Revista Férula nº1 Agosto 2012

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Nยบ1-Agosto2012


Editorial Em primeiro lugar devo agradecer a toda equipa responsável pela criação da Revista Férula pelo trabalho árduo e complexo que tiveram ao entregarem-se à concepção desta Revista. Em segundo lugar gostaria de explicar o motivo, os objectivos e o caminho que o Instituto PAEHI – Associação para Estudos Históricos Interdisciplinares deseja seguir. Este projecto nasce da vontade de alguns cidadãos de quererem ter um papel mais activo na educação e informação do público que vai para lá do Académico. O mundo do academismo possuí diversas ferramentas fundamentais para o auxílio na evolução e crescimento da Sociedade, no entanto o afastamento entre o académico e o não académico tem criado atritos e barreiras que impedem uma compreensão e uma convivência mútua, necessária para o bom desenvolvimento do espírito cultural. Baseado nesse motivo, seguimos o caminho de criar algo diferente. Este Instituto nasce desse espírito de reinvenção e de propagação de investigação e estudos para além do mundo académico. Assim sendo, o nosso objectivo é claro e conciso e aos nossos olhos fundamental para a construção de uma harmonia entre dois planos ou dois mundos se preferirmos! De uma forma de simples, desejamos falar ou conversar com o público do seu passado histórico, das suas raízes culturais, criando um sentimento para com o seu património cultural. Através desse objectivo podemos levar a cabo outro. Desejamos divulgar e suscitar novas investigações no seio da História Interdisciplinar, possibilitando a diversos tipos de investigadores trabalharem sobre o mesmo telhado. Com o lançamento de novas investigações e a preocupação de comunicar com o público, decidimos que as nossas ferramentas passam pela criação de um sítio electrónico, de um blog e de uma revista. O blog apresenta-se como um menu de diversos cursos, conferências, colóquios, congressos, museus, monumentos que recomendamos participar ou visitar. O site em si é a nossa base de artigos científicos, de recensões críticas, de informações adicionais; uma plataforma mais científica se assim podemos chamar.. Por fim, o desejo da criação de uma revista é antigo por entre todos os membros deste Instituto. Ao observarmos o plano nacional não nos deparamos com qualquer revista temática do campo da História que tente seguir o plano internacional Assim sendo, é um espaço de divulgação de investigação, informações sobre cursos, um mundo diverso de oportunidades e de pormenores. Com isto o Instituto PAEHI deseja mais que tudo albergar todos os interessados debaixo do mesmo telhado, criando uma nova visão e uma nova perspectiva de como devemos observar o nosso património, a nossa cultura, o nosso sentimento e a nossa cidadania. Por último, quero agradecer a todos os colegas que trabalharam para encaminhar o Instituto na direcção que segue neste momento: da divulgação, da criação e da novidade. O meu obrigado, de um colega e amigo,

Índice Agenda Cultural do Instituto Agenda Cultural Externa Bharatanātyam

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S. Bernardo e Guilherme de Saint-Thiery, Em torno de uma biografia As edições e traduções do Mahābhārata

29 Agamémenon, O que é um rei? 35

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A literacia de Felipa de Lencastre

Comentário Crítico ao Filme, Apocalypse Now Redux Outras Histórias com João Abel da Fonseca

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Recensão ao Congresso Internacional Revisitar o Mito Roteiro Histórico Por Belém

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Director da Publicação Francisco Isaac Redactora Chefe Catarina Almeida Conselho de Redacção João Camacho, Amanda Coelho, Catarina Almeida e Ricardo Martins. Edição Laura Saldanha

Francisco Isaac Lembrando o Passado, Pensando o Futuro

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Agenda Cultural do Instituto até agora...

...a não perder!

Dia 22 de Junho de 2012 – Conflitos e Amaças no Mundo Contemporâneo

Dia 29 de Setembro de 2012 - Encontro de História: Território, Quotidiano e Sociabilidades Sobral de Monte Agraço

Dia 30 de Outubro de 2012 – Novas Investigações na História Interdisciplinar, Sociedade de Geografia de Lisboa

O Instituto Paehi organiza o colóquio Encontro de História: Território, Quotidiano e Sociabilidades durante o dia 29 de Setembro de 2012 no Auditório da Vila junto à Câmara Municipal de Sobral de Monte Agraço. O colóquio inserese dentro da linha da História Local e Nacional, que tem como objectivos fomentar novas investigações na História Nacional procurando estudar os pormenores locais e regionais da História de Portugal, assim como levantar novas problemáticas que sejam pertinentes para a construção de novos estudos e de novos projectos. Com o envolvimento de Instituições como o Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ou o Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, o colóquio tem todos os elementos necessários para ser um sucesso. O colóquio será de entrada livre, com uma inscrição gratuita para o fornecimento de pasta, livro e certificado de presença. Poderá efectuar a sua inscrição no site www.instituto-prometheus.org.

A História, Geografia, Arqueologia, Arquitectura, Arte, entre outras matérias, têm vindo a ser compartimentadas de modo a acomodar reformas nos meios académicos que muito pouco beneficiam o progresso do conhecimento. A convivência entre as diversas áreas ou matérias é um elemento fulcral para o desenvolvimento e crescimento de todas. O investimento contínuo na ideia da Interdisciplinaridade é fundamental para a criação de uma base sólida para o futuro de todas essas disciplinas. Para isto é necessário apoiar e incentivar novos investigadores a procurarem o relacionamento entre disciplinas, resultando assim num trabalho de maior amplitude. Essa abordagem é precisa para melhor perceber a memória e a cultura que está inerente à sociedade e ao património. Como tal, o Instituto PAEHI propõe um colóquio onde diferentes investigadores apresentem as suas teses de Mestrado e Doutoramento. Essa apresentação passa por uma explicação dos problemas deparados durante a investigação para as respectivas teses, e a forma como foram ultrapassados. Além disto, pretende-se também debater acerca das diversas disciplinas que auxiliaram tal investigação. Os orientandos seriam acompanhados pelos seus orientadores, oferecendo os seus pareceres quanto à pertinência das transdisciplinaridades nas teses por si orientadas. Este colóquio terá lugar na Sociedade de Geografia de Lisboa, com programa a ser divulgado brevemente no site www. instituto-prometheus.org.

O Instituto Paehi realizou o seu primeiro colóquio dentro da linha de Investigação História Militar e Novas Problemáticas do Mundo Actual, “Conflitos e Ameaças no Mundo Contemporâneo”, tendo a Sociedade de Geografia de Lisboa como local do evento, e a Comissão Cientifica a cargo do Presidente da Academia das Ciências, Professor Doutor Adriano Moreira, do Presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa, Professor Doutor Luís Aires-Barros e o Vice-Presidente do Instituto Paehi, Prof. Doutor Pedro Gomes Barbosa. Este colóquio foi organizado com o objectivo de apresentar novas comunicações e novos problemas referentes ao mundo actual, sendo a nossa preocupação final encontrar soluções ou pelo menos alertar a todos os interessados nestas temáticas para as grandes dificuldades do nosso tempo e de qual a postura a ter para entendê-los. A entrada era live, sendo, porém, possível a inscrição com um custo simbólico de 5€, com direito a pasta e certificado de presença. Dia 22 a 24 de Junho de 2012 – Por Trilhos da História Amieira Medieval Durante os dias 22 a 24 de Junho de 2012, no castelo de Amieira do Tejo decorreu o encontro de Recriação Histórica “Por Trilhos da História”, organizado pela Junta de Freguesia de Amieira do Tejo com o apoio cientifico das Guildas Áureas e do Instituto PAEHI. A associação de Recriação Histórica Guildas Áureas celebra a entrega do castelo da Ordem do Hospital aos partidários de D. João I, nomeadamente o Condestável Nuno Alvares Pereira, recriando esse momento histórico que marca a memória de Amieira do Tejo. O Instituto Paehi esteve presente pela voz da Vice-Presidente Catarina Almeida, que proferiu uma breve conferência sobre o contexto em que se insere o Castelo de Amieira do Tejo na disputa pelo trono.

Dia 27 de Junho de 2012 – International Medieval Meeting Lleida

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A Universidade de Lleida (Lérida) organizou o seu 1º Congresso de História Medieval Internacional durante os dias 26 a 30 de Junho de 2012. O Instituto PAEHI esteve presente numa sessão Business com uma comunicação a cargo do Presidente do Instituto Paehi, Francisco Isaac – “O Livro Preto da Sé de Coimbra: relembrar a memória histórica” – tendo como objectivos lembrar em primeiro lugar a importância do Livro Preto da Sé de Coimbra como fonte essencial para o estudo do Portugal Medieval, bem como explicar a importância da criação de uma base de dados online que possa ser consultada em qualquer parte do globo, expandindo assim a memória e a cultura histórica portuguesa medieval. A sessão decorrereu entre as 13:00 e as 14:00 na Sala Juentes, 3º andar. Tratou-se de uma comunicação especialmente marcante para o Instituto PAHEI, visto tratar-se da primeira experiência internacional.

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Agenda Cultural Externa 8 Maio a 30 Setembro de 2012 Pathé Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, Lisboa Em 1896 Charles e Émile Pathé abriram as portas da sua primeira loja em Vincennes. Fascinados com o fonógrafo e o Kinetoscope, Charles e seu irmão entram rapidamente no negócio, apostando primeiramente em dois setores: o fonógrafo, liderado por Émile, e o cinema, por Charles. Foi através da venda de fonógrafos e kinestoscopes que os irmãos Pathé construíram aquele que é considerado como o primeiro império mundial cinematográfico. Desta forma, poderá encontrar até ao final do mês de Setembro no Museu do Cinema uma exposição temporária que trata de uma seleção de equipamentos e objetos que retratam as várias áreas de actividade da Pathé desde a sua fundação. A par de tudo isto é exibido um conjunto de fotografias de cenas de filmes produzidos pela Pathé Films na década do século XX. Uma exposição que contou com o apoio da Fnac. Para mais informações dirija-se a: http://www.cinemateca. pt/Cinemateca/Noticias/Exposicao-Pathe.aspx,contacte: 213 596 200, ou ainda escreva para: cinemateca@cinemateca.pt.

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Museu do Papel Moeda da Fundação Dr. António Cupertino de Miranda, Porto 2.ª a 6.ª feira : 10:00-12:30 e 15:00-18:00 A exposição de papel-moeda apresenta a história do dinheiro de papel enquanto património fiduciário português. Do espólio fazem parte a totalidade das emissões de notas de Portugal Continental e das antigas Colónias. Na exposição destacam-se as apólices do Real Erário (a coleção apresenta um exemplar muito raro, uma apólice de 2.400 Reis de 1797 da primeira emissão do Empréstimo, único exemplar conhecido), e ainda notas de Portugal continental e ex-colónias, cheques, acções, lotarias, papel selado, letras e uma coleção de cédulas. Esta exposição está adaptada a cegos, amblíopes e pessoas com paralisia cerebral. O museu disponibiliza informação em suporte papel (Braille) e em suporte digital. O bilhete normal custa 3€, para estudantes ou reformados custa 1,50€. Para mais informações dirija-se ao site: http://www.facm.pt/mpm_museu.html.

18 de Maio a 31 de Outubro Armando Leça: a música portuguesa nos novos meios de comunicação Museu da Música Portuguesa. Casa Verdades de Faria, Cascais. 3.ª feira a domingo às 11h às 15h

Armando Leça (1881-1977) foi compositor folclorista e etnógrafo, foi pioneiro na utilização de meios de comunicação de massas, como o cinema, a rádio e a indústria discográfica, cujo impacto na história da música portuguesa do século XX é indiscutível. Assim, até 31 de Outubro no Museu da Música Portuguesa toma-se contacto com a participação de Armando Leça na construção do cinema português, no surgimento dos primeiros programas de rádio, da primeira etiqueta discográfica dedicada à música folclórica, e ainda com a primeira colecção de registos sonoros de matriz cultural extensiva ao continente, realizada a pedido da Comissão dos Centenários por altura da exposição do Mundo Português (1940). Pode visitar esta exposição de forma gratuita de terça-feira a domingo, e ligando para: 214815904/51. 11 de Maio a 14 de Outubro de 2012 ANGELORUM – Mil anos de Anjos em Portugal Museu de Alberto Sampaio, Guimarães 3.ªfeira a Domingo, das 10h00 às 18h00 A exposição “Angelorum”, que acompanha as exposições temporárias organizadas no âmbito da Capital Europeia da Cultura | Guimarães 2012, propõe sintetizar as quatro grandes fases da representação dos anjos na Arte, ao longo da História: o “Anjo Justiceiro”, do período medieval; o “Anjo Humanista”, do Renascimento; o “Anjo Barroco”, do luxo e decoração; e o “Anjo Protector”, da Idade Contemporânea. Apresentam-se noventa e sete peças que constituem a exposição Angelorum. Anjos em Portugal, com detalhadas informações técnicas e histórias, concluindo-se com o texto literário «Anjos, Apocalipse na Arte», de Flávio Ricardo Vidal Carvalho. O Museu de Alberto Sampaio acolherá peças provenientes de vários museus e outras instituições culturais do país, além de algumas obras contemporâneas criadas especificamente para esta exposição, como é o caso da tela da autoria do pintor Mário Vitória que animará as paredes da sala do capítulo. O Bilhete normal custa 3€, sendo que aos Domingos e feriados a entrada é gratuita até às 14h. Para mais informações dirija-se: http://masampaio.imc-ip.pt/.

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Origem mitológica

Bharatanātyam Mara Nunes Fernandes*

1 Balasaraswati

rasa is the seed and fruit of the arts1

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Licencianda em Estudos Asiáticos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 1

Radhakamal mukerjee, “‘Rasas’ as Springs of Art in Indian Aesthetics”, The journal of aesthetics and art criticism, vol. 24, no. 1, 1965, p.91. 2

Monier Williams, “Nātya” e “Bhārata” in A Sankrit-English Dictionary: Etymologically and philologically arranged, Oxford, Oxford at the Clarendon Press, 1964, pp. 534, 753.

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Monier Williams, “Bhāva”, “Rāga” e “Tāla” in op. cit., pp. 748, 872, 444.

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O Bharatanātyam é um dos estilos clássicos de dança da Índia que, partilhando de muitas semelhanças com outros estilos, não deixa de possuir características muito próprias, que constituem uma forma artística milenar muito rica, tanto a níveis técnicos, quanto devocionais e psicológicos. Actualmente é uma arte mundialmente reconhecida e que se distancia em muito, naturalmente, daquilo que é a dança ocidental. Origem etimológica Originário do Sul da Índia, de Tamil Nādu, este estilo da dança clássica indiana terá recebido o nome de Bharatanātyam por volta dos anos 30 do século XX, sendo na sua origem conhecido por dāsiāttam ou “a dança das devadāsīs”. Sobre a possível origem etimológica da designação Bharatanātyam, bem como a sua tradução, existem três principais interpretações academicamente aceites: 1) Gerou-se de um composto do sânscrito nāṭya- (em acusativo nāṭyam), que significa “dança”, entre outros, e de bharata, que nos remete para “Índia” (Bhāratavarṣa, “terra dos Bhārata”) 2, o que nos permite traduzir a designação por “dança da Índia”; 2) A designação bharata poderá relacionar-se ainda com o nome de Bharata Muni (Muni, por sua vez, significa “sábio” ou “mestre”), dito autor do Nāṭyaśāstra, o que dá ao composto a significação de “dança de Bharata”; 3) A última das interpretações e também aquela que de entre estas três é popularmente mais aceite, é a divisão da designação bharata em três compostos: bha-, que origina bhāva, “emoção”, ra- que origina rāga ou “melodia”, e finalmente ta- que origina tāla, “ritmo” 3. O que nos permite traduzir por: “dança da emoção, melodia e ritmo”. Estes três, tāla, rāga e bhāva são as três principais entidades ou componentes da dança indiana, situação pela qual esta origem etimológica poderá ser atestada.

A origem celeste da dança indiana vem descrita no Nāṭyaśāstra e, segundo o mito, para além dos quatro Vedas (compilação de hinos e ritos) a humanidade necessitava de entretenimento que a purificasse psicológica e espiritualmente, por este motivo três sábios decidiram levar a questão até Brahmā (deus-criador), que por sua vez criou então um quinto Veda, o Nāṭyaśāstra ou Nāṭya-Veda, o qual foi confiado ao sábio Bharata. Śiva por sua vez, encarregou-se de ensinar a dança, através dos seus gaṇas (assistentes), a Bharata, desta forma o sábio Bharata formou um grupo de bailarinas e músicos, as apsarās (ninfas celestes) e os ghandarvas (músicos celestes). Śiva encarregou a sua esposa Pārvatī da iniciação de Bharata, no seu estilo de dança chamado Lāsya, um estilo cheio de graça e feminilidade e ele próprio iniciou-o no seu estilo de dança, o Tāṇḍava, que era mais masculino e virtuoso. Depois Pārvatī iniciou Uṣā, filha de Bāṇa, e Uṣā por sua vez ensinou a dança às gopīs (vaqueiras) da cidade de Dvārakā. Estas ensinaram a dança na região de Saurāṣtra, partilhando o seu conhecimento com outras mulheres de outras partes da Índia, e desta forma a dança foi passada de geração em geração. A dança de Śiva A dança é uma expressão simbólica da fé religiosa na Índia, e Śiva será o deus que mais se relaciona com ela, sendo chamado de Śiva Naṭarājā, literalmente “o rei da dança”. A dança do Naṭarājā representa o ciclo cósmico da criação e da destruição, bem como todos os ritmos da humanidade, o pôr e o levantar do sol, as estações do ano ou o ritmo da própria vida são pontuados por este compasso, como o ritmo numa dança. É desta forma que a dança rítmica do Naṭarājā impulsiona o universo e gera a sustentação de toda a vida. Este é um dos motivos pelo qual no Sul da Índia a dança foi e continua a ser reconhecida como uma arte milenar, sagrada e que projecta uma revelação divina. O Nāṭyaśāstra O Bharatanāṭyam, bem como os restantes estilos de danças indianas e as performances teatrais, são creditados, definidos e caracterizados através deste tratado que data do sécs. 200 a.C a 200 d.C. e que encontra reflexo no Ocidente, por exemplo na Poética de Aristóteles. A designação é um composto sânscrito de nāṭya-, “dança”, bem como “drama”, e Śāstra que é a designação para um “tratado” 4, geralmente de carácter legislativo, o que nos permite traduzir a obra de Muni por “dramaturgia”. Este tratado contém regras e comentários sobre a dança, a música, a estética, o teatro e a retórica, definindo igualmente os seus aspectos práticos, como a disposição do palco, dos rituais necessários para o construir, da roupa a usar, a maquilhagem, entre muitas outras especificidades, o que a tornam numa obra riquíssima e de um valor inquestionável. Actualmente o Nāṭyaśāstra é a fonte de todos os artistas clássicos indianos, não só para a dança mas também para muitas outras formas de arte. O seu autor, Bharata Muni, divide a obra em quatro capítulos dedicados ao Abhinaya (expressões) e aos modelos de conveniência do “prazer” teatral que recebem o nome de Rasa, que é puro e que difere do prazer que normalmente adquirimos do contacto com objectos mundanos, que são aqui entendidos como geradores de sofrimento.

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Monier Williams, “Nātya” e “Śāstra”, op. cit., pp. 534, 1069.

As Devadāsis Ao longo dos séculos, sem que a sua antiguidade possa ser definida, o Bharatanāṭyam foi dançado por mulheres chamadas Devadāsīs (em Tamil: Tēvatāsis), que, entre os séculos IV e XII d.C., durante os reinados dos Pahlavas e dos Coḷas, em especial durante este úl-

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timo, surgem evidências da presença de Devadāsīs nos templos construídos nesta época em Tamil Nādu, como no templo de Bṛhadīśvara no distrito de Thañjāvūr. Esta realidade poderá ser explicada pelo facto de os reis destas duas dinastias terem sido importantes mecenas, que encorajavam as artes e mantinham nas suas cortes centenas de Devadāsīs. Estas dançarinas pertenciam a uma casta que estava estritamente relacionada com a dedicação a um Deus, dedicação que está expressa na designação que recebiam, um composto de deva, “deus” e dāsī (fem. de dāsa-), “serva”, logo “servas de deus”. Estas mulheres encontravam-se ao serviço de um templo e tinham papel de destaque na participação em rituais religiosos do Sul da Índia, sendo popularmente entendidas como auspiciosas e como aquelas que retiravam o “mau-olhado”. Eram, regra geral, mulheres ricas que podiam possuir vários terrenos, ao contrário da realidade da maioria das mulheres indianas. Ao atingirem a puberdade, estas mulheres eram ritualmente iniciadas através do Sadir, onde se lhes era atado um fio ao pescoço, e a partir de então passavam a ser chamadas de Devadāsīs. A partir desde momento não podiam casar, permanecendo simbolicamente casadas com o deus do templo, mas podiam manter relações com homens de poder, e os seus filhos podiam tornar-se Naṭṭuvaṉārs (músicos ou professores de dança). Durante a ocupação britânica a reputação e o estatuto das Devadāsīs degradou-se consideravelmente, e aos olhos dos colonizadores as Devadāsīs eram vistas como prostitutas por manterem uma vida livre no que toca a relações, e criticadas com base na justificação da degradação moral que as Devadāsīs representavam. As Devadāsīs perderam assim o seu prestígio, bem como a sua riqueza e as suas terras, em grande parte devido aos ingleses, mas também devido a alguns indianos que não aceitavam a liberdade e o poder que estas mulheres detinham e que mais nenhumas podiam ter. Esta entrega devocional acabou por ser mal interpretada e afastada do seu local de destaque. A sua dedicação aos templos foi banida até aos nossos dias, tendo perdido valor aos olhos da sociedade, na qual estas jovens e mulheres passaram a prostituir-se para conseguirem alimentar a família. Contudo, continuam a dedicar-se a um Deus e a denominarem-se de Devadāsīs, ainda que o estatuto de Devadāsī tenha nos dias de hoje, e de forma infeliz, uma conotação completamente diferente daquela que teve na sua origem. Após a proibição gradual a esta prática, entre 1934 e 1988, Rukmini Devi (ela própria bailarina) e E. Krishna Iyer (dançarino) fizeram renascer esta arte milenar. Uma das últimas descentes das Devadāsīs e internacionalmente aclamada foi Balasaraswati, ela própria apresentada por E. Krishna Iyer em 1934. Muito do reportório até então utilizado na dança (letras e gestos) de carácter “amoroso” – geralmente “erótico” aos olhos de um ocidental – e devocional para com um deus foi posto de lado. Rukmini Devi, por sua vez, fundou uma escola de dança (a Kalākṣetra) onde qualquer rapariga podia agora aprender esta arte. A sua primeira actuação, desligada do seu anterior contexto religioso, o que era uma novidade, foi vista como um verdadeiro atentado moral e duramente criticada, todavia a mentalidade indiana e ocidental veio a redescobrir uma forma de arte autêntica e invulgar, conferindo-lhe novamente um lugar de destaque no seio das artes. Mais tarde, depois da independência da Índia em 1947, o Bharatanāṭyam adquiriu um grande número de bailarinos masculinos, bem como grande popularidade, não só na Índia mas no resto do mundo. As principais características Esta arte milenar assenta sobre três aspetos principais: A) Nṛtta; B) Nṛtya; e C) Nāṭya. A) Nṛtta é um movimento rítmico que não exprime emoção, nem ideias, nem sentimentos e é baseada em movimentos puramente estéticos. Aqui a/o bailarina/o revela a beleza dos movimentos técnicos segundo a sua interpretação prescrita (estilo).

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B) Nṛtya é a combinação do ritmo com a expressividade das emoções, ideias ou sentimentos, recorrendo à linguagem gestual (hastas) bem como às expressões faciais. Esta técnica permite à/ao bailarina/o expor os sentimentos e emoções através da linguagem “gestual” e das expressões faciais, abhinaya. C) Nāṭya é o aspeto “teatral” da dança, a sua aplicação divide-se entre a combinação da expressão dos sentimentos e das emoções causadas, ou seja, abhinaya (tanto na/o bailarina/o como nos espectadores). Corresponde na sua origem aos grupos de bailarinas e músicos que viajavam de aldeia em aldeia na Índia, cantando e dançando as histórias da mitologia indiana, fazendo uso da imitação e da tradição oral. O modo de expressão (Abhinaya). Segundo o Nāṭyaśāstra existem 4 tipos de Abhinaya 5: A) O Āṅgika Abhinaya (da raiz aṅga-, “corpo”) é a componente física, por meio da qual se expressam naturalmente os pensamentos, através dos movimentos de cada parte do corpo e de hastas (gestos), transmitindo-se um significado, como por exemplo, através da forma com que a bailaria se movimenta (ou caminha) no palco . B) O Vācika Abhinaya (da raiz vāc-, “discurso”) é a componente vocal e verbal, isto é, o acto de “facultar” através da expressão, que age como suporte, ou não, da dança. C) O Āhārya Abhinaya (os “ornamentos”) é a componente dita externa, ou seja, a expressão que é visível, o estado de humor da/o bailarina/o, a sua maquilhagem, os acessórios, o vestuário bem como a mise-en-scene. D) O Sāttvika Abhinaya (de sattva- “bondade”) é a componente “psicológica” que é transmitida pelo todo expressivo da/o bailarina/o, em particular numa totalidade expressiva que se refere ao humor do intérprete, ao seu carácter, emoção e à emanação do “Eu” (ātman), e não apenas ao mero acto de representação prática. Esta componente é transmitida através de um esforço mental, sendo este um conceito subtil e inerente à sensibilidade estética indiana, e é definido como a representação de certos sentimentos que causam involuntariamente reações físicas. De uma forma geral esta é a representação dos sentimentos, das suas causas e dos seus efeitos. Na dança indiana estes “sentimentos” são chamados de Navarasas. Esta designação do sânscrito é formada por nava- que significa “nove” e rasa, que tem diversos sentidos, como “sabor”, “essência” e “sentir” 6. A descrição destes sentimentos como a base de todas as emoções humanas, está mais uma vez registada no Nāṭyaśāstra. As Rasas incluem todos os acontecimentos que levam a cada tipo de emoção, que por sua vez perfazem um total de nove, de entre os quais se pode apresentar a título de exemplo o Śṛṅgāra. O Śṛṅgāra ou o “amor”, é o sentimento mais representado na dança clássica indiana, exprimindo o amor entre uma mulher e um homem, o amor devocional por um deus, ou ainda o amor de uma mãe pelo seu filho. Durante a dança o Śṛṅgāra é representado com maior ou menor intensidade, conforme o pretendido, podendo representar a paixão ardente entre uma mulher e um homem ou aquela de uma mulher que aguarda pelo seu amado. Esta rasa descreve, em suma, todas a fases do amor. As restantes Rasas subdividem-se em: Hāsya-Rasa (Alegria/Humor); Karuṇa-Rasa (Tristeza/Compaixão); Raudra-Rasa (Cólera); Vīra-Rasa (Heroísmo, do qual Rāma, o herói central do Rāmāyaṇa, é a incarnação ideal); Bhayānak-Rasa (Medo); Bhībatsa-Rasa (Repugnância/Desgosto); Abdhuta-Rasa (Admiração/Espanto); e Śānta-Rasa (Paz).

