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Reencontro na “Terra do Esquecimento”
XVI F3f
Reencontro na “Terra do Esquecimento”
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Entre música de acordeões e vallenatos o reencontro se realizaria. Havia se passado dezesseis anos desde a última vez em que se viram no teatro Colón, e quase vinte e cinco daquela ocasião em que foi cumprimentar Gabito na redação do El Espectador por poucos minutos, que pareceram segundos. Mas como diz o refrão, “à terceira, é de vez”.
Um ano depois de sua viagem para estudar inglês em Miami, Rosa havia retornado a Bogotá. No entanto, não havia perdido a esperança de se reunir de novo com seu aluno e se propôs a surpreendê-lo durante o Festival de la Leyenda Vallenata, em Valledupar, em meio a um ambiente alegremente tropical entre canções e histórias transformadas em lendas, noites de inspiração, aguardente e rum sob a luz das estrelas e o clamor popular no que é por muitos considerada a melhor festa do mundo.
Rosa estava decidida a não deixar passar a oportunidade. Menos ainda se levando em conta que o ambiente estaria
impregnado dessa música de acordeões e gaitas que tanto desfrutava na sua juventude distante no passado de carnavais e festas de padroeiros.
A viagem havia sido longa e difícil pela estrada desigual e poeirenta que ela aguentou com a estoica decisão de chegar até onde se encontrava seu ex-aluno. Nesse momento se sentia dona do grande segredo que somente se atreveu a revelar uma vez em sua vida e que havia prometido manter escondido a sete chaves. Não gostava de segredos, mas nesse caso parecia que o silêncio era justificável. Além disso, dizer não faria diferença, já que havia proposto que ninguém, nem sequer Gabito, ficasse sabendo de seus sentimentos. Por outro lado, já havia sido muito direta ao expressar seu interesse em que o escritor a ajudasse a disseminar a importância do método Montessori.
Com esse propósito, Luisa, a mãe de Gabo, decidiu ajudá-la convidando-a a Cartagena, onde o escritor estaria de passagem. No entanto, ao chegar à Cartagena, conhecida como Cidade Heroica, Rosa constatou que seu aluno havia saído de viagem no dia anterior. — Vamos, não fique desanimada. Gabo veio do México para assistir o Festival de la Leyenda Vallenata de Valledupar. Anime-se, Gabo me disse que quer muito conversar contigo para uns detalhes sobre sua biografia — disse Luisa a Rosa, que já contava com setenta e cinco anos, mas com energia de sobra para a longa viagem até a cidade colombiana: trezentos e sessenta e cinco quilômetros em quase sete horas de viagem, em algumas partes por estradas de terra.
Enquanto viajava ao destino que havia sido proposto para o reencontro com o Nobel, a professora sentia que parecia estar sonhando. Reunir-se com seu aluno em meio a tanta folia e alegria! Sem dúvida uma grande celebração em que a música se apoderava de Valledupar enquanto lendas de amores e sofrimentos se enfrentavam em um duelo musical diante de um júri, que nesse ano era presidido pelo escritor, o rei do gênero musical, Rafael Escalona e o ex-presidente Alfonso López Michelsen.
Não havia espadas nesse duelo entre os guerreiros do ritmo, que se celebrava sobre o cenário, em homenagem a Francisco Moscote, um personagem lendário que foi o mensageiro e precursor do ritmo. Durante anos tão longos como séculos percorreu sobre um burro a rota dos povoados da costa levando mensagens, encomendas e seu acordeão, que era seu companheiro fiel e indispensável para transformar as notícias cotidianas em uma grandiosa epopeia musical. O sol era intenso em seu caminho, e o trajeto difícil até cada povoado, onde o recebiam como um profeta que ao invés de prever calamidades cantava, acompanhado de seu acordeão, as últimas notícias enquanto envolvia todos com a magia de sua retórica e sua música. Até que um dia se encontrou com o diabo, que o desafiou a um duelo. O artista ficou com medo; tratava-se de uma luta desigual, mas se armou de coragem e aceitou a difícil peleja. Enfrentando-se musicalmente, um cantava e outro respondia, e a batalha entre o mensageiro cantor e o temido desafiante dos infernos parecia cada vez mais difícil de ganhar, ainda mais levando-se em conta que o proibiu de usar nomes de santos que tanto abundavam em suas coloridas lendas.
Não sobravam mais recursos ao eficiente menestrel, quando ocorreu a Francisco Moscote cantar recitando o credo de trás para frente. Ao escutá-lo, o diabo soltou um estridente uivo de derrota e, com o rabo entre as pernas, saiu em disparada. Como evidência de sua envergonhada derrota diante de um simples mortal, sobrou apenas para a lenda uma palmeira chamuscada debaixo do local onde Francisco Moscote o venceu.
Desde então, em memória ao mítico personagem, os veteranos do ritmo e os novos artistas do estilo vallenato competem todo ano, acompanhados de seus acordeões; uma luta inflamada pelo entusiasmo do público e marcada pelos aromas etílicos de uísque, aguardente e rum branco em meio a uma multidão feliz que canta e bebe, bebe e canta, até que a música deixa de soar ou a bebida os coloca para dormir. No final da jornada, sobre o palco que rende homenagem a Francisco, “O Cara”, o ganhador ostenta o título de “Rei do Vallenato” por um ano.
A ocasião para se reencontrar com seu aluno não podia ser mais apropriada. Emocionada, dizia a si mesma que por fim iria poder felicitá-lo pessoalmente e talvez lhe mostrar uma bela página que conservava com o texto de seu discurso do El Heraldo de Barranquilla, jornal que havia comprado durante sua estadia em Miami.
A poucas horas de chegar a Valledupar, ficou sabendo que Gabo estaria em uma festa na casa de Consuelo Araujo Noguera, uma das principais organizadoras do festival. Rosa havia chegado muito cedo à reunião e não se surpreendeu ao vê-lo entrar no salão em meio a uma revoada de pessoas. Era difícil
se aproximar do escritor, mas como uma menina travessa, ficou de pé, esforçando-se para surpreendê-lo por trás.
Tapando-o os olhos com suas mãos, lhe disse: — Adivinha quem é... — Minha professora, Rosa Helena Fergusson — respondeu o escritor, se levantando da cadeira e lhe dando um abraço.
Rosa reclamou em seu ouvido, e o escritor lhe disse que ainda há pouco a procurava. Mas um minuto mais tarde um bando de admiradores o arrancou de seu lado.
Havia sonhado com esse reencontro com seu aluno, mas o seu desejo era de ter uma longa conversa com ele. Feliz por tê-lo visto, mas um pouco desiludida por não ter podido compartilhar mais tempo com seu aluno, pensava que o veria mais. Mas no último dia do festival, saía do banho quando sentiu que um carro preto parou diante da porta da casa onde estava hospedada. Escutou um homem descendo do carro e perguntando por ela.
Aproximando-se da porta, Rosa se identificou: — Eu sou a pessoa que está procurando.
O motorista a olhou com ironia e, com um sorriso, lhe disse: — Entre neste carro que Gabo mandou lhe sequestrar.
Felicíssima, arrumou-se em poucos segundos e entrou no automóvel que algumas quadras mais adiante parou na frente da casa onde estava hospedado o escritor. Havia passado dezesseis anos desde que se viram no Colón, e depois de esperar uma resposta das cartas que possivelmente jamais chegaram às mãos dele, finalmente ocorria o reencontro com o laureado autor e esse passado ligado com fios invisíveis.
Além disso, Rosa queria dizer a seu aluno que o momento em que lhe dedicou o Nobel, sentiu que estava vivendo o momento mais importante da sua vida.