. Para o qual todos nós temos contribuído, é certo. Por outro lado, temos os “esoteristas”, os yogīs e os charlatões, que sem compreenderem uma palavra de sânscrito, recitam magníficos mantras, mas sem entenderem o que é o sacrifício e o que é a acção, deleitam-se em acrobacias e outras artes circenses às quais chamam yoga e outros nomes simpáticos, essa arte que aprenderam durante os quinze dias que foram em turismo à Índia. Se os charlatões pouco nos atingem com a sua condição infeliz (ainda que portadora de felicidade), tão pouco os falsos académicos nos barrarão o caminho, já que em Portugal a cultura asiática está entregue a amadores, que se unem a outros amadores em busca de amparo e de um pouco de alimento para os seus fracos egos. E se um cai, caem todos. O seu tempo chegará, mais tarde ou mais cedo. Que falem do arco-íris das castas indianas, dos jesuítas, da gītā e de tantas outras banalidades, a esses a divina providência não permitirá que acompanhem o comboio da História, pois não trabalham em nome da História nem em nome de Ciência nenhuma, trabalham em nome dos seus apetites pessoais e insaciáveis, e, tal Actéon, acabarão consumidos pela sua própria imoralidade. Numa época de convulsão social, terá de ser esta nova geração de investigadores mal-preparados e ameaçados a responder às inquietações sociais, e a todos aqueles que se queiram juntar a nós, a reformar os academismos elitistas e os esoterismos materialistas, e a aventurarem-se por mares já navegados mas totalmente esquecidos, procurando a unidade académica e não as guerrilhas. A verdade é que aquilo que damos à academia por apetite pessoal é consumido pelo veloz sistema digestivo do mundo, mas aquilo que damos à academia por dever moral, permanece no céu como uma estrela que nos congregará num certo futuro, mas tão pouco nos importará esse futuro, deve importar-nos sim, o trabalho no presente. Felizmente que nós, membros do IPAEHI, pudemos ver, ao longo da organização e realização deste colóquio, junto dos nossos professores e colegas, e também junto de algumas instituições como a Comunidade Hindu ou a Nova Acrópole, um interesse crescente pelo estudo sério da Índia e dos estudos indo-europeus, e pela necessidade de abrir o espectro académico às várias áreas do saber, à interdisciplinaridade e à investigação corajosa que vai mais além dos pré-conceitos. O nosso agradecimento a estes professores, colegas e instituições será duradouro, já que todos nós nos vamos unindo a eles em nome de um Ideal, e não em torno dos interesses passageiros que têm marcado a nossa produção científica, pois são eles que têm trabalhado a terra
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fértil onde se depositarão as sementes de uma tradição futura. Existe portanto um interesse nacional, especializado e não-especializado, em compreender a plataforma indiana e a difusão, mais ou menos concreta, das suas formas culturais. Existe uma necessidade de saber que permaneceu demasiado tempo sem resposta, mas que agora o IPAEHI se propôs a resolver, por meio deste colóquio e de futuras iniciativas. As actas do colóquio serão em breve editadas e disponibilizadas on-line, e novos projectos estão em marcha para que as línguas e culturas da Ásia, e aqui especificamente as da Índia, possam ser estudadas em Portugal de forma gratuita e acessível para todos. Afinal, é este o primordial objectivo do Instituto. Esperam-se novos colóquios sobre este e outros temas, bem como cursos de curta duração e artigos especializados, entre outras propostas. Também o nosso mais recente projecto mitológico, o Dicionário DIMIPRO, terá uma forte produção de artigos referentes à mitologia asiática, que permitirão uma base sólida para futuros estudos culturais sobre diversas culturas.
Resultados atingidos e esperados Num tempo em que os estudos indo-europeus ganham, ou recuperam, cada vez mais alento no seio académico a nível internacional, e perante a inexplicável quase inexistência de trabalhos deste tipo no panorama português, o Instituto PAEHI iniciou o seu caminho nesta área apresentando um colóquio de dois dias dedicado à Mitologia Comparada no mundo indo-europeu, direccionado aos fortes paralelos existentes entre a Índia e a Grécia antigas, sustentando, assim, uma infinidade de novas comparações, que permitiram uma interpretação (ou reinterpretação) que foi muito além daquela do mundo Clássico e Pré-Clássico, possibilitando compreender o Mundo Grego à luz da tradição indiana e vice-versa. Esta gratificante iniciativa teve como
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objectivo fomentar os Estudos Asiáticos (especificamente indológicos) na comunidade científica portuguesa, em especial entre os novos investigadores, colocando-os em contacto com investigadores e especialistas de diversas áreas interdisciplinares, enriquecendo-os. Paralelamente, esta iniciativa quis dar um novo fôlego aos Estudos Clássicos e à História Antiga, inserindo-os numa nova plataforma comparativa, abrindo espaço ao ar puro de novas temáticas a serem desenvolvidas. Das várias comunicações surgiu todo um novo mundo a ser conquistado e trabalhado em Portugal, aliás, nós não quisemos fechar ou re-velar nada, mas sim, des-velar vários caminhos e várias hipóteses de escolha, para que no futuro possamos admitir a existência de uma indologia e de uma comparanda digna desse nome, acessível a todos os interessados. O Instituto PAEHI, seguindo a sua política idealista de inovação, deu uma forte oportunidade aos novos investigadores de começarem a desenvolver em Portugal um tópico aparentemente esquecido, acção que permite ainda, num futuro próximo, o surgimento de uma nova linha de estudos a ser desenvolvida no seio académico português. Já que se comprovou, se é que não se havia já comprovado, que este é um estudo fundamental para a compreensão do imaginário indo-europeu e das suas metamorfoses nas diferentes culturas até ao Presente, podendo-se tornar numa extraordinária ferramenta para o estudo do imaginário, valores e desenvolvimento intelectual das culturas e civilizações da Antiguidade no academismo português, levantando igualmente novas questões sobre a comunicação que estas teriam entre si. O facto de esta ter sido uma actividade pública, permitiu ainda avaliar o interesse público sobre o tópico, bem como traçar novas redes de contacto e fomentar a sua cooperação futura. Dada a forte presença da assistência, e de instituições mais ou menos direcionadas ao tema, pudemos prever e começar a preparar futuras actividades. O IPAEHI afirmou-se assim, mais uma vez, no panorama nacional académico e público como uma instituição corajosamente dedicada a abrir novos caminhos em vez de os fechar, potenciando o conhecimento e as novas oportunidades num país ideologicamente vencido e praticamente destruído, onde vale mais o interesse da Corporação do que da Constituição, ou o do Protagonismo do que o da Transmissão. O que o IPAEHI está hoje a fazer devia ter sido feito há trinta anos atrás, mas ainda vamos a tempo, e acima de tudo, ainda temos a Coragem para o fazer.