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Abhinaya é um composto formado por duas raízes: Abhi- “para” e Nay“conduzir” ou “levar a”, ou seja, “avançar”. Cf. Monier Williams, “Abhinaya”, op. cit., p. 63.

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Cf. Monier Williams, “Nava” e “Rasa”, op. cit., p. 530, 869.

Os gestos A linguagem gestual é a base sobre a qual repousa a técnica de expressão no

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Mudra significa “selo” mas também “posições dos dedos”. Cf. Monier Williams, “Mudra” e “Hasta” in op. cit., p. 822 e 1294. 8

Kamini Rangaradjou, Bharata Natyam: La dance classique du sud de l´Inde, Paris, L´Harmattan, 2010, p.57.

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Adavu vem da palavra tamil adu que significa “dançar”, Cf. Kamini Rangaradjou, op. cit., p.61.

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Kamini Rangaradjou, op. cit., p.61.

Bharatanāṭyam. No século XI o autor Nandikeśvara compilou e enumerou cada um destes gestos, designados de mudrā ou hasta7, que significam “mão”. No Abhinaya-Darpana os gestos são definidos como Hasta-Bheva (Bheva, “variante”), existindo Hastas só para uma mão e hastas para as duas mãos, as primeiras chamam-se Asaṃyuta-Hastas, perfazendo um total de vinte e oito, e as segundas, as Saṃyuta-Hastas que compreendem vinte e quatro. A cada uma das hastas é associada uma outra designação que é atribuída consoante as suas utilizações (ou Viniyogas) em determinado contexto, por exemplo, a hasta designada de Pālapadma simboliza o lótus, mas também pode ter a significação de Lua ou beleza. O alfabeto gestual de Bharatanāṭyam é muito rico e variado, através do qual o artista pode exprimir tudo aquilo que deseja: “ce qui est exprimable et ce qui ne l´est pas” 8. Os movimentos das outras partes do corpo estão igualmente descritos no Abhinaya-Darpana, sendo os principais: os movimentos da cabeça, dos olhos e do pescoço, bem como as posturas corporais, sendo estas denominadas de Sthānakas, num total de seis. Os movimentos também estão codificados em quatro categorias distintas: Os Maṇḍala-Bhedas, os Utplavana-Bhedas, os Bhrāmari-Bhedas e os Cāri-Bhedas. Estas categorias compreendem a combinação de Hastas e posturas, com a representação de devas (deuses) ou avatāras (“encarnações”, de avatṛ- “descer”), bem como com movimentos circulares, entre outros exemplos. Os passos por sua vez, estão esquematizados em dez categorias: o passo do ganso, do pavão, do veado, do elefante, do cavalo, do leão, da cobra, sapo, do não-herói e do homem, estando estes prescritos no Nāṭyaśāstra e no Abhinaya-Darpana, de forma numerosa e extensa, diferindo, contudo, consoante a escola tradicional do Bharatanāṭyam. Outro tipo de movimentos são os Adavus9, estes são movimentos corporais que obedecem a um ritmo particular, o Tāla, ou Tāḷam em tamil. Estes Adavus foram codificados em quatro Naṭṭuvaṇārs e são conhecidos como o quarteto de Tanjavor, cada Adavu compreende uma estrutura que engloba a postura do corpo (Sthānaka), os gestos (Hastas), um movimento dos pés (Hari) e um movimento das mãos (Hasta Kṣetra): “C´est un mouvement gracieux caractérisé par les pieds qui frappent le sol et où les mains et le reste du corps évoluent de manière coordonnée” 10. O recital

Bibliografia

Na sua expressão actual o recital de Bharatanāṭyam, que poderá chegar a durar duas horas, inclui uma orquestra que se coloca num dos lados do palco e que deve incluir no no mínimo um cantor, um violonista, um percussionista e um tocador de Naṭṭuvāngam (pequenos címbalos que marcam o ritmo). A bailarina usa nos calcanhares um par de guizos, os Ghungrus, que também marcam o ritmo. Um recital de Bharatanāṭyam é composto por oito ou mais partes diferentes, cada uma delas com características próprias, como por exemplo, o Varṇam, que é a parte central do recital, onde a ênfase é aplicada na técnica expressiva da bailarina. A dançarina por sua vez é adornada com várias jóias bem como pelo vestuário, que no Bharatanāṭyam se distingue dos restantes tipos de dança.

BUCKLAND, Theresa Jill (ed.), Dancing from past to present: Nation, Culture, Identities, Wisconsin, The University of Wisconsin Press, 2006. MUKERJEE, Radhakamal, “‘Rasas’ as Springs of Art in Indian Aesthetics”, The journal of aesthetics and art criticism, vol. 24, no. 1, Oriental Aesthetics, 1965. MUNI, BHARATA, The Natya Shastra of Bharatamuni: translated into English by a board of Scholars, Delhi, Sri Satguru Publications, 2006. OHTANI, Kimiko, “Bharata Natyam”: Rebirth of dance in India, Studia Musicologia Academiae Scientiarum Hungaricae, 1/4, 1991. RANGARADJOU, Kamini, Bharata Natyam: La dance classique du sud de l´Inde, Paris, L´Harmattan, 2010. SONEJI, Davesh (ed.), Bharatanatyam: A Reader, Delhi, Oxford University Press, 2010. SONEJI, Davesh, Unfinished Gestures: Devadasis, Memory and Modernity in South India, Londres, The University of Chicago Press, 2012. THIOLLET, Monique; LAFFONT, Robert (ed.), Dictionnaire de la Sagesse Orientale: Bouddhisme, hindouisme, Taoisme, Zen, Paris, Bouquins Collection, 1986. VATSYAYAN, Kapila, “The Vāstu-puruṣa” in “The Square and the Circle of the Indian Arts”, Delhi, Abhinav Publications, 1997 (2ª edição)

O Bharatanāṭyam é uma arte muito estilizada e codificada, não sendo nesta investigação possível descrever todas as suas características e subtilezas, tendo sido apontados apenas os seus aspectos gerais. Em termos de significação, os filósofos e religiosos hindus, comparam o Bharatanāṭyam a um oceano do qual não é possível conceber a sua profundidade numa só vida, ou seja, o Bharatanāṭyam é uma arte que exige uma grande disciplina bem como uma forte dedicação tanto na parte prática quanto na teórica. É uma forma de expressão estética não só religiosa mas também de carácter universal.

11

Imagem 1: Balasaraswati, disponível em www.balasaraswati.com (acedido em Maio de 2012)

12


S. BERNARDO E GUILHERME DE SAINT-THIERRY EM TORNO DE UMA BIOGRAFIA Pedro Gomes Barbosa*

Nesse momento, Deus visita Cister. Ele prova aos frades a sua profunda ternura. Na Sua bondade, Deus conduz a Cister trinta homens de uma só vez. Entre eles vemos clérigos. São os sábios e os notáveis da Igreja. Há também laicos, homens poderosos na sociedade, e filhos de notáveis. Todos entram em Cister, no mesmo dia, para se tornarem noviços. Chegam cheios de ardor. Vêm lutar, com coragem, contra os seus defeitos e contra os espíritos maldosos que os empurram para o mal. Estão decididos a continuar o seu percurso até ao fim. Dessa maneira, Bernardo e os seus companheiros dão o exemplo. Encorajam velhos e jovens, homens de todas as idades e de diversos países, a imitá-los. Le Petit Exorde [Exordium Paruum], http://users.skynet.be/scourmont/script/docprim/exordparv/petit_exorde.htm2002.09.23 *

Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa.

13

Em 1153 morria, em cheiro de santidade, Bernardo, que foi de Fontaines, e era agora de Claraval. Personagem ainda envolto em muitas interrogações. Mas não tanto quanto aos actos da sua vida, pelo menos desde que, cerca de 1110, tinha ido professar naquele mosteiro perdido e quase deserto nos confins da Borgonha. As interrogações colocam-se mais sobre a sua intervenção no Século e na Igreja, que na formulação da sua doutrina. Amado por uns, odiado por outros tantos, já na sua época Bernardo não deixava indiferente quem com ele privasse ou, de qualquer modo, fosse atingido pelas suas palavras ou acções. Não pretendo, aqui, resolver as questões levantadas pelo Santo, e que tanto têm ocupado historiadores mais especialistas do que eu neste particular capítulo. O que quero aqui apresentar é uma reflexão pessoal sobre Bernardo a partir da sua Vida, escrita pelo seu amigo e discípulo Guilherme de Saint-Thierry, a minha forma de ver o Homem e o Pensador, o Santo e o Político. Dei o título de “A Luz e as Sombras a um trabalho apresentado há já alguns anos. A Luz é Bernardo, Doutor da Igreja. Escrevi na altura que as Sombras são projectadas por aqueles que, pensando conhecê-lo bem, lhe colocam “biombos interpretativos” que não deixam ver a claridade que dele brota. Bernardo tem que ser visto como um homem do seu tempo, mas também como alguém para lá do seu tempo. Só tendo em conta esta complexidade poderemos chegar mais perto dele, e tentar perceber um pouco do muito que ele foi. Por aquilo que conhecemos da sua vida, através das muitas notícias que

chegaram até nós, dos incontáveis estudos que sobre ele se fizeram, mas sobretudo através das biografias feitas pelos seus contemporâneos ou quase contemporâneos, e também pelas suas inúmeras cartas e escritos, sermões e homilias, podemos dizer que Bernardo de Fontaines foi um homem duro e exigente. Primeiro consigo próprio e, logo, com ps que o rodeavam, que ele considerava seus filhos espirituais. Sobretudo com aqueles que ele mais amava, e que queria ver na via da salvação. Feito Santo pela Igreja Romana, não corresponde àquela imagem que temos das seráficas criaturas que, segundo os ensinamentos da Santa Madre Igreja, estão sentados à direita de Deus Pai. Aliás, não consigo imaginar Bernardo sentado ou quieto. Personagem polémico, extremamente conservador, por vezes tocando as raias do integrismo. Mas as suas acções e palavras eram importantes, se nos não esquecermos da época em que viveu: início de novas heresias, que não só a dos Cátaros, que combateu com entusiasmo, o perigo muçulmano que, na Península Ibérica, ameaçava de perto a Cristandade, e na Terra Santa procurava destruir os Estados cristãos que defendiam os lugares santos. Mas também a contestação ao poder da Igreja por parte de vários monarcas. E Bernardo acreditava que só uma Europa unida, evidentemente à volta da Igreja e do seu máximo representante, o Papa, poderia fazer frente a estes vários perigos e ameaças. Aliás, penso que apenas por ignorância da sua vida e obra se tenha escolhido pera patrono desta nossa Europa, cuja civilização tem as suas raízes não apenas na Roma antiga mas igualmente, e muito, no Cristianismo, S. Bento, em vez do abade de Claraval. Bernardo era um brilhante orador, conseguindo arrastar multidões e convencer hierarquias. Escritor fecundo, as suas ideias circularam por toda a Europa católica do seu tempo nas missivas que enviava a leigos e clérigos, a reis e papas, mesmo se algumas das suas cartas, como aquela supostamente dirigida a Afonso Henriques, levantam inúmeras dúvidas de autenticidade. Os seus sermões e os seus comentários serviram de referência e de modelo a muitos dos principais pensadores da Cristandade católica, abriu horizontes para uma nova forma de ver o Mundo real e concreto, não se perdendo em tortuosos e “barrocos” pensamentos. Mas a sua influência foi para lá do catolicismo. Martinho Lutero considerava-o um dos maiores expoentes da Cristandade1. Erasmo de Roterdão admirava o seu saber teológico e a sua visão do mundo. Mas nos tempos seguintes, nem todos o viram com os mesmos olhos. No século XVIII a sua figura começou a sofrer contestação. Se, para uma corrente que vinha de tempos anteriores, se prolonga a interpretação mística do Santo, os “filósofos das Luzes” condenaram-no como um fanático que lançava os homens no massacre, a caminho das cruzadas. O século XIX recorda sobretudo Abelardo, o espírito que queria ser livre e acabou maltratado por esse representante da Igreja mais radical e retrógrada. O século XX insiste no conservadorismo de Bernardo, agora de forma não tão rigorosa. Mas a figura de Bernardo voltou a ser estudada e compreendida, à luz da sua época, nos finais do século passado. Recordemos as palavras do Santo: “O fruto não está no Conhecimento, mas no acto de compreender” (Sobre a Reflexão). Incansável na sua actividade, tanto pastoral como política, foi dos homens que mais influenciaram a sua época, para o bem e para o mal. Porque o Santo não é perfeito. E Bernardo não tinha a pretensão de o ser. Embora se aproxime de Deus mais do que qualquer dos outros mortais, o santo fica abaixo de Anjos e Arcanjos. Foi defensor de papas, como Inocêncio II, tendo atacado com tanto vigor quanto convicção o chamado “antipapa” Anacleto II. E foi Inocêncio colocado, após vários anos de lutas e deambulações, no trono de S. Pedro, tendo o apoio do Santo sido decidido pela análise do perfil moral do candidato. Veementemente pregou uma cruzada, a Segunda, cujos resultados, a que se juntam as críticas e as acusações, o deixaram muito abalado. Não houve assunto importante da esfera da Igreja onde ele não estivesse metido, ou

1

Franz Posset, “Divus Bernardus: Saint Bernard as Spiritual and Theological Mentor of the Reformer Martin Luther” em Bernardus Magister (Actas do Congresso de Kalamazoo, Michigan, 10-13 de Maio de 1990), Spencer (MA) e Saint-Nicolas-lèsCîteau (França), 1992, págs. 517-532.

14


2

A Saint Bernard of Clairvaux Abbot, Doctor of the Church – 1153 em http://www.ewtn.com/library/ MARY/BERNARD2.htm em 2002.09.23.

3

“Nada direi da enorme altura, comprimento extravagante ou largura desnecessária das igrejas [dos clunicenses]... digamos que é tudo em honra de Deus. Contudo, tal como o poeta pagão Persius perguntou aos outros pagãos, assim eu, como monge, perguntarei aos meus companheiros monges: ‘Dizei-me, oh pontífices’, disse ele, ‘o que faz o ouro no santuário?’ Eu direi (seguindo mais o tema do que a metáfora): ‘Dizei-me, pobres homens, se sois realmente pobres o que faz o ouro no santuário?’” (Bernard of Clairvaux: Apology, em http://www.fordham.edu/halsall/ source/bernard1.html, 2002.09.06)

4 5 6

Coríntios 8,9. Eclesiastes 1,18.

Cit. por Jacques Berlioz em “ Saint Bernard, le Soldat de Dieu”, AA. VV., Moines et Religieux au Moyen Âge, Paris, 1994, págs. 193-194.

7 8

Local citado na nota anterior.

Ou pelo menos, e dada a dificuldade, tentar atingir.

9

Fernand Comte, Dictionnaire de la Civilisation Chrétienne, Paris, 1999, pág. 281.

15

para o qual não fosse chamado ou pedida a sua opinião. Definia-se como “quimera do seu tempo”, sendo-lhe interdito, pelas solicitações do Século, levar uma vida de monge, como desejava; mas devido ao seu amor pelo claustro, nunca assumindo plenamente a actividade laica. Mas a sua marca não se ficou apenas pelo mundo temporal, embora nele, e através dele, possamos perceber em boa parte o que foi esse admirável século XII. Monge por vocação, rigorista no seu modo de vida, praticou aquilo que recomendava a quem entrasse para a Ordem de Cister: “Se desejas viver nesta casa, deixa o teu corpo para trás; só espíritos podem entrar aqui2. O seu pensamento, que moldou (e molda) gerações, é límpido e não admite segundas interpretações ou, sequer, modificações de percurso. “Bernardo é um pregador eloquente, mais pela natureza do que pela arte; está cheio de encanto e vivacidade, e sabe como atingir e comover os afectos”, escrevia Erasmo de Roterdão. Para ele, o motor de tudo era a Caridade em Cristo, e por Cristo, tal como Ele, através dos Evangelhos, manda que se faça. Contudo, poderia ver-se uma contradição entre a ideia de caridade defendida pelo Santo e alguns dos seus excessos coléricos e cegos ataques. Mas lembremos o que acima disse: era para defender a Cristandade. Foi duro para com os seus adversários? Sem dúvida! Mas fê-lo com a convicção de estar a defender a Verdade de Cristo e, na imitação de Cristo, procurava, com veemência, expulsar os (para ele) novos “vendilhões do Templo”. Tem-se escrito e dito, em várias ocasiões, que Bernardo condenava o Saber, e defendia a Fé cega e a vida no obscurantismo. Mas tal não corresponde à verdade, o que seria estranho num homem que cita poetas latinos pagãos3, e vai criar no seu mosteiro de Claraval uma grande biblioteca. O que ele considerava desprezível ou, no mínimo, sem interesse ou utilidade, era o saber que não procurava directamente Deus. Não aceitava o conhecimento pelo conhecimento, e duvidava que, apenas pelo raciocínio, o Homem conseguisse chegar à Verdade. Essa Verdade que ele, com esforço e procura sincera, poderia encontrar no seu interior. Porque conhecer-se é, para Bernardo, um acto religioso, pois implica conhecer-se como criatura face ao seu Criador. E, como se poderia chegar a esse conhecimento? São Bernardo escreveu no Sermão 36, sobre o “Cântico dos Cânticos”: “Há os que querem saber sem ter outra finalidade que não o saber: essa é uma curiosidade vergonhosa. Há os que querem saber a fim de que se saiba que são sábios: é uma vaidade vergonhosa. (...) Há os que querem saber para vender a sua ciência, isto é, para amontoar bens ou obter honrarias: é um tráfico vergonhoso. Mas há também os que querem saber para edificar os outros: é a caridade; e há aqueles que querem saber para se edificarem a si próprios: é a prudência. (...) Dir-se-á que falo mal das ciências, e parece que censuro os sábios. (...) Deus me guarde (...) Mas sei também que li: ‘A ciência entumestece’4. E ainda: ‘Aquele que adquire novos conhecimentos busca novas penas’ 5“6. No seu Tratado da Casa Interior, escreve ainda: “Muitos procuram a ciência; poucos se importam com a consciência. Pois que se puséssemos o mesmo zelo e cuidado a obter consciência, como colocamos a adquirir uma ciência, encontra-la-íamos bem mais depressa, e conserva-la-íamos com muito mais proveito.”7 A via para atingir8 esse conhecimento era difícil, árdua e cheia de escolhos9. Começava-se pelo despojamento do orgulho do Século – a humildade, a verdadeira humildade, era o início do caminho. Mas também a ascese, que não era apenas, ou sobretudo, a mortificação da carne, mas a renúncia aos prazeres, e a aceitação dos males e sofrimentos que Deus tinha enviado para pôr à prova aqueles que queriam servir a Santa Via. Tal como a Job, Deus punha à prova a paciência, a resignação e a capacidade de suportar.

É a procura da imitação de Cristo, mas de Cristo homem e sofredor, que permite passar do estado carnal ao estado espiritual, e atingir a união com Deus10. Creio que a interpretação desta ideia deve ser examinada com alguma atenção, e não penso que o Santo defendesse a atitude “masoquista” da mortificação da carne, tal como foi interpretada e exercida por vários místicos da Igreja. É verdade que Bernardo criticava os monges que compravam ou faziam poções curativas, ou procuravam médicos leigos para que os curassem (normalmente da malária11, muito comum nessas “terras selvagens” onde se estabeleceram, de início, muitos dos mosteiros mais rigoristas), defendendo Bernardo que a “medicina do corpo” era inimiga da saúde espiritual12. Ele próprio suportava estoicamente (ou santamente) as dores que lhe causava o seu crónico mal de estômago13, segundo a tradição hagiográfica apenas acalmado pelo leite que, milagrosamente, Maria lhe dá do seu próprio peito14. Mas a sua estreita ligação aos monges e ao monaquismo irlandês, de raiz celta, ainda que já não com o rigorismo primitivo15, nomeadamente a sua forte amizade com S. Malaquias16, o bispo irlandês que morre em Claraval, nos braços de S. Bernardo17, podem permitir uma outra leitura. E apenas como hipótese a apresentarei. O modo de vida dos monges de formação céltica, nomeadamente os irlandeses, levou a que S. Bernardo considerasse a Irlanda locus vere sanctus fecundusque sanctorum, copiosissime fructificans Deo18. A admiração, tanto quanto podemos deduzir, vinha da total entrega dos monges e santos irlandeses ao trabalho espiritual de chegar a Deus, tanto pela meditação como pela ascese. Era a aplicação prática e vivida daquilo que Bernardo defendia para o monaquismo, e já referido acima: deixar o corpo do lado de fora, e entrar apenas com o espírito. Ora, os (para nós) violentos exercícios a que se dedicavam os monges irlandeses não tinham como objectivo mortificar o corpo, e atingir o êxtase pela dor, mas sim controlar, pelo exercício do espírito, os sinais que são transmitidos pelo corpo. Ou seja, é uma busca da não-dor, do não-desejo. Aliás, para Bernardo a vida monástica tem por finalidade a união com Deus, e o êxtase, que ele procura em duas etapas. A primeira etapa é a da meditação, na procura gradual da verdade, o que pressupõe o exame da sua condição de homem, a purificação por orações e actos e a luta contra as tentações e o pecado. A segunda etapa, ultrapassada a anterior, é a da contemplação de Deus, o que vai requerer o recolhimento19, a pureza de espírito, a oração e a posse de todas as virtudes. S. Bernardo queixa-se numa das suas cartas de que não consegue esse recolhimento, mesmo quando está no claustro. Bernardo incitava a que se chegasse à contemplação de Deus (ou se chegasse perto), e uma das formas, provavelmente a única por ele admitida, seria a vida monástica. Sobretudo se esse monaquismo fosse o de Cister, mais próximo dos ideais dos Padres fundadores, especialmente de S. Bento. Como escreveu Bernardo, “a razão de amar Deus, é Deus. A medida de O amar é amá-Lo sem medida” 20 Após a sua morte e canonização foram-lhe juntos uma série de atributos. Essas imagens, que geralmente acompanham a representação plástica dos santos, e por vezes se apresentam isoladas como marca desse mesmo santo, não são apenas emblemas, mas sim indicativos que ajudam a uma melhor caracterização, por via do símbolo. Os atributos iconográficos de Bernardo foram os instrumentos da paixão de Cristo, uma mitra por terra, sinal de que recusou sempre as honras episcopais, a visão da Virgem e um enxame de abelhas, entre outros menos frequentes. Desses símbolos, gostava de chamar a atenção para o enxame de abelhas. Ele é geralmente interpretado como uma indicação das doces palavras de S. Bernardo, também chamado Doctor Melifluus. Mas não creio que possamos encontrar sempre doçura e mel nas palavras, por vezes muito violentas, deste santo. Se, por vezes, começa um seu discurso com palavras doces é para, logo a seguir,

10 11

Idem, ibidem.

“Os nossos pais [os abades] construíram os seus mosteiros nos lugares húmidos e insalubres para que os monges tivessem diante dos seus olhos, de forma acutilante, a incerteza da vida”. S. Bernardo, citado em Saint Bernard of Clairvaux Abbot, Doctor of the Church – 1153, http://www. ewtn.com/library/MARY/BERNARD2.htm em 2002.09.23.

12

Carole Rawcliffe, Medicine and Society in Later Medieval England, Stroud, 1997, pág. 85.

13 14

Gastrite ou úlcera?

O que o tornava um colaço de Cristo.

15

Ver especialmente a obra de Elizabeth Rees, Celtic Saints: Passionate Wanderers, Londres, 2000.

16 17

Maelmhaedhoc l’Morgair.

S. Malaquias morre em Claraval em 1148. A grande admiração pelo santo irlandês fez com que Bernardo nos deixasse dele uma biografia (Dom Louis Gougaud, O.S.B., Gaelic Pioneers of Christianity, Dublin, 1923, pág. 139).

18

Referido na obra citada na nota anterior, pág. 149. Isto, não obstante Bernardo considerar a massa dos irlandeses como bárbaros (idem, pág. 39).

19

(citado em Saint Bernard of Clairvaux Abbot, Doctor of the Church – 1153, http://www.ewtn. com/library/MARY/BERNARD2. htm em 2002.09.23).

20

De diligendo Deo: I,1.

16


21

Juan Eduardo Cirlot, Dicionário de Símbolos, Lisboa, 2000, pág. 55.

22

Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (dir.), Dictionnaire des Symboles, vol. 1, Paris, 1973, pág. 3. Pelo seu mel e pelo seu ferrão, a abelha é considerada como emblema de Cristo: de um lado, a doçura e a misericórdia; do outro, o exercício da justiça enquanto Cristojuiz (idem, ibidem). 23 24

Idem

Segundo a tradição, uma abelha teria pousado nos lábios tanto de Pitágoras como de Platão, estando ambos ainda no berço (Idem, pág. 2), o que significava a previsão futura não só da eloquência quanto, sobretudo, da Sabedoria. E não de uma sabedoria qualquer, já que ambos tentaram perceber o mundo para lá das formas: Pitágoras, através da música e dos números, e Platão, tentando quebrar as cadeias que o prendiam ao fundo da caverna, para tentar ver as realidades à luz clara de um Sol divino, e não como meras sombras projectadas nas paredes da gruta.

