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Tanto dinheiro que o queimavam
VIII F3f
Tanto dinheiro que o queimavam
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Enquanto as sombras começavam a cobrir o horizonte e as aves voavam em busca de refúgio na frondosa folhagem, Rosa apressava o passo para regressar ao lar. Era então que por sua mente começam a galopar os acontecimentos presentes e passados, em uma sucessão de imagens e visões que rompiam o silêncio. Avançava contente, sonhando acordada, apesar de os mosquitos se fazerem presentes, empenhados em se apoderar do caminho.
Ela gostava de dar uma volta para passar de novo perto das casas dos executivos da United Fruit Company, empresa pela qual sentia uma grande estima, comparando-a com um irmão rico que havia trazido trabalho e prosperidade à localidade. Por toda sua vida Rosa seria fiel à grande companhia produtora e exportadora de banana, à qual atribuía o rápido crescimento de Aracataca e a riqueza que trouxe consigo. Sua chegada à região representou uma era de abundância. De fato, em um determinado momento corria tanto dinheiro que nos finais de semana os forasteiros organizavam bacanais e
nas noites faziam fogueiras queimando rolos de dinheiro que inclusive utilizavam como velas quando saíam para dançar.
Eram folias proibidas em que o rum e o uísque importados rolavam soltos, com a indispensável participação das “mulheres de vida alegre”, nome que para Rosa parecia muito adequado àquelas que se dedicavam a esse ofício porque sempre estavam em festa nessas bebedeiras que se prolongavam até as primeiras horas da madrugada. Nem precisa dizer que essas festas eram um tabu e estavam vetadas para todas as mulheres honradas da região. Eram também uma dor de cabeça para o pároco de Aracataca, o padre Angarita, que censurava energicamente esses bacanais qualificando-os de indecentes e pecaminosos.
A professora recordava que na sua infância as casas eram iluminadas nas noites com candeeiros, velas ou com lamparinas de gasolina, que os encarregados de manter acesos bombeavam vigorosamente até que o combustível ganhasse força e queimasse com luz azulada uma telinha de gaze que iluminava até os cantos mais distantes com uma potente luz esbranquiçada. No entanto, Rosa tinha em torno de três anos quando a usina elétrica da grande empresa bananeira começou a fazer a extensão de suas redes e o povoado passou a ficar iluminado até as dez, quando se apagava e tudo desaparecia na escuridão.
O fato de ter crescido em um setor onde a presença norte-americana era palpável fez com que Rosa se sentisse muito próxima dos Estados Unidos, igual aos membros de sua família. Jamais compartilhava as denúncias da imprensa sobre uma
suposta matança de empregados da bananeira durante uma reivindicação trabalhista, um tema sobre o qual o chefe da família Fergusson e o coronel Márquez nunca conseguiram chegar a um acordo, de tal forma que desde então suas conversas se limitavam a um cumprimento cordial. — Amanhã vamos almoçar na casa do coronel, que estará dando as boas-vindas em sua casa a uma delegação de Guajira — dizia a mãe de Rosa esperando uma resposta do esposo. — Vai você com as meninas — respondia Pedro, que quase sempre encontrava uma desculpa para ficar em casa.
Ambas as famílias estavam a par desse distanciamento, mas as mulheres mantinham uma relação muito próxima. — Não veio? — perguntava dona Tranquilina, mas somente por protocolo. — Não, comadre. Tinha que colocar umas contas em dia e teve que ficar em casa como o Manuel, que o está ajudando — respondia a mãe de Rosa.
A professora e sua família defendiam com eloquência a empresa que as permitiu levar uma vida sem angústias econômicas e até com comodidade. Como muitos, sabiam que da presença da empresa norte-americana dependia seu trabalho e sobrevivência. No final das contas, toda a publicidade em torno do tão falado conflito trabalhista se transformou na pedra angular da mudança que passou Aracataca quando a empresa se retirou em busca de destinos mais hospitaleiros, deixando para trás as construções que haviam erguido. Como consequência, os habitantes da região ficaram sem empregos,
sem seus sonhos de progresso e sem a possibilidade de desfrutar de uma aposentadoria tranquila.
