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A classe: uma janela para o universo

XII F3f

A classe: uma janela para o universo

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Afinal, Rosa Fergusson e seus primeiros ensinamentos tiveram um papel importante para estimular a imaginação e o amor aos estudos de seu famoso aluno? Ou talvez fossem as histórias de seus avós que despertaram as musas nessa cabecinha? Podia ser também o resultado de uma combinação dos ensinamentos de sua professora com os contos que o menino escutou em sua casa? Indubitavelmente todos contribuíram na formação do escritor em uma idade precoce. No entanto, o que não deixa dúvida é a convicção de Rosa sobre a importância de a pequena chama do conhecimento ter sido acesa em uma tenra idade.

A professora esperava que esse estímulo precoce nas tenras mentes infantis fosse seu testamento para a posteridade, de tal forma que outras professoras aplicaram o bem-sucedido método de María Montessori, que foi a primeira mulher a se formar em medicina na Itália. Passaria para a história como uma pedagoga incrível quando, ao observar um grupo de crianças consideradas retardadas e com dificuldades de aprendizado, colocou em prática um método de ensino que tornou

possível que essas crianças não apenas aprendessem a ler em uma idade precoce, como também, nos exames de final de ano, obtivessem melhores notas em leitura e escrita do que as próprias médias estaduais das crianças consideradas “normais”.

A notícia dos progressos alcançados com crianças com dificuldades de aprendizagem fez com que se tornasse uma celebridade mundial. Em 1914 viaja aos Estados Unidos a convite do cientista Thomas Edison, e seu método é adotado em várias escolas dos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, com o apoio de Alexander Graham Bell, o inventor do telefone.

Havia começado na Itália, com o apoio do governo, até que se rebelou contra o doutrinamento político das crianças imposto pelo regime de Mussolini. A pedagoga decidiu se exilar na Espanha, onde abriu vários institutos para capacitação de professoras no método que levava o seu nome. Logo sua técnica se espalhou por toda a Espanha. No entanto, ao estourar a Guerra Civil Espanhola, ela vai para a Holanda, onde se radica por um bom tempo. Em 1939 embarca para a Índia com seu único filho, Mario, e funda dezesseis escolas de treinamento para professoras em vários centros de ensino Montessori. Desde então seu método já havia se espalhado por quase todo o mundo. Foi nomeada três vezes ao prêmio Nobel da paz, mas, sem nunca recebê-lo, morreu em 1952, na Holanda.

Rosa, que desde muito pequena sentia uma grande vocação para o ensino, havia lido um dia no jornal da capital El Tiempo uma crônica sobre a médica e pedagoga italiana e suas inovadoras técnicas para abrir a cabecinha das crianças ao mundo do conhecimento. Fascinada pelos resultados reportados na

matéria jornalística e com as experiências compartilhadas com a professora Pujol, que havia estudado com María Montessori, em uma conferência em Santa Marta, Rosa se propôs a tirar proveito desses ensinamentos.

Ao se formar, Rosa sentiu uma grande satisfação pessoal e familiar. Com orgulho e alegria, seu pais receberam sua graduação; e devido às suas boas notas ela recebeu uma bolsa de estudo do governo nacional para a Espanha, como prêmio especial por sua consagração e êxitos alcançados ao longo de seus estudos. Sem levar em conta a grande oportunidade que isso representava, sua mãe não a deixou ir. Os pais do passado não achavam adequado que uma filha viajasse sozinha para o estrangeiro. Rosa se sentiu como se estivessem cortando suas asas, uma oportunidade que nunca poderia recuperar.

Depois recebeu uma nova bolsa para estudar enfermagem em Bogotá, a capital colombiana, localizada no interior do país, mas novamente não teve a aprovação de seus pais. No entanto, como ocasião da guerra com o Peru, quando os vizinhos do sul tentaram se apoderar de Leticia, um porto colombiano sobre o rio Amazonas, as escolas tiveram que entrar em um intervalo sabático que Rosa aproveitou para fazer um curso oferecido pela Cruz Vermelha em Bogotá, sem que seus pais se opusessem.

Muitas vezes se perguntou se o destino se encarregou de que as coisas ocorressem assim, porque tinha uma missão mais importante. E sempre dizia que o grande desafio de sua juventude e sua maior satisfação foi ter sido a diretora do Montessori de Aracataca.

Foi muita a satisfação que a professora sentiu quando abriu essa Montessori; em cada carteira deveriam sentar duas crianças da mesma idade e estatura. A classe logo ficou cheia de crianças e dava para ver a alegria dos pais ao entregar seus filhos a alguém que tinha tanta dedicação para cuidar deles. Assim como o padeiro que prepara a massa para em seguida trabalhá-la, do mesmo modo a professora primeiro disciplinava seus pequenos alunos para depois ensinar-lhes as primeiras letras.