25

Cujos resultados negativos o deixariam fortemente abalado. Foi qualificado de “falso profeta”, pelos seus inimigos, assim como Eugénio III, antigo monge de Cister, e papa, que tinha favorecido a empresa, não se livrou de ser qualificado como “Anticristo” ( José Guadalajara Medina, Las Profecías del Anticristo en la Edad Media, Madrid, 1996, pág. 111). Não nos podemos esquecer de que, se a Segunda Cruzada foi um fracasso no Oriente, teve um resultado muito positivo que foi a tomada de Lisboa, em 1147.

17

defender violentamente o seu ponto de vista (que ele cria e queria coincidentes com os da Igreja), ou atacar, com a mesma violência, o seu adversário. Fica-nos uma outra interpretação do simbolismo da abelha: desde que temos conhecimento da interpretação simbólica, que sabemos que a abelha simboliza o saber, o verdadeiro conhecimento, e não o conhecimento superficial da aparência material. Mas tem também um simbolismo solar: Cristo é Sol, é a luz da Verdade, e todos aqueles que se aproximam dessa luz são eles também um pouco desse sol. Mas a abelha, no conjunto da simbólica cristã significa também a diligência e a eloquência, características do Santo21. Ela é, para os Mistérios de Elêusis, e numa “apropriação” de símbolos feita pelo Cristianismo primitivo, um símbolo de ressurreição. A afirmação de Virgílio, segundo a qual as abelhas contêm uma parte da divina Inteligência, continua viva entre os cristãos medievais22. Pelo seu mel e pelo seu ferrão, a abelha é considerada como emblema de Cristo: de um lado, a doçura e a misericórdia; do outro, o exercício da justiça enquanto Cristo-juiz. Mas para o próprio S. Bernardo, a abelha é o símbolo do Espírito Santo23. Que simbolismo escolher. Para mim, será o do conhecimento, e do mel, se interpretarmos este símbolo não no sentido da doçura mas sim no do conhecimento e da eloquência24. No seu Livro do Tesouro, Brunetto Latini, escritor da segunda metade do século XIII, define as abelhas como “moscas que fazem o mel”, e que têm muito cuidado a fazer esse mel pois que, com a ajuda da cera que colhem em diversas flores, edificam uma extraordinária casa onde cada um tem o seu lugar. Possuem um rei (os homens medievais pensavam que a rainha da colmeia era um rei), e também um exército, que usam para fazer a guerra. É, além disso, e continuando a seguir o Livro do Tesouro, o único animal que coloca tudo em comum, seja a comida, seja o gozo de outros bens que possuam. E ainda que todas as abelhas sejam virgens, e não tenham sido corrompidas pela luxúria, elas dão à luz, de repente, grande quantidade de filhos. Que melhor definição de uma comunidade monástica? E sobretudo da cisterciense, que se queria mais perfeita do que as outras. E ainda mais de Claraval, onde Bernardo tentava levar às últimas consequências o ideal de S. Bento, numa edição por ele revista e aumentada. O rei era o próprio santo, não na acepção terrenal das funções, mas sim na de condutor iluminado da sua comunidade. O exército eram os monges, lutando contra as heresias e os desvios da verdadeira Fé, defendendo-a, se preciso fosse, com a sua própria vida. Para atingir esses fins há que manter a máxima disciplina, e criar, como se diria em linguagem militar, um “espírito de corpo”. Isso era conseguido não só com a ideia de que tinham uma missão transcendental a cumprir, mas igualmente com uma forte ligação comunitária onde todos fossem importantes, e onde cada um sabia, perfeitamente, qual o seu lugar na ordem de batalha. Bernardo é como a abelha-rei: casto, não corrompido pela luxúria, mas dando à luz, de repente, uma grande quantidade de filhos espirituais: não só os novos recrutas para Cister, mas também aqueles que, continuando no Mundo, eram auxiliares nesta luta comum. Guido, irmão mais velho do santo Abade, confia a Guilherme de Saint-Thierry, falando da expansão de Cister: “Depois contou-me como é que logo ao princípio se começaram a expandir aquelas novas colmeias de abelhas espirituais, e com elas edificar novas casas da sua Ordem…” Vimos, acima, que Bernardo era violento para com os seus adversários, embora por vezes pudesse ter uma surpreendente brandura. Mas surpreendente até certo ponto, porque ele diferenciava o que, no seu julgamento, eram os erros próprios da condição imperfeita do Homem, daquelas afirmações que colocavam em perigo a unidade da Fé e da Igreja. Foi isso que o levou a aceitar pregar a segunda Cruzada25 e a dizer, a respeito dos muçulmanos que “a melhor solução é matá-los. Mas S. Bernardo justificava-se, e

justificava a Ordem do Templo, que protegeu: a eliminação de um muçulmano não é um homicídio, mas sim um “malicidium”, porque quem pretende oprimir e eliminar, pelas armas, a Cristandade, nada mais é do que um apoiante do Mal neste mundo. Uma das principais críticas dirigidas ao abade claravalense, é a da sua intolerância para com Pedro Abelardo e os seus discípulos, atacando-os sem misericórdia e sem razão. Aliás, não foi o único a atacar uma figura incómoda como foi Abelardo, ao ponto de ele próprio afirmar: “Espalharam notícias tão sinistras tanto sobre a minha fé quanto sobre a minha vida, que voltaram contra mim até os meus melhores amigos, e aqueles que ainda conservavam algo da sua antiga consideração por mim eram obrigados a disfarçá-lo. (...) Deus sabe que muitas vezes me afundei tanto no desespero que estive pronto a abandonar o mundo cristão e ir para o meio dos pagãos, e pagar-lhes o tributo estipulado para que pudesse viver em paz uma vida cristã no meio dos inimigos de Cristo”26. Penso que a análise que tem sido feita esquece, não raras vezes, não só o contexto da época quanto a visão não só religiosa e filosófica, mas também política de Bernardo, como referi. O que critica em Abelardo é, em seu entender, o lugar dado por este pensador à razão humana, como instrumento para atingir o conhecimento. Para o Santo, o conhecimento superior é apenas o amor a Deus, e é este o único que conta, já que a razão humana não está preparada para conhecer, só por si, as realidades divinas. Isso seria o mesmo que o Homem querer elevar-se à sabedoria de Deus. O conhecimento apenas pela razão humana pode conduzir à perdição. Em Os doze degraus do orgulho, escreve: “O primeiro degrau do orgulho é a curiosidade”27. Ora, Abelardo ousou usar a razão para interpretar os textos sagrados. O choque entre ambos era inevitável, já que representavam correntes de pensamento distintos, se não mesmo opostos. O cisterciense defendia a tradicional autoridade da Fé, não como uma opinião, mas como uma certeza; Pedro Abelardo defendia o livre exercício da razão humana. Contudo, e ao contrário do que se tem propagado, Bernardo só entra na contenda depois de ter sido alertado para o perigo dos escritos e dos ensinamentos do filósofo por Guilherme de Saint-Thierry, que o pressionou como sendo a única pessoa com autoridade suficiente para contestar as teses abelardinas, e fazê-las condenar28, o que aconteceu no concílio de Sens, de 1141. Guilherme de Saint-Thierry não denunciou apenas Abelardo, mas outros pensadores não ortodoxos como, por exemplo, Guilherme de Conches (1080-1154). Este filósofo e teólogo era um platónico para o qual o mundo não é senão a imagem do mundo arquétipo pensado por Deus, mas regido por leis físicas independentes, queridas pelo Criador. Mas dizia mais: que o mundo é uma “natureza”, que pode e deve ser estudado sem recurso às Sagradas Escrituras. Guilherme de Saint-Thierry vai, então, acusá-lo de ser um daqueles homens que explicam a Criação não a partir de Deus, mas sim a partir da Natureza, dos espíritos e das estrelas, o que era extremamente grave. Mas não foi apenas Guilherme de Saint-Thierry. Absalão de S. Victor também se sentiu incomodado pelo facto de Guilherme de Conches ser daqueles que se dedicavam às coisas vãs, como a forma da Terra, a natureza dos elementos, o lugar das estrelas, a natureza dos animais, e outros assuntos sem importância. Mas o que geralmente se não refere é que Bernardo falou com Abelardo, por três vezes, e este prometeu retirar dos seus escritos as partes que pudessem parecer menos ortodoxas, ou serem mal interpretadas. Mas, tendo continuado com muitas das suas principais ideias consideradas não conformes à Doutrina e à Religião, vai ser considerado herege no referido concílio. Bernardo não queria ir a Sens, mas os partidários de Abelardo teriam espalhado que ele tinha medo de encontrar o filósofo cara-a-cara, em público. Esta ideia foi considerada ofensiva pelo Santo, e modificou a sua intenção primeira. Porque S. Bernardo não “mandava recados” ou usava meios indirectos. Ele próprio escreveu:

26

Pedro Abelardo, Historia Calamitatum, http://www.fordham.edu/ halsall/basis/abelard-histcal.html em 2002.09.06.

27

Citado em Georges Minois, op. cit., pág. 194.

28

(Georges Minois, obra citada, pág. 184.

18


29

J24º Sermão sobre o Cântico dos Cânticos, cit em Bernard of Clairvaux, http://www.catholic-forum.com/ saint08.htm de 2002.09.11.

30

Georges Minois, obra citada, pág. 174. 31

Carta 191 cit por Georges Minois, ob. cit., pág. 194.

32

Recorde-se que S. Bernardo foi à Provença para pregar contra a heresia albigense, a pedido do legado do papa, o cardeal Alberico, em 1145.

33

Jacques Berlioz, “Saint Bernard, le soldat de Dieu”, citado, pág. 51.

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“Olhem para esse inteligente caluniador! Começa por causar uma profunda impressão, aparenta ser humilde, e põe um ar modesto, e com uma voz sufocada com soluços, tenta assumir uma falsa aparência sobre a calúnia que está na ponta da sua língua, fazendo-nos crer que propositadamente assume um comportamento calmo e condescendente; porque quando fala contra o seu irmão usa termos cheios de compaixão” 29 Para ele, Abelardo representava um perigo, já que assentava a sua argumentação na dialéctica. Santo Anselmo distinguia a boa da má dialéctica, sendo que a boa era apenas uma arte de discussão, enquanto que era má aquela que pensava poder conhecer, sem recurso a mais nada, a natureza das coisas e, mesmo, a natureza divina. S. Bernardo era mais radical, e era por ser dialéctico que ele condenava Abelardo, já que essa sua posição equivalia, no entender do abade claravalense, a dizer “que é permitido a qualquer pessoa fazer uma escolha, segundo o seu capricho, entra as verdades que ela (a dialéctica) nos propõe”30. Para S. Bernardo, e cito, “Abelardo trabalha para destruir a verdade da fé, defendendo que a razão humana é capaz de compreender Deus em toda a sua plenitude. Ele mergulha o seu olhar até às profundezas dos céus e dos abismos, pois nada há que ele não prescrute no céu ou nos infernos. (...) É um homem pretensioso e inchado de orgulho, a quem nem mesmo a majestade de Deus inspira qualquer reserva...”31. São Bernardo trabalhava, essencialmente, para defender a Fé e a Igreja, mas sobretudo para o engrandecimento da Cristandade, que ele sentia ameaçada não só pelas heresias32, mas igualmente pelo perigo externo que atacava o mundo cristão a oriente, na Terra Santa, e a Ocidente, na Península Ibérica, como acima referi. Para defender esses valores, Bernardo não tem receio de recorrer a todos os meios, mesmo aqueles que nos poderiam parecer menos ortodoxos. Por exemplo, durante o seu combate à heresia cátara, numa aldeia do Périgord benzeu alguns pães, dizendo que assim os seus habitantes se curariam das doenças e da heresia. O bispo de Chartres, que se encontrava presente, quis suavizar essa “investida” de Bernardo, dizendo que se curariam se tivessem muita fé. Mas Bernardo insistiu no poder redentor do pão, devido à sua própria bênção. Figura controversa, é certo, mas fascinante, sem dúvida que estudada e julgada com demasiada paixão por um e por outro lado. S. Bernardo foi visto de ângulos sempre diferentes e apaixonados, o que indica que não se pode ficar indiferente frente à sua figura. Vimos como foi entendido no século XVI por Erasmo e Lutero, no século XVIII pelos iluministas, no século XIX pelos positivistas, e mesmo no século XX. Dom Jean Leclercq dizia que ele era um ciclotímico passando por fases de depressão que alternavam com fases de hipomania33. Chegou-se mesmo ao ponto de se pretender, no congresso de Lyon, em 1990, psicanalisar o Santo. Mas Bernardo foi um homem complexo. Não podendo negar que foi um homem do seu tempo, ele foi um visionário fora do seu próprio tempo. Percebeu a necessidade de uma Europa católica unida à volta do poder espiritual do papa. Percebeu ainda que esta Europa, tendo muito que separa os seus vários povos, e nomeadamente a língua, tinha muito mais em comum. Mas percebeu também que o afrouxamento da doutrina da Igreja iria, a curto prazo, provocar a sua cisão e a quebra da sua força, o que teria efeitos perversos não só para a Europa como, sobretudo, para a referência de cada um dos homens. Bernardo não desdenhava nem odiava os filósofos. Apenas tinha medo do mal que pudessem fazer se as suas ideias, bem ou mal compreendidas, se espalhassem pelo corpo da sociedade. E também a noção de que uma religião que se crê verdadeira mas, acima de tudo, revelada, não pode colocar em causa essa Revelação. O relato da vida de Bernardo, composto por Guilherme de Saint-Thierry, parece-me o mais importante de quantos se escreveram. Ali podemos encontrar todas

as ideias e todas as acções empreendidas pelo Santo. E também muitos dos milagres que teria feito ainda em vida, como o das moscas varejeiras, que recordo: Foi em Foigny, uma das primeiras abadias que Bernardo tinha fundado. Para lá se deslocou para consagrar um oratório, mas ao chegar encontrou o lugar que, lembremo-nos, ainda não era local sagrado, repleto de enormes e pretas moscas. Era o Maligno a tentar tomar conta desse espaço, impedindo que fosse consagrado a Cristo. As moscas faziam um terrível barulho, com os seus zumbidos, provocando grande incómodo a todos os que ali se dirigiam. Não se sabia como resolver o problema, mas Bernardo encontrou a solução. Com voz decidida disse: “excomungo-as”. Foi remédio… do Santo. Na manhã seguinte, ao chegarem ao oratório, as moscas estavam todas mortas, e para as deitar fora foi preciso recorrer a pás, após o que a capela foi lavada, com a água que tudo purifica (Guilherme não refere se esta água tinha ou não sido abençoada pelo abade). Refira-se, ainda, o célebre “milagre do leite”, já referido, quando a Virgem lhe aparece e lhe dá do seu próprio leite. Muitos autores interpretam o episódio como a cura “milagrosa” da úlcera ou da gastrite de que o Santo padecia. Para mim, a explicação vai mais fundo, mas não tenho tempo de a expor aqui: é que, bebendo do leite da Virgem, Bernardo tornava-se colaço de Cristo, o que não era de pouca importância. Não duvidamos da crença de Guilherme, como de qualquer dos seus contemporâneos, nos milagres e sinais milagrosos e premonitórios. Quando refere o Demónio, também não duvidamos que nele acreditasse. A principal questão reside nos milagres que ele diz ter assistido, para além daqueles que ele ouviu, muitos deles contados por quem, supostamente, a eles também tinha assistido ou que deles tinha sido protagonistas. E tudo isso, estando vivo São Bernardo. Sabendo nós que Guilherme não mentiria, pois isso representaria um pecado capital e, para um homem devoto como era, a impossibilidade de entrar no Reino dos Céus, só posso ver aqui duas explicações. A primeira, é a de que ele e os seus relatores acreditaram que estavam a viver milagres feitos pelo Santo Abade. A segunda, é a de que teria de haver uma razão especial para que a não verdade pudesse ser desculpada. E isso só aconteceria se a finalidade fosse o engrandecimento da Igreja e da Ordem de Cister. Mas o texto de Guilherme de Saint Thierry é, para mim, o mais interessante e desafiador apesar de, e digo-o com toda a honestidade, ainda não ter conseguido nele uma resposta a todas as minhas interrogações, algumas das quais não foram aqui expostas. E isto porque Guilherme viveu de 1075 (alguns autores referem 1085) a 1148, ou seja, morre cinco anos antes de S. Bernardo. Como hoje diríamos, esta foi uma “biografia autorizada”. Termino com algumas citações de Bernardo: Sobre a razão de viver dentro de uma comunidade monástica, e a forma de melhor conhecer a Obra Divina: “Fujam do meio da Babilónia, fujam e salvem as vossas almas. Voem em conjunto em direcção às cidades do refúgio, onde se poderão arrepender do passado, viver pela Graça o presente, e esperar com confiança o futuro. Encontrarás bem mais nas florestas do que nos livros. Os bosques e as pedras ensinar-te-ão mais do que não importa que mestre.” Sobre a sua preocupação com o futuro da Igreja e a defesa de uma Europa cristã, ameaçadas pelas heresias: “… as basílicas estão sem fiéis, os fiéis sem sacerdotes, os sacerdotes sem honra; só se vêm cristãos sem Cristo”. (Carta ao Papa) Finalmente, a sua ideia de Deus, no Tratado sobre a meditação: “O que é Deus? É comprimento, largura, altura e profundidade”. Que cada um interprete à sua maneira.

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geográfica à obra que torna difícil, se não impossível, a sua interpretação no tempo e no espaço, bem como encontrar uma unidade para o poema ou para a sua forma original. Esta situação é bem visível na divisão existente entre as hipotéticas origens geográficas do épico, em especial do Sul ou do Norte, publicando-se e traduzindo-se várias edições para o atestar, o que veio complicar consideravelmente a questão, por este motivo será apresentada adiante uma lista de quatro das principais versões do MBh.

As edições e traduções do

Mahābhārata Ricardo Louro Martins*

O presente artigo destina-se ao estudante que se inicia nos épicos indianos, ou nos estudos indológicos em geral, e tem como objectivo apresentar de forma sucinta e meramente informativa algumas das várias traduções e edições do Mahābhārata (MBh) que têm sido levadas a cabo por vários autores, de forma completa e parcial, em verso e em prosa, até ao presente 1. A apresentação será feita por ordem cronológica, referindo os pontos essenciais de cada edição e tradução, quando estes se justifiquem. Breve introdução ao Mahābhārata

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Licenciado em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, mestrando em História e Cultura das Religiões pela mesma faculdade. Investigador do IPAEHI 1

Para a presente listagem de traduções e edições tomei como ponto de partida essencial o trabalho apresentado por P. Lal em: The Mahabharata: an Annotated Bibliography, Calcuta, Writers Workshop, 1973.

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Destaca-se a obra de Madeleine Biardeau: L’hindouisme: Anthropologie d’une civilisation, Paris, Editions Flammarion , 2009.

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O MBh, épico monumental que perfaz oito vezes o tamanho da Ilíada e da Odisseia juntas, é uma obra rica em narrações mitológicas, contos e teorizações legislativas e éticas, que se harmonizam num jogo entre vários conceitos, em especial os do dharma (dever, lei) e do kārya (tarefa, acção, da raiz KṚ- “fazer”), bem como em torno da sua narrativa central, a guerra de dezoito dias pelo trono de Hāstinapura (que de um ponto de vista histórico terá ocorrido no séc. VIII a.C.), entre duas fações, a dos Pāṇḍavas e a dos Kauravas, da dinastia dos Kurus. Após os primeiros conflitos no seio da casa real dos Kurus, que correspondem historicamente à dinastia com o mesmo nome, os kṣatriyas Ários de Mahājanapada, os Kauravas passam a dominar a Norte do rio Ganges (Gaṅgā) com capital em Hāstinapura, e os Pāṇḍavas na parte superior do rio Yamunā, com capital em Indraprastha (futura Delhi). A composição épica desta batalha descreve aquilo que terá sido o fechar do capítulo da soberania kṣatriya na Índia, configuração política que terá durado cerca de um milénio. As oscilações e quebras deste longo poema entre as várias teorizações, contos e recontes que fazem espelho uns dos outros bem como de outras obras, e em especial o complicado centro do épico, a guerra de dezoito dias em Kurukṣetra, que se desenha em muitos termos sem equivalente ocidental, apresentam grandes dificuldades na sua tradução, bem como a sua delimitação e interpretação. Também o sentimento de alteridade com que o leitor ocidental menos preparado se depara durante as primeiras leituras do épico e que é muito próprio desta poesia indiana antiga poderão apresentar algumas dificuldades de interpretação, para as quais existem um sem-número de introduções que poderão solucionar rapidamente a questão2. A par disto, as várias versões do épico que nos chegaram, as suas variações regionais, as claras influências da literatura védica e upaniṣádica, bem como a possível relação e reacção às primeiras crenças budistas, dão uma dimensão temporal e

Fig. 1: Fig. 1 : Cena de batalha do MBh no templo Kailāsa em Ellorā, séc. VIII. de batalha do MBh no templo Kailāsa em Ellorā, séc. VIII. (disponível em:cena http://images.cdn.fotopedia.com/flickr-454591204-original.jpg, (disponível em: http://images.cdn.fotopedia.com/flickr-454591204-original.jpg , acedido a 20 de Junho de acedido a 20 de Junho de 2012) 2012) A autoria do épico é atribuída a Vyāsa, o “compilador”, também chamado de Kṛṣṇa Dvaipāyana, o que não deixa margens para dúvidas quanto à sua total inexistência fora do campo mitológico, sendo inclusivamente uma personagem presente e fundamental na narrativa, mas que pelo facto de ser filho de um pai brāhmaṇa e uma mãe śūdra, tem a função de significar ele mesmo uma interacção entre todas as camadas da sociedade desta Índia épica, o que ajuda a compreender o motivo de tantas adições e versões da narrativa, ao mesmo tempo que subentende que esta não se terá tratado de uma obra produzida para as elites (primeira e segunda funções), mas sim para o Homem, característica que pode ser comprovada pela dimensão filosófica, política, ética, e até certo ponto devocional, que o poema épico comporta. O título do poema não terá sido na sua origem Mahābhārata mas sim Jaya (vitória), designação que aparece no verso introdutório a cada um dos 18 livros: «nārāyaṇaṃ namaskṛtya naraṃ caiva narottamam / devīṃ sarasvatīṃ caiva tato jayam udīrayet.»3 Esta “Vitória” equivaleria ao que hoje são os livros da guerra (livros VI-X, podendo ou não incluir-se o XI), e que recebeu mais tarde, após adições, o nome de Bhārata (a dinastia dos Bhāratas) e, ainda, ao ter sido pelo menos uma terceira vez consideravelmente alargado, o nome de mahā- (grande) Bhārata, no entanto, o mahā- refere-se ao volume

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«Depois de se ter honrado Nārāyana e Nara, o melhor dos homens, e a deusa Sarasvatī, cante-se agora a “Vitória”.»

