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O coração da professora
XI F3f
O coração da professora
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Desde pequena, Rosa se sobressaía por sua espontaneidade, seu caráter aberto, sua disposição para ajudar os outros e seu grande senso de responsabilidade. Ocupou o primeiro lugar na aula de religião, uma disciplina obrigatória que incluía a memorização, palavra por palavra, do catecismo Astete, um manual que continha a doutrina e cujo conhecimento era imprescindível para todos os católicos. Rosa atribuía sua boa retentiva ao estímulo que sua memória recebeu em uma tenra idade ao decorar o livro do princípio ao fim. E de fato, como quase todos os meninos e meninas de sua época, Rosa repetia ao pé da letra cada linha do livreto que continha todos os dogmas da fé cristã e era matéria de aprendizagem em todas as escolas da Espanha e dos países colonizados pela Coroa espanhola. O autor desse doutrinário era o padre Gaspar Astete, sacerdote jesuíta nascido na Espanha em 1537. Certamente nunca se imaginaria que seu simples manual chegaria a bater um recorde de mais de mil edições.
Foi impresso pela primeira vez na Espanha em 1599. Mais de duzentos anos depois, 1836, seria editado na Colômbia.
Rosa chegou a ter um dos primeiros exemplares, herdado de uma de suas avós, Celedón. Com as páginas amareladas e carcomidas pela traça e a umidade, o raro exemplar foi perdido depois de sua primeira comunhão, que recebeu aos nove anos.
Com um vestido branco de finíssimo opalino suíço costurado finamente por uma costureira do povoado, Rosa era uma menina de bochechas rosadas e longos cílios nessa inesquecível data, quando entrou na igreja com um rosário na mão esquerda e um belíssimo lírio feito de papel na direita. Naquela época era impossível conseguir na região essa flor branca das regiões frias devido às dificuldades para transportar algo tão frágil e perecível como esse fragrante lírio, símbolo da pureza da alma.
Dias antes, com muita seriedade, Rosa se aproximou do confessionário para dizer seus pecados, ficando envergonhada ao contar ao sacerdote que uma vez havia mentido à sua mãe dizendo que estava doente para não ir à missa e que outra vez, ao invés de ir ao rio com sua empregada, foram explorar o cemitério. Quando o sacerdote a perguntou qual havia sido o motivo de sua desobediência, ela explicou que fazia tempo que tinha o desejo de procurar a tumba de seu avô Jorge, mas que os adultos não a levavam ao cemitério. No final, não encontraram a sepultura, mas regressaram com a sensação incômoda espiritual de ter feito algo mal. Como penitência, o sacerdote lhe impôs rezar um rosário e não comer doces durante uma semana.
Sua vocação de professora já se manifestava em uma idade muito nova, quando aos dez anos quis ensinar a ler um índio guayú, originário de Riohacha, que trabalhava limpando sua casa. Temendo que o contato de sua filha com um estranho
pudesse ter outras consequências, sua mãe a proibiu de conversar com os empregados e começou a pensar uma forma de acelerar sua viagem para o internato em Santa Marta. De qualquer forma, em duas aulas Rosa conseguiu ensinar o índio a desenhar o seu nome.
Desde a adolescência sonhava em conhecer outros países e cidades, abrir as asas como as águias e saber como era o mundo além das planícies e pântanos que conhecia. Sem dúvida, uma paisagem muito diferente daquela de seus antepassados ingleses que habitaram vales e montanhas cobertas de neve, com temperaturas tão baixas que seu avô costumava contar a seus descendentes que, antes de emigrar da Grã-Bretanha, milhares haviam morrido na Europa por causa de um inverno muito rigoroso. — Não reclame do calor, que pelo menos sempre refresca nas tardes. Outra coisa é o frio, que lhe congela o sangue, faz que fique doente e nas noites sente que mói os ossos — costumava dizer Pedro Fergusson recordando as histórias sobre os invernos rigorosos que lhe contava seu pai, Jorge, o inglês.
Um dia, enquanto caminhavam à escola no meio de um calor asfixiante, Rosa contou para Gabito sobre as neves que cobria de branco os países do Norte. Dispunham de tempo. Com um entusiasmo pouco comum, o menino falou do maravilhoso descobrimento que seu avô havia lhe mostrado dias antes quando o levou para conhecer o gelo em uma peixaria.
Nas tardes calorentas em que a umidade e o calor faziam com que a roupa grudasse no corpo, Rosa se perguntava se no
futuro alguém inventaria uma casa com paredes de gelo que, de alguma forma, não derretessem e permitissem que as casas fossem mais frescas.
Rosa queria deixar o testemunho de como era a vida no início do século XX para saciar a curiosidade das próximas gerações que cresceram na era do avião a jato, com ar-condicionado e computadores.
