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Um povo de lenda

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Um povo de lenda

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Meio século depois de ter sido sua professora, Rosa se sentia surpresa ao pensar como o seu aluno, que deixou o povoado antes de completar oito anos, conseguiu captar em uma idade tão tenra e com tanta precisão o mundo que o rodeava. Maravilhada, ao mergulhar no realismo mágico de cada um de seus livros, não havia apenas redescoberto a identidade dos personagens que habitavam esse povoado de lenda, com também começou a resgatar em sua memória as imagens que já haviam se tornado retratos amarelados das pessoas mais queridas, sua própria família.

Dom Nicolás e dona Tranquilina tiveram três filhos: Margarita, que era a mais velha e morreu muito jovem de tifo; Juanito Márquez, que era muito parecido com sua mãe tanto fisicamente quanto no modo de ser, e Luisa, a menina mimada da família — não apenas por ser a caçula, senão porque assim que morreu sua irmã mais velha seus pais a encheram de um carinho muito especial. Tanto seus pais como suas tias se esforçavam para agradá-la em tudo. Era um pouco mais velha que Rosa, mas desde sempre tiveram uma grande amizade,

que sofreu um pequeno parêntese quando Luisa se casou com o telegrafista que havia chegado recentemente ao povoado, Gabriel Eligio García, e o jovem casal foi embora de Aracataca.

Ao contrário do coronel, que nunca gostou do seu genro, Rosa achava que o marido de Luisa tinha muitas qualidades: era de bom caráter, refinado, estava sempre sorrindo e tocava violino com muita emoção, o que lhe acrescentava um toque a mais de refinamento.

Ao chegar ao povoado, o jovem telegrafista se sentiu atraído por Rosa. No entanto, a professora não estava interessada nele. Alguns dias mais tarde o recém-chegado começou a cortejar Luisa, ocasionando na residência dos Márquez uma hecatombe de dimensões colossais porque o coronel pensava que o pretendente não estava à altura de sua filha, para a qual ele queria um marido com uma profissão mais prestigiosa.

No início o coronel simpatizou com o telegrafista, que não ocultou seu propósito de se estabelecer na cidade. No entanto, assim que ficou sabendo que estava interessado em sua filha, as coisas mudaram. Não o via à altura de Luisa, para quem buscava alguém com uma profissão universitária, como advocacia ou medicina. Diante da inutilidade de seus esforços para impedir que os namorados se vissem, mandou sua Luisa para uma viagem longa, que durou várias semanas. Mas quanto mais se opunha a esse amor, mais o jovem casal se empenhava em defender seus sentimentos.

A jovem, herdeira do caráter dos Márquez e dos Iguarán, era dona de uma determinação admirável. Sonhava em ter um lar e se impunha com seu caráter firme e sem jamais

recuar. Com uma convicção inabalável cimentada na firmeza de seus sentimentos, acabaria por se casar com o homem que amava, conseguindo passar por cima da inclemente oposição do coronel, para quem o telegrafista era e seria sempre “um forasteiro”.

Com muita relutância, o coronel acabou aceitando assinar a ata oficial permitindo que os noivos se casassem, um requisito da época porque a noiva ainda não havia completado vinte e um anos, quando se atingia a maioridade. No entanto, firme em seus princípios, o venerável patriarca se negou a ir ao casamento, por isso Luisa teve de passar pela dor de se casar em Santa Marta sem a presença de seus pais.

O jovem casal decidiu não dar o braço a torcer e se mudou para La Guajira, o mais distante possível da residência dos Márquez. O coronel somente abaixou a guarda quando ficou sabendo que sua filha lhe daria um neto. Foi então que decidiu ampliar a casa para acomodar a nova família. Detrás da casa havia um pátio enorme, e aproveitando o espaço mandou construir ao lado da casa principal uma segunda casa de madeira, com o teto de zinco, localizada diante do quarto de solteira de Luisa. Foi ali onde mais tarde nasceu Gabito, bem na frente de um pequeno jardim de rosas que a pequena Francisca plantara com a ajuda dos índios guayú.

Quando Luisa foi embora do povoado, cresceu a amizade entre Rosa e a menina Francisca Mejía, que cuidava com a precisão de um relojoeiro suíço da organização e do serviço da casa dos Márquez. Rosa a descrevia como uma das mulheres mais trabalhadoras e produtivas que havia conhecido.

Apesar de Gabito estar acostumado a ir à escola com sua professora, outras vezes ia com a menina Francisca, que, além disso, às tardes, o levava à igreja na hora do rosário, onde em algumas ocasiões o padre Angarita lhe permitia exercer a função de coroinha com o roupão vermelho. Não passava despercebido para Gabito o porte que ela tinha ao caminhar, muito ereta, com uma suavidade peculiar que parecia que estava flutuando. Era uma mulher delgada, de estatura mediana, cabelos longos até a cintura quase sempre presos em uma trança. Vestia longas saias brancas que chegavam até os pés, e blusas fechadas no pescoço, com mangas até os cotovelos que engomava e passava no ferro com total perfeição.