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Para uma análise detalhada das questões aqui apresentadas recomenda-se em especial a leitura das Introduções e Comentários de Madeleine Biardeau (Le Mahābhārata: Un récit fondateur du brahmanisme et son interprétation, 2 volumes, Paris, Éditions du Seuil, 2002), bem como de J.A.B. van Buitenen e James L. Fitzgerald (The Mahābhārata, 3 volumes, Chicago, University of Chicago Press, 1973-78), e as obras de Alf Hiltebeitel, com edição de Vishwa Adluri e Joydeep Bagchee (Reading the Fifth Veda, Studies on the Mahābhārata - Essays by Alf Hiltebeitel, vol. I, Leiden, Brill, 2011; e When the Goddess was a Woman, Mahābhārata Ethnographies: Essays by Alf Hiltebeitel, vol. II, Leiden, Brill, 2011).

e extensão da obra e não propriamente à dinastia, não obstante este facto, a maioria dos autores, em especial aqueles que seguem a tradição popular, continua a traduzir a obra como “Grande Índia”, “Grande Dinastia Bhārata”, “Grande Humanidade”, etc., títulos possíveis e atestados na designação bhārata, mas que dificilmente corresponderão à realidade, em vez disto seria preferível traduzir como “Grande Bhārata” ou quanto muito como “Grande Épico/História da Dinastia Bhārata”, aplicando-se sempre ao tamanho da obra e nunca à designação. Antes de passarmos à apresentação das traduções e edições, existem várias problemáticas que o leitor e o estudante deverão conhecer antes de iniciar a leitura do épico e que serão aqui abreviadamente assinaladas: 1) Não obstante que a compilação do épico se tenha realizado algures entre os sécs. IV a.C. e IV d.C., e muitos dos seus episódios, como o da Bhagavadgītā, sejam consideravelmente tardios e “alheios” ao objectivo central épico – bem como personagens hoje tidas como essenciais, como é a de Kṛṣṇa (avatāra de Viṣṇu), que não terá, muito provavelmente, marcado presença numa primeira versão do épico (pelo menos enquanto divindade), sendo a sua construção muito tardia –, a sua antiguidade e arcaísmo, quer linguísticos quer ideológicos, dão-lhe uma antiguidade razoável, que deverá remontar no mínimo ao período védico tardio (entre 1000 e 500 a.C.), isto comprova-se com alguma facilidade devido à estreita relação do épico com a literatura védica, em especial com o Ṛgveda, as quais permitem entender no épico uma reformulação exaustiva da legislação, prática e imaginário védicos, upaniṣádicos e purāṇicos; 2) Ainda que seja notório ao longo de todo o épico que este se dedica sobretudo às problemáticas da primeira e segunda funções Indo-Europeias (a político-religiosa e a guerreira) num momento de “crise” universal, a verdade é que este traça também uma grande relação entre as três funções ou as três principais varṇas (“cores”, castas) indianas (brāhmaṇas, kṣatriyas, e vaiśyas), que se organizam em torno do rei, bem como uma estreita relação entre deuses e homens, que são com frequência avatāras (encarnações) tanto de deuses como de demónios, enfrentando-se quer num espaço quer noutro, sempre subjugados e harmonizados a uma ordem aparentemente desordenada e a ciclos universais absolutamente inalteráveis; 3) O épico representa ainda uma extrema preocupação para com a protecção da realeza e da dinastia, que reflectem uma “ordem” face à “desordem” que neste momento ataca vindo de todas as partes e em várias formas, bem como uma preocupação para com o bom governo, a guerra justa e o ideal de rei/herói, o que nos permite encontrar algumas relações históricas, ainda que sem grande sustentação, com a chegada de Alexandre à Índia, bem como com a emergência do império de Aśoka, no entanto, pelo facto de o épico referir dinastias já presentes no Ṛgveda, composto entre 1500-1000 a.C. (mas portador de uma antiguidade oral impossível de determinar), que virão a constituir os grandes estados de Kuru, Pañcāla, Kosala e Magadha, durante os sécs. VII-VI a.C., permite-nos afastar um pouco mais a hipótese de o épico ter algo que ver com invasões gregas; 4) A par destas questões, existe todo um intrincado jogo de relações gramaticais em torno das raízes do sânscrito, presentes nas designações que são utilizadas quer para locais quer para personagens, que impedem, com uma frequência indesejável, que se possa fazer uma interpretação do épico que seja suportável para o estudante e para o leitor, e que não multipliquem o épico num conjunto de sub-interpretações que se deslocam desde as influências de pelo menos 1500 a.C. até aos rituais que persistem no Presente, mas que em última análise comprovam a fascinante riqueza que o épico preserva4. As principais edições do Mahābhārata 1) Edição de Mumbai, Vulgata, ou Texto de Nīlakaṇṭha: A. Khadilkar (ed.), Mahābhārata

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with Nilakantha’s commentary, 6 volumes, Mumbai, Ganpat Krsnaji’s Press, 1863. Esta edição tem como base o material recolhido em Vārānasi pelo comentador do séc. XVII Nīlakaṇṭha Caturdhara. Foi reimpressa em 1929-1936, pela Citrashala Press. Esta é a edição mais tradicional, que rivaliza com a Recensão de Puna, apresentando um texto menos “artificial” e muito provavelmente mais próximo ao que seria a versão original. 2) Recensão Crítica do Sul: P. P. S. Shastri (ed.), The Mahabharata, 18 volumes, Ramaswamy Sastrulu & Sons, Madras, 1932. 3) Edição Crítica do Mahābhārata, Recensão de Puna, ou Edição de Bhandarkar: V. S. Sukthankar, S. K. Belvalkar, P. L. Vaidya (edd.) The Mahābhārata for the First Time Critically Edited, 19 volumes, Puna, Bhandarkar Oriental Research Institute, 1933-1972. É a edição que tem maior autoridade, contudo ainda pouco adoptada nas traduções do épico, sendo um enorme projecto editorial que reuniu centenas de manuscritos e outras formas de testemunho desde a Índia à Indonésia, iniciado em 1919 pelo BORI (Bhandarkar Oriental Research Institute) em Puna, no entanto o seu resultado final é muito criticado e entendido como um texto artificial que nunca existiu no passado. Por este motivo esta edição deverá ser utilizada como “apêndice” ou “suplemento” à tradução e à investigação, sendo preferível seguir em especial a versão da Edição de Mumbai. O valor da edição passa essencialmente pelo facto de possuir, além do texto crítico bem determinado, as suas inúmeras variantes, bem como as passagens que se julgam ser adições tardias ao original. Com base nesta edição foi lançada online a versão electrónica, que é extremamente útil e que está em constante actualização: John Smith (ed), Electronic Text of Mahābhārata, http://bombay.oriental.cam.ac.uk/john/mahabharata/statement.html, 1999. 4) Edição de Calcutá: The Mahābhārata: An Epic Poem Written by the Celebrated Veda Vyāsa Rishi, 4 volumes, Calcutá, Asiatic Society of Bengal, 1834-39. As traduções do Mahābhārata 1) Tradução do Harivaṃśa (suplemento ao MBh com a história de Kṛṣṇa) de SimonAlexandre Langlois (Harivansa, ou Histoire de la Famille de Hari, Ouvrage formant un Appendice du Mahabharata, 2 volumes, The Oriental Translation Fund, 1834-1835) 2) Tradução da História de Nala e Damayantī de Monier Williams (Story of Nala, Oxford University Press, 1860). Esta tradução é apresentada com o vocabulário e análise gramatical. 3) Tradução do MBh de Hippolyte Fauche (Le Mahâbhârata: poème épique de KrishnaDwaipayana, traduit complètement pour la première fois du sanscrit en français, 10 volumes, Impr. Impériale, 1863-1870). Com a morte do tradutor, a tradução dos livros X-XII foi continuada por L. Ballin (pela Ernest Leroux, 1899). 4) A obra de Arnold Edwin (Indian Idylls, from the Sanskrit of the Mahâbhârata, Roberts Brothers, 1883), traduz alguns episódios do MBh em verso, como o de Nala e Damayantī, o de Sāvitrī e Satyavāt, entre outros. 5) A primeira tradução completa para o inglês foi feita por Kisari Mohan Ganguli, patrocinada e publicada por Pratap Chandra Roy (The Mahaharata of Krishna-Dwaipayana Vyasa Translated into English Prose from the Original Sanskrit Text, 11 volumes, Bharata Karyalaya Press, 1884-1896). Esta é uma tradução fiel e agraciada pelo facto de se encontrar inteiramente disponível on-line em várias bases de dados. Apresenta meticulosas notas ao texto (sobretudo baseadas nos comentários de Nīlakaṇṭha) comparando sistematicamente as várias recensões do épico, contudo, ao ter sido traduzida em prosa, sem referir os versos, pode colocar algumas dificuldades ao leitor, em especial àquele que a utiliza num trabalho de investigação. Não obstante, este trabalho monumental apresenta uma tradução extremamente polida e acessível.

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6) A segunda tradução completa para o inglês foi feita por Manmatha Nath Dutt (The Mahabharata, Sanskrit text and English translation, 3 volumes, Elysium Press, 1895-1905), tradução que tem a vantagem ter sido feita em verso (baseando-se na tradução de Ganguli) e a desvantagem de algumas passagens terem sido reconstruidas de forma a não chocar a sociedade britânica, como a omissão de designações de carácter sexual, o que faz da tradução um trabalho menos fiável do que aquele de Ganguli. 7) Tradução do Harivaṃśa de Manmatha Nath Dutt (A Prose English Translation of Harivamsa, Elysium Press, 1897). 8) G. de Vasconcelos Abreu (Os Contos, Apólogos e Fábulas da Índia, Imprensa Nacional, 1902), onde traduz pela primeira vez para o português alguns contos do MBh. 9) Romesh Chunder Dutt (The Ramayana and Mahabharata Condensed into English Verse, Dent’s Everyman’s Library, 1910) traduz alguns dos episódios do épico e resume outros, de forma a tornar a leitura mais simples. Este é um trabalho considerado fiel mas que está no entanto ultrapassado. 10) Dwijendra C. Roy (Tales from the Mahabharata, Bharat Karyalaya, 1912) compila dezassete histórias do MBh. 11) Tradução da história de Nala e Damayantī de Norman A. Penzer (Nala and Damayanti, A. M. Philpot, 1926), com um apêndice extremamente útil com notas às várias designações do sânscrito. 12) Edward P. Rice (The Mahabharata: Analysis and Index. Oxford University Press, 1934) traduz de forma resumida o épico, que é muito útil pelo facto de incluir índice de nomes e temas, com referência à tradução de Nath Dutt. 13) V. Raghavan (The Mahabharata: Condensed in the Poet’s own words, G.A.Natesan & Co., 1935) apresenta uma tradução muito útil que nos dá o texto em bilingue, e quase literal, tendo sido durante os anos que se seguiram à sua edição, uma tradução incontornável no seio dos estudos indológicos, no entanto encontra-se hoje um tanto ou quanto esquecida. 14) Tradução da Bhagavadgītā de Swami Prabhavananda e Christopher Isherwood (The Song of God: Bhagavata-Gita, Phoenix House, 1947), contém ainda em anexo uma nota quanto ao papel do episódio no épico. 15) Tradução do episódio de Nala e Damayantī de Maurice Langton (Naḷa Veṇbā, The Story of King Nala and Princess Damayanti: a Narrative Poem, Christian Society for India, 1950), tradução em verso da versão tamil do séc. XII, de Puhalendi Pulavar. 16) A. L. Basham, (The Wonder that was India, Grove Press, 1954), para além de resumir o épico, apresenta a tradução de Nala e Damayantī. 17) Biren Roy (The Mahabharata, D.K. Mukherji, 1958) traduz e resume o épico. 18) Ethel Beswick (Tales of Hindu gods and Heroes, Jaico Publishing House, 1960) traduz vários dos mais importantes episódios do MBh, com referência aos famosos contos de Nala e Damayantī, e Sāvitrī e Satyavāt, de forma simplificada e direccionados ao leitor ocidental. 19) Alain Danielou (Hindu Polytheism. Pantheon Books, 1964) traduz alguns episódios do épico, com especial referência aos deuses. 20) C.V. Narasimhan (The Mahabharata: An English Version based on Selected Verses, Columbia University Press, 1965) resume o épico naquilo que é o seu centro, a guerra, deixando de parte muitos dos contos e embelezamentos literários, sendo uma tentativa de apresentar exemplos daquilo que seria o épico na sua forma original. 21) Com edição de S.C. Nott (The Mahabharata: Selections from Adi Parva and Sabha Parva, The Janus Press, 1965) a obra apresenta selecções dos primeiros dois livros do MBh. 22) M. V. Subramaniam (Vyasa and Variations: The Mahabharata Story, Higginbothams, 1967) apresenta-nos o épico com base nas versões de Villi em tamil, de Kumāra Vyāsa em

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kannaḍa, bem como as de Bhāsa, Bhattanārāyaṇa, Māgha and Bhāravi. 23) Tradução do MBh de J.A.B. van Buitenen e James L. Fitzgerald (The Mahābhārata, 3 volumes, University of Chicago Press, 1973-81), onde se projectaram dez volumes, dos quais apenas quatro foram publicados, van Buitenen traduziu os três primeiros volumes, que comportam os cinco primeiros e os maiores livros do épico, tendo o livro VI ficado inacabado devido à morte do tradutor, tendo-se editado apenas um capítulo deste livro, a Bhagavadgītā. Fitzgerald traduziu o sétimo volume, que comporta o livro XI e a primeira metade do XII (2004). Fitzgerald e van Buitenen traduziram da Edição de Puna para prosa, e todas as secções do texto são previamente sumarizadas, apresentando cada volume anotações ao texto, bem como um glossário, índice e apêndices sempre úteis. O trabalho está de momento a ser continuado por David Gitomer e Wendy Doniger. Esta é uma tradução muito aconselhável, e talvez aquela da qual mais se espera com a sua conclusão. 24) W. J. Johnson (The Sauptikaparvan of the Mahabharata: The Massacre at Night, Oxford University Press, 1998), tradução completa do livro X, conta ainda com uma aclamada introdução e anotações. 25) Madeleine Biardeau (Le Mahābhārata: Un récit fondateur du brahmanisme et son interprétation, 2 volumes, Éditions du Seuil, 2002) faz uma tradução resumida dos dezoito livros, mas a qual comporta grandes excertos dos principais episódios, estando muito próxima tanto do original quanto das versões completas. A obra é ainda agraciada pelos longos comentários e notas a cada um dos episódios, apresentando-se como um trabalho absolutamente incontornável para todo aquele que pretenda aprofundar os seus conhecimentos do épico, trabalho levado a cabo por uma das maiores autoridades, senão a maior, dos estudos épicos indianos do séc. XX e início do XXI. 26) Gilles Schaufelberger e Guy Vincent (Le Mahābhārata, 4 volumes, Presses de l’Universite Laval, 2004-2009) apresentam as traduções dos principais episódios do épico, com a felicidade de estarem verso a verso. 27) O projecto The Clay Sanskrit Library (Maha-bhárata, 10 volumes, New York University Press e JJC Foundation, 2005-2009), apresenta-nos traduções completas, em formato de livro de bolso, levadas a cabo por vários autores, como William J. Johnson, Kathleen Garbutt, Adam Bowles, entre outros, sendo as traduções absolutamente fiáveis, literais e acessíveis, numa edição em bilingue (em caracteres romanos) que permite com grande facilidade a comparação entre o original e sua a tradução. Os livros apresentam ainda notas, glossário e índice, sendo esta tradução muito aconselhável em especial para os estudantes que se iniciam no sânscrito. Esta tradução, fazendo reflexo do que acontece com a de J.A.B. van Buitenen e James L. Fitzgerald, peca por não se encontrar completa, no entanto, é e virá a ser, quando finalizada, a melhor tradução a que teremos acesso do MBh. Complementos a cada uma das traduções estão disponíveis no sítio da editora, online: http://www.claysanskritlibrary.org/downloads.php 28) Tradução da Bhagavadgītā de José C. Calazans (Bhagavad Gītā. A Canção do Senhor, Ésquilo, 2010) é a primeira tradução portuguesa do sânscrito e completa do episódio do livro VI do MBh, apresentada verso a verso e em bilingue (em caracteres romanos e em devanāgarī), que conta ainda com um excelente prefácio de Carlos João Correia. Bibliografia . BIARDEAU, Madeleine, Le Mahābhārata: Un récit fondateur du brahmanisme et son interprétation, 2 volumes, Paris, Éditions du Seuil, 2002. . HILTEBEITEL, Alf; ADLURI, Vishwa; BAGCHEE, Joydeep (edd.), Reading the Fifth Veda, Studies on the Mahābhārata - Essays by Alf Hiltebeitel, vol. I, Leiden, Brill, 2011 . HILTEBEITEL, Alf; ADLURI, Vishwa; BAGCHEE, Joydeep (edd.), When the Goddess was a Woman, Mahābhārata Ethnographies: Essays by Alf Hiltebeitel, vol. II, Leiden, Brill, 2011. LAL, Purushottama, The Mahabharata: an Annotated Bibliography, Calcutá, Writers Workshop, 1973. . PARMAR, Arjunsinh K. (ed), Critical Perspectives on the Mahābhārata, Delhi, Sarup & Sons, 2002.

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F.L.-U.L./C.H.F.L.U.L.

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ENTWISTLE, W. J. e RUSSELL, P. E., 1940, “A Rainha D. Felipa e a sua corte” in Congresso do Mundo Português. Publicações, II volume, pp.319-346; RUSSELL, P. E., 2000, A Intervenção Inglesa na Península Ibérica durante a Guerra dos Cem Anos, Lisboa, Imprensa NacionalCasa da Moeda; RUSSELL, Peter, 2004, Henrique o Navegador, Lisboa, Livros Horizonte; RUSSELL, P. E., 1995, Portugal, Spain and the African Atlantic, 1343-1490. Chivalry and Crusade from John of Gaunt to Henry the Navigator, Variorum; LEGGE, M. Dominica Legge (ed.), 1941, AngloNorman Letters and Petitions from All Souls Ms.182, Oxford: Blackwell; WOOD, Mary Anne Everett (ed.), 1846, Letters of Royal and Illustrious Ladies of Great Britain from the commencement of the Twelfth Century to the Close of the Reign of Queen Mary, vol.I, London, Henry Colburn.

2

ECitamos aqui os imprescindíveis John of Gaunt’s Register, 1911, edited by Sydney Armitage-Smith, 2 volumes, Camden Third Series, Vol. XX, London, Offices of the Society; John of Gaunt’s Register, 1379-1383, 1937, edited from the original record by the late Eleonor C. Lodge and Robert Somerville, B. A., 2 volumes, Camden Third Series, Volume LVI, London, Offices of the Society.

3

SILVA, Manuela Santos, “Filipa de Lencastre e o ambiente cultural na Corte de seu pai (1360-1387)” in Clio, Nova Série, volume 16/17 (Nº duplo), 2007, pp.245-258.

4

ORME, Nicholas, 2003, Medieval Children, New Haven and London, Yale University Press, p.240; WOOLGAR, C. M., 1999, The Great Household in Late Medieval England, New Haven and London, Yale University Press, pp.101-102; ECHEVARRÍA, Ana, 2002, Catalina de Lancaster. Reina Regente de Castilla (1372-1418), Nerea, Hondarribia, p.19.

5

As sobrinhas de Filipa de Lencastre, filhas de seu irmão Henry - Blanche and Philippa –tinham cerca de sete e cinco anos respetivamente quando, em 1398, tiveram os seus ABCs PHILLIPS, Kim M., 2003, Medieval Maidens. Young women and gender in England, 1270-1540, Manchester Medieval Studies, Manchester and New York, p.64. 6

ORME, Nicholas, op.cit., pp.242 e 218.

29

A literacia de

Filipa de Lencastre Manuela Santos Silva*

O nível cultural elevado que apresentaram, na sua época, os chamados “infantes de Avis” está certamente na origem de sempre se ter atribuído à rainha de Portugal “Filipa de Lencastre”, primogénita do primeiro casamento de John Plantageneta com Blanche de Lancaster, uma excecional preparação religiosa e literária, pouco vulgar na sua época. O artigo pioneiro, em 1940, de W. J. Entwistle e P. E. Russell sobre a mesma rainha e a sua corte, bem como as restantes obras de Peter Russell dedicadas à Península Ibérica no período da Guerra dos Cem Anos, atribuindo a Filipa um papel especial na educação dos seus filhos, e a revelação de algumas cartas trocadas entre a rainha e os seus familiares ingleses num período particularmente sensível, vieram acentuar esta ideia1. O ambiente social em que a jovem aristocrata inglesa foi criada está bastante bem tratado em múltiplas publicações em língua inglesa, baseadas em fontes numerosas e expressivas mas em que a futura rainha de Portugal só aparece nomeada de forma esporádica 2. Assim, reconstituir os contornos da sua educação e avaliar a amplitude dos conhecimentos que terá adquirido enquanto criança e jovem mulher não é, de modo algum, matéria totalmente segura, mas ainda assim melhor documentada do que para muitas outras mulheres do seu tempo3. Os estudos recentes sobre as crianças e os jovens e também os que se debruçaram sobre a organização e o dia-a-dia das casas senhoriais no Ocidente em finais da Idade Média, sobretudo no eixo Inglaterra – França – Países Baixos, têm demonstrado que a instrução elementar ministrada às crianças da parentela aristocrática era bastante mais comum e generalizada do que normalmente se costumava pensar. Considerava-se, todavia, uma atividade privada que se devia exercer no âmbito familiar. No entanto, em grandes casas da aristocracia inglesa havia sempre um professor contratado – muitas vezes um clérigo - para ensinar não só os filhos do Senhor mas também os outros jovens que dela faziam parte4. E entre estes as raparigas. Estas aprendiam a ler o Latim suficiente para poderem seguir as orações pelo livro e faziam-no, a partir de finais do século XIV, através de um novo tipo de compilação de textos religiosos latinos a que se chamou ABC e que era frequentemente oferecido a crianças com mais de quatro anos de idade5. Porém, era em Francês e cada vez mais em Inglês que as crianças na Inglaterra medieval se expressavam quando escreviam, sendo também as línguas em que melhor eram capazes de ler6. Não se esqueça, porém, que a instrução tinha uma natureza predominantemente oral e que se processava, por exemplo, através de grupos de leitura que se reuniam com fins devocionais ou simplesmente para apreciar o último romance

literário ou ouvir declamar o poeta mais em voga7. Assim, se a leitura era considerada, em muitos círculos, indispensável, a escrita estava muito menos generalizada, mas em certos estratos sociais parece-nos evidente a sua larga utilização, pois os parentes afastados pelas alianças matrimoniais, pela guerra, e por outras vicissitudes, nem por isso deixavam de trocar com frequência cartas privadas, além das oficiais. Conhecem-se desde 1940, quatro cartas escritas por Filipa de Lencastre – já então rainha de Portugal - a figuras gradas da sociedade inglesa, que eram simultaneamente seus familiares. Uma outra, escrita pela rainha poucos meses antes da sua morte, foi dirigida ao rei de Aragão, também co-regente de Castela, Fernando. Ainda é do conhecimento público uma única carta que lhe veio dirigida por um parente. Todas elas se encontram publicadas, são bastante bem conhecidas, mas não têm tido muita difusão, até porque as matérias tratadas, se encontram a meio caminho entre o foro privado e o diplomático ou político. Na nossa recente biografia de “Filipa de Lencastre. A rainha inglesa de Portugal”, publicámos ainda sete cartas inéditas escritas em nome da rainha e elaboradas a seu mandado, dirigidas a entidades várias das localidades que pertenciam ao seu senhorio 8. Na chancelaria de seu marido – já editada - existe ainda uma outra carta de sua autoria, confirmada por D. João I 9. As matérias versadas nestas missivas respeitam a problemas de natureza administrativa, dando um bom retrato do relacionamento das senhoras rainhas com as suas terras10. O autor material de cada documento costuma estar identificado. Rodrigo Eanes, escolar em lex, ouvidor da rainha e vassalo do rei, é o executor de alguns dos diplomas, embora coubesse por vezes a outros a escrita dos mesmos. A rainha possuía uma chancelaria própria e independente da do rei, na qual desempenharam postos fundamentais pelo menos dois ingleses: o clérigo Adam Davemport foi seu Chanceler desde 1387 e durante ainda 8 ou 9 anos11; Thomas Payn, por sua vez, foi seu Escrivão da Puridade e Tesoureiro12. Não é crível assim que a rainha tivesse ocasião para usar os seus dotes de escrita com frequência, o que não a invalida enquanto autora das missivas “privadas” e “oficiais” – se estabelecer esta diferença é possível -, mas sabemos que como identificação própria usava a sua assinatura ou a aposição do seus selos: pendente, do seu camafeu ou ainda da puridade. Na sua correspondência com a família não aparece qualquer intermediário executando a escrita mas não é provável que a rainha se encarregasse ela própria da tarefa. Não deixa, porém, de ser interessante observar os aspetos mais pessoais das missivas enviadas à família. Estas cartas serviam, sobretudo para que a rainha exercesse a sua influência junto dos semelhantes intercedendo por membros da sua entourage ou parentela. A carta que escreve ao primo Richard II mostra o seu empenho em olhar por aqueles que, tendo estado ao seu serviço em Portugal, haviam regressado ao reino de origem. Adam Davemport, de quem já falámos, viera para a Península Ibérica como capelão dos Lancaster e aqui ficara desempenhando funções de chanceler da rainha. Porém, como qualquer um que está fora do seu país, desejava agora passar os seus últimos dias de regresso ao reino natal13. O que Filipa pedia ao seu primo era que, uma vez que o seu ex-chanceler não tinha em Inglaterra quaisquer benefícios, ele próprio lhos concedesse 14, no que lhe faria muita honra e prazer. A rainha de Portugal dirigia-se a Richard II de forma cortês e delicada, mas não deixava de insinuar intimidade, dizendo-se desejosa de saber novidades15. Também dava ela própria notícias da sua família que, deduzia, seriam recebidas com satisfação pelo primo. As cartas que a rainha de Portugal dirigiu aos seus primos Thomas Arundel, arcebispo de Cantuária e Henry, bispo de Norwich ambas escritas num momento particularmente

7 8

PHILLIPS, Kim. M., op.cit., p.62.

SILVA, Manuela Santos, 2012, A rainha inglesa de Portugal. Filipa de Lencastre, Lisboa, Círculo de Leitores,

9

Chancelarias Portuguesas. D. João I, 2004, Lisboa, Centro de Estudos Históricos, Universidade Nova de Lisboa, vol.II, T.I [II-578], pp.297299.

10

SILVA, Manuela Santos, A rainha inglesa de Portugal. Filipa de Lencastre, pp.191-207. 11

Chancelarias Portuguesas. D. João I, vol.II, T.1, [II-272], p.157 – 1387 – Braga, 28 de Setembro; encontramolo ainda a 8 de Novembro de 1394 no Porto – Monumenta Henricina, 1960, Portugal. Comissão Executiva das Comemorações do Quinto Centenário da Morte do Infante D. Henrique, Coimbra, vol.I, [IX], p.271. 12

LEGGE, M. Dominica Legge (ed.), op.cit., Doc.307, p.372; ENTWISTLE, W. J. e P. E. RUSSELL, op.cit., p.336. 13

LEGGE, M. Dominica Legge (ed.), op.cit, [28], pp.73-74 – nien meins come chescun esteant hors de son propre paijs de naturelle inclination, desire de resorter a ycelle, il ad tresgrand desir […] de fere ses darreins jours en vostre tresnoble terre d’Engleterre. 14

LEGGE, M. Dominica Legge (ed.), op.cit, [28], pp.73-74 – vous supplie, mon tresgracieux seigneur, le plus effectuelment que je saye ou puisse que mon dit clerc veuilliéz avoir especialment recommendéz et de vostre bonteuouse noblesse lui doner le premiere benefice que apartiendra a vostre donison convenable pour son estat, parmy quel el pourra le plus honurablement soy meinteigner. 15

LEGGE, M. Dominica Legge (ed.), op.cit, [28], pp.73-74 – Trespuissant Prince, mon treshonuré et tresredoubté seigneur, je me recomand a vous le plus entièrement que say ou puisse, de trestout mon cuer desirante de vous et de vostre treshaute roial estat d’oier et savoir bones et gracieuses novelles, desquelx je pri a Dieu q’il me lesse toudiz avoir si bones come mon cuer desir ou come vous saveréz mesmes mielx deviser, a la tresparfaite léésce et sovereigne confort de moy.

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16

Tratava-se de um conflito político mas entre familiares e que dividira os parentes: seu irmão Henry deporia e mataria Richard II, substituindo-o depois no trono de Inglaterra SILVA, Manuela Santos, A rainha inglesa de Portugal. Filipa de Lencastre, pp.237-240.