Nos primeiros anos do século XX, muitas populações pequenas da América Latina não tinham eletricidade. No entanto, Aracataca teve eletricidade graças à United Fruit Company. Os fogões eram de carvão ou à lenha, os ferros de passar roupa eram de carvão, com o defeito de que de vez em quando soltavam umas pontas de fuligem que queimavam a roupa delicada. Mais tarde chegariam os ferros a gasolina, que eram muito caros, mas garantiam uma passada de roupa perfeita, e não sujavam as roupas com fuligem.
Essas invenções se tornariam algo natural com o passar dos anos, mas Rosa nunca se esqueceria daqueles tempos quando os romances brotavam alimentados pelo fogo das palavras de amor e cartas perfumadas; os negócios que eram feitos no café do povoado; as dívidas eram pagas como se fossem sagradas, a palavra de honra valia mais do que um documento escrito; os banqueiros eram respeitáveis; os médicos não cobravam dos pobres; as mulheres tinham que trabalhar somente em casa, e não na casa e na rua; as pessoas tinham tempo para se sentar às tardes debaixo das amendoeiras, as crianças eram felizes brincando com bolinhas de gude ou tampinhas de garrafa, os avós impunham carinho e respeito, os homens cediam a parte
de dentro da calçada para as damas e lhes abriam e fechavam as portas, os adolescentes obedeciam seus pais e avós e as amizades eram para toda a vida.
Parece incrível, mas apesar de morar próximo ao mar, como muitas mulheres de sua época, Rosa nunca aprendeu a nadar.
Um motivo para não praticar esporte eram as altas temperaturas de até trinta e nove graus centígrados na sombra. No entanto, apesar do calor, o futebol era um esporte muito popular entre os jovens e crianças. Ficavam jogando em um campo próximo até quando começava a escurecer e os mosquitos castigavam os entusiasmados esportistas com todo o rigor de seus ferrões.
Os habitantes de Aracataca cultivavam a amizade com grande esmero. Ter bons amigos era uma vantagem para entreter as horas em um povoado onde a conversa era como o sal que dá sabor à comida.
Rosa não era uma exceção e, igual a todos, esperava com alegria a chegada diária do crepúsculo. Com o calor ficando para trás, a vida parecia se transformar em uma história simples, e o futuro parecia livre de preocupações. Esses momentos ficariam gravados para sempre em sua memória, com o sabor amargo de que talvez não o tivesse valorizado o suficiente, e que jamais se imaginou em sua juventude que seriam irrepetíveis.
Na sua juventude, Rosa sempre teve o desejo de viajar para Guajira. Não tinha lembrança do lugar onde nasceu, e de que sempre se sentiu orgulhosa. Seus pais, Pedro Fergusson Christoffel e Rosa Gómez, vieram de lá. Ele era um homem atraente e de porte elegante, um gênio com os números, que detestava
a bebida e a vulgaridade, vivia impecavelmente vestido e era muito familiar; sua esposa era uma mulher muito refinada, de grande beleza, que em toda ocasião estava vestida com distinção. Gostava de blusas rendadas e se eram brancas, melhores. Sempre bem passadas, engomadas, apesar de que com frequência o tecido endurecido lhe picava a pele e lhe deixava com o pescoço vermelho. Com ela suas filhas aprenderam que uma mulher nunca deve sair à rua sem estar penteada e arrumada, com pó de arroz no rosto, o carmim nas bochechas e os lábios vermelhos.
Na sua infância Rosa desfrutara das histórias que lhe contava Barbarita, uma empregada da casa cujo país de origem se perdera sob um denso manto no decorrer dos anos. Era uma mulher de raça negra com um sorriso branquíssimo, trato afável, alta e delgada. Contava que seus antepassados haviam chegado a Cartagena em um barco carregado de escravos africanos provenientes de umas planícies de cor ocre tão imensas como o mar, salpicadas de prados verdes onde corriam como as gazelas e eram livres até que uma tribo rival os atacou na noite para depois vendê-los como escravos aos portugueses. Ela sempre chegava à casa dos Fergusson nas primeiras horas do dia para recolher o pesado fardo de roupa e seguir sua jornada até o rio. Curiosamente, contra todas as previsões, não se sentiu nada satisfeita quando colocaram na casa de Rosa uma cisterna de cimento que era enchida duas vezes por semana com água que chegava no lombo de burro. Ela reclamava que a roupa não ficava tão branca como quando se lavava no rio, um argumento que com frequência alegava para evitar o tédio de
ter de passar o dia detrás de uma cisterna. Rosa pensava que Barbarita sentia saudade era do entorno do rio, com o sussurro do vento entre as árvores, a alvoroço alegre das maritacas, o murmúrio da água e da vegetação exuberante em cores e aromas.