Outra das características da menina Francisca consistia em se tratar de uma mulher muito ativa; não conhecia a palavra ócio e, além de cuidar da casa, encarregava-se pessoalmente de lavar, passar e guardar as toalhas da igreja, além de lustrar todos os ornamentos. Ninguém podia fazer isso como ela; nos engomados de linhos irlandeses e suíços não se via sequer uma única parte amarrotada, e todos eram conservados sempre branquíssimos. No final de sua vida, antecipando a sua despedida, teceu seu próprio sudário. Com isso se demonstrava a organização e integridade dessa mulher, que parecia estar presente em cada detalhe da vida familiar.

Com o transcorrer dos anos a professora conservaria sempre fresca a lembrança da casa grande em que viviam os avós do escritor, com tetos de palmeiras e paredes de pau a pique, como quase todas as casas do povoado.

Segundo Rosa, a casa dos Márquez era uma das melhores de Aracataca. Ali moravam também as filhas de dom Nicolás e

dona Tranquilina, sua filha Luisa, a tia Elvira, a menina Francisca e a prima Sara, além dos serviçais, que incluíam três índios guayú que chegaram com a família Márquez quando se estabeleceram em Cataca, nome com o qual muitos se referiam à população caribenha.

Durante o dia, os guayú se vestiam com calças brancas de tecido de algodão cru, mas quando descansavam usavam túnicas de algodão e se entretinham tecendo redes. Não gostavam de conversas com as pessoas do povoado, nem com os habitantes da mesma casa. Compreendiam quando alguém lhes falava em “cristiano”, como chamavam o castelhano, mas preferiam se comunicar entre si em seu próprio idioma. Nunca haviam ido à escola e não sabiam ler nem escrever, nem consideravam útil aprender algo alheio à sua cultura ancestral.

Dom Nicolás Márquez era muito respeitado em Aracataca, onde seus habitantes o viam com um halo de mistério, já que nunca se gabava de suas arriscadas campanhas cruéis em épocas políticas difíceis e caracterizadas por ódios partidários, nem falava sobre o motivo que o fez escolher morar em um povoado tão remoto. O mistério havia sido confiado por dona Tranquilina à mãe de Rosa, uma tarde em que revelou que Cataca foi o refúgio perfeito para se esconder da vingança dos irmãos de um homem que o desafiou a um duelo em que dom Nicolás saiu vencedor.

Entre os personagens dos livros Rosa também reconheceria Margot, a terceira filha na linhagem da família García Márquez, uma menina caladinha, pálida e magrinha que nasceu quando os pais do escritor já haviam se mudado à Sincé. Preocupada com a saúde de sua neta, dona Tranquilina a levou para morar

em sua casa com a esperança de que seus cuidados ajudariam a menina a ganhar peso. — Não imaginam o que acabo de descobrir — um dia dona Tranquilina disse à Rosa.

Prosseguindo, a preocupada avó descreveu como às vezes a pequena Margot se sentava para brincar no quintal, muito quietinha. Ao se aproximar, pegou Margot de surpresa comendo terra. Foi assim que descobriram que a causa da desnutrição da menina se devia ao seu curioso gosto. A partir desse dia as mulheres da família viviam vigiando essa menina de uma saúde debilitada, consequência de seu raro gosto gastronômico que a levava a desprezar a comida que colocavam na mesa por causa de sua predileção pela lama do quintal.

De cabelos claros, olhar inocente e com um ar quase infantil — com exceção de suas mãos enormes — havia um personagem singular na vida de Aracataca. Era Benítez, o eletricista e aprendiz de mecânico que se apaixonaria por Meme e que, por um truque maquiavélico, acabaria em uma cadeira de rodas, acusado injustamente de roubar galinhas. Na vida real Benítez se gabava da vida como eletricista, trocando fusíveis e consertando todo tipo de danos enquanto que, por circunstâncias misteriosas, as borboletas o seguiam pelo povoado. Alguns o acusavam de divulgar os segredos de alcova que inexplicavelmente se transformavam no falatório dos fofoqueiros. Então, inevitavelmente, culpavam o eletricista de olhos de sonhador e ouvidos sempre alertas. No final das contas, por estar sempre consertando fios em todas as casas, era fácil que ficasse sabendo dos segredos

que alguns guardavam sob sete chaves, motivo pelo qual as comadres tagarelas encontravam no eletricista o bode expiatório de todos os enredos que haviam descoberto.

Esses personagens cotidianos na vida de Aracataca e suas extraordinárias transformações ao ingressarem nas obras do escritor faziam Rosa sorrir, admirando a genialidade daquele que havia sido o seu aluno. — Gabito, você é único, tem uns casos... — dizia entre risadas.

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