17

LEGGE, M. Dominica Legge (ed.), op.cit, [287], p.347: nous vous saluons d’entier coer, en desiderantz toutdis d’oier et savoir continuelment bones novelles de vous et de vostre honurable estat, liquel li tout puissant toutz jours veulle meinteignere et gardere en honure et prosperité. 18

LEGGE, M. Dominica Legge (ed.), op.cit, [307], p.372 : Reverent père en Dieu, mon treschier et tresenterement bien amee cousyn, je vous salue tressovent et du cuer. 19

LEGGE, M. Dominica Legge (ed.), op.cit, [297], pp.360-361 : Tres excellente et tresredoubté, tres gracieuse et ma souveraigne dame, je me recomand a vostre tres hautisme nobleie aussi humblement et obessantement come ascun loial coer en ascun manere sciêt ou pluis puist […]. Vostre tres humble chapellain et orateur Henry Evesque de Norwicz, et si plesire vous soit, vostre cousin si j’estoy digne.

20

SILVA, Manuela Santos, 2007, “O casamento de D. Beatriz (filha natural de D. João I) com Thomas Fitzalan (Conde de Arundel) – paradigma documental da negociação de uma aliança” in Problematizar a História, Estudos de História Moderna em Homenagem a Maria do Rosário Themudo Barata, Lisboa, Caleidoscópio, Centro de História da Universidade de Lisboa, pp.77-91.

21

Tres haut et três puissant prince – ENTWISTLE, W. J. e P. E. RUSSELL, op.cit., p.22.

22

Sovereynement desirant doier et souvent savoir de Vostre estat et santié et en especial de la prosperitee de Vostre tres gentil persone si bons plesantes et joieuses novelles come vous mesme tres noble prince meulx les savez deviser ou en ascune manière souheider pur vostre sovereyn ease et confort. Et pur ce que je suy certeine que vous tres volontiers en oirez semblablement decea Vous signifie que le Roy mon Seigneur soverein tous mes enfans vos entiers nepveuz que toutdis se recomandent tres humblement a vous et moy leur miere Vostre entiere suer al feisance dycestes estioms tres tous seins et hettez de corps Regracioms nostre Createur que tousjours vous veulle mentenir en honeur et prosperitee selon Vostre desir – ENTWISTLE, W. J. e P. E. RUSSELL, op.cit., p.22.

31

23

sensível da vida da sua família e do seu reino de origem – em 1399 -, também são demonstrativas da noção de linhagem que Filipa professava e do entendimento que tinha sobre a extensão da sua ação política; tinha a consciência de que, mesmo de longe, podia mudar o desenvolvimento de algumas situações e que, ocorrendo dentro da sua esfera parentelar e de conhecimentos, tal intervenção lhe competia16. A expressão da familiaridade entre os correspondentes mantinha-se essencial. Filipa chama a Thomas Arundel Reverendo pai em Deus, mas também muito caro e amado primo, saudando-o de coração e querendo ser informada sobre como ele passava17. O mesmo tratamento é dirigido a Henry Despenser, bispo de Norwich, que também classifica como muito caro e especialmente bem-amado primo . Este último, porém, em missiva dirigida à rainha, em manifestação de gratidão, é bem mais respeitador, evitando a alusão ao parentesco entre ambos, exceto na parte final da carta em que, despedindo-se, se classifica como vosso muito humilde capelão e orador […] e se vos praz, vosso primo18 se disso sou digno19. Cronologicamente a última carta deste conjunto foi escrita em 1405 pela rainha de Portugal ao irmão, já então rei de Inglaterra. Tinham, ambos, planeado o casamento entre a filha bastarda de D. João I de Portugal e um seu jovem primo, conde de Arundel em Inglaterra20. Ao dirigir-se a Henry IV, Filipa mantém o tom respeitoso – Muito alto e muito poderoso príncipe 21, mas acrescenta meu especialmente bem amado irmão, recomendando-se humildemente de todo o seu coração à sua alta nobreza. Diz-se ansiosa por saber notícias sobre a saúde e sucessos do irmão e certa de que este também quererá saber que o rei de Portugal, seu cunhado, todos os seus sobrinhos e irmã se encontram igualmente bem22. Não deixa, porém, de lembrar ao irmão que tinham sido eles os promotores da união entre os dois nubentes que tinha acarretado algumas despesas aos cofres de ambas as coroas23. Em 1415, no seguimento do envio de uma embaixada a Portugal por parte do rei de Aragão, D. Filipa, demonstrando estar a par de todo o processo diplomático, sentiu-se na obrigação de escrever também a Fernando I, a quem tratou por muy amado e muj preçado rrey d Aragom, sobrinho amigo24. Por saber que o marido já dera aos enviados todas as explicações referentes à matéria em causa, Filipa apenas tranquilizou o “sobrinho” e ofereceu-lhe mesmo os seus préstimos para qualquer auxílio que de Portugal, aquele monarca pudesse necessitar. A despedida era calorosa: Deus, por sua merçee, uos tenha em sua guarda e me enuje sempre de uos boas nouas25. A existência desta correspondência é uma boa prova da manutenção de laços de cortesia entre familiares, membros de diversas casas reais. Além das cartas, trazidas por elementos dos respetivos séquitos, trocavam-se prendas – joias, bolsas, livros. Pensamos que alguns dos exemplares encontrados na biblioteca de D. Duarte, sucessor de D. João I, lhes tenham chegado deste modo26. E alguns mereceram mesmo uma tradução para português, como foi o caso da obra Confessio Amantis do poeta e moralista John Gower, datada de 1390, e dedicada a Richard II, rei de Inglaterra. Custa a crer que até a tempos recentes sempre se tenha tentado fugir à colocação sequer da hipótese de que a chegada do original e o patrocínio da sua tradução para português tenham tido como impulsionadora a rainha D. Filipa. Sabemos que os poemas da autoria de Eustache Deschamps que tinham como tema o duelo hipotético entre Flores e Folhas, um dos quais dedicado à futura rainha de Portugal, eram conhecidos na faustosamente culta corte do jovem Richard que terá mesmo encomendado a John Gower e a Geoffrey Chaucer trabalhos sobre a mesma matéria que vieram a ser incluídos quer no Confessio Amantis, quer no The Legend of Good Women da autoria do último, um dos mais antigos e constantes protegidos do pai de Filipa27. Ao serviço de Blanche de Lancaster, mãe de Philippa, traduzira, pelo menos, a obra devocional le Pelégrinage de la Vie Humaine, da autoria de Guillaume Deguilevilles e datada de 133028. Para uso

privado da duquesa, provavelmente para que esta pudesse ensinar as primeiras orações às suas filhas Philippa e Elizabeth, também se diz que o poeta elaborara um ABC como livro de orações a que deu o título de La Priere Nostre Dame29. À morte da sua senhora, Geoffrey Chaucer dedicara-lhe um longo poema - The Boke of the Duchess30. Parece-nos assim que o envio para Portugal destas obras, que eram fruto do mecenato familiar, se terá devido a Filipa. Tanto mais que o livro de John Gower foi traduzido diretamente para português possivelmente por um Robert Payn, familiar de um dos escrivães da puridade da rainha e que vem apontado na Lista dos Oficiais da corte de 1402/05 como membro do séquito de Filipa31. Além deste, na coletânea de exempla religiosos e didáticos que conhecemos como Horto do Esposo – e que também existia nas bibliotecas dos príncipes de Avis – encontra-se o que parece ser uma versão portuguesa de um dos Canterbury Tales de Geoffrey Chaucer, o Conto do Pregador32. Apesar da educação cortesã, a verdade é que a rainha inglesa deixou a nível da cronística portuguesa uma imagem de profunda religiosidade, baseada em sólidos conhecimentos dos escritos religiosos33. É por estas fontes que tomamos conhecimento de que terá introduzido na capela real o costume de Salisbúria, conhecido por Sarum Use, muito difundido em Inglaterra ainda nos séculos XIV e XV. Durante toda a Idade Média os muitos scriptoria das imediações daquela catedral produziram uma enorme quantidade de livros contendo uma detalhada descrição de todos os ofícios religiosos e respetivas liturgias, orações, cânticos e rituais, para serem usados pelos membros do clero. Mas pretendia-se também, que por parte do crente houvesse um conhecimento bastante aturado do breviário, pois exigia-se-lhe a recitação de várias orações e salmos34. Como descreve Fernão Lopes, Todallas sestas feiras tinha custume rezar o Salteiro, naõ falamdo a nenhuma pesoa ataa que o acabava de todo; e quoamdo era embarguada per doemça ou constramgida per empedimemto de parto, açerqua de sy lhe rezavaõ todo o que ella avia em husamça, ouvimdo devotamemte sem outra nenhuma torvaçam. Concluindo depois: Dos jejuns naõ compre fazer sermaõ, nem do ler das Samtas Escrituras em cõvinhaveis tempos, qua asy erão todos repartidos cõ taõ madura descriçaõ, que numca ociosidade em sua maginação achava morada34. Não admira assim que se ache que “todos os filhos de D. João I e de D. Filipa exibem uma sólida cultura religiosa”36, baseada na Bíblia, que bem conheciam e sabiam citara, e em obras devocionais e mesmo teológicas. A profunda cultura religiosa da rainha impressionara certamente os portugueses que com ela contactaram podendo estar na origem da ideia de se tratar de uma rainha muito piedosa e, segundo algumas visões mais ligeiras, até beata. Porém, como é fácil de comprovar através da profícua historiografia inglesa sobre o século XIV, a futura rainha de Portugal tivera, na sua juventude, muitos contactos com a cultura profana cortesã. Como vimos, Filipa conhecera em primeira mão os poemas inéditos e os traduzidos para inglês de Geoffrey Chaucer, pela sua mão contactara com obras e poetas de língua francesa, poderia ter conhecido as obras de John Gower, ou de Christine de Pisan que o seu irmão Henry IV admirava, e fora-lhe mesmo dedicado um poema por um autor francês da moda – Eustace Deschamps. O próprio Fernão Lopes, na sua breve descrição da rainha, já havia relativizado um pouco a imagem de santa rainha que ajudara a pintar. Começando por esclarecer que Filipa não fazia alguma coisa com rancor nem ódio, mas todas suas obras eram feitas em amor de Deos e do próximo, sempre vai acrescentando que Em ella avia huma chãa comversaçaom proveitosa a muytos, sem oufana de seu reall estaado, com doces e graciosas palavras a todos prazivees douvir. Alegravase algumas vezes por nam parecer de todo apartada despaçar com suas domzellas, em joguos sem sospeita demguano, lícitos e comvinhaveis a toda onesta pesoa37.

vous le savez bien qu’il est ore mariee nom pas, par son proper movement, mes eins par votre comandement en partie, a l’instance de moi - HINGESTON, Rev. F. C. (ed.), 1965, Royal and Historical Letters during the reign of Henry the Fourth King of England and France and Lord of Ireland, vol.II, A.D. 1405-1413, London, Her Majesty’s Stationery Office, CXCIII, pp.99-102.

24

per o que elles da uossa parte diserom, foy certa do que deseiauades saber - Monumenta Henricina, op.cit., vol.II, pp.121-122.

25

Monumenta Henricina, op.cit, vol. II, pp.121-122.

26

Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (livro da Cartuxa), 1982, edição diplomática, Transcrição de João José Alves Dias, Introdução de A. H. de Oliveira Marques e João José Alves Dias, Revisão de A. H. de Oliveira Marques e Teresa F. Rodrigues, Lisboa, Editorial Estampa.

27

COLEMAN, 2006, “The Flower, the Leaf, and Philippa of Lancaster” in The Legend of Good Women. Context and Reception. Context and Reception, ed by Carolyn P. Colette, Oxford, D.S.Brewer, p.55; COLEMAN, Joyce, 2008, “Filipa de Lancaster, Rainha de Portugal – e mecenas das traduções de Gower?” in Maria Bullón-Fernandez (ed.), A Inglaterra e a Península Ibérica na Idade Média. Séc.XII-XV. Intercâmbios Culturais, Literários e Políticos, Lisboa, Publicações Europa-América, p.141.

28

SILVA-VIGIER, Anil de, 1992, The Moste Highe Prince...John of Gaunt 1340-1399, Edinburgh-Cambridge-Durham, The Pentland Press, ltd., p.99

29

GOODMAN, Anthony, 1992, John of Gaunt. The Exercise of Princely Power in Fourteenth-Century Europe, Harlow, Essex, Longman, pp.37-38; LUCRAFT, Jeanette, 2006, Katherine Swynford. The History of a Medieval Mistress, London, Sutton Publishing, p.113.

30

No prólogo da sua obra posterior The legend of Good Women, Geoffrey Chaucer faz referência ao poema que escrevera com o título original de The Death of Blanche the Duchess - WEIR, Alison, 2007, Katherine Swynford. The Story of John of Gaunt and his Scandalous Duchess, London, Jonathan Cape, p.89.

31

FARO, Jorge, 1965, Receitas e despesas da Fazenda Real de 1384 a 1481 (Subsídios Documentais), Lisboa, Publicações do Centro de Estudos Económicos, pp.42-43. É a própria versão castelhana da obra

32


que nos dá os detalhes: Este libro es llamado confisyon del amante el qual compuso Juan Goer natural del rreyno de Ynglaterra. E fue tornado en lenguaje portogues por Rroberto Paym natural del dicho Reyno e canonigo de la çibdad de Lixboa. E despues fue sacado em lenguage castellano por Juan de Cuenca vesino de la çibdad de Huéte” - MARTINS, Mário, 1979, Dum poema inglês de John Gower e sua tradução do português para o castelhano, sep. de Didaskalia, vol.IX, Lisboa, p.414. 32

COLEMAN, Joyce, “The Flower, the Leaf, and Philippa of Lancaster”, p.49.

33

LOPES, Fernão, Crónica de D. João I, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1983, vol.II, pp.225-226: Esta bemaventurada Rainha asy como em sua mocidade era devota e nos divinais ofiçios esperta, asy o foy e muito depois que teve casa e os ordenou a sua vontade. Ela rezava sempre oras canonycas pello custume de Salesbri; e pero el seja naõ bem «de ligeiro» dordenar, asy era em esto atemta, que seus capelãis e outras onestas pesoas reçebiaõ nelle per ella ensynança.

34

BAXTER, Philip, Sarum Use. The Ancient customs of Salisbury, 2008, Reading, Spire Books Ltd.

35

LOPES, Fernão, 1983, Crónica de D. João I, vol.II, p.226.

36

DUARTE, Luís Miguel, 2005, D. Duarte. Requiem por um rei triste, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, p.80.

37

Fernão LOPES, Crónica de D. João I, vol.II, p.226.

Fig. 2 : In BENEVIDES, Francisco da Fonseca, 1878, Rainhas de Portugal. Estudo Histórico, Lisboa, Typographia Castro Irmão (Livros Horizonte, 2007).

33

34


AGAMÉMNON

O QUE É UM REI? Nuno Simões Rodrigues*

Apesar de a cultura grega ser popularmente associada à ideia de democracia, o facto é que esse não foi o único regime político que imperou nas antigas cidades helénicas. Longe disso. Efectivamente, a par da democracia, a Hélade Antiga conheceu também oligarquias e monarquias e até mesmo a diarquia1. A monarquia foi, inclusive, um regime que predominou em várias cidades gregas, em variadas cronologias e por vezes ao longo de um tempo considerável. Nesse contexto, a personagem homérica de Agamémnon configura em grande parte o sistema monárquico antigo, o da chamada

que Agamémnon representa a um período definido, seja ele o micénico ou o homérico, seja a Idade do Bronze ou a Idade do Ferro, tal como preferirão os arqueólogos 3. Estamos totalmente de acordo com a ideia de que existe o perigo de querer transformar em documento historicamente infalível aquela que é essencialmente uma obra de ficção e representação literárias, mas não excluímos igualmente a premissa de que essa mesma representação parte necessariamente de uma cosmovisão: a do seu autor ou autores. De outro modo a ausência de referencial provocaria um hiato de comunicação entre o poeta e seus interlocutores. Isso confirma, portanto, que, apesar das nossas dificuldades em a localizarmos ao certo no tempo histórico, a concepção de rei que dá corpo à personagem Agamémnon deverá assentar num referencial, que se constrói também com os dados assinalados. Saber ao certo qual deles terá sido, é tarefa para mais investigação e discurso, sem ignorar, porém, a advertência acima enunciada bem como a possibilidade de estarmos perante um problema sem solução. Feitas estas considerações, que rei é esse que se representa nos Poemas Homéricos, em particular na Ilíada? Na verdade, de Príamo a Ulisses, ambas as epopeias estão repletas de reis. Mas se há uma figura que efectivamente parece dar forma ao «rei» homérico por antonomásia, essa é Agamémnon, a quem significativamente o autor da Ilíada chama «Pastor do Povo» (trad. F. Lourenço). E o que significa ser rei neste contexto? Entre os Aqueus, a monarquia parece ser uma solução para um regime ideal e desejável. Diz Ulisses a um aqueu envolvido numa rixa:

Não penses que, aqui, nós Aqueus somos todos reis! Não é bom serem todos a mandar. É um que manda (koiranos); um é o rei, a quem deu o Crónida de retorcidos conselhos o ceptro e o direito de legislar, para que decida por todos.4

«Idade Homérica», e respectiva prática política. Todos sabem que o estudo da realeza tal como aparece nos Poemas Homéricos não é uma novidade e muito menos um tema isento de polémica. Muitos têm sido os estudos dedicados à temática e as opiniões até agora expressas estão longe de alcançar o estatuto da unanimidade. Não é nosso propósito, por isso, propor em apenas algumas linhas uma resolução para esta problemática, mas tão-somente recuperar e sistematizar algumas reflexões, que se coadunem e justifiquem no âmbito do assunto em análise. Em grande parte, a perenidade da polémica em torno da questão da realeza no que Finley designou como «Mundo de Ulisses» tem que ver com o facto de a ela estar subjacente a Questão Homérica. O problema da datação da Ilíada e da Odisseia é, por certo, fundamental para analisarmos a questão das ideias políticas presentes em ambos os poemas, bem como as representações de poder que neles se fazem. Por outro lado, e como salientou já Maria Helena da Rocha Pereira, há que ter o cuidado de não confundir os dados e ter bem presente que os Poemas Homéricos são sobretudo obras literárias, o que não evita a tentação e o risco de se tentar criar leis e relações de causa/efeito, aliadas à factualidade histórica, a partir das informações ali enunciadas2. *

Universidade de Lisboa

1

P. Oliva, Esparta y sus problemas sociais, Madrid, 1983, 24-25.

2

MM. H. da Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica, I – Cultura Grega, Lisboa, 200610, 64.

35

Seja como for, é igualmente inegável que nos dois textos, e em particular na Ilíada, existe uma representação clara da figura do rei, que não poderá ser totalmente derivada da imaginação poética, mas cujos pressupostos deverão assentar na vivência humana e na forma de organizar o real e as comunidades humanas. Mais difícil será, como assinalámos, tentar adjudicar sem quaisquer dúvidas ou incertezas a definição do monarca

Koiranos, «o que manda», é o termo usado pelo poeta, como que acentuando a exclusividade e rejeitando a possibilidade da partilha do poder, ainda que seja evidente que ele é também atribuído a outras figuras5. A metodologia que seguimos para perceber a caracterização homérica da realeza consistiu na sistematização dos epítetos que o poeta atribui a Agamémnon. Como foi já salientado, o recurso a repetições e epítetos fixos faz parte do processo de composição oral épica de improviso. O seu uso, contudo, não parece ter sido de todo aleatório, como se lhe bastasse a necessidade métrica. A escolha de determinado epíteto a partir de um banco de frases previamente feitas para uma personagem específica terá obedecido à necessidade de caracterizar o herói em causa, bem como à de valorizar as suas características e qualidades, de acordo com a perspectiva de quem olha para a figura, como o rei, e dela pretende dar a sua percepção da mesma ou o que entende pelo conceito que a define ou identifica6. Assim, isolámos os epítetos que o poeta atribui a Agamémnon, de modo a descortinar a configuração da realeza, tal como entendida por quem narra estes versos épicos. Ao longo da Ilíada, são treze os epítetos que o poeta atribui ao rei de Argos, além da designação «Atrida» que, naturalmente, lhe assegura uma ascendência aristocrática pela comunhão com o universo de heróis e deuses. Esses epítetos são: «rei» (basileus)7, «nobre» (aristos)8, «poderoso» (kreion)9, «gloriosíssimo» (kydistos)10, «soberano» (anax)11, «condutor/organizador» (kosmetor)12, «pastor» (poimen)13, «divino» (dios)14, «herói» (heroos)15, «venturoso» (makar)16, «filho do destino» (moiragenes)17, «feliz» (olbiodaimon)18 e «implacável» (aaptos)19. Estes distribuem-se, por variável de ocorrência, do seguinte modo:

3

A M. I. Finley, O Mundo de Ulisses, Lisboa, 1982, 45; J. Bennet, «Homer and the Bronze Age» e I. Morris, «Homer and the Iron Age» in I. Morris, B. Powell, eds., A New Companion to Homer, Leiden, 1997,511-559; M. H. da Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica, I – Cultura Grega, Lisboa, 200610, 65.

4

Il. 2.203-206. Todas as traduções citadas são de F. Lourenço.

5 6

Il. 7.234.

M. H. da Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica, I – Cultura Grega, Lisboa, 200610, 54. A descoberta desta técnica, que se deve a M. Parry, distingue epítetos genéricos e específicos, a qual deve ser tida em conta nesta nossa análise, claro.

7

Il. 1.9, 231, 277; 2.54, 445; 3.179; 9.69; 11.136.

8 9

Il. 1.91; 2.82.

Il. 1.102, 130, 285, 355, 411; 2.100, 369; 3.118, 178; 4.153, 188, 204, 283, 311, 356, 368; 7.107, 322, 405; 9.62, 368; 10.42; 11.107, 126, 153, 177, 238; 13.112; 14.41; 16.72, 273; 23.887. Cf. Od. 3.248.

10

Il. 1.122; 2.434; 9.96, 163, 677, 697; 10.103; 19.146, 199. Cf. Od. 11.397

11

Il. 1.7, 172, 442, 506; 2.284, 360, 402, 441, 434; 3.81, 267; 4.148, 255, 336; 5.38; 7.162, 314; 8.278; 9.33, 73, 96, 98, 114, 163, 672, 677, 697; 10.64, 86, 103, 119, 233; 11.99, 254; 14.64, 103, 134; 19.146, 172, 184, 199; 23.49, 161, 895. Cf. Od. 8.77; 11.397.

12 13

Il. 1.375.

Il. 2.85, 254; 4.413; 7.230; 10.3; 11.187, 202: 14.22; 19.251. Cf. Od. 3.156; 4.533.

14

Il. 2.221; 3.120; 4.223; 7.312; 11.251; 23.36.

15

Il. 2.483; 7.120, 322; 13.112; 23.896.

16 17 18 19

Il. 3.182. Il. 3.182. Il. 3.182.. Il. 11.169

36


Gráfico 1: ocorrência dos epítetos de Agamémnon na Ilíada:

A partir dos dados inventariados facilmente se percebe que o título anax (que traduzimos por «soberano», seguindo a proposta de F. Lourenço) é o mais frequentemente usado pelo poeta para definir o estatuto do rei, ultrapassando claramente o de basileus. Aquele é mesmo o primeiro título que, na Ilíada, é dado a Agamémnon20.

20 21

Il. 1.7.

Sobre esta questão, ver N. Yamagata, «Anax and basileus in Homer», CQ 47, 1997, 1-14. 22

J. Gaudemet, Les institutions de l’Antiquité, Paris, 20027, 57-60; M. H. da Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica, I – Cultura Grega, Lisboa, 200610, 63. 23

JM. H. da Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica, I – Cultura Grega, Lisboa, 200610, 63; A. M. Snodgrass, «An Historical Homeric Society», JHS 94, 1974, 114-125; A. G. Geddes, «Who is Who in Homeric Society?», CQ 34, 1984, 17-36.

37

Esta comparação é particularmente significativa, uma vez que estas duas designações fazem parte dos instrumentos que têm sido usados para averiguar semelhanças e diferenças entre a sociedade micénica e o designado período homérico. Estabeleceu-se mesmo a ideia de que o anax corresponde a uma instituição superior à do basileus21. De igual modo, enquanto o basileus se teria afirmado, o anax teria conhecido uma tendência para a diluição, desvalorização ou até mesmo desaparecimento, reduzindo-se o seu uso a contextos poéticos, sendo aplicado essencialmente aos deuses22. Por outro lado, depois de usado para identificar quem detinha o poder em pequenas comunidades, o termo basileus acabou por instituir-se como um título de primeiro plano, denunciando assim a evolução histórica que se teria baseado numa fragmentação dos centros de poder e afirmação progressiva dos pequenos comandos e organizações comunitárias, durante o designado período homérico23. Mas, a julgar pelo que dizem as fontes, no «mundo de Ulisses», Agamémnon seria mais reconhecido como anax do que como basileus, o que parece relativizar a ideia de que o primeiro se teria desvalorizado nessa época ou, pelo contrário, acentuar a de que esta informação faz parte de um mundo mais recuado. Na verdade, parece-nos que estes dados não fazem mais do que acentuar a polémica em torno da questão. Títulos como «poderoso» e «glorioso», que têm como função principal exaltar o poder e a dignidade do monarca, marcam igualmente uma presença significativa, tal como outros, relacionados com as funcionalidades régias: a militar (como «condutor/organizador de homens» e «implacável»), a religiosa (como «divino», «filho do destino», «herói», a cuja raça ele também pertence) ou a ética (como «nobre» e «venturoso»). Se tivermos em conta o conjunto das designações, é possível estabelecer uma perspectiva percentual dos seus usos:

Os 36% respeitantes ao título anax não deixam margem para dúvidas. A escolha destes qualificativos, que traduzem o respeito pela figura régia, independentemente da sua posição no conflito, depende de uma percepção da monarquia. Esta, por sua vez, deriva certamente de um modelo político-social, que valoriza sobretudo o estatuto bélicoreligioso e genealógico, estivesse ele já totalmente definido, em desagregação ou em construção. É ainda de referir que, entre os epítetos com que o monarca é contemplado na Odisseia, está igualmente presente o de anax24. Além da definição proposta pelos epítetos, a figura do rei Agamémnon pode ainda ser configurada através das situações em que o poeta coloca a personagem, bem como através da forma como esta reage aos desafios com que depara ou das soluções que propõe para os problemas que se atravessam no seu caminho. Por consequência, sendo a Ilíada um poema bélico, independentemente da mensagem que possa estar na sua essência, Agamémnon é aí, acima de tudo, apresentado como um senhor da guerra, com poder de encetá-la ou de extingui-la:

Amigo, fica em silêncio e obedece às minhas palavras: não considero vergonhoso que Agamémnon, pastor do povo, incite a combater os Aqueus de belas cnémides. Dele será a glória, na eventualidade de os Aqueus chacinarem os Troianos e tomarem a sacra Ílion; e sobre ele se abaterá o sofrimento, se forem os Aqueus chacinados.25

O rei é antes de mais um guerreiro que chefia guerreiros, um chefe militar cuja autoridade se impõe à de outros reis, mas cuja autoridade ele não deixa de reconhecer. Em determinado passo, Nestor diz a Agamémnon:

ó Atrida, sê tu a reger! Ninguém detém mais realeza (basileutatos) que tu.26

24

4

E.g. Od. 11.397. Il. 2.203-206. Todas as traduções citadas são de F. Lourenço. 25

Il. 4.412-417; cf. 2.382-393; 3.8283; 7.57; 14.134.

