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Como nasceu este livro
Epílogo F3f
Como nasceu este livro
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Quatro semanas antes de sair a notícia do prêmio Nobel para García Márquez e alheia ao grande acontecimento que estava em gestação, liguei para o famoso escritor. Na sua casa do México, respondeu uma empregada. Ao fundo, dava para ouvir a voz de sua esposa, dona Mercedes Barcha, falando com alguém sobre umas cortinas para as janelas. Minutos depois o escritor atendeu ao telefone.
Nós havíamos nos conhecido em 1978 em Havana, quando viajei à ilha com o propósito de conseguir uma entrevista com Huber Matos, ex-comandante da revolução, que estava há mais de vinte anos encarcerado como prisioneiro político. Na época, Cuba estava celebrando o Festival da Juventude e dos Estudantes, e no marco da reunião hemisférica em que participaram algumas figuras controversas, incluindo o coronel líbio Omar Kadafi, pensei que talvez pudesse entrevistar o famoso dissidente cubano ou pelo menos descobrir se estava vivo. Finalmente conseguiria entrevistar Matos uns dois anos mais tarde, em Miami.
Lembro-me da reação do guia e de outras pessoas do comitê de recepção quando pouco depois de chegar a Havana, enquanto nos iam mostrando os principais edifícios, perguntei no ônibus: — Onde mora Fidel Castro?
Como resposta recebi um silêncio absoluto. Insisti de novo e o guia parecia não escutar a pergunta. Até que finalmente, diante da minha persistência e dos outros passageiros, respondeu: — Isso ninguém sabe — afirmou o guia. — Por que quer saber? — Porque se vou ao Panamá, sei onde mora Torrijos; se vou à Venezuela, sei onde mora Carlos Andrés Pérez e se estou na Colômbia sei também onde mora o nosso presidente — insisti com a ingenuidade e ousadia dos meus vinte e poucos anos. — Aqui ninguém pode saber por que temos inimigos da revolução a cento e quarenta e cinco quilômetros de distância — respondeu o guia. — Então, se eu fosse uma mulher cubana e quisesse dizer para quem manda lá em cima que eu tenho um problema, com quem poderei reclamar se nem sei onde mora o governante do meu país? — insisti.
Ele me explicou que para isso tinham os encarregados das distintas organizações do governo. Eu continuei nessa noite minha busca pelas ruas de Havana, conseguindo apenas que dois funcionários misteriosos começassem a me seguir junto com uma jovem de Cali que havia se oferecido para me acompanhar nas minhas pesquisas. Ficamos incomodadas ao ver esse
carro preto com vidros escuros atrás de nós por vários quarteirões. Finalmente, perguntamos a eles por que nos seguiam. Acabaram nos convidando para beber algo em um local que servia como bar, em um sótão de Havana. Não preciso dizer que estávamos temerosas em aceitar a bebida dos estranhos até que depois de dez quadras tentando se esquivar não nos restou dúvida de que a minha curiosidade havia me motivado a dar continuação. Finalmente, acabamos aceitando o convite e decidimos tomar suco de goiaba enquanto tratavam de averiguar o motivo das minhas perguntas. Decepcionados por não termos aceitado o convite para beber e se dando conta de que eu não representava nenhum perigo, nos despedimos diante do hotel. Eles nos aconselharam que não continuássemos perguntando onde ficava a residência do comandante e que não pedisse Coca-Cola nos hotéis porque, definitivamente, não a encontraria.
No dia seguinte, depois de ir escutar um discurso de Fidel Castro na Praça da Revolução, dois jovens me confirmaram que Matos ainda estava vivo. Continuei meu percurso por Havana com um grupo de estudantes e jornalistas venezuelanos, e a garota de Cali, que era minha companheira de quarto. No trajeto, decidimos fazer uma parada em La Bodeguita del Medio, um famoso restaurante e bar cubano que em outra época teve Ernest Hemingway entre seus clientes.
Um empregado estava me preparando um mojito quando logo escutei alguém me chamando na parte detrás do restaurante. Era Antonio, um rapaz venezuelano de origem italiana
que estava com um grupo e ao ver que eu não me mexia do balcão, insistiu: — Veja quem está aqui. E disse que quer falar com você — gritou. — Olhe, é o Gabriel García Márquez, e disse para vir aqui — insistiu várias vezes.
Não acreditei no Antonio e continuei esperando o meu mojito. — Gabo disse que se não vem aqui, ele vai ter que ir aí — continuou dizendo Antonio.