Ao término de suas tarefas diárias, os homens tinham muitas maneiras de passar o tempo: jogavam xadrez, dominó, pôquer e vinte e um, ou se entretinham fazendo chinchorros, como se chamavam as redes para pescar, em que colocavam pequenos pesos de chumbo na parte inferior, um trabalho que levava longos meses. Outros matavam as horas de tédio na zona alegre. As mulheres, em contrapartida, sem importar sua condição social, eram experts nas artes das agulhas; faziam crochê e macramê, bordavam toalhas em ponto-cruz, ou os jogos de lençóis que as jovenzinhas usariam para quando chegasse o seu Príncipe Encantado, o que quase sempre demorava mais tempo do que esperavam. O motivo era que os romances delongavam em se concretizar devido ao excesso de zelo familiar.
Desde muito jovens, os rapazes saíam para estudar em Barranquilla ou Santa Marta, e regressavam somente para passar os finais de semana com suas famílias. Era então que com olhos de águia fixavam alguma jovem que oferecia as condições que buscavam em sua futura esposa, e assim começava o namoro.
Seguindo a tradição, as moças se sentavam nas cadeiras de balanço em frente à porta de suas casas, conversando com suas amigas. Os rapazes as observavam e quando gostavam de alguma garota se arriscavam a passar diante dela e respeitosamente diziam “com licença” enquanto caminhavam. Somente se aproximavam para cumprimentar depois de um primeiro encontro e de ter certeza — por um olhar ou sorriso — que seu interesse seria correspondido. Com frequência surgia então
um romance que se expressava por intermédio das cartas que o namorado deixava dissimuladamente ao passar, ou que fazia chegar por meio de terceiros, já que os pais sempre montavam uma muralha para os que os galanteadores não se aproximassem de suas filhas.
Rosa gostava da ideia de encontrar o homem de seus sonhos em frente à porta de sua casa. No entanto, sua mãe fazia de tudo para evitar que isso ocorresse logo.
Com o argumento de que sua filha precisava se distrair e para que não pensasse em “asneiras”, como se dizia naquela época, a mãe de Rosa decidiu mandá-la durante as noites dos fins de semana para jogar loteria na casa de dona Tranquilina. Esse é um programa que não falhava aos sábados ou domingos, quando os rapazes voltavam ao povoado.
Depois de banhada, perfumada e embelezada, Rosa se sentava com suas irmãs na frente da porta de sua casa. Sabia que logo, pela rua principal, começariam a passar os rapazes com intenções românticas. Mas isso durava apenas uns minutos porque logo passava Wenefrida, convidando-as para jogar loteria na casa do coronel, um convite que nunca conseguiam evitar, roubando a esperança dos sonhos românticos das jovens moças.
Com a falta de ação, a imaginação era muito importante nesses romances, que eram repletos de expectativa e receio. Uma carta, uma flor ou um olhar eram capazes de iluminar noites inteiras. Os galãs decoravam os melhores poemas da época e recitavam às suas namoradas. Rosa adorava ler o poeta modernista colombiano José Asunción Silva e recitava de
memória seu “Nocturno III” sobre a lembrança de uma mulher amada em uma noite enluarada em que o seu reflexo se projeta no caminho como uma solitária e longa sombra. Estava também entre seus escritores favoritos o escritor irlandês Oscar Wilde, que Rosa recitava de memória. Quanto aos contos infantis se destacavam “O príncipe feliz”, “O gigante egoísta” e “O rouxinol e a rosa”, que faziam parte do cardápio editorial para apresentar o amor e a literatura aos seus alunos, acrescentando um ensinamento moral. E quanto à obra-prima de Miguel de Cervantes, Dom Quixote, não apenas havia desfrutado as lendárias aventuras do magro personagem, como também desafiando aqueles que achavam que essa era uma obra difícil de ensinar aos jovens. Rosa sabia como fazer seus alunos entenderem as aventuras do grande cavaleiro errante, acompanhado em um pangaré por Sancho Pança, seu fiel escudeiro.
Segura de que boas leituras estimulariam a imaginação das crianças, Rosa sempre aparecia com uma nova história para compartilhar com seus alunos. Conduzidas por esses contos, viajavam em tapetes voadores, sonhavam com princesas encantadas ou se surpreendiam com os personagens extraordinários de As mil e uma noites, livro fascinante que gozava de grande popularidade entre as crianças e os adultos, apesar de alguns dos contos da coleção mais importante do mundo árabe serem proibidos para menores.