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Conversas Históricas na Almedina
Local: Livraria Almedina Atrium Saldanha, Lisboa Coordenação: Instituto PAEHI - Associação para estudos Históricos Interdisciplinares Organização: Almedina 30 de outubro, 18h30
Religiões e Mitologia: Pontos Comuns
com Hélio Pires (Centro de Estudos Históricos da FCSH UNL), Ricardo Martins (Centro de História da UL) e Catarina Almeida (Moderadora) 13 de novembro, 18h30
Portugal Medieval: Entre Visigodos, Vikings, Árabes e Moçárabes
com Francisco Isaac (CITCEM UP), Hélio Pires (Centro de Estudos Históricos da FCSH UNL) e Catarina Almeida (Moderadora) 27 de novembro, 18h30
Egiptologia em Portugal: Que Futuro?
com André Silva (CEHR UCP) e João Camacho (CHUL) 11 de dezembro, 18h30
O Lobo Ibérico: A História e Biologia de uma Marca com Francisco Petrucci-Fonseca (Centro de Biologia Ambiental da UL) e Francisco Isaac (moderação)
Este ciclo visa apresentar diversos temas que envolvem a História e demais disciplinas, como a Arqueologia, Biologia, Arte, Arquitetura, entre outras. Com a presença de diferentes investigadores das diversas áreas é o nosso objetivo levantar novas questões e problemas que suscitem novos paradigmas e discussões.
ENTRADA LIVRE
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Al-Mummia – The Night of Counting the Years, Chadi Abdel Salam, Egipto, 1969 Por João Camacho – Investigador do Instituto PAEHI – Associação para Estudos Históricos Interdisciplinares joaocamacho@msn.com
conhecida a única longa-metragem do realizador egípcio Chadi Abdel Salam (1930-1986). A Noite em Que Se Contam os Anos seria o período de tempo durante o qual o defunto, através da recitação da fórmula contida no capítulo 25 do Livro dos Mortos, adquiria a capacidade de recordar o seu próprio nome e, através disso, poder voltar à vida no decurso da imensidão do tempo. Abdel Salam nasceu em Alexandria (Egipto), estudou e viveu em Inglaterra e Itália, con-
orador em Saladino de Youssef Chahine, Decorador-assistente em Cleopatra de Joseph L. (de todas, a experiência mais enriquecedora, segundo o próprio). Foi numa dessas incursões que conheceu Roberto Rossellini, apontado por críticos de várias épocas como um dos primeiros impulsionadores e criadores do Neo-realismo no cinema europeu, sobretudo pelas suas obras Roma, Città Aperta (1945) e Germania, Anno Zero (1948). Tal como o próprio termo sugere, o Neo-realismo possuía uma componente de revivalismo de outra tendência forjado pelo crítico Antonio Pietrangeli, é aplicado a uma nova forma de fazer cinema que vem romper com a anterior orientação, ideologizante, do cinema “fascista”, caída em total
oravelmente, com tendências sociais esquerdizantes, chegando por isso a assumir um papel político activo na sociedade de então.
La Lotta dell’uomo Per la sua Sopravvivenza, inaugurando, paralelamente, um centro ex-
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ao realizador europeu um guião original em que trabalhava havia dois anos, intitulado «A Múmia». Aquele empolga-se com o argumento e sugere uma associação entre ambos para avam arreigadas à busca pela autenticidade da vida e dos problemas do Homem. Porém, à semelhança de uma ideia de História veiculada por Nicolau Maquiavel, o realizador latino assumia uma atitude deliberadamente mais pedagógica para com o público (tendência a que não é estranha o aparecimento da televisão), indo à História, a contextos históricos e
às fontes, buscar material para as suas realizações: “Nós somos - palavras do próprio -, em todos os sentidos, produto da nossa História. Para termos consciência do que nos tornámos devemos conhecer a nossa História na sua “arquitectura”, não como um conjunto de datas, nomes, alianças, tratados, traições, guerras, conquistas, mas seguindo a linha das transformações do pensamento” e “Devemos usar a História não para celebrar o passado mas para nos julgarmos e nos guiarmos melhor em direcção ao futuro” (traduções livres). O espírito rosselliniano está bem presente através destes aspectos e, efectivamente, o guião Les Mommies Royales de Deir el-Bahari, sofrendo algumas alterações para uma abordagem
O Egipto dos anos 60 vivia um período particularmente controverso no que diz respeito à sua
Fig.8 : Chadi Abdel Salam junto a um relevo da deusa Hathor
História. A mudança de regime no início da década de 50 e a necessidade de união face às divisões políticas impulsionaram um sentimento nacionalista que Abdel Salam soube aproveitar para Al Mummia. Um pouco à semelhança da forma como o Estado Novo, em Portugal, recorreu à História (e ao período dos Descobrimentos, em particular), o antigo Egipto foi várias vezes invocado em nome de uma memória “gloriosa”, de um passado de conquistas e reconhecimento nacional. Mas, apesar dos prolíferos vestígios desse passado no território, outros problemas surgiram na sua interpretação, tão distante e tão (deliberadamente) ignorado durante séculos pelas elites governantes. Como aproximar o egípcio contemporâneo do egípcio da Antiguidade, ultrapassando, ou harmonizando, as evidentes diferenças religiosas e culturais? Chadi Abdel Salam vai explorar um episódio que, simboli-
políticos e sociais que ganharam visibilidade numa disputa entre o poder político (faraó) e o poder religioso (sacerdócio de Amon-Ré). O Vale dos Reis, local de repouso dos brilhantes monarcas do Império Novo, deixou de ser o lugar seguro que havia sido, tornando-se um
Fig.9 : Capa da revista «Time» (Março de 1963)
da história desta civilização). A depredação dos sepulcros das elites levou a que Pinedjem I, sumo-sacerdote de Amon, ordenasse a «retumulação» de diversos sarcófagos e bens noutro local, conjunto, procurando restaurar, numa acção piedosa, alguma da dignidade sonegada a esses deuses da Antiguidade. Cerca de trinta séculos depois, habitantes da antiga aldeia de Gurna, os irmãos al-Rassul, descobrem o esconderijo e contactam as redes de contrabando mais ou menos legalizadas, fazendo escoar espólio diverso para antiquários e coleccionadores de toda a Europa que vivia então, e sobretudo desde a “descoberta” do Egipto por Napoleão Bonaparte, um orientalismo e uma egiptomania de grandes repercussões artísticas (no que às elites mais ou menos instruídas diz respeito, pelo menos). A narrativa centra-se, por um lado, nas acções de Ahmed Kamal (considerado o primeiro egiptólogo egípcio) e Gaston Maspero, a partir do Cairo (Museu de Bulak), e nas movimentações dos membros da tribo Hurabat, no Alto Egipto, próxima de Lucsor. Mas especialmorte deste, chega a hora dos tios revelarem a Wanis e seu irmão a localização e a natureza da actividade que sustentava os membros da tribo “havia séculos”. Naquela que é porventuemocional para que, com isso, o espectador se concentre no essencial, na mensagem a partir dos diálogos), os irmãos descem com os tios ao esconderijo (DB 320) e, perante uma imen-