Todo dia, a professora recebia seus alunos na entrada desse laboratório extraordinário da vida, um livro aberto às aventuras do conhecimento. Entrar por essa porta era como chegar a um reino mágico, com uma explosão de cores, aromas, sons e sabores indescritíveis que as crianças desfrutavam com um fascínio de aprendizes em um universo incrível. As crianças sabiam que ao se sentar em suas carteiras, a professora parecia tirar uma varinha mágica com o poder de levá-los a mundos nunca imaginados. Ela lia para eles contos sobre gatos valentes que andavam com botas, ursos mansos que falavam, tapetes que voavam e príncipes transformados em sapos; ali mesmo, em sua própria sala de aula e em seu povoado, havia um mundo único em que os adultos pareciam não se dar conta, ocupados como estavam com seus afazeres e preocupações da vida diária. Por isso que, em vez de buscar desculpas para ficar em casa, os alunos de Rosa não queriam perder nem um minuto de aula, que Gabo descrevia como “brincar de estar vivo”.

A rotina diária começava com uma revista simples da higiene pessoal. Nenhuma criança podia chegar sem banho tomado;

as orelhas e os dentes deviam estar limpos e as unhas, além de impecáveis, cortadas. A roupa podia ser pobre, mas asseada, e as roupas íntimas deviam ser trocadas diariamente, do mesmo modo que as meias. Os sapatos eram também revistados e podiam ser os mesmos todos os dias, mas limpos. Essa inspeção era feita de maneira rápida e carinhosa, felicitando o aluno pela boa apresentação para lhe dar estímulo, nunca o humilhando. E se o aluno precisasse de atenção com seu asseio pessoal, ela avisava aos pais de maneira delicada. “Deve cortar as unhas da criança, ela tem que estar mais curta para não arranhar”, era sua forma de dizer as coisas. Do mesmo modo, a professora era enfática ao afirmar que nunca deveria criticar a criança na presença de terceiros porque isso afetava a autoestima e os tornaria inseguros.

Depois de fazer a inspeção do asseio, os alunos ocupavam seus assentos e começava então o que ela chamava de “exercício do silêncio”, uma das rotinas favoritas que consistia em se manterem sentados colocando as mãos sobre as carteiras e a cabeça sobre as mãos com os olhos fechados. Então, deveriam ficar absolutamente em silêncio, sem fazer ruído nem com as mãos, nem com os pés, nem com a boca. Nesses escassos minutos a criança se reencontrava consigo mesma. Esse exercício, que parecia um jogo e que as crianças se encantavam, ajudava a atingir não apenas a disciplina do corpo como também da mente. Rosa colocava as duas mãos em forma de buzina na boca e, como em segredo, ia chamando em voz baixa cada aluno pelo seu nome e, em meio desse absoluto silêncio, cada criança respondia “Presente” levantando a mão e voltando à posição original de imediato. Tinham que estar muito alertas

porque a professora os chamava quase sussurrando e se não estivessem atentas ao som de sua voz, não poderiam escutá-la.

Em seguida, ela os fazia dar uma volta em torno da classe, caminhando muito direitinhos e sobre a ponta dos pés. Depois, pedia-lhes para imaginar que eram aves, e moviam os braços, batendo as asas. Outras vezes avançavam, dando pulinhos e depois, sem fazer o menor ruído, começava outro exercício que consistia em lhes ensinar a correr até a carteira sem fazer barulho, e a se levantar da mesma forma de novo no mais absoluto silêncio. Esse exercício que parecia uma brincadeira combinava a aprendizagem de bons modos com disciplina. Depois mandava um a um abrir e fechar a porta, tudo em silêncio.

Com os olhos fechados, tinham que adivinhar que fruta a professora havia escondido dentro de um pano. Ela aproximava a fruta nos pequenos narizinhos. E a criança, com os olhos fechados, discernia entre duas frutas: — Manga! — dizia um, feliz com sua descoberta. — Goiaba! — afirmava outra triunfante ao perceber o cheiro característico dessa fruta tropical.