26

Il. 9.69; cf. 4.286, onde se lê: «A vós não dou ordens, pois tal não me ficaria bem.», e 10.32-33. Pode mesmo servir de árbitro de contendas, como lemos em Il. 23.486.

38


Num outro passo lemos:

Atrida, é às tuas palavras que a hoste dos Aqueus sobretudo obedece.27

E num outro ainda encontramos uma das melhores definições deste regime monárquico hierarquizado, que parece derivar de uma pluralidade político-geográfica, em que pequenos senhores comandam os seus territórios, mas em que todos eles reconhecem a superioridade de um dos seus:

Que [Aquiles] se domine e se submeta a mim [Agamémnon], pois sou detentor de mais realeza (basileuteros)...28

Numa situação de crise, como a que sugere a Guerra de Tróia, no sistema baseado numa federação de comunidades que teriam em comum a língua e os cultos, haveria um rei reconhecido por todos os outros como seu soberano. Foi com base nestas referências que se aplicou ao senhor de Argos a designação de primus inter pares, que representa o chefe que é escolhido entre chefes, para coordenar tudo e todos os que o rodeiam, num sistema que prenuncia o da Távola Redonda, na Bretanha da Antiguidade Tardia. G. Glotz sugeriu mesmo que, em termos imagéticos, o rei supremo seria aquele cuja origem divina estivesse mais bem estabelecida e fosse mais bem conhecida por todos. Isso porque o rei seria a encarnação do poder do deus29.

27 28 29

Il. 23.156-157. Il. 9.158-160.

G. Glotz, A cidade grega, Rio de Janeiro, 1980, 34. 30

G. Glotz, A cidade grega, Rio de Janeiro, 1980, 30. 31 32

Il. 1.281..

Il. 1.124, 161, 368; 2.226; 8.286; 9.130, 328-333. 33

Il. 1.165-167, 171.

39

A Ilíada não é parca em exemplos que confirmam a definição proposta pela Ciência Política. Mas o que confere o poder a Agamémnon? Qual é o elemento que lhe garante essa autoridade e o respeito dos seus pares? A resposta parece ser a riqueza. É o volume de bens materiais que Agamémnon possui que, em parte, justifica o seu estatuto de rei, e a importância daquele confirma-se com o acto de o enumerar lado a lado com os seus antepassados30. É a riqueza que lhe permite a manutenção de um número significativo de homens sob seu comando, que por sua vez lhe granjeia a possibilidade material de exercer e confirmar o poder carismático. E quantos mais homens obedecerem a Agamémnon, maior é o seu reconhecimento como rei e entre outros reis. São também esses bens que lhe permitem manter o exército que lhe garante a chefia de uma missão, em que o principal ofendido é um familiar seu. Isto, porque se trata de uma sociedade em que os laços familiares são centrais31. O rei angaria a riqueza de várias formas, sendo a mais representativa o saque, que aliás representa carisma e prestígio para os que nele intervêm32. Participar na divisão do espólio é, aliás, seu apanágio, esteja ele presente ou não no acto em si. Aquiles é claro quando diz ao Atrida:

A maior porção da guerra impetuosa têm as minhas mãos de aguentar; mas quando chega o momento da distribuição, és tu que ficas com o prémio melhor… … pois não estou disposto a ficar aqui, desonrado, acumulando para ti tesouros.33

Ou ainda:

Destas cidades retirei numerosos e excelentes despojos, e carregando todas as coisas dava-as a Agamémnon, o Atrida, enquanto ele ficava para trás, nas suas naus velozes, para receber. Depois distribuía pouco e ficava com muito. Alguns despojos ele deu como prémios a nobre e reis, que ficaram com eles, incólumes; mas dentre os Aqueus só a mim tirou o prémio e ficou com a mulher que me agradava.34

O espólio do rei é inclusivamente referido num outro passo, quando o malafamado Tersites afirma: As tuas tendas estão cheias de bronze e muitas mulheres escolhidas estão nas tuas tendas, essas que nós Aqueus te demos em primeiro lugar, quando saqueávamos uma cidade. ou será ouro que tu queres? Ouro que te traga um dos Troianos domadores de cavalos de Ílion, como resgate pelo filho, que eu ou outro dos Aqueus capturei e trouxe para aqui?35 E os bens que se permite oferecer a Aquiles mostram igualmente as capacidades do monarca:

sete trípodes sem marca de fogo, dez talentos de ouro, vinte caldeirões resplandecentes, doze poderosos cavalos premiados, que ganharam prémios pela velocidade… … sete mulheres peritas em trabalhos irrepreensíveis...36

Outros passos sugerem que o rei angaria também riqueza através do controlo do território que está sob o seu domínio, com a cobrança do que parecem ser taxas, camufladas sob a forma de presentes de prestígio, os geraa37. Efectivamente, são prerrogativas do rei a protecção do seu povo, mas também a obediência que lhe é devida, a riqueza e usufruto de bens, bem como a participação nos lucros de todas as empresas em que a comunidade se envolve38. Mas é também o facto de ser um par de outros monarcas que faz com que o rei não se livre da crítica e da censura, por parte dos seus pares. Esse factor indicia mesmo a contestação do poder e a possibilidade de outros exercerem o mesmo, caso os apoios necessários assim se revelem. Porque se o poder é um desígnio de Zeus, parece também não haver dúvida de que este é uma construção teórico-ideológica feita a posteriori, que se sucede ao pragmatismo dos apoios humanos que permitem o exercício daquele. Falhem tais apoios e talvez Zeus deixe de conceder o «seu beneplácito régio». Veja-se o caso de Telémaco, na Odisseia, que vivencia precisamente essa situação. No caso de Agamémnon, essas críticas concretizam-se nas censuras que lhe são feitas por outros reis. O carácter instável e não vitalício do poder, apesar da sua aparente hereditariedade, é assim igualmente perceptível na Ilíada:

34 35 36

Il. 9.330-336. Il. 2.226-231.

Il. 9.122-128, 264-266, 270; 19.243-249; ver ainda 23.295-298, 525, onde se lê acerca dos cavalos de Agamémnon.

37

Il. 7.470; 9.72-73, 154; 23. 295-298, 740-747.

38

Il. 4.262; 8.162; 10.93-95, 133.

40


Que doravante a outro repugne declarar-se meu igual e comparar-se comigo na minha presença!39

O facto de o rei pôr à consideração de um conselho, a que preside com poder deliberativo, as decisões acerca da guerra, mostra também que o seu poder tem limites, designadamente os apoios que o sustentam no seu lugar, bem como a constante sombra que lhe fazem os outros chefes40. Ser rei neste ambiente implica a assunção não apenas do comando militar e das operações a ele ligadas, mas também das responsabilidades religiosas. É sabido que, entre os Gregos, o chefe de uma família era normalmente convocado a desempenhar tais funções. Neste caso, a chefia não se limita a uma família mas a toda uma comunidade entendida como tal. Na Ilíada, são vários os exemplos em que o rei Agamémnon assume o papel de sacerdote. Eis um deles: 39

Il. 1.186-187; ver ainda Il. 1.150151, 293-303; 2.225-242; 10.88-90.

40 41

Il. 9.9, 17-28, 392.

GIl. 2.402-403, 410-411. Ver ainda 3.271, 276-291; 7.314-316; 9.534; 19.252-255. 42

Il. 2.412-418; 3.276-291; 10.1516. O arconte-basileus ateniense encontrará aqui as suas raízes. Ver F. Oakley, New Perspectives on the Past Kingship, 2006, 46. 31 43

Il. 1.281.

Cf. G. Dumézil, La religion romaine archaïque, Paris, 1974. 44

IIl. 2.85, 254; 4.413; 7.230; 10.3; 11.187, 202; 14.22; 19.251; cf. Od. 4.532. 45

Arist. EN 1161a10-1161a17, trad. A. C. Caeiro. Seria igualmente interessante estudar a forma como Aristóteles se apropria da figura de Agamémnon, ou de eventualmente de outros reis dos tempos heróicos, para as suas reflexões no domínio da teorização política e da problemática dos regimes de Estado. Mas essa é uma questão que ultrapassa a presente análise. 46

M. H. da Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica, I – Cultura Grega, Lisboa, 200610, 74. 47 48

Il. 18.556-557.

Uma síntese da problemática pode ser lida em J. Haudry, Os Indo-europeus, Porto, [s.d.].

41

Porém, Agamémnon senhor dos homens sacrificou um gordo boi de cinco anos de idade ao Crónida de supremo poder… Posicionaram-se em torno do boi e tomaram os grãos de cevada. Entre eles rezou assim o poderoso Agamémnon…41

As orações de Agamémnon constituem passos particularmente importantes, pelos conteúdos que transmitem, relativamente à prática religiosa deste «tempo homérico»42. Mas é também através delas que o rei se concretiza como principal mediador entre os homens da sua comunidade e a divindade. Estas duas funções, a de guerreiro e a de sacerdote, fazem parte do que G. Dumézil estabeleceu para definir as esferas de organização das estruturas indoeuropeias 43. A terceira função liga-se à terra e à produção agrária. Mas, de certo modo, também essa está presente na definição da figura do rei homérico, quando o poeta lhe atribui o epíteto de «Pastor do Povo» 44, de que Aristóteles fará eco na Ética a Nicómaco e que vale a pena reproduzir: Na relação do monarca com seus súbditos há uma forma de superioridade na natureza do benefício que confere. Na verdade, o monarca faz bem aos seus súbditos, na medida em que, sendo bom, olha por que eles vivam bem, tal como o faz o pastor com os seus rebanhos de cabras. Daí também que Homero chame a Agamémnon «pastor de povos»... Na verdade, o monarca é o fundamento responsável pela existência do seu povo.45 Apesar de ter sido já salientada a comparação simples que este epíteto representa, cremos que ela implica também uma concepção de poder que reflecte a ideologia da trifuncionalidade indo-europeia46. Esta ideia confirma-se na descrição do escudo de Aquiles, no canto XVIII, ao apresentar-se o rei não num contexto bélico, mas num quadro agrário: O rei em silêncio no meio deles Assistia à ceifa em pé, de ceptro na mão, jucundo no coração47 Neste sentido, Agamémnon contribui também para a inclusão da cultura grega nos pressupostos do que entendemos ser o indo-europeísmo48. Significa isso que a realeza homérica, ou pelo menos aquela que Agamémnon representa, se afasta totalmente dos outros figurinos conhecidos para a Europa da Antiguidade, ou para o mundo

mediterrâneo, que constitui o caso mais bem conhecido? Cremos que será precipitado tirarmos essa conclusão, para não dizer mesmo imaturo. Se, quando comparada com a monarquia faraónica a realeza homérica se impõe pela diferença, pelo facto de o rei grego não ser entendido como um deus, tal como acontece no Egipto49, quando a comparamos com a realeza mesopotâmica ou a siro-palestinense, somos forçados a reorganizar as nossas anotações. Foi já referido que o rei homérico se localiza algures entre o universo humano e o domínio do divino. De facto, ele é um representante dos deuses entre os homens e o sacerdote ou mediador dos homens junto dos deuses50. Esta definição tem inegavelmente afinidades babilónicas, pois está próxima da que encontramos nessa cosmovisão, em que o rei é primeiro do que tudo um vigário do deus. Assim, se o modelo indo-europeu definido pela realeza homérica rompe com a concepção camítica de rei, ela parece estar em perfeita sintonia com o que conhecemos para o sistema semítico. E esta conclusão é igualmente válida para o referencial hebraico, em que se verificam especificidades na definição do político, pois deus e rei distinguem-se perfeitamente, apesar de este depender daquele e de aquele se manifestar aos homens através deste. Ora, assim acontece com Agamémnon, cuja linhagem é constantemente evocada, vinculando-o aos deuses51. É aqui que devemos enquadrar a ideia de que o poder é uma concessão de Zeus e que perpassa o poema, em passos como o que afirma que Agamémnon é «criado por Zeus»52, ou:

Atrida gloriosíssimo, Agamémnon soberano dos homens! Começo e acabo por me dirigir a ti, porque és rei de muitas hostes e foi Zeus que te concedeu o ceptro e a justiça, para que deliberes pelo povo.53,

ou ainda:

não é honra qualquer a de um rei detentor de ceptro, a quem Zeus concedeu a glória.54

Estamos assim perante uma ideia de poder que, apesar de emanar das capacidades materiais, sente necessidade de se justificar religiosamente, atingindo desse modo o nível da teorização política. É assim que os versos de Homero sugerem que o rei detém o poder executivo, bem como o deliberativo55. Associado a estes está igualmente o domínio da vida e da morte, que não deve ser olvidado, ainda que estejamos distantes de uma concepção de poder absoluto56. Em termos de imagética, todas as formas do poder se materializam no ceptro:

Com dualidade te presenteou o Crónida de retorcidos conselhos: Por um lado com um ceptro te concedeu seres honrado acima de todos…57

49

Isto apesar do epíteto «divino», que aliás Maria Helena da Rocha Pereira considera geral e aplicável aos heróis em geral, pelas suas qualidades éticas que pressupõe.

50

F. Oakley, New Perspectives on the Past Kingship, 2006, 41.

51

G. Glotz, A cidade grega, Rio de Janeiro, 1980, 30.

52 53

Il. 9.96-99; e Il. 175.279 e 209, onde se refere igualmente Hera.

54

O ceptro, «imperecível para sempre»58, é um objecto que, acima de tudo, representa a realeza. O rei nunca se separa dele, de modo a manter viva a memória dos seus súbditos, quanto a quem exerce a soberania e a quem detém a dignidade régia. Além disso, o ceptro mantém inviolável o seu detentor, garantindo-lhe uma espécie de imunidade e protecção divina59. Este é o conjunto de razões que leva o poeta inclusiva-

Il. 9.106.

55 56 57

Il. 1.278-279. Il. 9.100-102. Il. 2.391.

Il. 9.37-38. Sobre o ceptro, ver ainda 2.45-47.

58 59

Il. 2.46. Il. 2.50, 97, 279; 23.567.

42


mente a oferecer a genealogia do ceptro de Agamémnon, como se de um herói como os outros se tratasse, confirmando a importância do mesmo:

60 61 62

Il. 2.100-109. Paus. 10.40.11.

F. Oakley, New Perspectives on the Past Kingship, 2006, 15. 63

F. Oakley, New Perspectives on the Past Kingship, 2006, 15-17, 38; ver ainda H. Frankfort, Reyes y Dioses. Estudio de la religion del Oriente Proximo en la Antigüedad, Madrid, 1993. 64

F. Oakley, New Perspectives on the Past Kingship, 2006, 39. 65 66 67 68 69 70 71

Il. 1.122. Il. 1.158; 9.372. Il. 1.159, 225; 9.373. Il. 1.225. Il. 1.340. Il. 1.342.

Il. 1.226-228; 9.39; cf. Il. 4.223231; 11.92-112, 155-178. 72

Il. 15.16-33.

43

Levantou-se o poderoso Agamémnon, segurando o ceptro que com seu esforço fabricara Hefesto. Hefesto deu-o depois a Zeus Crónida soberano, e por sua vez o deu Zeus ao forte Matador de Argos, Hermes soberano, que o deu a Pélops, condutor de cavalos; por sua vez de novo o deu Pélops a Atreu, pastor do povo; e Atreu ao morrer deixou-o a Tiestes de muitos rebanhos; por sua vez o deixou Tiestes a Agamémnon para que o detivesse, assim regendo muitas ilhas e toda a região de Argos. Apoiado contra o ceptro, assim falou ele aos Argivos…60

Radicaria aqui a justificação pela qual, segundo Pausânias, o objecto acabou mesmo por ser venerado em Queroneia, confirmando a sacralização do próprio rei61. Na Antiguidade, as sociedades tinham a natureza como uma realidade viva, que se exprimia em rituais cíclicos e em catástrofes ocasionais, ligando-a, por isso, a uma concepção de divino. O Homem fazia igualmente parte dessa estrutura. Manter o equilíbrio da ordem cósmica, porém, excedia os poderes de um simples indivíduo. Isso fazia-se através de um complexo sistema de rituais e tabus, cujo objectivo era precisamente o de evitar alterações que provocassem o desequilíbrio e o de manter a regeneração sazonal do mundo. Na maioria das sociedades, essa função cabia precisamente ao rei. Daí que a religião fosse um dos pilares da comunidade, que transformava a sociedade política numa analogia da ordem cósmica e dos ritmos cíclicos da natureza62. Daí também a indistinção entre religião e Estado. Esta era a concepção predominante no Próximo Oriente Antigo, bem como a que, aparentemente, consagrou a forma da monarquia na Grécia do período anterior ao das cidades-estados arcaicas63. Note-se, porém, que esta não deve ser entendida como uma concepção necessariamente primitiva, dado que estas sociedades dispunham de um conjunto complexo de instituições legais, administrativas, burocráticas, militares e religiosas, que reflectem uma delegação de poderes e funções que, no Próximo Oriente, evoluíram para o funcionalismo subordinado à instituição régia e, na Grécia, se mantiveram primeiro no rei e se diluíram posteriormente nas instituições oligárquicas e democráticas64. É também por isso que a investidura, por parte de Zeus, confere carácter sagrado à realeza de Agamémnon. Isso não a torna, porém, isenta de crítica ou de censura por parte dos seus pares, como quando lhe chamam «o mais ganancioso de todos os homens» (apesar de essa censura se articular a seguir ao título «gloriosíssimo»)65, «grande desavergonhado»66, «cara de cão» 67, «pesado de vinho»68, «áspero»69, «espírito mal intencionado»70 e se insinua inclusivamente a sua cobardia, ainda que o comportamento do rei noutros episódios do poema a contradiga71. Estes poderão ser ainda sintomas do início da dessacralização da monarquia grega antiga, que, contudo, virá a ser recuperada no período helenístico, em parte, precisamente, por influência oriental. O próprio Zeus é, aliás, um rei não isento dos ataques dos seus pares, como recorda a conspiração urdida por Hera72. Cabe ainda referir que, se o rei representa sobretudo a ordem, a guerra é uma espécie de alegoria ou metáfora do caos, em que o monarca é o referencial do reordenamento no seu seio. É ele quem organiza as tropas e os exércitos e os comanda. Ele é cosmos e por

isso a ele se recorre. Neste contexto, a guerra é quase um caos necessário, ou pelo menos controlado, de modo a fazer valer a funcionalidade e a demonstrar a importância do rei sagrado. Quando ele não consegue garantir essa ordem, o seu estatuto fica ameaçado e, portanto, urge a sua substituição por quem assegure o não regresso o caos. Talvez seja essa a situação com que Telémaco depara na Odisseia. Aliás, neste mesmo poema, pela boca de Ulisses, mostra-se a importância de um rei para a manutenção da boa ordem do mundo:

... à semelhança do rei irrepreensível que, temente aos deuses, reina sobre muitos homens valentes e promulga decisões que são justas: a terra escura dá trigo e cevada, as árvores ficam carregadas de fruta e os rebanhos estão sempre a parir crias; o mar proporciona muitos peixes em consequência do bom governo. Sob a sua alçada o povo prospera.73

Ecos desta concepção chegarão, no século V a. C., à tragédia de Sófocles, que, em contrapartida mas de acordo com esta mesma concepção, retrata Édipo, o anatematizado rei de Tebas, como a causa das desgraças que assolam a cidade74. São ainda reis como Agamémnon e Ulisses, Teseu e Héracles, que derrotam os representantes do caos, como as Amazonas e os Centauros, ou como Zeus, quando neutraliza os Titãs. O rei define-se ainda pelo protocolo que regulamenta a vida em comunidade. Já referimos o ceptro e a importância que o objecto tem enquanto insígnia representativa do poder e da dignidade régia, que faz com que o monarca, ou outro qualquer orador perante uma audiência, dele não prescinda, de modo a identificar-se com a autoridade. Outra forma de aplicar o protocolo é através da hospitalidade. Sabemos já a importância que esta tinha no Mundo Antigo, em geral, e no grego em particular. É pois também a hospitalidade que contribui para a definição do rei homérico. É um facto que a casa do senhor, o palácio que materializa o cosmos ordenado, não o acompanha na sua deslocação à guerra. Mas é a tenda que nesse contexto substitui aquela estrutura e onde se permite exibir a hospitalidade régia, que consolida a posição de soberania. O rei oferece banquetes e providencia animais para os sacrifícios que se impõem nos mais variados contextos75. Na verdade, tudo faz parte da representação do poder, essencial ao seu funcionamento eficaz. Estamos no gérmen de uma retórica do mesmo, do seu exercício e da sua configuração, nos pródromos de uma noção de Estado que tem necessidade de se manifestar e representar. Esta é outra das formas de afirmação da sua existência e vitalidade. Também por isso, o poeta não desperdiça a oportunidade de revelar como os reis das suas epopeias se apresentam perante a comunidade de aliados e de inimigos. O caso de Agamémnon não constitui excepção, referindo-se pormenores como «a bela túnica macia de recente urdidura», a capa, as «belas sandálias», o elmo de dois chifres, a «fúlvida pele de um leão» que lhe chegava aos pés, o bronze reluzente, as belas cnémides, a couraça, o escudo «ricamente trabalhado», a espada cravejada de prata e de adereços dourados e até as lanças ou, inclusivamente, descrevendo-se a sua compleição física76. Tudo o que sirva para a glorificação é útil para dignificar a imagem do rei. O que é, pois, um rei nos tempos homéricos? É acima de tudo alguém com capacidades superiores, com capacidades materiais e qualidades morais que valorizam e confirmam a legitimidade do exercício do poder77, como as que são mesmo apontadas a Agamémnon:

73

50

Od. 19.109-114. F. Oakley, New Perspectives on the Past Kingship, 2006, 41.

74 75

Soph. OR 23-30.

Il. 2.65, 362, 553; 9.69-70, 72-73, 89-90; 16.129, 155, 171.

76

Il. 2.42-45; 3.193-194; 7.176; 10.23; 11.16-44.

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Conclusões já desenvolvidas por M. I. Finley, O Mundo de Ulisses, Lisboa, 1982. Neste sentido, Agamémnon será o senhor de uma casa, de um oikos, menos bem conhecido nas fontes analisadas, a menos que transfiramos os desígnios de Ulisses em Ítaca para a figura de Agamémnon.

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Atrida, na verdade nós sabemos como superas todos os outros e como na capacidade e no arremesso dos dardos és o melhor.78

O rei é o senhor de uma casa, como é um senhor da guerra, nos recuados tempos das origens da Grécia. É também uma memória registada na epopeia, mas não esquecida, como prova o pensamento político de Platão e Aristóteles ou a tragédia de Ésquilo que, já em tempos de democracia, tinha ainda Agamémnon como um modelo da antiga realeza, como o paradigma de uma proposta política que se esvaíra mas que em breve viria a recuperada por todo o mundo helenístico. Em Ésquilo percebe-se ainda, aliás, uma deferência por aquela instituição antiga, do tempo dos antepassados que comungavam com os deuses79. Seja como for, enquanto modelo político, e pelo menos para alguns dos Gregos do tempo de Homero, a proposta tinha pertinência. De outro modo, Telémaco não diria:

Não há mal nenhum em ser rei, pois logo se nos enriquece a casa e dos outros recebemos mais honra e consideração80.

Estas palavras, porém, encontram-se na Odisseia.

78 79 80

Il. 23.890-891. E.g. A. Ag. 40-45, 530, 784-787. Od. 1.392-393.

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Comentário Crítico ao Filme

Apocalypse Now Redux

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Hélio Alves

1

Por Hélio Alves, investigador do Instituto PAEHI – Associação para Estudos Históricos Interdisciplinares.

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Apesar da formidável capacidade dos 500 000 soldados americanos, a guerrilha vietcong e a guerrilha comunista sul-vietnamita mantinham a iniciativa e designavam os locais onde o combate se tinha de travar. No terreno, o exército americano esteve sempre na defensiva. Os americanos apenas eram imbatíveis na guerra vertical: tinham o melhor avião de combate do mundo, o F111, os foguetes antibalísticos “Spartan” e “Sprint”; o míssil balístico ”Poseidon”, entre outros equipamentos. Também tinham carros de combate MBT-70; navios com engenhos teleguiados e porta-aviões. No filme em análise vêem-se os famosos helicópteros hueys e os bombardeiros B-52.