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sidão de sarcófagos, observam o tio, com um pequeno machado, a decepar a cabeça mumificada para conseguir dali retirar um colar de ouro com um perturbante e expressivo olho udjat. Este olho “vigilante” é o sinal que marca o início do percurso de Wanis (e do espectador), o “caminho que terá de percorrer sozinho” sem que saiba, contudo, o que o espera no final. Para a tribo, aqueles cadáveres pertencem a pessoas das quais “ninguém sabe já o nome”, não conhecem a história, não lêem hieróglifos e, consequentemente, não identificam as pessoas (e monumentos) como seus antepassados. Efectivamente, a vida na região não era fácil e, nesse sentido, a comercialização daquele espólio era a única coisa que fazia sentido à sobrevivência. A questão é também colocada num plano moral, com o cuidado de evitar juízos de valor. As diferentes perspectivas vão-se sucedendo até que, certo dia, o «El Mensieh» chega do Cairo subindo o Nilo. Choque, revolta, incompreensão, será o forasteiro que irá revelar a Wanis que os cairotas, os “arrogantes effendis”, “conhecem os nomes das pessoas que ali viveram, preocupam-se e querem preservar…” a memória dos antepassados. Quando a personagem principal toma a decisão de falar com Ahmed Kamal, e a transmite ao feal comerciante Murad, este olha-o, incrédulo, envolvendo-se ambos numa luta sim-
Fig.10 : Wanis confronta o mercador Ayub, que já estava na posse do colar com o Udjat
bólica da qual Wanis se liberta para comunicar à comitiva museológica o pesado segredo. Através da sensiblidade artística do realizador egípcio vamos contactar não só com a referida tendência nacionalista (que nem sequer é a vertente mais proeminente do filme), mas também com outros contrastes e conflitos, como a oposição entre habitantes da cidade e do Norte do país, com o mais ruralizado meio sulista, tensão que ainda hoje se faz sentir. Propositadamente, os primeiros usam dominantes roupas brancas, em contraste com o preto das djalabas dos Hurabat, numa alusão à presente dimensão fúnebre. As acções decorrem junto ao Nilo, em Sakara, no templo funerário de Ramsés III em Medinet Habu, no Ramesseum junto à colossal estátua caída de Ramsés II, entre outros. Em A Múmia há todo um trabalho quase invisível que contribui para uma originalidade e uma beleza (algo minimalista) incomuns. Primorosos planos (como a cena do funeral do ancião, em que, com o pranto de fundo, são lançadas pétalas roxas ao chão); envolvente banda sonora (o vento que acentua o mistério, ou o som da água do Nilo que nos “transporta” para a ambiência do Egipto); o idioma, que nos dá
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Fig.11 : Momento em que, no interior do recinto do Templo de Medinet Habu, o forasteiro informa
ção bastante adequada nas cenas nocturnas e interiores. Após a descoberta os sarcófagos são retirados, um a um, do esconderijo e, simbolicamente, um dos ajudantes vai pronunciando e registando o nome do ocupante (ou melhor, o nome inscrito no sarcófago, já que, como depois se constatou, nem todos coincidiram), trazendo a sua memória de volta à existência e propiciando, segundo a antiga crença egípcia, uma das a descer o rio (já com o precioso espólio a bordo), com os habitantes a acenar e a carpir nas margens, é representada num poderoso mise-en-scène, resultando num reconciliador cortejo. E esta acaba por ser a principal preocupação de Chadi Abdel Salam. Com a obra, o realizador pretendeu incitar, exortar os egípcios a valorizar e a estimar a herança faraónica, humanizando os vestígios (à sombra dos quais muitos, literalmente, viviam) e aproximando as duas realidades depois de uma ruptura de mais de treze séculos (depois da chegada do
mover e ninguém o pode deter. Acaso se pode deter o curso do Nilo?” Uma análise mais detalhada pode ser consultada nas Actas do «Colóquio Dinâmicas Históricas no Cinema» em http://instituto-prometheus.org
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BIBLIOGRAFIA Salah MAREI (ed.), Chadi Abdel Salam – Le Pharaon du Cinéma Egyptien, Paris, Institut du Monde Arabe, 1996. Gaston MASPERO, Les momies royales de Deir el-Bahari, Paris, E. Leroux, 1889, (obra digitalizada disponível no sítio da Biblioteca Nacional de França em www.bnf.fr). Roberto ROSSELLINI, «Perché faccio film storici», La Stampa, [s.l.], Maio de 1971.
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Sabores com História ... A primeira referência história à pesca do atum no nosso país data do ano 151 da nossa era, no actual território do Algarve, sendo os cónios (povo ibérico submetido pelos romanos) quem se encarregavam da pesca. Entre os romanos, pensa-se que o atum figurava entre os vários ingredientes do garum, uma espécie de pasta feita com vísceras de vários peixes e mariscos, depois de rigorosamente confeccionado, constituindo um manjar muito apreciado no entanto apenas acessível aos mais abastados. Esta pesca foi prosseguida pelos romanos e pelos árabes (responsáveis pela evolução tecnológica das pescas posteriormente),que nos legaram alguma da tecnologia e terminologia. Em 1249, data da conclusão da conquista do território nacional aos mouros, o rei D. Afonso III decide reservar para a coroa todos os direitos sobre a pesca do atum, sob a chancela das "Pescarias Reais". Com D. Fernando (meados do séc. XIV, cerca de um século depois) estabeleceram-se no Algarve os primeiros sicilianos e genoveses. Foram estes povos italianos que iniciaram os portugueses na arte da pesca do atum, com grande sucesso, uma vez que se tornou imediatamente numa actividade extremamente próspera, matendo-se assim até ao séc. XVII.