Assim iam desfilando o lulo, a maçã, o limão, o abacaxi, o mamão, o coco, a lima, o tamarindo, além de fragrâncias mais sofisticadas para os pequenos olfatos infantis, como o café, a canela, a noz-moscada e a pimenta. Examinavam as diferenças com o tato entre uma pedra lisa de rio e outra arenosa proveniente da montanha, a suavidade das penas de uma ave ou a pele felpuda de um coelho, em contraste com o duro casco do tatu ou da tartaruga, passando pela sensação do veludo e da seda. Não podia faltar a grande aventura pelos sabores,

que descobriam com os olhos fechados enquanto a professora lhe fazia provar o mel de abelha, açúcar, chocolate, sal, canela em pó, reconhecendo pouco a pouco toda uma gama de gostos que faziam com que a matéria de estudo se tornasse ilimitada nas descobertas e possibilidades. Às vezes se dava ao incômodo de levar até a classe uma pequena vitrola que pedia emprestada na vizinhança e que ganhava vida ao girar uma manivela enchendo a sala de sons que incluíam Mozart, Beethoven e Strauss. Em outras ocasiões o concerto se centrava no pátio, onde as crianças aprendiam a distinguir o canto dos melros, sabiás, periquitos, faisões ou um turpial. Desfrutavam também do som do rio em ocasiões de passeios que eram recompensas pelo bom comportamento.

Com emoção, todos os dias os alunos celebravam a descoberta desse universo que antes se encontrava escondido por um véu e que a professora os ajudava a desvendar com o entusiasmo e fascínio, como uma extraordinária explosão de cores, sabores e sons.

Uma das principais inovações para o ensino com o método Montessori consistia em as crianças aprenderem a ler e escrever escutando primeiro os sons, repetindo-os até depois de conhecê-los bem, para que só então pudessem escrevê-los. — Gabito, como se lê o “M” e o “A”? — perguntou Rosa. — MA, professora — respondeu Gabito, descobrindo por fim o mistério da leitura que tanto o havia atormentado quando lhe diziam EME com A e ele lia EME-A.

Não se dizia “eme” e “a”, porque para as crianças era difícil assimilar a leitura dessa forma. Mostrava o M pronunciando-o

MMM como corresponde ao seu som e depois o A: se diz MA. Rosa também enfatizava a importância de lhes ensinar a segurar o lápis para escrever, porque, caso contrário, jamais o fariam corretamente. Depois, podiam trabalhar no que quisessem; umas olhavam livros com imagens, outras contavam em um ábaco, desenhavam com cores, ou faziam figuras de animais com massinha, que era uma das atividades favoritas. Enfim, cada criança trabalhava no que mais gostava e assim a professora podia avaliar quais eram as preferências de cada uma.

A professora passeava pela sala de aula, observando detalhadamente cada criança para ver as aptidões individuais e se dirigia àquela que poderia precisar de ajuda. Cada aluno trabalhava em seus próprios interesses todo o tempo que quisesse até que decidia fazer outra coisa, guardava em sua carteira esse material e tirava outro; assim cobria as distintas áreas de aprendizagem. A professora apenas observava e corrigia, mas sem dizer à criança “isso está mal”, porque segundo suas próprias palavras “nessa idade precoce a crítica é catastrófica e o estímulo funciona melhor”.

Manter os alunos entretidos fazia parte do segredo para que não começassem a conversar em aula ou a discutir por besteiras. Do mesmo modo, todos sabiam que existiam regras que não podiam violar. Dessa maneira, começavam a se familiarizar com a disciplina.

Uma das regras mais simples tinha a ver com a forma de se expressar. Os palavrões eram proibidos, considerando que não eram bons para a cultura em geral, nem para o espírito. Rosa lhes dizia: “Se falar palavrão, eu lavo a boca com sabão e se

reclamar, vai comer parede”, que significava que a colocaria de castigo, de pé virado para o muro. Quando ocorria uma briga entre dois meninos ela os chamava com voz firme, essa ameaça de fazê-los comer parede os detinha. Gabito nunca comeu parede e nem Rosa teve necessidade de lavar a boca de quase nenhum de seus alunos. No entanto, sustentava que, embora seus alunos fossem muito respeitosos, não havia espaço para a advertência.

Semanalmente os pais deviam enviar à escola um relatório sobre o comportamento da criança em casa, acerca de sua obediência, ordem e responsabilidade, e com esses dados a professora completava o seu relatório mensal sobre cada aluno.

Para Rosa, seu trabalho não era apenas uma forma de ganhar a vida. De fato, com o passar dos anos sempre recordaria de cada uma das crianças que passaram por sua classe, onde se sentavam, quais eram suas principais virtudes e, muito especialmente, seus rostos.

Sempre recordaria de Gabito quietinho e muito atento ao que ela dizia, sentado no início em uma das carteiras da primeira fila, e depois na terceira, justamente no centro da sala de aula.