Na sua infância, Rosa se sentava para brincar com suas panelinhas de alumínio e barro cozido enquanto a lavadeira contava histórias que a transportavam para terras longínquas. Com uma voz grave e cheia de nuances, Barbarita se encarregava de lavar e passar a roupa enquanto narrava para Rosa histórias fascinantes de países distantes com tapetes mágicos que podiam voar sobre as nuvens, aves com penas de ouro, ursos que falavam o idioma dos humanos, baleias brincalhonas que moravam em um castelo no fundo do mar, fadas tão pequenas que dormiam no cálice de uma flor, selvas com cascatas que jorravam luzes coloridas e árvores cujas folhas eram feitas de esmeraldas e diamantes. As horas passavam muito rápido enquanto a pequena Rosa desenhava em sua imaginação esses lugares maravilhosos. Anos mais tarde chegaria a televisão que, segundo Rosa, transformaria o vínculo humano em uma comunicação com um aparelho mecânico, diminuindo a capacidade das crianças de se expressar em público, desenvolver a imaginação, formar frases e avaliar a realidade que as rodeia.
Com os anos, Rosa começou a ter um interesse renovado pelo povoado que havia deixado para trás quando se viu diante da necessidade de se mudar para a capital. Muitos haviam ido quase que ao mesmo tempo de sua partida, mas outros ficaram em Aracataca com os fantasmas de uma
prosperidade perdida, as imagens dos que se foram em busca de melhores oportunidades e as lembranças de dias melhores que sempre compartilhavam em suas conversas debaixo das amendoeiras. Rosa nunca se esqueceria desse povoado e quando a saudade daqueles tempos se filtrava pelos resquícios de sua memória como uma chicotada do passado, uma ligação para sua amiga Luisa, a mãe do escritor, bastava para colocá-la em dia sobre as pessoas que fizeram parte desse grande filme de sua vida. Outras vezes, ligava para suas irmãs, mas elas pareciam mais interessadas no presente do que no passado. Na realidade, no decorrer dos anos ficou sem saber da resposta para uma pergunta que sempre havia ficado no ar: O que aconteceu com a vida de Benítez, esse ser fantástico e atordoado que era perseguido por borboletas amarelas e acabou sendo vítima de seus engenhosos truques que usava para se reunir com seu amor?
“Isso não era uma invenção de Gabito, era verdade”, garantia a professora com admiração sobre a retentiva de seu então pequeno aluno ao recordar do inesquecível eletricista perseguido por uma panapanã.
Todos esses personagens que pareciam viver somente em um pequeno canto de sua memória pareceram ressuscitar em 1967, quando aos quarenta anos o escritor imortalizaria Aracataca com seu grande romance Cem anos de solidão. O povoado foi identificado como Macondo, o nome de uma fazenda próxima aos trilhos do trem, sendo que muitos acreditaram inicialmente que essa realidade tropical que o autor contava não era outra coisa senão uma invenção. Ninguém suspeitava quão imensa
seria essa obra publicada pela primeira vez na Argentina pela Editorial Sudamericana, com uma tiragem inicial de 8 mil cópias que cresceu até superar a venda de 30 milhões de livros, tendo sido traduzida em 35 idiomas.
Rosa lia as obras de seu aluno, tratando ao mesmo tempo inutilmente de se descobrir em alguma das personagens do autor. Por fim, um dia se sentiu agradavelmente surpreendida ao ler A revoada: o enterro do diabo, e lhe pareceu identificar suas duas irmãs, mas nunca conseguiu se reunir com o autor tempo suficiente para verificar suas suspeitas.
A cada leitura, Rosa se sentia surpreendia pela extraordinária capacidade de seu aluno para assimilar o mundo que o rodeava em uma idade tão tenra. A professora dos sonhos do menino, além de sua beleza, era uma jovem atenta e com grandes desejos de superação; igual a uma ave que se esforça para romper a casca, estava sempre lutando por suas metas e um futuro melhor. Nunca imaginou que seu grande orgulho, e o que a tornaria um exemplo a seguir, seria seu trabalho como professora nesse povoado perdido no mapa. Curiosamente, nesse lugar tão remoto sua vida ficaria ligada a um prêmio Nobel de literatura, a quem embalou entre seus braços algumas horas depois do seu nascimento.
Ambos teriam em comum, além do distante parentesco, as vivências desse povo mágico que às vezes era difícil de entender. Ali passou seus melhores anos, ali viveram seus pais a maior parte de suas vidas, e estavam enterrados os avôs do escritor e os pais da professora.
Anos depois, quando Rosa regressou ao povoado para visitar suas irmãs, ainda parecia ver debaixo das amendoeiras as figuras dessas tardes povoadas de fantasmas e personagens fascinantes saídos das histórias de dona Tranquilina. Então se dava conta de que, sem sequer ter suspeitado, havia morado no paraíso.