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Viagem à Síria: História e Arquitectura da Basílica de S. Simeão Maria Joaquina Carita
Final da tarde do nosso terceiro dia de visita à Síria. O Sol já quase dava lugar à Lua. Eis-nos chegados ao Mosteiro de S. Simeão, após termos regalado os olhos com as noras gigantes do rio Orontes. Fatigados, mas o nosso entusiasmo não abrandava. Instantes depois do autocarro ter parado junto dos muros do mosteiro, ouvimos uma tremenda algazarra. Curiosos, todos nos levantámos dos bancos para ver o que se passava e alguns saíram mesmo para dar apoio. Nunca pensei ver uma mulher muçulmana, impor-se a um grupo de homens. Mas assim foi. A nossa guia debatia-se com os guardas que não nos queriam deixar entrar, apesar do seu prévio telefonema a avisar do nosso atraso.
Fig.12 : Portal triplo de entrada para o nártex sul. Fotografia tirada no local
Continuo a pensar que se S. Simeão fosse vivo, teria descido do seu pedestal e teria vindo em nosso auxílio, mesmo não sendo peregrinos. Por fim, depois do debate, entrámos no recinto a meio caminho entre o baptistério, a sul, à esquerda e a basílica à direita. Este local encontra-se num cume nivelado pelo homem e estendido para oeste formando um enorme terraço artificial, de modo a acomodar todo o complexo basilical. Foi aqui que ouvimos contar a história deste santo. S. Simeão era um dos santos mais masoquistas da igreja cristã primitiva. Nascido por volta dos anos 389/90 d. C., perto de Antioquia, mostrou desde muito jovem uma aptidão especial para a dor auto-infligida. Quando entrou para um mosteiro com a idade de 16 anos, usava à cintura um cinto feito de espinhos para causar sangue e passou dois
verões enterrado no chão até ao queixo. Pela altura da Quaresma encerrava-se na sua cela e não falava com ninguém. Este comportamento atraiu muitas atenções e para escapar às multidões que iam certificar-se da veracidade do que ouviam, empoleirava-se sobre um pilar. Quanta mais multidão atraía com esta sua exagerada conduta, mais subia a sua coluna, que chegou a alcançar 16 metros de altura, aquando da sua morte. Ali viveu os seus últimos trinta anos de vida, ao calor sob um Verão escaldante, ou ao frio num Inverno rigoroso. Como se isso não chegasse, tinha presa ao pescoço, uma corrente de ferro 1.
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BALL, Warwick, Syria - A historical and architectural guide, p. 176.
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Teodoreto, nasceu em Antioquia, na Síria, cerca do ano 393. Foi bispo de Ciro, na Síria e o último grande teólogo cristão da escola de Antioquia. http://it.wikipedia.org/ wiki/Teodoro_di_Ciro. 3
LEBEAU, Richard, «La Syrie deviant chrétienne», p. 48.
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Fig.13 : Os restos da coluna de S. Simeão, o Estilista. Imagem retirada de http://en.wikipedia.org/wiki/Church_ of_Saint_Simeon_Stylites
Para muitos, foi o maior exibicionista do Mundo, porque não era nem recluso, nem tão pouco eremita, como outros seus contemporâneos. Na minha opinião, além de fanfarrão e masoquista, foi um grande agente de marketing, palavra que não existia na altura, mas adequada ao tipo de postura ostentada perante os peregrinos. Teodoreto de Ciro 2 acreditou nesta exaustiva penitência e escreveu: «Ao longo de vinte e oito anos, passava sem comer durante 40 dias: o tempo e o arrebatamento afastaram a sua pena mais grave. Nos primeiros tempos era habitual ficar de pé cantando hinos a Deus, mas devido à abstinência o seu corpo já não tinha forças e passou a estar sentado a cumprir a divina liturgia; nos últimos dias, teve mesmo de se deitar. À medida que lhe iam faltando as forças, era obrigado a ficar deitado, meio morto. Mas quando foi para a coluna, como se recusou a descer, inventou uma outra maneira de ficar de pé. Amarrou feixes com cordas e, assim, passou os 40 dias. Posteriormente, uma graça vinda de cima favoreceu-o e já não tinha necessidade de ajuda, mas ficou os 40 dias sem comer, reunindo forças na sua coragem e na graça divina.» 3 A sua influência reaccionária e fundamentalista, pregada do alto da sua coluna duas vezes por dia, espalhou-se para Ocidente, para a Arménia e Pérsia Sassânida. De tal forma era ouvido, que o restauro de uma sinagoga não se efectuou por sua intercessão. Milhares de peregrinos vinham prestar-lhe homenagem, mas outros vinham apenas por curiosidade. E, toda esta sua propaganda favoreceu a aldeia Deir Semaan, antiga Telanissos e o próprio mosteiro. Em Deir Semaan foram construídos edifícios religiosos, aos quais os monges acrescentaram hospícios e hospedarias para apoio aos peregrinos, cuja
movimentação começou quinze anos antes da morte do santo e durou até ao século VII. Era a partir daqui que as procissões dos peregrinos começavam a subir até ao complexo basilical, a “Via Sacra”, que tinha início num arco triunfal às portas da aldeia 4. Em torno da sua coluna, foi construída uma das igrejas mais elaboradas da cristandade. Relativamente bem preservada, testemunha ainda a extraordinária popularidade deste santo. Poderemos algum dia imaginar o tipo de impacto criado por esta obsessão humana, aos camponeses de Deir Semaan, aos nómadas do Norte da Síria e ainda as impressões causadas aos olhos dos peregrinos? Esta é uma pergunta que o historiador Afif Bahnassi faz no seu guia sobre a Síria e à qual não sabemos responder 5. Sabemos apenas que a Síria ficou famosa pelos seus ascetas solitários alguns deles adoptando a autoflagelação, outros escolhendo hábitos excêntricos, como S. Simeão 6, e que após a morte deste último a paisagem síria se tornou numa imensa floresta de pilares. A construção da basílica começou alguns anos antes da morte do santo. Não se sabe ao certo, mas provavelmente teria sido iniciada em 476, segundo alguns autores e segundo outros, entre 460 e 490 7. Vivia-se uma época de grande efervescência e de controvérsia na igreja de Antioquia, devido ao ponto alto atingido pela heresia monofisita, baseada em interpretações pseudoteológicas. Os cristãos de língua síria revoltaram-se contra o poder de Constantinopla e todo o movimento ascético e