Rosa não precisava que alguém lhe contasse que seu estudante conservava um lugar muito especial nas lembranças de Montessori de Aracataca e os ensinamentos de sua primeira professora. Na realidade, tinha certeza de que Gabito foi um menino feliz em sua aula e que soube tirar o melhor proveito de tudo o que aprendeu nessa etapa da sua infância, da mesma forma que ela havia desfrutado sua experiência de ser a

fagulha que acendeu a chama do conhecimento em Gabito e de todas as crianças que passaram por sua sala de aula.

O testemunho desse vínculo tão extraordinário entre a professora e o aluno está presente nas entrevistas e obras do escritor, que sempre a lembraria e descreveria as aulas na Montessori como uma incrível aventura da vida. Rosa esperava que seu aluno famoso a ajudasse a disseminar o método Montessori. Com esse propósito, aos seus setenta e quatro anos viajaria 1.300 quilômetros para entregar ao escritor umas anotações em mãos explicando o processo de ensino que podia beneficiar milhões de crianças. De fato, até com esta autora ela deixou para o escritor quatro páginas para que fossem entregues “quando eu já tenha partido”.

“Quando Gabito ler isso, se lembrará, quem sabe até com saudade, daquela etapa feliz de sua vida, sua Montessori, onde sua professora o ensinou com tanta dedicação e onde ele aprendeu e se destacou como o melhor aluno”, dizia a mensagem com sua bela letra dirigida ao escritor.

Rosa sabia que suas palavras teriam o impacto que ela sentiu ao receber um bilhete do escritor escrito à mão dirigido a “Minha querida professora”.

Convencida de que o êxito de uma professora deve ser medido pelas realizações alcançadas por seus alunos, acreditava que é a capacidade do professor para ensinar e não apenas o conhecimento ministrado que se consegue bons frutos. “O método Montessori me deu resultados magníficos, especialmente com o aluno que iniciei, esse menino chamado Gabriel García Márquez. Não é meu desejo diminuir o valor da educação

que ele recebera em seu lar, que, como já havia dito, foi e tem sido um lar exemplar, tanto o de seus avós como o de seus pais”, afirmava.

Foi assim, naquele povoado perdido na geografia terrestre, que a professora viu seu propósito cumprido para conseguir um futuro melhor para seus estudantes. Contra todas as probabilidades, desse povoado empoeirado e dessa escola humilde saíram homens célebres que a professora recordaria sempre, com seus nomes e sobrenomes.

Rosa se empenhou para que seu famoso aluno a ajudasse a disseminar a importância do método Montessori e o Nobel realizou o desejo de sua professora em sua autobiografia Viver para contar, onde pondera o método Montessori e recria a experiência do universo que descobriu na aula de Rosa Fergusson, na escola rural de Aracataca.

Modesta em suas realizações e discreta em sua vida pessoal, a professora somente concedeu entrevistas em sua vida para dois jornalistas.

“Tenho resistido em conversar com a imprensa, porque se o faço, não volto a ter mais paz. Agora, se tenho que falar do Gabito quando pequeno, sinto um prazer enorme em fazê-lo! Recordar aquele tempo de sua infância, e eu mais jovem, quando dediquei tudo o que aprendi para organizar aquela mente e procurar tirar o melhor proveito desses ensinamentos. Hoje, Gabriel García Márquez, aquele menino tão cumpridor do seu dever, tão são em seus costumes, tornou-se um grande escritor mundial. Como me sinto orgulhosa de ter pego nas minhas mãos esse prodígio de hoje, mas o meu maior

orgulho sempre foi conservar somente para mim esse segredo: Rosa Helena Fergusson, a primeira professora de Gabriel García Márquez!

Gabito disse em O cheiro da goiaba que seu desejo de ver sua professora o fez amar o colégio. Eu diria que não era apenas esse desejo, senão o de aprender. Nunca deixou de fazer uma lição de casa e sempre apresentava todas ordenadas e limpas. Se gostava muito da sua professora, é assim que tinha de ser, a criança dá o que recebe. De minha parte sempre recebeu carinho, atenção e estímulo. Quando uma criança grita com os pais, podem ter certeza de que é assim que é tratado por eles. Quando os pais se queixam que seu filho é muito travesso e insuportável, esses pais não souberam se aproximar de seu filho, não o compreenderam, não aproveitaram o seu dinamismo, sua inteligência e pode ser que os pais tampouco os compreenderam, nem os ajudaram.

Que Gabito seja hoje o resultado desses primeiros ensinamentos, daquela disciplina, possivelmente. Mas não podemos deixar de lado os ensinamentos que recebeu em sua casa, Gabriel García Márquez, o do ontem, hoje se tornou o melhor escritor.”

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