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A guerra é um dos grandes agentes de mudança da História: decorre no tempo curto, mas tem o incrível poder de mudar as estruturas consolidadas ao longo de anos. No final das guerras há sempre um exército que vence e outro que é derrotado; um tratado de paz que é assinado; uma nova ordem internacional que é criada e um novo mapa geopolítico que é traçado. Mas, além das mudanças geopolíticas, a guerra tem a capacidade de transformar a maneira de ser das pessoas. Quem viveu uma guerra não mais a esquece. Quem nunca nela esteve apenas pode imaginar como será. Para os actuais jovens portugueses, a guerra é um cenário distante com o qual apenas contactam através de notícias, livros ou filmes. Herdámos uma paz que foi difícil de conquistar pelos nossos pais (ou avós), obrigados a combater no Ultramar. Por essa mesma altura, também os norte-americanos estavam em guerra com o Vietname. Era a década de 60 e o mundo andava em desordem, dividido com a “guerra fria”. A tensão internacional polarizava-se fundamentalmente em dois sistemas políticoeconómicos antagónicos: o socialismo e o capitalismo. E, nessa tensão, a guerra do Vietname foi um episódio central. Este é um assunto controverso e, ainda hoje, incómodo para os Estado Unidos. Estiveram 14 anos em guerra com o Vietname (1961-1975), foram derrotados por um exército “maltrapilho”2, perderam prestígio e influência no mundo. Foi necessário que passassem várias décadas e que transcorresse um período de maturação para que os norte-americanos e os europeus dessem verdadeiramente conta das apocalípticas proporções do que acontecera. A guerra e a rodagem do filme Apocalypse Now são quase sincrónicos: apenas dois anos os separam. O filme começou a ser rodado em 1977, nas Filipinas (não no Vietname, o que é compreensível). O fim da guerra era muito recente e a experiência ainda muito viva. Mas Coppola não hesitou em tocar na ferida, fazendo um filme sobre a primeira derrota militar dos EUA. Quando vemos Apocalypse Now, questionamo-nos se, de facto, as coisas tinham acontecido assim, se não houve algum exagero no retrato psicológico das personagens e do próprio enredo. E qual a intenção do realizador com o filme – fazer um retrato exacto e imparcial da guerra ou dar uma visão mais ampla e caricaturada da sociedade norteamericana? Estas são algumas das questões que nortearam esta análise ao filme. Com efeito, procurou-se cruzar o guião com testemunhos escritos de soldados e de jornalistas que estiveram na guerra do Vietname, de modo a testar a fiabilidade do filme. O livro de referência ao filme de Francis Ford Coppola é o Coração das Trevas, do escri-

tor Joseph Conrad. O argumento foi escrito em parceria por John Millius e o próprio Coppola. Entre o projecto inicial e a obra acabada, decorreu uma documentada saga de factos e lendas3 que asseguraram ao realizador a sua cota de inferno privado e transformaram a experiência da rodagem do filme num verdadeiro apocalipse dentro de outro: foram 14 meses de filmagens nas Filipinas; houve tufões e chuvas torrenciais, além de inundações e destruição de cenário por várias vezes; as filmagens chegaram a ser interrompidas para que helicópteros filipinos pudessem ir combater um exército guerrilheiro; toda a equipa sofreu de uma epidemia de disenteria e Martin Sheen, o protagonista, sofreu de um ataque de coração. Coppola perdeu cerca de 30 quilos e Marlon Brando, pelo contrário, estava tão obeso que era necessário filma-lo de longe, na sombra, ou em breves planos de rosto. «Estávamos na selva, tínhamos demasiado dinheiro (32 milhões de dólares), demasiados equipamentos, e enlouquecemos. Eu próprio me tornei uma espécie de coronel Kurtz» - diria Coppola mais tarde. Aliás, as filmagens parecem ter sido de tal ordem traumatizantes que chegou a indigitar John Millius, o argumentista, ou George Lucas, como hipótese para terminar o filme caso ele adoecesse. «Apocalypse Now, repito-o, foi quase o meu apocalipse pessoal. Nele deixei um pouco da minha saúde, muita da minha inspiração. Tive, por momentos, a impressão de estar num impasse». O filme estreou em Agosto de 1979. E nessa altura foi considerado pretensioso, estranho e aventureiro, uma vez que se afastava dos demais filmes de guerra de clássicos. Só passados 20 anos é que o público parece ter superado a novidade e o impacto inicial. Foi aí que Coppola pensou fazer uma nova versão do filme, iniciando-se a montagem em Maio de 2000. A reedição foi feita a partir do original com mais de 5 horas e mais de um milhão de metros de filmagens diárias. Desta vez Murch fez a montagem digitalmente, criando o que ele chama de «uma maravilhosa justaposição do uso da mais nova tecnologia em um filme feito na era do surgimento do vídeo moderno». A nova versão do filme tem uma maior continuidade no nível emocional e em termos de desenvolvimento das personagens. Corresponde melhor ao que Coppola escreveu e pretendeu e não pôde fazer há 22 anos. Apocaypse Now Redux funciona como uma revisitação de um grande trauma da história dos Estados Unidos da América. Toda uma geração profundamente marcada pelo HORROR de uma guerra que foi perdendo toda a sua lógica e se transformou num cárcere de muitos jovens mais interessados na liberdade, no surf, nos Beach Boys, nos Doors ou

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Eleanor Coppola, Francis F. Coppola; O Apocalipse de um Cineasta.

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O vietcong, na gíria dos militares americanos.

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nos Rolling Stones. Estavamos na década de 60 e o mundo andava em desordem, dividido com a “guerra fria”. Era uma década revolucionária, pejada de angústia, confusão, frustração, caos… O rock’ n-roll era o ritmo da vida quotidiana dos jovens, que o levavam para o Vietname. Os hippies de Haight-Asbury, em São Francisco, assim como os de Greenwich Village, em Nova Iorque, andavam em busca da “verdade”, da “paz”, do “amor”, da “justiça” e tanto mais. As mulheres começaram a ter mais autonomia, direitos iguais aos dos homens. As drogas andavam cada vez mais no sangue dos jovens naquele mundo que se tornava mais e mais psychodelic. Os Black Panthers buscavam a justiça e a igualdade, mesmo que fosse pela força das armas. E Malcom X tombou na sua luta pelos direitos dos afro-americanos na terra da liberdade. E os “riots” gigantes de 1965 em Watts, o bairro negro de Los Angeles, ou em Chicago durante a Democratic National Convention, e também em Newark ou em Cheveland? Recorde-se que o pior destes motins foi de Watts, onde morreram 45 pessoas e o valor das propriedades destruídas ultrapassou os 45 milhões de dólares. As bandas de rock actuavam tanto em Woodstock, Nova Iorque, como no campo da pequena Southeaster Massachussets University, Dartmouth. Bob Dylan, Chuck Berry, Neil Diomond, Roy Orbisson, Judy Collins, Barry McGuire, Four Tops, Johnny River, Carlos Santana, Beatles, Doors, Rolling Stones, Animals, Sonny&Cher, Beach Boys, Jimy Hendrix, Donovan, Four Seasons, James Brown, e tantos outros davam o tom do país. “I can’t get no satisfaction”, “Green, green grass of home”, “I wanna go home”, “Get off my cloud”, “We’ve got to get out of this place” e tantas canções mais. A grande obra do teatro musical Jesus Christ Superstar tentou abrir os olhos à Igreja, que andava a perder cordeiros aos milhares. Foi também durante esta época que foram assassinados John F. Kennedy, o seu irmão Robert e Martin Luther King, o grande líder afro-americano do movimento dos direitos civis. E a Guarda Nacional de Ohio abriu fogo contra um grupo de estudantes no campo de Kent State University enquanto estes expressavam o seu protesto contra a guerra do Vietname, matando alguns e ferindo outros. O Tio Sam, entretanto, não se fartava de chamar jovens para o serviço militar obrigatório, muitos dos quais manifestavam o seu desacordo, queimando publicamente os seus cartões de recrutamento (“Greetings”). Outros eram objectores de consciência e faziam todo o possível para não pegar em armas. Entre estes, Muhammed Ali, o campeão mundial de pugilismo. Os que andavam a estudar pelas universidades safavam-se e bem sabiam o que estavam a fazer. E tantos que fugiram para o Canadá e outros países para se livrarem da guerra. Quanto aos pobres, os não-universitários, os imigrantes e afroamericanos foram recrutados da terra do Tio Sam para a de Ho Chi Minh, o Tio Ho, como lhe chamavam. Apocalypse Now pretende ser um relato vivo – bem vivo - da experiência dos soldados que combateram no Vietname. Muitos regressaram fisicamente feridos. Todos regressaram emocionalmente magoados. Outros regressaram dentro de um caixão. Os Veteran Hospitals por todos os EUA ainda estão cheios de ex-combatentes que continuam a lutar contra os pesadelos, os horrores, as drogas, a monção de Verão, o “Charlie”4, os escorpiões, cobras, macacos, tigres, cheiros de pólvora, calor ardente, humidade sufocante, os bombardeamentos que faziam dia da noite (e que no filme quase parecem fogo de artifício), as morteiradas diárias e, ainda por cima, o venenoso Agente Laranja. E as armadilhas? Estavam no território do Tio Ho, não do Tio Sam. A floresta era deles. E a guerra psicológica, a propagação radiofónica vinda do Norte, com discos de rock americano a procurar influencia-los para depor as armas? Os soldados sofriam uma grande pressão. O filme consegue captar estas diversas vertentes da guerra nos papéis atribuídos a per-

sonagens “tipo”: temos a personagem de Martin Sheen, o capitão Willard, a quem é atribuída uma missão (subir o rio Nung num barco de patrulha da marinha, seguir a pista do coronel Kurtz em Nu Mung Ba, e reunir todas as informações durante o percurso. Quando encontrar o coronel, deverá infiltrar-se na equipa dele e matá-lo); a tripulação do barco de patrulha (onde podemos encontrar tudo menos verdadeiros soldados, em que a droga, a música, o surf, os sonhos pessoais de cada um são o que os domina); Robert Duvall atinge-nos violentamente com a sua actuação, completamente imbuído no seu papel, onde a frustração homicida convive com o código militar rígido (não se pode negar o impacto que o tenente-coronel Kilgore causa ao dizer coisas como «Amo o cheiro do napalm pelas manhãs»), e o coronel Kurtz (personagem de Marlon Brando), um dos indivíduos mais condecorados das tropas americanas, mas que aparentemente enlouqueceu. O objectivo de Apocalypse Now é fazer com que toda uma nação se depare com a loucura: não a de Kurtz, mas a da própria guerra, a da matança sem objectivo aparente, a da obliteração de toda uma juventude, que não tinha sequer idade para estar naquele cenário. Na vida real, com certeza, estiveram no Vietname alguns capitães e soldados moderados como Willard; e em maior número estiveram jovens corajosos/inseguros como os que acompanhavam Willard no barco. Todos eles meio loucos. Os totalmente loucos eram o tenente-coronel Kilgore (“Kill” em “gore” operático). O coronel Kurtz, e também esses tiveram os seus correspondentes na vida real. Só mesmo um oficial com a torpeza de Kilgore podia dizer que pretendia «fazer recuar o Norte à Idade da Pedra»5. Quanto à personagem de Kurtz, talvez ela seja mais simbólica do que real: Kurtz é o bode expiatório para os actos desumanos praticados na guerra. O vértice da hierarquia militar precisa de demonstrar que existe uma diferença entre provocar baixas no inimigo a mando de ordens superiores e matar à revelia do exército, por autoiniciativa. Portanto, segundo a propaganda oficial, Kilgore difere de Kurtz porque actua dentro dos parâmetros militares, enquanto Kurtz actua à revelia. Contudo, o filme vem mostrar6 que tanto um como o outro é assassino. Simplesmente, em contexto de guerra, o valor da vida é minimizado. Pode-se matar dentro da guerra, mas não fora dela. Além das personagens masculinas, temos também algumas femininas que, no filme, desempenham o papel de garotas da Playboy, contratadas pelas Forças Armadas para actuarem num espetáculo público e, numa outra sequência, são “contratadas” por Willard para satisfazerem as fantasias dos companheiros de viagem. No fundo, as garotas são personagens correspondentes às dos rapazes do barco (excepto que estão sendo exploradas sexualmente) porque, tanto elas como eles, estão a ser usadas por uma sociedade que se diz moralizadora mas não o é. Depois de vermos estas cenas, somos tentados a pensar que a maioria das mulheres que estavam na guerra serviram apenas para sexo. Mas não é verdade. Cerca de 85% delas eram enfermeiras que tratavam dos feridos, salvando-lhes a vida. No grande muro do Vietnam Veterans Memorial7, em Washington, entre os nomes dos mais de 58 000 que morreram, vêem-se os de 8 mulheres. E ainda há os muitos soldados que nunca regressaram: os MIA, “missing in action”, desaparecidos em combate. E os prisioneiros de guerra, os POW, que sofreram terríveis torturas em várias prisões, a mais famosa de todas conhecida como “Hanoi Hilton”. Na guerra morreram soldados de várias nacionalidades, não só pelo fogo inimigo como pelo ironicamente chamado “friendly fire”, que deve ter causado a morte a uns 12 000 americanos, cerca de um quinto dos caídos em combate. Em Apocalypse Now, das cinco personagens que iam no barco, morreram três em emboscadas – curiosamente dois afro-americanos e um imigrante francês8. No filme também vemos baixas no lado inimigo, provocadas pelos bombardeamentos e pelas metralhadoras do exército americano. Estas mortes não provocam grande consternação

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Afirmação do general Curtis LeMay, Chefe do Estado-Maior da Força Aérea dos EUA.

6

Através do pensamento de Martin Sheen: «Condenar alguém (o Kurtz) por assassínio em teatro de guerra!».

7

Muro negro de granito liso, em forma de um grande ‘V’. Nele estão gravados nomes de soldados norteamericanos, portugueses e luso descendentes, vietnamitas, australianos, coreanos, tailandeses e neozelandeses que morreram em combate.

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Várias estatísticas apontam para o facto de o grosso do exército americano ser composto por afro-americanos e por imigrantes: estes eram “carne para canhão”. Boa percentagem de WASPs não foram à guerra e os que foram pertenciam ao oficialato.

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O total de vítimas do Vietname, entre os anos de 1961 até 1975, é impreciso, oscilando entre os 2 milhões e meio e os três milhões de vietnamitas mortos, entre militares e civis.

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no espectador (pelo menos para o público europeu ou norte-americano) pois são colectivas – uma bomba é capaz de fazer desaparecer de uma só vez centenas de pessoas. E isso impede-nos de “chorar” a morte de cada uma, pelo que apenas lamentamos colectivamente essas baixas. Pelo contrário, quando vemos um dos membros da tripulação do barco ser trespassado por várias setas de nativos, escondidos na floresta, sentimo-nos tristes e revoltados. Aí, a morte de uma só pessoa ganha uma dimensão trágica que se adensa à medida que ouvimos a voz bondosa da mãe a falar do regresso do filho, do futuro deste e do presente que lhe vão oferecer. O filme explora muito bem esse paradoxo: uma morte gera muita tristeza; muitas mortes, indiferença. Esta atitude perante a morte está implicitamente relacionada com o tipo de armamento que é utilizado na guerra. Se o armamento é altamente tecnológico, basta pressionar num botão ou num gatilho para atingir o inimigo, evitando o confronto cara a cara. Assim, nunca se sabe ao certo se se matou alguém, quantos se matou e muito menos quem se matou (vietcongs? mulheres? crianças?). É um alívio para a consciência do soldado. Um oficial da aviação dos EUA declarou (notícia da agência Associated Press, em 18 de Julho de 1965): «Quando estamos apertados, disparamos sobre toda a área. Matamos mais mulheres e crianças do que vietcongs, mas as forças governamentais não chegam e esta é a única solução». Ao vermos Apocalypse Now, todos somos levados a meditar sobre a Moral, a Ética e a Loucura. Logo nas primeiras cenas ouvimos a voz de Kurtz a opor-se contra falsos valores e a declarar-se contra qualquer mentira inventada pelos americanos para viverem com a consciência tranquila: «E chamam-me assassino. Como se diz, quando os assassinos acusam o assassino? Mentimos. Mentimos e temos de ser piedosos para os mentirosos. Esses poderosos… Odeio-os. Odeio-os». Bertrand Russel refere-se, de modo extremamente preciso, no seu livro Crimes de Guerra no Vietname, à utilização de napalm, à guerra bacteriológica, às diversas formas de tortura de que foram vítimas os combatentes do vietcong. Números fornecido pelo New York Times de 3 de Outubro de 1965, davam como mortos até essa data 170 000 civis9, aos quais há a acrescentar 800 000 mutilados, 5000 queimados vivos, degolados ou esventrados, 100 000 mortos ou estropiados por acção de produtos tóxicos, 400 000 presos e submetidos à tortura. Imensas crianças ficaram órfãs e muitas eram “amerasians”, “crianças do pó”, como lhes chamavam os comunistas da terra, que sofreram discriminação sem terem culpa do seu ser, da sua existência. E quanto dano não foi feito ao próprio terreno? Ao ambiente? No filme observamos a beleza da luxuriante selva a contrastar com as erupções de napalm laranja, ou os tentáculos brancos das bombas de fósforo. Cada bomba largada por um B-52 americano criava uma cratera que, quando chovia, se transformava num lago de 9 metros de profundidade e outros tantos de diâmetro. E lagos destes criavam-se cada dia, especialmente pelo Norte do país. Ao longo do filme, viagem rio Nung acima, vamos testemunhando a destruição provocada pela guerra. De sequência em sequência, apercebemo-nos de que esta subida pelo rio é uma viagem através da destruição, da injustiça, da loucura, do absurdo e do ódio. Se recordarmos as palavras do general dos Serviços Secretos, «Todos os homens têm um ponto de ruptura, incluindo nós os dois. O Walt Kurtz atingiu o dele e enlouqueceu.», compreendemos que a viagem em Apocalypse Now tem como destino este ponto de ruptura, ou seja, o encontro com o pior de nós mesmos. Assim, numa análise mais atenta, podemos descrever Apocalypse Now como um filme em que a noção de encontro adquire uma importância simbólica equivalente à noção de viagem. O primeiro encontro (impessoal) entre Willard e Kurtz acontece durante o almoço em Nha Trang. Aqui, o capitão observa a fotografia do coronel, apercebe-se das enormes qualidades deste e ouve a sua voz através de gravações. O segundo encontro com Kurtz

estabelece-se no momento em que Willard estuda o seu dossier, ao longo da viagem de barco. De documento em documento e de fotografia em fotografia, Willard ingressa num processo que pode ser descrito em três fases: a fase do conhecimento, a fase da identificação progressiva e a fase da assimilação entre Willard e Kurtz. A primeira fase desenrola-se à medida que o capitão reúne conhecimentos sobre Kurtz e descobre pormenores da sua vida. Como é natural, Willard cria expectativas sobre o homem que tem de matar e começa a questionar a sua missão. Todos os episódios são pretexto para Willard reflectir sobre o coronel («Se era assim que o Kilgore combatia, comecei a interrogar-me sobre o que teriam contra Kurtz»). Daqui passamos para a fase em que Willard se identifica com o coronel, «quanto mais lia e começava a compreender, mais o admirava», e em que imagina o encontro entre ambos: «Parte de mim tinha medo do que iria encontrar e do que iria fazer quando lá chegasse. Conhecia os riscos ou imaginava que sim, mas o que mais temia e se sobrepunha ao medo, era o desejo de enfrentá-lo». A terceira fase, intimamente relacionada com as outras duas, consiste num processo de assimilação entre Willard e Kurtz. Ao longo do filme, vamos tomando consciência de que o facto de Willard ter assimilado todo o tipo informações sobre Kurtz fez com que começasse a pensar e a agir como o coronel. No episódio em que a tripulação encontra um barco e decide revistá-lo, Willard actua da mesma forma que Kurtz agiria: mata a mulher ferida com um tiro e manda seguir viagem. Aliás, os seus pensamentos são bastante elucidativos e parecem saídos da mente de Kurtz: «Era uma mentira e, quanto mais mentiras via, mais as odiava. Aqueles rapazes não voltariam a olhar para mim da mesma forma, mas senti que sabia uma ou duas coisa sobre Kurtz que não vinha no dossier». No primeiro encontro pessoal entre ambos, vemos um Willard ajoelhado relativamente perto de um Kurtz que se encontra deitado. A luz, ou a falta dela, não permite que vejamos a cara do coronel. A pouco e pouco, depois de ouvirmos a voz de Kurtz e de nos apercebermos que este se encontra doente, começamos a visualizar a cara que conhecíamos das fotografias. Kurtz mostra-se torturado pela guerra. No diálogo que se segue, Kurtz refere «Esperava alguém como tu» e pergunta «Que esperavas?», mas Willard opta pelo silêncio face à pergunta de Kurtz. Uma das cenas primordiais de Apocalypse Now ocorre quando Kurtz lê a primeira parte do poema «The Hollow Men», escrito por T. S. Eliot em 1925. O poema, redigido na primeira pessoa do plural, é também uma forma de Kurtz se encontrar com Willard e de lhe mostrar que ambos enfrentam problemas análogos. (We are the hollow men // We are the stuffed men // Leaning together…). No encontro final, deparamo-nos com o ponto auge da assimilação exposta anteriormente. Depois de Kurtz morrer, Willard toma o seu lugar. Willard é Kurtz e toda a população o reconhece ao curvar-se perante ele. Com a arma do crime numa mão e com o livro de Kurtz na outra, os espectadores lembram-se novamente das palavras do general dos Serviços Secretos: «Sabe, Willard, nesta guerra, as coisas tornam-se confusas na selva. O poder, as ideias, a moralidade antiga e as necessidades militares práticas. Mas, na selva, com estes selvagens, deve ser uma tentação ser Deus». No entanto, Willard, ao pegar na mão de Lance e abandonar aquele lugar, mostra-se superior a estas palavras e escapa à tentação de ser adorado como um deus por todos aqueles que antes tinham adorado Kurtz. O filme termina sem revelar se os dois regressam ou não às suas casas. «O problema», segundo Willard, «é que eu estive lá e sei que esse lugar já não existe». Ao regressarem à América, os veteranos tiveram de sofrer outra guerra: a discriminação. Cuspiam-lhes na cara, insistiam em que eram todos assassinos de bebés, todos animais, drogados, loucos, perigosos e tanto mais. E quanto às mulheres que lá serviam? Dá para calcular… Não re-

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10

Ho Chi Min disse: «Não vou ganhar a guerra na selva. Vou ganhar a guerra nos Estados Unidos». E assim foi. In Portugueses na Guerra do Vietname, p. 70

11

Jorge Santos e Urbano Tavares Rodrigues; A Guerra do Vietname; p. 85

12

A família francesa insistia manter-se lá porque o Vietname tinha sido colónia francesa desde 1867 até 1954.

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gressaram a um país acolhedor. Não foi nada como o regresso dos soldados da II Guerra Mundial, na década de 40 ou o dos da Guerra do Golfo, na de 90. A discriminação era tal que o próprio Estado de Massachusetts foi forçado a publicar uma lei para a protecção dos direitos dos ex-combatentes, em vigor até hoje. Esta situação é sintomática da guerra de consciência americana10 que se vivia na altura: dum lado a tradição democrática do povo americano, o seu alto sentido de direito e liberdade, a sua consciência aguda de humanidade e justiça; do outro lado o imperialismo económico, o capitalismo das empresas gigantes, servido pelo militarismo pretoriano e dominando o poder político. «A América luta pela liberdade do Vietname». Nisso acreditavam talvez os seus soldados. Antes de os seus olhos verem, de as suas mãos sentirem. Mas Eisenhower sabia. Sabiam os generais. Sabiam os políticos. «Admitamos que perdemos a Indochina. Se isso acontecer, o estanho e o tungsténio, a que tanto apreço damos, deixará de vir. Andamos à procura do processo mais barato de impedir que aconteça algo de terrível – a perda da nossa capacidade de obter o que queremos das riquezas existentes no território indochinês e do sudeste asiático»11. Assim falou Eisenhower, oito anos presidente dos EUA. Ei-lo tocando a verdade. Não se combatia pela liberdade, nem pelo anticomunismo. Lutava-se pelas matérias-primas. Era uma guerra imperialista e nada mais. A problemática sobre as causas da guerra é aflorada numa das novas cenas incluídas em Apocalypse Now Redux: o jantar com a família francesa12. À mesa, o patriarca da família, Hubert de Marais, pergunta retoricamente: «Por que permanecemos aqui? Porque faz a nossa família ficar unida. Lutamos para manter o que é nosso. Vocês americanos lutam por nada». Ao filmar esta sequência, Coppola recorde-se de ter pedido aos actores para improvisarem os diálogos, sugerindo que usassem argumentos políticos verdadeiros que tivessem ouvido das suas próprias famílias. O resultado foi um jantar com conversas e discussões muito verdadeiras. Na nova versão do filme também foram introduzidas mais cenas de camaradagem», diz Coppola. «Willard brinca com tripulação. Eles divertem-se com a conspiração do roubo da prancha de surf de Kilgore. Todos começam bastante normais e essa ingenuidade ajuda a ressaltar a tragédia que enfrentam durante a viagem». Nestes momentos de descontração, os soldados podiam descansar, ouvir música, fazer surf, beber copos… Também havia o R&R (“Rest and Recreation”), os períodos de descanso fora do Vietname. Iam para a Austrália, Hong Kong, Tailândia, Filipinas, Taiwan, Malásia partilhar a solidão com uma mulher do acaso. Para outros, o Havai para uma reunião com a esposa ou namorada. Depois, mais difícil era regressar à terra de Ho Chi Minh. A guerra é a guerra? Muitos dizem que sim. Quem lá esteve diz que é um inferno. Morreram inúmeros, tanto militares como civis. Os americanos dizem que “times cures”. Para os ex-combatentes do Vietname o tempo ajuda apenas a tenuar a dor, mas é impossível esquecer. A guerra transformou para sempre a sua maneira de ser. Deixou-lhes na boca um gosto infinito, aquele sentimento que rói sempre, aquela lacuna de “unfinish business”. Na alma persiste sempre um involuntário olhar para trás. Este era o sentimento de Willard quando estava no hotel em Saigão, antes de aceitar a missão. «Saigon… Shit… I’, still in Saigon…». Era preferível voltar para a guerra do que ficar em Saigão, já que a única coisa que tinha como adquirida era um lar que já não lhe pertencia na América. Não se pode considerar Apocalypse Now Redux mais um filme de guerra, pois nem antes nem depois se fez algo parecido, que mergulhasse na dura verdade do que se passou, que mostrasse como eram os soldados na guerra do Vietname («uma cambada de miúdos à espera de apanhar sol e umas ondas»), o que se passava por lá, os abusos às populações locais, os desequilíbrios emocionais e o uso de drogas para “fugir à realidade”. Com uma banda sonora coeva bem sincronizada e uma boa realização, será considerado sempre um clássico do cinema. Nomeado para 4 Oscars – Melhor Filme, Realizador, Actor Secundário (Robert Duvall), Fotografia e Som. Também foi distinguido com três Golden Globe Awards para Melhor Filme, Actor Secundário (Robert Duvall) e Banda Sonora, e venceu igualmente a Palma

de Ouro no Festival de Cannnes. O filme é muito fidedigno do que realmente terá acontecido no Vietname, sendo possível cruzar o guião com testemunhos vivos de soldados que participaram na guerra. No entanto, fiabilidade à parte, o filme não deixa de ser um filme e será sempre ficção. Não o devemos encarar como reportagem ou documentário. O próprio local onde o filme foi rodado não é o Vietname nem o Camboja, mas as Filipinas. Embora a paisagem e o clima sejam idênticos, o espaço é diferente e o rio é outro. Os próprios filipinos puderam fazer o papel de vietnamitas porque, aos olhos dos americanos e europeus, são todos iguais, «são todos uns raios de chinocas».