monástico tinha como objectivo atingir a igreja metropolitana. A excepção a estas revoltas foi a causa de S. Simeão, promovida pelas autoridades imperiais e aproveitada para distrair as atenções das controvérsias teológicas/políticas. Enquanto isso, Zeno, imperador da altura, mandava erigir o Martyrium8 em torno da coluna do santo, incentivando, assim, a continuação do culto por meio da peregrinação 9. A Síria foi o berço deste novo tipo de arquitectura da igreja, que partia de um ponto central, uma cúpula, ou como neste caso, uma coluna, permitindo um maior desenvolvimento de conceitos e técnicas à sua volta. Antes, porém, de entrarmos na basílica, convém fazer referência à arquitectura paleocristã que a Síria conheceu entre os séculos V e o século VI. Segundo Sas-Zaloziechy 10 , aparecem no Norte da Síria três tipos diferentes: a basílica simples de três naves, e basílica de pilares e as igrejas de uma só nave e ainda a do tipo catedral, onde se insere a nossa basílica/mosteiro de S. Simeão (Qal´at Sema´an). Estas formas da basílica síria existiam já no século V, mas só vão atingir a sua perfeição com a construção do tipo catedral. Quanto à forma basilical, pouco difere da basílica paleocristã ocidental, com naves paralelas, tecto em madeira, arcadas e absides voltadas a este, diz-nos o mesmo autor. A diferença, porém, está na concepção do espaço e nas paredes, onde os tijolos dão lugar à cantaria cor de mel ricamente decorada e com policromia de mosaicos ape-
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p. 210. 5
p. 208. 6
RODLEY, Lyn, Byzantine art and architecture- an introduction, p. 11. 7
SAS-ZALOZIECHY, Wladimir, Arte Palocristã, p. 46. 8
O Martyrium, uma igreja construída sobre o túmulo de um mártir ou em honra de um mártir. http://dictionary.reference.com/ browse/martyrium
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p. 215. 10
SAS-ZALOZIECHY, Wladimir, Arte Palocristã, p. 45.
Fig.14 : Planta do complexo de Qal´at Sema´na. Imagem tirada de Monuments of Syria-na Historical Guide de Ross Burns, p. 216.
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nas ao nível do pavimento. Seguindo o percurso indicado pela nossa guia, virámos à direita para a igreja, aproximando-nos desta pelo grande nártex sul, de acordo com a arquitectura do Norte da Síria, embora houvesse também entradas laterais para os corredores nas outras alas. A entrada principal apresenta uma das características mais deslumbrantes da igreja. É composta por um frontão triangular interrompido pelo arco da entrada maior do portal tripartido, tem por detrás deste outro frontão quadrado perfurado com janelas que dão para a entrada da nave em si 11. As duas portas laterais também apresentam frontões triangulares mais pequenos. Todas elas dão acesso ao nártex. A arquivolta do arco central está ornada de ricas molduras e descansa sobre duas colunas. Os arcos das entradas laterais assentam em pilastras arcaizantes 12. O nártex é uma bela adaptação bizantina dos conceitos paleocristãos. O detalhe clássico, que inclui pilastras entalhadas adornadas com pilares e folhas de acanto abertas nos capitéis, é particularmente notável. Esta decoração dos capitéis, empregue aqui pela primeira vez, vai-se tornar comum em todo o mundo bizantino. Chegando ao núcleo central tomámos consciência de como é a planta da igreja. Quatro naves agrupadas em volta de um pátio octogonal, no centro do qual se ergue ainda o toco que formava a coluna de S. Simeão, formam a ideia do monumento comemorativo. Os quatro edifícios eram grandes o suficiente para que cada um deles formasse uma igreja. Estão colocados em forma de uma enorme cruz, aproximadamente orientados para os quatro pontos cardeais. O pátio quadrado, tem em cada canto um dispositivo em
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BALL, Warwick, Syria - A historical and architectural guide, p. 177. 12
SAS-ZALOZIECHY, Wladimir, Arte Palocristã, p. 47. 13
BURNS, Ross, Monuments of Syria, An Historical Guide, p. 216. 14
SAS-ZALOZIECHY, Wladimir, Arte Palocristã, p. 47 15
TEIXERA, Luís Manuel, «Prothesis» , Dicionário Ilustrado de Belas Artes, p. 189. Compartimento que ladeia do lado esquerdo a abside nas basílicas paleocristãs e bizantinas. Destinava-se às oferendas e bênção do pão e do vinho. 16
TEIXERA, Luís Manuel, «Diaconicon», Dicionário Ilustrado de Belas Artes, p. 85. Espécie de sacristia, onde eram guardados os óleos e as alfaiais do culto. Normalmente ladeia o lado direito da abside principal nas basílicas paleocristãs e bizantinas.
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Fig.15 :
forma de êxedra para formar um octógono 13. Portais monumentais, tipo arco do triunfo, conduzem às quatro basílicas. A ala leste contém uma abside tripla e teria sido a parte principal da igreja. Apresenta duas filas de cinco colunas, cuja parte superior suporta um entablamento que constituí uma espécie de friso. Entre as colunas e a abside existe uma cornija horizontal com ricas molduras. Mais acima, uma fila de janelas encimadas por uma cercadura emoldurada têm a cargo a iluminação 14. As duas salas contíguas à abside principal teriam as funções habituais do prothesis15 e do diaconicon16. As três absides chamam a atenção pela rica decoração das suas fachadas, flanqueadas por torres, que surgem pela primeira vez nas basílicas sírias. O exterior é particularmente gracioso. As paredes de cada nave, são formadas alternadamente por janelas, arcos e portas, e as junções entre elas estão marcadas por pequenos nichos semicirculares. Estes elementos díspares conjugam-se harmoniosamente através de dois cursos de cordas nitidamente delineados, sendo que a debaixo marca claramente a zona de base e sobe para enfatizar as curvas delicadas dos umbrais das janelas e portas. Os eixos das colunas no octógono sobem a partir de elegantes bases até aos capitéis de folhas de acanto abertas com bordas pontiagudas. Nas naves os capitéis são coríntios. No exterior, a abside principal está articulada por duas fileiras de colunas envolvidas
Fig.16 : Grutas escavadas na rocha onde eram colocados os esqueletos. Fotografia tirada aquando da visita a al´at Sema´an.