Ao me aproximar descobri que se tratava nada mais e nada menos de Gabriel García Márquez, que já naquela época era o escritor mais importante da Colômbia. — Me contaram que entrevistou Turbay Ayala — comentou Gabo como forma de cumprimento. — Foi sim. De fato, é a única entrevista que deu antes de tomar posse como presidente — disse com orgulho, já que passando por cima de muitos veteranos com mais capacidade, havia conseguido a estreia jornalística. — O que ele lhe disse na entrevista? — perguntou o escritor, dando a me entender que em Cuba não havia acesso à imprensa colombiana. — Bem, tudo o que ele me disse saiu publicado hoje no El Tiempo — respondi, sem ter sabido ainda que na Colômbia o artigo havia causado uma revolta quando um editor o intitulou: “Governarei sem mulheres”, uma frase que havia sido tirada da entrevista. A manchete na primeira página do jornal despertou protestos por parte de grupos feministas que, durante o governo anterior, do presidente Alfonso López Michelsen,
haviam vivido sua época de ouro porque o mandatário tinha dado às mulheres cargos tão importantes como Ministério do Trabalho e várias agências governamentais.
Tudo que ia narrando sobre o que Turbay Ayala havia dito, o escritor, que nessa época morava no México, escutava atentamente, e me fazia perguntas. Mas cerca de meia hora mais tarde o grupo de pessoas que o acompanhava, e que estava em outra mesa, começou a sair.
Então lhe pedi que me ajudasse no meu propósito de entrevistar Huber Matos, se é que ainda estava vivo em uma prisão cubana. — Claro que está vivo — ele me disse. — Mas ajudo a vê-lo se conseguir que o governo permita que uns jornalistas norte-americanos entrevistem os presos políticos nas prisões da Colômbia. — Trato feito — disse-lhe enquanto ele se dirigia à porta acompanhado por seu grupo de amigos.
Enquanto o automóvel que os transportava se perdia na noite, o jovem venezuelano que com alguns de seus colegas de viagem havia escutado a conversa, soltou uma certeira observação: — É a única jornalista que se encontra com García Márquez e, ao invés de entrevistá-lo, se deixa ser entrevistada por ele — disse-me soltando uma gargalhada.
Dois meses depois, estava na redação do jornal em Bogotá quando recebi uma ligação. Era García Márquez. — Estou no aeroporto de viagem ao Brasil. Se quiser, pode vir e lhe falo da minha demanda a uma companhia brasileira
que anuncia que escrevi meu livro em uma máquina de escrever de sua marca.
Quando cheguei, estava acompanhado por dona Mercedes e seu filho Rodrigo, que saía em outro voo com rumo diferente.
Gabo me cumprimentou em tom de brincadeira: — Por que quer matar Fidel? — me perguntou.
Sem dúvida, fazia uma alusão ao artigo de uma página que escrevi dias atrás para o El Tiempo e que havia intitulado “A nova Cuba: entre a revolução e o exílio”, no qual, além das várias observações sobre o que havia presenciado, fazia uma alusão à minha busca infrutífera à casa de Fidel Castro, e às interrogações que existiam sobre Matos estar vivo ou não.
Meses depois, apresentei o artigo sobre Cuba a um concurso da Inter American Press Association junto com uma crônica sobre uns pijamas para crianças elaborados a partir de um tipo de fibra que repelia o fogo, mas, ao se descobrir que produziam mutações nas células e possivelmente câncer, foi retirado do mercado nos Estados Unidos. Seu fabricante os guardou em grandes caixas, mas uns meses depois estavam sendo vendidos na América Latina. “O que é nocivo para as crianças dos Estados Unidos, é também nocivo para as crianças do mundo”, refletia em minha crônica. Acabei ganhando uma bolsa de estudos na Inter American Press Association com a John S. Knight Foundation e The Miami Herald, que pertencia naquela época à família Knight. O prêmio me dava a opção de escolher uma universidade dos Estados Unidos ou do Canadá e optei pela Universidade Internacional da Flórida, em Miami.
Enquanto adiantava meus estudos, um dos professores da faculdade de jornalismo me vinculou com a revista Caribbean Review, que havia sido fundada por Barry Levine, um renomado professor de sociologia com muito interesse em assuntos hemisféricos. Sua revista focava em temas políticos da América Latina, e o conselho editorial tinha figuras como o dirigente panamenho Ricardo Arias Calderón, o ex-presidente da Costa Rica, Daniel Oduber e os escritores do exílio cubano, Carlos Alberto Montaner e Reinaldo Arenas. Buscando equilíbrio na chamada política de “Espadas cruzadas” da publicação, Barry queria uma figura de esquerda como García Márquez. — Vamos ver se ele aceita — respondi ao Barry.
