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O reencontro

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O reencontro

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“O coração não envelhece”, pensou Rosa, ao recordar das antigas glórias de sua juventude que em sua mente se misturavam com a nostalgia dos acordeões e o palpitar dos tambores enquanto seus pés dançavam sem descanso o tema musical do momento. Já não caminhava tão leve como uma pluma pelas ruas de Aracataca. Quase meio século depois, o seu andar era pausado nessa manhã e em um novo cenário: nada mais e nada menos que a capital do país. O sol brilhava timidamente sobre o altiplano de Bogotá, refletindo nas janelas dos novos edifícios e nas pequenas gotas de orvalho que ainda cobriam timidamente as delicadas pétalas das roseiras simulando uma geada de cristais de quartzo sobre o tapete verde dos prados. De vez em quando saltava uma rã travessa ou aparecia uma minhoca rosada se arrastando até um destino incerto ao cruzar a diminuta vala de terra úmida entre os jardins e o cimento frio da calçada.

Rosa desfrutava os contrastes entre a fresca primavera da metrópole no alto da cordilheira dos Andes e a paisagem de antigamente, essa tão inesquecível de Aracataca, calorenta,

empoeirada e cheia de sons, com cigarras monumentais e aves de colorida plumagem no meio da natureza saturada de aromas tropicais. Cheia de emoções, recriava em sua memória as lembranças enquanto caminhava até à cabeleireira do bairro onde esperava resgatar um vestígio de seu esplendor de outrora.

Um par de horas mais tarde, saiu do salão de beleza com o aspecto rejuvenescido pela cor da tintura de um castanho intenso, as unhas pintadas de vermelho da moda e se sentindo tão fresca como se por um passe de mágica houvessem evaporado os longos anos transcorridos daquelas lembranças juvenis que guardava em seu coração.

Havia planejado vestir a sua melhor roupa de duas peças, estrearia sapatos e havia comprado um novo batom para os lábios, o vermelho vinho tinto que lhe favorecia muito. Esses preparativos eram justificados por um acontecimento especial que havia antecipado durante toda a semana com a mesma ansiedade de uma debutante que contava os dias para a data do seu primeiro baile.

Finalmente, por volta das cinco da tarde, encontrava-se diante da antiga fachada de pedra do teatro Colón, que se vestia de gala para a estreia da adaptação teatral de Os funerais da Mamãe Grande, cujo autor era Gabriel García Márquez, um de seus primeiros alunos em Montessori, que agora havia se tornado em um grande escritor de fama internacional.

Com uma vaidade feminina impermeável ao passar do tempo, observou o seu reflexo no vidro da janela de uma padaria. Não pode conter um suspiro. A mulher que sempre acreditou

ser invencível diante das barreiras dos convencionalismos de sua época começava a descobrir que o tempo não passa em vão. Seu cabelo já não caía sobre as costas como uma cascata com brilho de estrelas, seus olhos careciam da explosão de vida de seus anos juvenis e seus contornos faciais haviam perdido a definição que tanto apreciava o cigano que todo ano chegava ao povoado com uma câmera nova, empenhado para que posasse para suas fotografias. No entanto, com seus sessenta e tantos anos, bem vividos e nunca confessados, Rosa ainda era uma mulher atraente e em qualquer ambiente social dificilmente passava despercebida. Miúda, com seu metro e meio de altura, adivinhava-se algo especial em sua presença, em seu porte e em seus olhos cor de café que, além de muito expressivos, deixavam transparecer uma mescla de sabedoria e doçura.

Olhou o relógio, comprovando que havia chegado com tempo de sobra; ainda faltava mais de dez minutos para o encontro com sua filha Álida, que havia decidido acompanhá-la nessa ocasião tão especial. Enquanto isso, desfrutava o prelúdio de uma grande noite que se antecipava, saboreando cada detalhe, desde as saudações eufóricas daqueles que, como ela, haviam chegado cedo nessa luxuosa recreação no cenário, até os cartazes que nas paredes anunciavam a obra, com o nome do escritor em letras grandes: Gabriel García Márquez.

Entretida com o que passava ao seu redor, de repente viu que se aproximava em passos lentos um homem bigodudo trajando um paletó xadrez. Aproximou-se sem pressa, passou ao lado, observou-lhe por um instante e se afastou. Muito

próximo, um grupo de damas muito elegantes, com casacos em tons escuros e golas de pele, conversava. Com seus penteados de salão de beleza, usavam suas melhores joias e se cumprimentavam com grande alegria, celebrando a ocasião que as reunia. Achou que reconhecia uma delas, mas não estava segura, desviou sua atenção até a porta de entrada. Então, viu que outra vez veio até ela o cavalheiro bigodudo com paletó xadrez. Passou ao seu lado lhe examinando dos pés à cabeça e se afastou de novo.