por um friso. Dois pequenos arcos recheados de vieiras fazem a ligação entre as colunas. Embora não haja nenhuma evidência directa da cobertura original do pátio, acreditase ter sido construída em madeira, talvez com cúpula. Com o terramoto de 528 caiu e nunca mais foi recuperada, transformando este pátio num espaço aberto. Os edifícios do mosteiro, infelizmente muito arruinados, estão agrupados em torno de um pátio interior. As fachadas consistem de um pórtico impressionante, com a altura de três andares. A laje negra e a técnica no lintel deste pórtico, de linhas simples verticais e horizontais, contrastam fortemente com a arquitectura mais graciosa e curvilínea da igreja. O mosteiro destinava-se aparentemente a clérigos residentes e visitantes. O público em geral era acomodado na aldeia de Deir Semaan. Na extremidade norte da catedral cruciforme deparamos junto à construção descuidada de uma parede do século X, construída à pressa durante a reocupação bizantina, os restos do que foi uma capela mortuária, com nichos escavados na rocha, provavelmente para o armazenamento de esqueletos. Para visitar o restante complexo, saímos de novo pelo nártex sul e continuando para Sul ao longo do cume, percorremos o caminho processional, «Via Sacra» até ao edifício do baptistério que se encontra a 200 metros. Este edifício tem uma data posterior à da catedral, mas é uma parte essencial do contexto da peregrinação. Descrito como um dos melhores remanescentes da arquitectura cristã de toda a Síria, foi construído em duas fases – a primeira, o baptistério em si e depois uma pequena basílica mais tarde. O tambor octogonal, que encabeça externamente a planta quadrada do edifício, já foi coroado por um telhado de madeira de forma cónica, ou como uma cúpula, talvez idêntico ao telhado do pátio da catedral. O octógono interno, com 15 metros, está incluído numa planta exterior rectangular. Estas duas formas geométricas, estão ligadas através de arcos transversais nos cantos do quadrado, ligados às paredes exteriores por pilastras. No extremo leste da sala, uma absidíola17 semicircular inclui um canal curioso com escadas que descem até ela. Este era claramente o caminho pela fonte baptismal destinada ao baptismo em massa dos convertidos. Para grande pena nossa, quase não há vestígios da basílica associada.
A Sudoeste do baptistério, podemos ver os restos dos edifícios auxiliares que davam alojamento e apoio aos peregrinos. Pudemos ainda apreciar a paisagem que envolve o cume, com as montanhas da Turquia ao longe, e saímos dali quando já o sol desaparecia no horizonte.
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TEIXERA, Luís Manuel, «Absidíola», Dicionário Ilustrado de Belas Artes, p. 12. Capela de menor dimensão que a capela-mor, a par desta, abrindo-se para as naves ou transepto ou então para o deambulatório. Designa-se neste último caso por capela radiante.
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BIBLIOGRAFIA - BALL, Warwick, Syria - A historical and architectural guide, Massachusetts: Interlink Books, 2010. - BAHNASSI, Afif, Guide to Syria, Damasco: Avicenne Bookshop, s.d. - BURNS, Ross, Monuments of Syria, An Historical Guide, Damasco: Dummar Publisher, 1999. - «Church of Saint Simeon Stylites», em http://en.wikipedia.org/wiki/Church_of_Saint _Simeon_Stylites (12Jul2013 - 16:40). - CORMACK, Robin, Byzantine Art, Oxford: Oxford University Press, 2000. - KRAUTHEIMER, Richard, Early Christian and Byzantine Architecture, Yale-U.S.: Yale University Press, 1986. - LEBEAU, Richard, «La Syrie deviant chrétienne», em Histoire Antique & Medievale, 66, Dijon, Éditions Faton, SAS, 2013, p. 48. - «Martyrium», em http://dictionary.reference.com/browse/martyrium (12Jul201315:10). - RODLEY, Lyn, Byzantine art and architecture-an introduction, Cambridge: Cambridge University Press, 1994. - SAS-ZALOZIECKY, Wladimir, Arte Paleocristã, Lisboa: Editorial Verbo, 1970. - TEIXEIRA, Luís Manuel, Dicionário Ilustrado de Belas-Artes, Lisboa: Editorial Presença, 1985. - «Teodoro de Ciro», em http://it.wikipedia.org/wiki/Teodoro_di_Ciro (12Jul21018:53).
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Recriação da Batalha de Montiel por Alexandra Duarte
Fig. 1: Recriação da Batalha de Montiel (2013)
A localidade de Montiel fica situada próxima a Ciudad Real na província de Castela-la-Mancha em Espanha. No ano de 1369 foi nesta mesma localidade que foi posto fim à vida do rei de Castela Pedro – O Cruel, às mãos do seu meio-irmão Henrique de Trastâmara, iniciando-se assim a Dinastia Trastâmara naquele reino. Mas o assassinato de um rei às mãos do seu meio-irmão não surgiu assim simplesmente do nada…Recuemos uns anos. Entre 1337 e 1453 a Europa medieval iria conhecer um período conturbado de confrontos armados denominado por Guerra dos 100 anos. Em França, a subida ao trono de Filipe VI (1328-1350) da Dinastia Valois defraudou as expectativas de posse do mesmo trono por parte do rei inglês Eduardo III (1327-1377) aparentado com o último dos Capetos, Carlos IV. Esta teria sido a causa que deflagrou a guerra dos 100 anos entre Inglaterra e França, embora actualmente se invoquem outras causas económicas e sociais que somadas às políticas foram responsáveis por disseminar a inimizade entre franceses e ingleses. Após a morte de Carlos IV, Eduardo III, filho de Eduardo II e de Isabel de França, viu uma possibilidade de reivindicar para si o trono francês, pelo facto de a sua mãe ser irmã do monarca falecido, apoiando-se na transmissão materna. Mas os franceses não reconheciam às mulheres a descendência monárquica, o que tirou a Eduardo III qualquer direito à coroa dos Capetos. Entretanto existia um problema feudal entre ingleses e franceses…. Os reis de Inglaterra, sucessores do Duque da Normandia, Guilherme o Conquistador, permanecem vassalos do rei de França devido às suas terras Normandas. Desde 1066 que os reis ingleses, multiplicando as suas alianças através de matrimónios vantajosos, não paravam de aumentar as suas posses territoriais em França, mas em contrapartida, não renovavam a vassalagem devida ao rei de França. Entretanto os confrontos entre ingleses e franceses acabaram por envolver outros reinos no palco desta guerra, já que cada facção em conflito buscava apoios e alianças fora. Os reinos da Península Ibérica não foram excepção. Ora em Portugal, Afonso IV unira em matrimónio em 1328, a sua filha Maria com o rei de castela Afonso XI. Desta união apenas um filho legítimo viria a nascer, que viria a ser conhecido por Pedro, O Cruel. Afonso IV preferira abertamente a companhia da amante Leonor de Gusmão que lhe deu vasta descendência, nascendo Henrique de Trastamâra como primeiro fruto desta ligação ilegítima. Após a morte do monarca Afonso IV e consequente subida ao trono de Pedro (1350-1369) vai iniciar-se uma guerra civil que opõe os dois meios-irmãos. Surge então uma nova guerra, desta vez na Península Ibérica, enquanto decorre ainda a Guerra dos 100 anos. Henrique consegue o apoio à sua causa por parte de vários nobres castelhanos e de Pedro IV de Aragão. Excelente diplomata, consegue também o apoio do Papa. Também nesta guerra pela posse de um trono, ambos os lados procuraram apoio fora do reino. Pedro I conseguiu o apoio do seu tio Pedro I de Portugal e dos Ingleses, enquanto os Franceses (inimigos dos Ingleses) deram o seu apoio à pretensão de Henrique.