No dia seguinte liguei ao escritor em sua casa no México. Quatro anos já haviam se passado, mas quando disseram meu nome, ele atendeu. — Não, não e não. Diga-lhe que aceito que coloque todas as pessoas que tem e me deixe sozinho — foi a resposta de García Márquez, soltando em seguida uma gargalhada. E logo acrescentou: — Não estava falando sério. Na realidade estou no México e não tenho tempo para me vincular a uma revista, em Miami, e em inglês.
Barry não deu o braço a torcer, e por vários anos seguiu com seu propósito de tentar convencê-lo, dentro de um simpático intercâmbio entre o acadêmico e o escritor similar ao que vinte anos mais tarde realizaria o produtor de cinema Scott Steindorff até sair com sua parte ao conseguir os direitos de O amor nos tempos da cólera.
— Insista, talvez ele acabe aceitando — me dizia Barry enquanto eu estava segura de que Gabo não tinha interesse em se vincular com a revista.
No entanto, um dia recebi uma ligação de Gabo. Pensei que havia mudado de ideia sobre a revista. Mas em seguida me dei conta de que tinha outro motivo. — Não teria interesse em entrevistar a professora que me ensinou a escrever? — me perguntou. — É claro. Mas não posso viajar à Aracataca — disse-lhe enquanto mentalmente pensava que a oferta era um fardo jornalístico, já que, levando em conta a amizade de García Márquez com o governo de Havana, possivelmente não encontraria nenhum editor em Miami interessado nessa entrevista. — Ela está aí em Miami. Acho que está hospedada com umas colombianas de sobrenome Ayacardi — explicou. — Acho que posso localizá-la — respondi.
Antes de desligar, perguntei-lhe: — Gabo, desculpe... Você escreve para o El Espectador e eu no El Tiempo. Por que está passando esta entrevista para mim, e não para alguém do seu jornal?
Houve um minuto de silêncio, e depois umas palavras que ainda guardo e agradeço: — Porque ninguém escreve como você — me disse.
Quase perdi o fôlego. Sabia que era uma pessoa graciosa, generosa.
Levando em conta que Aycardi não é um sobrenome muito comum, algo me dizia que podia chegar até ela. De fato, tinha uma amizade com a jornalista Rosie Aycardi, na época diretora da revista Coqueta, uma extinta publicação juvenil do grupo
De Armas (hoje Editorial Televisa). Eu trabalhava com Cristina Saralegui, da revista Cosmopolitan em espanhol, mas havia colaborado com a revista juvenil entrevistando Júlio Iglesias, Timothy Hutton e Tom Cruise.
Seguramente, pensei, Rosie pode me dar uma pista de como encontrá-la. Ela é uma Aycardi de Barranquilla e talvez Rosa estivesse hospedada com algum parente seu. O resultado da minha pesquisa foi uma mistura de sorte e casualidades da vida. Quando liguei para minha amiga para perguntar se conhecia Rosa Fergusson, ela me disse que estava hospedada na sua casa. — Ligue mais tarde porque de manhã ela tem aula de inglês — explicou Rosie, que nem imaginaria naquela época que um pouco mais de um ano depois se casaria com Barry Levine, editor do Caribbean Review, a revista política em que eu trabalhava como gerente editorial.
Quando algumas horas depois falei com Rosa pelo telefone, ela se mostrou reticente. “Não falo com a imprensa”, me disse. Mas ao escutar que Gabo me pediu que a entrevistasse, aceitou se encontrar comigo.
Convidei a professora para almoçar, em um domingo, no hotel Fontainbleau Hilton de Miami Beach, onde minhas filhas pequenas podiam desfrutar da piscina enquanto eu fazia a entrevista. Foi assim, em um ambiente tropical de praia e mar, que essa mulher excepcional foi me abrindo seu coração enquanto recriava as histórias de sua vida em Aracataca, esse povoado tão intimamente seu como também havia sido para o famoso escritor.
— Gosto muito dos Estados Unidos — me disse quando perguntei pelo seu empenho, na sua idade, em aprender inglês. — Gosto da maneira de vida e do modo de ser dos americanos porque me criei entre eles. Em Aracataca eu sempre assistia as festas da United Fruit Company. Agora que Gabito realizou o sonho de sua vida, eu também fui coroada com um grande desejo: sempre quis falar inglês e agora estou aprendendo.