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Outras Histórias com...

João Abel da Fonseca Por Francisco Isaac

João Abel da Fonseca (n. 1953) é um dos investigadores com mais interesse a destacar nesta nossa primeira edição. Membro da Academia de Marinha como Secretário da Classe de História, da Sociedade de Geografia de Lisboa, como Vice-Presidente da Secção de História ou Presidente do Conselho Consultivo do Instituto Centro Europa Atlântico, não faltando posições em academias e centros de investigação a este homem. Trabalhou durante trinta e seis anos na Caixa Geral de Depósitos como Gestor de Conta na Avenida da República, sendo que a parir de 1978 foi contratado para a RTP como locutor de programas. Tem mais de cem comunicações feitas desde o Congresso Ibero-Americano em 92’ até ao Congresso Internacional de D. Dinis Innovatio em 2012. Mas não são os ofícios que definem o homem em estudo. Vai para além disso. É um homem das Letras, um Humanista, preocupa-se com os temas da actualidade, auxilia os jovens nas suas novas investigações e ideias. Esta entrevista vai ser diferente do que estão habituados já que a hipótese de diálogo com João Abel da Fonseca é uma missão quase impossível – não por culpa dele mas minha e vão perceber porquê. Formado em Engenharia Electrotécnica pelo Instituto Superior Técnico, demonstrou uma paixão pela química, física e matemática. Entre as várias histórias que me vai relatando da sua vida a que destaco logo de início é a importância da sua família na sua formação como cidadão e humanista. O avô, pelas suas palavras, “contava histórias da família”, criando assim uma fome por conhecer, saber mais sobre a História. O pai que faleceu cedo (quando tinha somente seis anos), preocupou-se desde início em incentivar o filho a aprender novas línguas, colocando-o numa escola em França, onde aprendeu francês (o seu primeiro poema declamado foi o caracol Limmasol). O tio Mário Henrique Leiria, um pintor surrealista, era um tradutor de excelência. Outro tio criou outra “fome”: a aprendizagem pelo latim. A relação entre os tios, o avô e João Abel da Fonseca criou uma curiosidade por aprender e saber mais sobre os outros temas – diz-me que quanto tinha seis anos de idade todos os outros primos tinham de quinze anos para cima, o que impossibilitava uma relação entre primos, mas, por outro lado, foi “adoptado” por todos os tios, era uma relação entre mestre, oficiais e aprendiz, exactamente como na Grécia Antiga se praticava. Depois de voltar de França entrou para o Colégio Inglês Elizabeth Shool, onde esteve até aos dez anos, aprendendo aqui inglês. Entre o Colégio Inglês e o Colégio Militar, esteve um ano no Instituto Camões, onde conheceu um dos primeiros “Mestres” da sua vida, o professor de francês Mário Dionísio. Segue-se a instrução no Colégio Militar onde viveu

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um dos períodos mais marcantes da sua vida. Não era um aluno de notas altas na prática física, mas no que toca às ciências e letras era um aluno de excelência, recebendo mesmo a medalha de ouro das mãos do Presidente da República de Portugal da época, Américo Thomaz, tendo sido nas suas palavras “um momento que marca, era um sentimento de dever cumprido”. Parámos a máquina do tempo por uns momentos para falar num dos grandes historiadores de História Económica em Portugal, o Professor Jorge Borges de Macedo. Agarrando nas palavras que estão no livro de Memórias ao Professor, falamos sobre um tema interessante relacionado com o Património e Memória. Perguntou-me se eu sabia o que representavam as estátuas por cima dos quatro heróis no Arco do Triunfo na Rua Augusta, à qual não soube responder com brilhantismo. Explica-me que se um historiador não tem conhecimento do simbolismo por detrás das estátuas, imagens, etc., não está a fazer o seu trabalho. Aliás, a crítica estende-se a todos, porque o Património é de todos e deve ser lembrado por todos. Deescrevendo-me as estátuas no Arco do Triunfo, fala-me da Glória que coloca na cabeça do Génio e do Valor a coroa de louros. Para atingir essa Glória é preciso que seja reconhecido à pessoa o génio e o valor. Discutimos o sentido positivo e negativo da Glória e da Honra. Temas muito interessantes e altamente voláteis para um debate de largas horas. Mas interrompemos a conversa sobre as glórias e honras dos homens. Relembra-me agora importantes palavras de Jorge Borges de Macedo. A cultura e a arte vivem no mesmo plano mas convivem com a realidade de diferentes formas “A cultura precisa da realidade mesmo que seja para não a seguir (…) A arte precisa do real para ir para além dela”, sendo que tanto uma como a outra vivem da obra e essa “ obra tem de valer a pena”. Denoto um grande gosto pelo pensamento de Jorge Borges de Macedo, que para João Abel da Fonseca terá sido uma das únicas três personalidades a preocupar-se com a questão do que é a Europa (as outras duas foram o Professor Eduardo Lourenço no que toca à Filosofia e o Professor Adriano Moreira, no que diz respeito à Ciência Política). Persiste no debate das qualidades do historiador, indicando um assunto fulcral no que toca ao papel desse mesmo. Segundo o Diálogo do Engano de Hípias Menor, existe o problema daqueles que enganam sabendo da verdade do facto. Esse é o problema com os historiadores, esse poder torna-se complicado para quem relata, comenta e dá a sua perspectiva de um facto ou momento histórico. Para seguirmos o estudos nas Ciências Sociais e Humanas temos de ter todas as ferramentas, lembrar que o humanista é aquele que estuda o homem – o sujeito e o objecto são o mesmo. No Colégio Militar manteve o contacto com o latim, requisitando nas horas vagas um

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professor para esse efeito, o Professor Miguel Pinto Meneses, “mestre” que o acompanhou até tarde. Também no Colégio Militar teve o prazer de conhecer um dos autores da Selecta Literária, o Professor Júlio Martins, docente na disciplina de Química. Terminado o Colégio Militar decide enveredar pela área das Engenharias, seguindo o curso Engenharia Electrotécnica, desenvolvendo com mais profundidade os conhecimentos de matemática, química e física, isto em 1970. Houve três professores que o marcaram nesta instituição: os Professores Lopes da Silva, Sales Luís e Borges da Silva. Chegou a ser monitor da cadeira de Probabilidades e Estatística na mesma Instituição. Com a chegada do 25 de Abril, teve de arranjar um trabalho, era o momento de começar a trabalhar. A Caixa Geral de Depósitos foi o seu primeiro emprego, no qual ficou durante trinta e seis anos com distinção e louvor. Em 1978 candidatou-se ao cargo de Locutor na RTP, o qual conseguiu ficando em segundo lugar. Aqui permaneceu vinte anos, ficando responsável por várias áreas e desenvolvendo variadíssimas funções – sendo que a que lhe deu mais gozo foi a viagem ao Festival de Cannes em 1982, onde conheceu diversas figuras do cinema da altura, entre elas Cláudia Cardinale: quando efectuava a entrevista à actriz italiana, surgiu um fotógrafo que, vendo a perfeita oportunidade, tentou tirar uma foto de baixo para cima à famosa actriz. Esta, com receio que se visse algum sinal da idade devido ao ângulo pouco lisongeador, pontapeia a câmara impedindo a foto. Esta história encaixa bem na questão do simbolismo e da verdade – refere agora o tema da Estética, abordado pelo seu Mestre Jorge Borges de Macedo, da necessidade e da importância da estética para o pensamento humano. Abordamos agora uma questão nevrálgica, no meu entender, nesta entrevista. O estado do ensino em Portugal, no caso da História. A falta de ferramentas que possibilitem aos novos licenciados em História explorarem a área como deve ser complica muito o trabalho. A redução da licenciatura para três anos (de cinco anos passou para quatro, e consequentemente para três) acaba com o desenvolvimento do espírito humanista em grande parte, o que impossibilita o crescimento de novos investigadores. A falta do estudo da Filosofia está no cerne da questão, falta ler Aristóteles, Platão, entre outros, há que reler os textos antigos, ir às fontes compreendendo-as e trabalhando sobre elas. Os cientistas dos tempos actuais esqueceram-se da importância da Filosofia como ferramenta para um debate racional e construtivo. Observa também que nos tempos da sua licenciatura em História os mestres tentavam lançar os seus “aprendizes”, como o caso do Professor Joaquim Veríssimo de Serrão, levando João Abel da Fonseca a entrar na Academia Portuguesa de História. Lembra quando entrou para a Sociedade de Geografia de Lisboa, foi “adoptado” pelo Presidente da época, o Almirante Sousa Leitão. Já passa da hora estabelecida como tempo limite para a nossa entrevista e na Academia de Marinha existe protocolo para a hora de almoço, para o qual fui convidado a juntarme pelo Comandante Luís Couto Soares e João Abel da Fonseca. Em jeito de conclusão constatei que é um homem que desde cedo foi versado no mundo da interdisciplinaridade. Professor que se deliciou com a Química, Física, Matemática, mas que ouvia os estímulos da Arte, do Surrealismo, da Música, deixando-se por fim captar o espírito da História e da Literatura. Se há adjectivo para o João Abel da Fonseca será o de Humanista, é um entusiasta da questão. Devo dizer que nas três horas de conversa que me proporcionou o Professor, permitiu este aprendiz ouvir um mestre sem o véu que muitas vezes os separa, garantindo assim um tratamento humano, próximo, amigo, das diversas questões que debatemos. Em último aviso deixo em aberto esta conversa das Outras Histórias para a parte II, porque ficámos por 1992: há mais histórias, lembranças, memórias, de um grande historiador, mas de um maior Humanista e Mestre. Obrigado

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Recensão ao Congresso Internacional Revisitar o Mito Por Carla Tavares e João Alves Investigadores Instituto PAEHI – Associação para Estudos Históricos Interdisciplinares

Entre os dias 5 e 8 de Maio, teve lugar na Faculdade de Letras de Lisboa o colóquio internacional Revisitar o Mito/Recycling Myths, que trouxe para grande plano a temática do Mito e as suas diversas abordagens. Esta iniciativa do Centro de Estudos Clássicos e do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa contou com a participação de figuras com créditos firmados como Arthur W. Frank, da Universidade de Calgary; Marina Warner, da Universidade de Essex; Emilio Suarez, da Universitat de Pompeu Fabra e Alessandro Zironi, da Universidade de Bolonha. O colóquio foi dividido em sessões plenárias, com participantes convidados e sessões paralelas, com comunicações por inscrição. Destacamos no segundo dia o Dr. Ricardo Duarte com a apresentação da comunicação Vicimus uicti Phryges: equiparação entre vencidos e vencedores, Troianos e Dánaos, no Agamémnon de Séneca. Apresentação competente: o mito, tal como a cultura, é feito de um processo cumulativo, que o tempo transforma em arquétipos; Séneca serviu como pano de fundo para repensar o papel dos vencedores e vencidos, o estoicismo como fio condutor levou a repensar a prohairesis, a tão aclamada vontade estoica como símbolo máximo da boa conduta individual. Ainda neste mesmo dia teve lugar a apresentação da comunicação da Dr.ª Ana Filipa Isidoro da Silva que encantou a audiência com o tema: Amor Morbus em Phaedra; o mito e a doutrina estóica dos affectus/ Os Mitos e a Filosofia, notou-se por parte da conferencista um profundo conhecimento da língua latina e um gosto pessoal por Séneca, que ficou expresso na forma como o furor estoico foi abordado na sua vertente epistemológica; deixou-nos uma reflexão valiosa: de que forma o eupathos é uma escolha moral ou uma fuga ao sofrimento. O moderador da mesa, o Doutor José Pedro Serra, mostrou-se brilhante como é usual e colocou a pergunta mais refrescante possível quando se fala de estoicismo, questionou se os investigadores acreditavam de facto naquilo, e a palavra “naquilo” trazia já o peso do que viria a ser concluído posteriormente; o estoicismo não é uma forma de recusa de viver, de assumir essa vertigem sem garantias que é estar vivo e participar das solicitações que o mundo oferece? Como todas as perguntas importantes e complexas, também esta ficou sem resposta. No seu todo as comunicações abordaram perspectivas diversificadas, mostrando o mito em diferentes períodos históricos, não só na Antiguidade greco-romana como na Idade Média ou mesmo na contemporaneidade. E não centrados apenas na realidade Europeia, estendendo-se pela Ásia e América. Quanto aos mitos em si, foram apresentados e debatidos episódios e personagens mitológicos da Antiguidade Clássica, por exemplo o mito do rapto de Europa, o mito de Electra ou o

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mito da Atlântida, como as perspectivas do mito face a conceitos como beleza, amor, sexo ou morte. Continuando para o período Medieval discutiram-se mitos como o de Joana d’Arc ou o de Tristão e Isolda, bem como os primeiros mitos do Cristianismo. Não deixando de lado o ciclo de mitos em torno do rei Artur e dos seus cavaleiros. Em paralelo foram-se descobrindo as influências da mitologia na literatura e nos seus autores ao longo do tempo, desde a Antiguidade Clássica aos nossos dias. Somos assim apresentados às obras de J. R. R. Tolkien, Agustina Bessa Luís, Bertolt Brecht, Miguel Torga, entre outros. Falando da organização formal do evento, mostrou-se competente para uma tarefa desta magnitude, tendo decorrido quase sem falhas. Os esquemas/plantas entregues aos participantes para identificação das salas eram acessíveis e o programa disponibilizado esclarecedor. Apenas de salientar que, os documentos de apoio às comunicações, com informações sobre o que cada comunicador iria tratar, não estarem senão acessíveis para os que se inscreveram, deixando todos aqueles que tiveram interesse em assistir mas, não achando oportuno não procederam à inscrição, um pouco «às escuras». Existiu também a dificuldade que alguns comunicadores tiveram em respeitar os seus tempos de explanação, dando origem a atrasos nas comunicações seguintes, tanto por parte dos comunicadores que acabaram por começar mais tarde, como do público que se viu retido e impedido de assistir a outras apresentações. Por último, apresentamos os nossos agradecimentos a toda a organização, e comissões, pela oportunidade de participar, como público, num trabalho de tamanha qualidade, que a todos despertou para novas reflexões sobre velhas questões. Lamentamos profundamente, e provavelmente, todos quantos assistiram, não ter sido agraciados com o dom da ubiquidade. A única consolação é que, nem mesmo os deuses tinham esse privilégio ou pelo menos nem todos.

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Roteiro Histórico

Por Belém Francisco Isaac

Ao visitar Lisboa uma das zonas principais para um passeio turístico é sem dúvida a zona de Belém. Fortemente preenchida por diversos restaurantes e cafés, onde se destacam o histórico restaurante Adamastor e o Pão Pão Queijo Queijo (este mais indicado para os que querem perder pouco tempo sentados a comer), encontram-se também os Pastéis de Belém, onde podemos provar um dos ícones da pastelaria de Lisboa, o Pastel de Belém. Contudo, o que interessa apresentar neste roteiro são os locais históricos com que nos podemos deparar ao passear por estas calçadas. Iniciamos o Roteiro à porta do Museu da Marinha, onde podemos encontrar uma colecção de instrumentos de navegação e reproduções, remontando à época dos Descobrimentos. Este museu foi inaugurado a 15 de Agosto de 1962 (sendo que a colecção constituti-se em 1863 por decreto do Rei D. Luis, monarca apaixonado pelo mar, que muito contribuiu para a criação de uma gama de exposições e colecções dedicadas ao exercício naval-marítimo), contendo em si uma série de salas e secções dedicadas a épocas ou temas dentro da História Marítima e Naval. Logo à entrada encontramos uma série de estátuas dedicadas a personagens emblemáticas para os Descobrimentos Portugueses, como é o caso do Infante D. Henrique. Mas talvez o aspecto que mais se destaca nesta entrada seja o Mapa Mundi representativo dos Descobrimentos (réplica produzida pela Escola Naval) que esboça aquilo que foi a época de expansão ultramarina portuguesa. Será necessária alguma atenção, já que existem dois pisos diferentes e os mais distraídos ignoram as escadas que dão acesso ao segundo andar. Aí podemos encontrar a Sala do Oriente, a Sala da Marinha de Recreio, a Sala da Marinha Mercante e a Sala de Construção Naval. Regressando ao piso 0, encontramos uma variedade de “Salas” dedicadas a uma época ou a um tema, como é exemplo da Sala dos Descobrimentos (para os mais apaixonados pela época do Infante D. Henrique e de Vasco da Gama, esta secção está muito bem organizada, possuindo desde pormenores iconográficos a réplicas de naus utilizadas nas expedições marítimas portuguesas) ou da Sala do Século XVIII. Sem se descrever ao pormenor o museu, destacamos assim essas secções, lembrando que o Museu da Marinha é composto por 15 Salas diferentes, terminando com o Pavilhão das Galeotas, onde está albergada a galeota Bergantim, muito conhecida, da época de D. Luis. O preço de entrada é de 4€ - 2€ para estudantes – e contrastando com a riqueza das colecções do Museu é um preço meramente simbólico. Aconselhamos uma visita calma e sem

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pressas, uma vez que este museu tem em si várias “páginas de história” bem trabalhadas e bem desenvolvidas para o público. Abandonando o Museu da Marinha, encontramos ainda na mesma área o Planetário, local onde podemos admirar fantásticos programas didácticos sobre as constelações e planetas que circundam o planeta Terra. Seguimos caminho junto ao Mosteiro dos Jerónimos, edifício erguido em inícios do séc. XVII (o início da sua construção remonta à época de D. Manuel, que requisitou autorização à Santa Sé para a construção do Mosteiro). Mais à frente neste roteiro iremos dedicar algumas linhas à história do Mosteiro. Continuando pelo passeio, com o Mosteiro ao nosso lado esquerdo, encontramos o Museu Nacional de Arqueologia. Aqui encontramos algumas colecções interessantes como as Antiguidades Egípcias ou Tesouros da Arqueologia Portuguesa. A construção do museu remonta ao séc. XIX, mais precisamente a 1893, quando José Leite de Vasconcelos – figura incontornável da História e da Arqueologia portuguesa – mandou edificar o museu que aqui encontramos. Existem quatro exposições, duas temporárias e duas permanentes. Aproveitem as temporárias porque ambas possuem elementos novos sobre o “estado da arte” da Arqueologia em Portugal; a Quinta do Rouxinol. Uma Olaria Romana no Estuário do Tejo, por exemplo, é uma exposição agradável com elementos bem interessantes. Finalizando o roteiro recomendo que antes do almoço visitem o Mosteiro do Jerónimos. A construção do Mosteiro foi iniciada por D. Manuel em 1501, no entanto o Rei não viveu para ver a sua obra terminada. É um local emblemático desta zona de Lisboa, constituindo com a Torre de Belém e, se quisermos acrescentar, o Panteão dos Descobrimentos, alguns dos edifícios mais emblemáticos da cidade de Lisboa. A entrada para a igreja é livre (recomendase também que assistam à missa de Domingo ao final da tarde, no último domingo de cada mês, visto tratar-se de uma liturgia diferente do que nos é proporcionado pela maioria das igrejas), sendo apenas cobrada a visita do Mosteiro em si – o preço é de 7€, tendo uma série de descontos para jovens – onde é possível observar os quartos onde os monges habitavam, podendo também circular pelos claustros do próprio mosteiro. Recomenda-se a visita a esta área mais privada do Mosteiro que, apesar de aparentar uma certa simplicidade, carrega muitos símbolos da História de Portugal.

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É de destacar, na entrada da Igreja, os túmulos de Vasco da Gama e de Luís de Camões, sendo que nos corredores esquerdo e direito do portal estão os túmulos dos filhos de D. Manuel e D. Sebastião, respectivamente. A igreja de Santa Maria de Belém, como é assim chamada esta parte do Mosteiro, é de uma beleza fora do comum, com altos pilares e uma abóbada onde podemos observar símbolos ligados aos descobrimentos e à monarquia portuguesa. O número de pormenores dentro da Igreja é infindável, destacando os túmulos de D. Sebastião ou do cardeal D. Henrique, bem iluminados e igualmente bem expostos. No exterior da Igreja deve-se reparar na arquitectura manuelina, ilustrada com diversos floreados e pormenores da arquitectura dessa época.

A zona de Belém está bem composta por jardins agradáveis, como o Jardim da Praça do Império, em frente ao Mosteiro dos Jerónimos e ao Centro Cultural de Belém. O próprio CCB foi um dos edifícios construídos para albergar a Comissão Europeia, quando Portugal a presidiu em 1992. É um edifício espantoso, com uma nova arquitectura encabeçada pelo arquitecto Manuel Salgado e Vittorio Gregotti. O museu Colecção Berardo situa-se dentro do CCB, com peças de arte de grande valor, dedicado exclusivamente à arte contemporânea. Se desejarem continuar a passear aproveitem e visitem o Jardim Botânico Tropical, cuja entrada custa apenas 1€ . É de aproveitar a visita ao Museu dos Coches, situado ao lado do Palácio de Belém, residência oficial do Presidente da República de Portugal. O Museu encontra-se em fase de transição para o novo edifício que se encontra do lado oposto a este. Foi edificado por iniciativa da Rainha D. Amélia, sendo inaugurado em 1905, sobre o nome do Museu dos Coches Reaes. É um museu com uma história brilhante – recorde-se que na Exposição Universal de 1900 em Paris o Museu foi oficialmente apresentado por uma embaixada nesse evento marcante do início do séc. XX. Com a chegada da República o Museu passou a ser chamado de Museu Nacional dos Coches, isto em 1910. Aqui encontramos uma variedade de coches; um dos que captou a nossa atenção foi o que pertenceu a D. Filipe II de Portugal, durante o séc. XVIXVII, sendo a peça mais antiga do Museu. O coche em si ostenta uma grande riqueza a nível da estética de finais do séc. XVI. Entre berlindas, ladaus, liteiras, seges e carruagens destaco o landau do Regicídio, marcado pela morte D. Carlos. São pedaços da História de Portugal que podemos observar de perto. Existem outras secções dentro do museu, desde elementos de cavalaria, aos trajes oficiais dos cocheiros. Para os interessados em História Militar encontramos ainda uma Lança de Roca datada do séc. XVIII, um Estaferno, também datado do séc. XVIII, representando um muçulmano com um escudo e um chicote – o objectivo seria acertar no escudo e escapar sem que o chicote acertasse no cavaleiro ou na montada. O preço do Museu é de 5€, 2.5€ para detentores do cartão jovem e mais de 65 anos. A visita vale a pena para os curiosos. Abandonamos por fim o Museu dos Coches e, para finalizar o passeio, convidamos a ir até aos Pasteis de Belém, comprar uma boa dose – sem exagerar – dos ditos, caminhar até ao Padrão dos Descobrimentos, sentar e admirar a vista para o rio. Agradecemos a leitura deste roteiro prometendo novas ideias e propostas de visita.

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1. Quais as vantagens ao se fazer membro do Instituto? 1. Consultar livremente todos os conteúdos do site – que serão ocultados a partir de Novembro de 2012; 2. Possível participação no site e Revista Férula do Instituto – elaboração de artigos, recensões críticas a museus e roteiros turísticos; 3. Acesso à Biblioteca do Instituto podendo consultar as obras do mesmo com requisição prévia; 4. Nos eventos do Instituto terão um desconto de cerca 15%; 5. Desconto de 25% nas Actas do Instituto; 2. O que tem de fazer para o ser? Simplesmente preencher a proposta de admissão a membro do Instituto. Deve na primeira página preencher todos os campos, tendo que no final ter uma assinatura de um dos sócios deste Instituto no campo Proponente. Pode, se desejar, no fim colocar uma terceira página com o seu currículo, não sendo este obrigatório. Por fim, deve efectuar o pagamento – simbólico – da quota e jóia do Instituto. O valor é: 5€ Quota/ 5 € Jóia. Em caso do pagamento ser via Transferência Bancária, agradecemos o envio do comprovativo para o seguinte email: conselho.fiscal@instituto-prometheus.org . Com isto será gerado o seu username e password (deverá modificá-la assim que a obtiver) para aceder a todos os conteúdos electrónicos. 3. Como entrego a minha proposta de admissão? Pode entregar pessoalmente a qualquer um dos membros dos órgãos sociais, sendo necessário assinatura de um deles para que a proposta seja válida. Em caso de não conseguir entregar fisicamente a nenhum dos membros dos órgãos, é favor enviar via email para conselho.geral@instituto-prometheus.org . Prometemos uma resposta célere à sua proposta!

Rua Praia de Pedrouços nº61, 1ºdto – 1400-022 Lisboa, Portugal Email: conselh.geral@instituto-prometheus.org – www.instituto-prometheus.org



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