A liderar um exército composto por soldados profissionais mercenários, Henrique viria a invadir Castela proclamando-se rei em 16 de Março de 1366 na localidade de Calahorra. Pedro I de Castela teve de fugir para Baiona e então com a ajuda dos Ingleses organizou também uma invasão de Castela derrotando o seu meio-irmão em Nájera a 3 de Abril de 1367. Muitos dos fugitivos leais a Henrique procuraram refúgio no reino vizinho de Portugal, mas o monarca português Pedro I estabelecera um acordo de extradição que permitia ao rei de Castela recuperar os fugitivos exilados simpatizantes de Henrique e castigá-los. Pedro I de Portugal manteria o seu apoio a Pedro I de Castela, mas acabaria por suspender essa ajuda na altura do enfraquecimento da posição de Pedro e consequente ascensão de Henrique. Pela primeira vez na História de Espanha a guerra civil ia ser decidida pela presença de tropas mercenárias que intervieram a favor de cada facção beligerante. Por Inglaterra, as tropas eram lideradas pelo Príncipe de Gales, conhecido pelo Príncipe Negro, que trazia consigo alguns dos seus temidos arqueiros, enquanto por França as Companhias Brancas ficaram às ordens de Bertrand du Guesclin, sir Hugo Calveley e do marechal Arnould d’Audrehem. De ambos os lados, o grosso dos combatentes era composto por homens de infantaria. Após a vitória de Pedro em Nájera, este entregou-se a novos excessos repressivos, que anos antes já lhe tinham valido o cognome de O Cruel. O Príncipe Negro, a quem tinha sido prometido anteriormente o senhorio da Vizcaya, em caso de vitória, retira-se para Inglaterra e com ele os seus homens e o seu apoio a Pedro. Henrique, após a derrota em Nájera não fica imóvel e ameaça Toledo, contando ainda com os mercenários franceses do seu lado. Pedro resolve cortar-lhe o caminho em La Mancha e a 13 de Março de 1369, na companhia de Fernán Ruíz de Castro avista por fim o castelo de La Estrella situado no alto de uma colina em Montiel. Uma semana antes havia saído de Sevilha, passando por Valência de Alcântara e Puebla de Alcocer. Em Montiel dá-se a tragédia. Pedro, mesmo contando com soldados do reino muçulmano de Granada e de Portugal nas suas hostes para tentar colmatar a saída do Príncipe Negro e dos seus homens, perde a batalha frente a Bertrand du Guesclin e é forçado a procurar refúgio dentro das muralhas do castelo de Montiel com o seu exército. Por meio de enganos, após negociar a rendição com du Guesclin, é levado ao acampamento inimigo onde encontra Henrique na tenda do chefe dos mercenários. Aí, envolvem-se os dois meios-irmãos em luta e Henrique apunhala Pedro até à morte. A 23 de Março de 1369 terminava assim de forma violenta o reinado de Pedro I de Castela. A sua cabeça decapitada foi exibida aos que permaneciam dentro do castelo refugiados, que logo optaram pela rendição. Henrique de Trastâmara subiria ao trono como Henrique II.
Fig. 2 – Decapitação de Pedro I diante de Henrique de Trastâmara. Manuscrito do séc. XIV, Biblioteca Nacional de Paris. Grandes Chroniques de France (Fr 2813 fol. 447)
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RECRIAÇÃO DA BATALHA DE MONTIEL
Nos dias 13 e 14 de Abril deste ano, levou-se a cabo mais uma recriação da Batalha de Montiel, na povoação do mesmo nome, com montagem de um acampamento histórico. É um evento que se tem destacado positivamente no panorama da recriação histórica peninsular pelo aumento qualitativo e quantitativo a nível de participantes de ano para ano. O evento de recriação contava na sua edição em 2011 com um acampamento votado a um terreno pequeno e lúgubre, onde se poderiam contar cerca de 6 tendas de formato medieval e pouco mais de uma vintena de recreadores que com seus equipamentos militares e seus trajes diversos, exemplificavam vários períodos da Idade Média, não existindo um “filtro” que impusesse aos participantes equipamentos específicos do séc. XIV e mais concretamente, próximos da data histórica da batalha. Embora a povoação já conte com a tradição de um mercado medieval há alguns anos, orientado um pouco ao género dos eventos semelhantes de Portugal, sem grande rigor exigido aos comerciantes, tanto a nível de indumentária como de produtos à venda, a verdade é que um grupo de trabalho constituído em parte por Historiadores/recriadores de Espanha conseguiu após o evento de 2011 persuadir a organização do mercado medieval de Montiel de que seria uma mais valia apostar na recriação histórica de qualidade, incentivando-os a dar mais apoios e a permitir que fossem criadas regras de acesso dos diferentes grupos, de modo a garantir-se uma elevada qualidade do evento e que o mesmo funcionasse como um “museu vivo” onde os visitantes do mercado pudessem aceder e visitar. Para além disso propunha-se a recriação da Batalha de Montiel, momento histórico intimamente ligado à povoação. Em Março de 2012 o pequeno terreno acostumado a receber os recriadores, revelou-se claramente insuficiente. Respondendo com uma vitalidade incrível e com uma vontade de contribuir para a separação definitiva entre animação de inspiração histórica e recriação histórica de qualidade, diversos grupos de Espanha prepararam-se para este evento assim como o grupo português Guildas Áureas e a organização teve de encontrar um outro terreno para o acampamento pois o número de tendas montadas foi superior ao dobro do ano anterior – 14 tendas. Nem mesmo o frio sentido durante a noite afastava os recriadores do convívio em torno de fogueiras e a opinião geral era muito positiva sobre a evolução conseguida na qualidade do evento. No dia da recriação da batalha, os recriadores combatentes foram divididos em dois bandos: um petrista e outro henriquista e erguendo os seus estandartes variados foram conduzidos ao campo do monólito, assim apelidado por ali se encontrar um monólito de pedra encimado por uma coroa em honra de Pedro I que ali terá perdido a sua vida. A afluência do público foi surpreendente para assistir ao confronto armado. Da contagem de poucas dezenas de assistentes que em anos anteriores assistiam a uma pequena demonstração de confronto militar em que os recriadores se digladiavam numa pequena rua, a contagem oficial de 2012 apontava para quase 1000 expectadores que se deslocaram ao campo para assistir à batalha.