Assim nasceu a entrevista que inicialmente enviei ao El Tiempo de Bogotá, jornal que trabalhava como correspondente em Miami. Esperava ver o artigo publicado com grande êxito, como ocorria com a maior parte das correspondências que eu enviava ao jornal. No entanto, para minha surpresa, duas semanas depois, a entrevista não havia sido publicada ou, como me disseram em Colômbia, na gíria jornalística, eles a “penduraram”. Decidi tentar a sorte por outro lado e enviei a entrevista para Carlos Lareau, diretor do escritório da agência EFE da Espanha, em Miami, para quem já havia feito algumas colaborações. Terminou como um furo jornalístico porque poucos dias depois foi anunciada a notícia do Nobel de Gabo e a agência informativa espanhola distribuiu a entrevista para o mundo todo. Na Colômbia, o artigo foi publicado pelo El Espectador, mas não apareceu com meu nome e sim com a manchete de um jornal mexicano que o publicou com grande sucesso. A omissão do meu nome no jornal colombiano era compreensível, devido ao meu vínculo na época com o El Tiempo, seu maior rival.
Com a divulgação da entrevista pela EFE, como por passe de mágica começaram a chover as ofertas internacionais interessadas em receber matérias sobre a professora, incluindo a
revista Vanidades, editada em Miami, e Semana da Espanha, além da mídia europeia e latino-americana que reproduziram a entrevista. Rosa e eu começamos a nos reunir nos finais de semana, e até aceitou uma sessão de fotos para a Vanidades. E ela gostava de contar histórias, e fazia como ninguém; talvez por esse motivo um dia me ocorreu que, considerando sua idade avançada, o testemunho da professora sobre o mundo em que viveu o grande escritor poderia ser de muito interesse no futuro. No final das contas, ela havia estado imersa nessa realidade que havia dado a volta ao mundo na literatura sob o nome de Macondo. Disse-lhe que essa realidade que guardava em sua memória não interessaria apenas para muitos, mas também para o próprio Gabito, que seguramente desejaria conhecer essa realidade mais além do que pôde captar com seus olhos de criança. No início teve dúvidas. — Gabito certamente gostaria de conhecer suas relembranças — insisti. Mas sem me dar conta, já havia aberto a porta para essa possibilidade. “Gabito” foi a palavra mágica. — Faço, mas não publique antes que eu tenha partido. Se não for assim, a imprensa não vai me deixar tranquila — respondeu, acrescentando que sempre preferia o anonimato e que seguramente teria conseguido passar sua vida despercebida se não fosse por um jornalista que foi a Aracataca e conseguiu que suas irmãs Isabel e Altagracia revelassem seu papel como professora na vida do escritor, e também o número do seu telefone. — Desde que me descobriu, fico me escondendo, porque como todos os jornalistas, não me deixa em paz.
Foi assim que em nossas reuniões o tema de Aracataca começou a ser uma constante. E toda vez que falava do seu passado, seus olhos brilhavam e sua alegria se tornava contagiosa. Era como se a juventude voltasse à sua alma.
No entanto, apesar de seu empenho em manter sua vida longe do holofote público, uma tarde, quando fui buscá-la para jantar, entregou-me três páginas escritas de próprio punho e letra sobre seu método de ensino com o sistema Montessori e instruções para que um dia, quando ela já tivesse partido desta vida, que entregasse a Gabito. Queria que, no que fosse concernente ao ensino, essa parte tão importante da vida, seu método, chegasse de forma fiel a outras professoras e, dessa forma, beneficiar outros alunos. — Acho que é importante que tenha isso porque, caso contrário, no futuro ninguém vai acreditar que lhe contei minha história. Assim ninguém poderá duvidar. Mas não se esqueça; quero que, graças a você, meus netos e bisnetos saibam da minha vida; que em seu sangue corre a vocação da professora, que ajudou a estimular a imaginação de um prêmio Nobel — disse-me, dando ênfase à importância de ajudá-la a divulgar seu método.
Depois, Rosa regressaria a Bogotá. Vários meses mais tarde tentei procurá-la no apartamento no bairro Pablo VI, onde me havia dito que morava, mas ninguém atendeu o telefone. Com a intenção de vê-la em uma viagem à capital colombiana, voltei a ligar no número que tinha, mas me explicaram que não morava mais ali e não sabiam nada sobre ela. Eu também me mudei de apartamento em Miami e de número de telefone algumas vezes, então se Rosa tentou me ligar alguma vez, não
pôde fazê-lo, embora realmente pudesse ter me encontrado por intermédio de nossas amigas em comum, as Aycardi, que também não souberam mais de Rosa. No final, nunca nos vimos de novo.