A vida dos habitantes de Aracataca era uma mistura de monotonia e entretenimento, entre leituras, sonhos por realizar e problemas da vida diária. Ninguém passava fome porque todos os homens tinham trabalho, e o que ganhavam dava de sobra
para sustentar suas mulheres e seus filhos. As mulheres se ocupavam dos afazeres domésticos e contavam com a ajuda de empregadas que geralmente terminavam por se sentir parte da família para quem trabalhavam. Com os anos, Rosa chegaria à conclusão de que nesse povoado realmente não existiam verdadeiras preocupações. Apesar de a distância que se encontrava Cataca da chamada “civilização”, sempre acontecia algo: desde um bazar ou um concurso de beleza, até aniversários ou um batizado. Ali não se conhecia o fantasma da solidão que com frequência atormenta os habitantes das grandes cidades.
A jovem professora desfrutava de todos os afazeres e detalhes cotidianos que envolviam o ritmo desse lugar em que cresceu em meio ao alvoroço de seus pais e irmãos. No entanto, seus progenitores sempre guardavam no coração a dor do filho que era sua adoração e que morreu aos quatro anos. Dom Pedro, como o povo chamava seu pai, era um homem respeitado por todos, muito trabalhador, honesto e de hábitos saudáveis. Jamais chegou em casa embriagado e jamais se envolveu em alguma aventura com outra mulher. Seus filhos o temiam e o adoravam, em uma época em que não se questionava a autoridade dos pais. Rosa teve uma infância feliz em Aracataca, ao lado de seus irmãos Manuel, Isabel e Altagracia, uma família que cresceu sem preocupações com o futuro.
Apesar de seu caráter aberto, Rosa era cautelosa ao falar de suas intenções de explorar o mundo que existia além de Aracataca, porque sua família sonhava em morar ali por toda a vida. Anos mais tarde, seu irmão Manuel se mudou para Sevilla, setor habitado pelos empregados de alto escalão da Zona
Bananeira. Ali comprou uma bela casa construída pela companhia durante o apogeu de sua permanência na Colômbia. Rosa o descreveria como um homem que aproveitava sempre o presente e era feliz recriando o passado em sua memória. Mais de uma vez ouviu dizer que se tivesse oportunidade, não mudaria nada em sua vida, desde que não perdesse nem um só momento vivido em Aracataca. Assim pensavam também suas irmãs, que desfrutaram cada acontecimento, incluindo nascimentos, casamentos e primeiras comunhões. E, embora todos se ressentissem do calor e da poeira, sabiam tirar proveito das coisas positivas que encontravam no povoado, incluindo o atrativo de suas lendas, a alegria do seu povo, as tardes frescas debaixo da sombra das amendoeiras e acácias, e em especial das lembranças de seus avós, que, ao partirem deste mundo, deixaram suas histórias vivas para serem contadas repetidamente a seus filhos e netos, que sempre as escutavam com grande fascínio.
Ainda não conheciam o telefone, nem a televisão, e nem se sabia que a lua era um território desolado e árido. Mas Rosa diria mais tarde que ter nascido na primeira década do século XX a permitiu desfrutar de um momento de encantamento infinito diante de todos os grandes descobrimentos que surgiram: as geladeiras elétricas, o telefone, o fogão a gás, os filmes coloridos, o rádio, as ruas pavimentadas, os automóveis, o arcondicionado, a televisão, o avião e os voos espaciais.
Como quase todas as pessoas do povoado, no final da tarde Rosa costumava pegar sua espreguiçadeira para se sentar debaixo de uma frondosa amendoeira, antecipando a tertúlia da
vizinhança, que sem uma convocação especial coincidia com a descida do sol no poente cobrindo o horizonte com tonalidades vermelhas e alaranjadas. Era o melhor momento do dia para o descanso e uma conversa gostosa. Quase sempre chegava acompanhado de uma leve brisa e as ruas pareciam se converter em uma grande sala de visitas enquanto as crianças brincavam.
Rosa então se libertava do cansaço dos afazeres diários. Enquanto balançava na espreguiçadeira, sonhava acordada.