Fig. 3 – Recriação da Batalha de Montiel (2012).
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Fig. 4 – Acampamento Medieval em Montiel
Este ano as expectativas para o evento de Montiel eram grandes. Por declaração oficial das entidades espanholas, as Jornadas Medievais de Montiel foram declaradas de interesse turístico regional tal foi o reconhecimento do trabalho ali efectuado. Rapidamente a organização de Montiel medieval foi confrontada com demasiados pedidos de participação por parte de grupos de recriação, para a edição deste ano e por falta de apoios financeiros suficientes alguns não puderam comparecer. Espanha, Portugal, França e Itália foram os países representados neste evento de recriação, que contabilizou cerca de 30 tendas montadas no acampamento histórico e a participação de cerca de 180 recreadores. Com uma valorização cada vez maior da recriação de ofícios civis e actividades do quotidiano, quem visitava o acampamento poderia encontrar para além dos homens de armas, mulheres a costurar, a trabalharem a lã, o fabrico da malha de aço, o fabrico de artigos em couro, a construção de escudos e até uma exposição de chapéus e adornos da cabeça para ambos os sexos, para além de se escutar música executada por alguns recriadores. A complementar este cenário magnífico, frades de ordens mendicantes, um mendigo e crianças que por ali se divertiam em brincadeiras simples ou recorrendo a brinquedos de formato histórico. Finalmente chegada a hora da recriação da batalha propriamente dita, os combatentes foram distribuídos pelos dois exércitos. Os elementos oriundos de França foram destacados para o exército de Henrique, enquanto os recriadores de muçulmanos de Granada e de soldados de Portugal foram colocados no exército de Pedro e assim sucessivamente se tentou distribuir os participantes de forma a tentar conjugar dentro do possível a origem actual dos recriadores com o que vem descrito nas crónicas sobre a batalha histórica. De formas diferentes, mas com o mesmo objectivo, muçulmanos e cristãos oram antes do grande confronto. É dado o sinal de início de batalha e as provocações iniciam-se. Insulta-se o adversário…. Dão-se vivas por Castela, cada lado grita um nome diferente: Viva D. Pedro! Viva D. Henrique! E os arqueiros muçulmanos disparam as suas flechas sobre o adversário Henriquista. O confronto desenrola-se em 3 assaltos e as armas entram em choque: lanças; espadas; maças de armas…. Ao fundo, no topo da colina, as ruínas do castelo observam o que se passa na planície… Combatentes, atingidos “com falsa gravidade” tombam no solo e agonizam. Alguns conseguem ser socorridos pelos companheiros e são arrastados para fora do local da batalha. Comprometidos em recriar a História, os que lutam pelo lado de Pedro vão-se “deixando matar” ou fogem no final. É preciso que assim seja.
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A vitória é declarada. Henrique é o vencedor! A recriação no feminino volta a ter destaque no final da batalha, quando as mulheres procuram entre os corpos tombados, os seus maridos, irmãos ou filhos. Algumas demonstram o seu desgosto de terem perdido um ente querido enquanto outras dão de beber aos feridos. Também os frades procuram confortar quem ainda encontram com vida enquanto em outro lado do campo, um mendigo vai desapossando os cadáveres dos artigos que consegue furtar. A recriação da batalha foi um sucesso. O público aplaude com entusiasmo. Aos poucos os recriadores tombados erguem-se e cumprimentam o público e abraçam calorosamente os seus inimigos. O campo do monólito encheu-se de visitantes que puderam ver o acampamento e a recriação da batalha. Segundo as estimativas das entidades locais, 5 mil expectadores em 2013 em vez das menos de mil do ano anterior. No final do evento os benefícios resultantes a diversos níveis foram visíveis. A cultura conseguiu andar de mão dada com o desenvolvimento turístico/ comercial da povoação.
Fig. 5 – O final da Batalha Montiel. Os exércitos pilham os corpos dos guerreiros vencidos.
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Fig. 6 – Recriação do quotidiano medieval em Montiel – 2013.
Bibliografia FERNANDES, Isabel Alexandra, Reis e Rainhas de Portugal, 5ª Edição, Lisboa, Texto Editores, 2006. MARQUES, A.H. de Oliveira, Breve História de Portugal, 7ª Edição, Barcarena, Editorial Presença, 2009. MATTOSO, José (Direcção de), História de Portugal – A monarquia feudal (1096-1480), Vol. II, [s.l.], Editorial Estampa, [s.d.]. RODRIGUES, António Simões, ALDEBERT, Jacques, BENDER, Johan, História da Europa, Coimbra, Minerva, 1992. CARR, Raymond (coordenação), História concisa de Espanha, Mem Martins, Publicações Europa-América, 2004. CIERVA, Ricardo de la, Historia total de España – del hombre de Altamira al rey Juan Carlos, 11ª Edição, Madrid, Editorial Fénix, 2003. VIDAL-NAQUET, Pierre, BERTIN, Jacques, Atlas Histórico – da Pré-História aos nossos dias, Lisboa, Círculo de Leitores, 2008.
REFERÊNCIAS COMPUTORIZADAS http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Pedro_Castile_beheading.jpg http://es.wikipedia.org/wiki/Batalla_de_Montiel 4/8/2013
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