O tempo pareceu cobrir com um manto de esquecimento sua história até a mais recente de minhas mudanças, em agosto de 2008, propiciada pela crise financeira dos bens imobiliários nos Estados Unidos. Durante anos, havia empacotado meus arquivos sem revisá-los. Simplesmente mudavam de lugar, mas à medida que o tempo passava, aumentavam em proporções extraordinárias. Pensei que havia chegado o momento de selecionar o que era importante e jogar fora o que não era necessário. Apesar de que fazia tempo que não guardava meus artigos jornalísticos, que sem exagerar chegam a milhares, e que ia “expurgando”, descobri várias notas sobre entrevistas que escrevi no passado e sem transcendência alguma, fotos de amizades em festas já perdidas no tempo, minutas da primeira reunião de indígenas e ambientalistas no Amazonas peruano, cartas de recomendação de meus antigos patrões e folhas de vida obsoletas. Também uma série de documentos sobre figuras da história que me interessavam, incluindo entrevistas para um livro que queria escrever algum dia sobre o médico panamenho Hugo Spadafora, assassinado pela ordem do general Manuel Antonio Noriega; outro livro que tenho engavetado do ex-líder nicaraguense Edén Pastora, mais conhecido como o “Comandante Zero”, e várias cópias em microfilme do The New York Times com notícias sobre o herói filipino Emilio
Aguinaldo, um nacionalista que amava apaixonadamente seu país e lutou contra a Espanha e os Estados Unidos.
De alguma forma, um mundo de personagens e interesses compartilhando espaço nos meus arquivos: o ambientalista Robert F. Kennedy com o ex-governador da Flórida Jeb Bush; alguns cartões postais que recebi de Celia Cruz durante sua turnê pelo mundo; reminiscências dos meus três anos como assessora de imprensa de José Luis Rodríguez “El Puma”, e uma série de anotações sobre o genial escritor brasileiro Paulo Coelho, que entrevistei no Rio de Janeiro. Ao olhar a fotografia que tirei, não pude evitar o sorriso. “Quando vi sua câmera pensei que vinha para cima de mim uma fanática”, havia me dito em tom de brincadeira antes de me convidar para jantar em um restaurante na Avenida Copacabana com sua esposa Christina em uma noite inesquecível e fascinante com o grande autor brasileiro.
Foi então que me dei conta de que, em vez de estar me desfazendo das coisas, na realidade estava desfrutando das lembranças que esses papéis, já amarelados pelo tempo, me traziam. Em um arquivo com algumas colunas velhas e recortes de Gabriel García Márquez surgiram as transcrições das entrevistas que havia feito com Rosa Fergusson e um par de páginas em que se lia uma mensagem escrita a lápis para o seu famoso aluno. Lembrei-me que, pensando que talvez já não viveria muitos anos, Rosa havia me advertido que somente o fizesse chegar ao seu destinatário “depois de eu ter partido”, significando sua partida definitiva deste mundo.
“O que será que aconteceu com Rosa?”, pensei, imaginando que estaria rondando em torno dos oitenta e tantos anos
já que, prodigiosa em suas lembranças, falhava-lhe a memória quando perguntavam sua idade e eu jamais havia tentado desvendar esse mistério.
Algumas vezes no passado havia tentado descobrir seu paradeiro no Google, sempre com resultados negativos. Decidi voltar a tentar. Desta vez, eu a encontrei. Mas foi uma notícia triste. Dizia que havia falecido em 2005, aos noventa e seis anos, em Medellín, a cidade onde havia vivido com uma de suas filhas durante os últimos anos. A nota acrescentava que a professora gozava de uma saúde muito boa e que havia partido com a mesma discrição com que havia vivido, enquanto dormia.
Era o final de sua vida, mas não o final de sua história, que me inspirou a escrever.
Descanse em paz, Rosa. Outros professores agora poderão aprender seus métodos de ensino e outras crianças serão mais felizes ao descobrir o mundo através de seus sentidos; os românticos se identificarão em alguma etapa de suas vidas com sua maravilhosa história de um amor impossível, seus filhos recordarão seus esforços, seus netos poderão contar que sua avó foi a melhor professora e seu querido aluno dirá que estava certa quando, antecipando sua partida, lhe deixou um ramalhete de lembranças:
Quando Gabito ler isso se lembrará, quem sabe até com saudade, daquela etapa feliz de sua vida, sua Montessori, onde sua professora o ensinou com tanta dedicação e onde ele aprendeu e se destacou como o melhor aluno.