“Havia lhe detalhado com desmedido interesse esse homem misterioso?”, perguntou-se. Parecia que levava uma centelha de luz no seu olhar. Talvez quisesse dizer algo... Rosa tratou de esmiuçar todas as possibilidades que cruzavam sua mente. Depois se convenceu que possivelmente a havia confundido com outra pessoa. Voltou a pensar na peça de teatro que minutos mais tarde seria encenada, e com que tamanha ansiedade ela a esperava.

Por sua memória desfilaram as imagens do menino que caminhava com passo rápido ao seu lado no povoado de sua juventude, um lugar de clima quente em sem pretensões de grandeza, em contraste com o ambiente seleto em que se encontrava agora. Bastava olhar ao seu redor para perceber o longo caminho que havia percorrido e os obstáculos vencidos.

Olhou de novo o relógio. Os ponteiros indicam cinco e trinta da tarde e o público continuava chegando, amontoando-se na entrada do teatro. Ainda era cedo, e graças ao seu hábito de pontualidade, sempre contava com tempo para desfrutar dos preâmbulos de qualquer evento que assistia, desde um

casamento até um funeral. Assim podia sentir o ambiente, ver o que nunca veem aqueles que sempre chegam tarde a todas as ocasiões. Por isso, apesar de ainda não terem aberto as portas do Colón, ela tinha o privilégio pouco comum de desfrutar cada momento e cada detalhe, sem pressa.

Um vento frio a fez retornar ao presente e decidiu se aproximar mais da porta, buscando se proteger para evitar um resfriado. Muito menos queria que a brisa despenteasse o seu cabelo. “Espero que não chova”, disse a si mesma, olhando para o céu que começava se cobrir de nuvens negras. Pensou em cruzar a rua para se certificar se sua filha havia chegado, quando, quase de surpresa, viu se aproximar de novo o homem misterioso. Agora não tinha dúvida alguma; não era por mera casualidade que o misterioso personagem passava ao seu lado. No entanto, desta vez, não passou direto. Parou diante dela olhando-a com uma expressão muito confiante. — Você é Rosa Fergusson?

Ela ficou perdida por um instante observando esses olhos escuros masculinos realçados por espessas sobrancelhas negras. Quando seus olhares se cruzaram, sentiu que seu coração parecia um cavalo em disparada. Com surpresa, acertou ao dizer: — Sim, sou eu, sua professora.

Havia perdido a conta do tempo que passara esperando esse momento. Era o Gabito, como ela o chamava, embora lhe custasse muito reconhecê-lo. No final das contas, não via seu aluno desde que era um menino e somente voltaram a se encontrar depois de muitos anos quando foi visitá-lo, por uns

poucos minutos, na redação de El Espectador, onde começava a ganhar projeção como repórter. Naquela época era um jovem franzino de bigodes e cabelo alvoroçado, mas agora o tinha à sua frente transformado em um homem maduro e famoso no mundo das Letras. Surpreendida, deu-se conta de que mesmo olhando-o de perto, tornava-se quase impossível resgatar a última imagem que havia ficado gravada na sua memória.

O escritor a olhou interrogativamente, tratando de dissimular sua surpresa. Em meio a esse mar humano que esperava na entrada do teatro, essa mulher havia se encaixado de alguma maneira no arquivo de suas lembranças. Como jamais se esquecer da bela jovem que, além de ter lhe ensinado a escrever na sua infância, havia despertado em seu interior um comichão que anos depois identificaria como o mais próximo de uma paixão? Parecia incrível que tivessem passado cerca de quarenta anos desde aqueles dias inesquecíveis no colégio Montessori de Aracataca, mas quando viu sua figura de longe na entrada do teatro Colón, sentiu-se magnetizado pela sua presença. E não era que, indo mais além da pele, sobrevivia imperecível a imagem juvenil que levava impressa em seu coração e em sua memória? — O que a traz aqui? — ele perguntou, emocionado. — Vim ver sua obra — respondeu ela. — Mas esta obra não serve... — brincou o escritor enquanto esboçava um sorriso debaixo de seu espesso bigode. — Você sabe que isso não é verdade e que por algum motivo triunfou como escritor — replicou Rosa, com voz muito segura.

O aluno e a professora se olharam como se através de suas pupilas quisessem ultrapassar o longo parêntese dos anos transcorridos. Não havia lágrimas, mas podia se observar um brilho especial em seus olhos. — Todos os meus triunfos são seus — enfatizou o escritor, dando-lhe um forte abraço.

Rosa sentiu que esses braços eram tão imensos como o tempo transcorrido desde que era uma bela debutante na sociedade de Aracataca decidida a ser a melhor professora, e ele apenas um menino de seis anos recém-cumpridos, empenhado em ser o melhor aluno da sua classe. Fixou os olhos em suas mãos e como por um passe de mágica sua memória transformou os dedos longos e peludos que tinha à sua frente na lembrança da mãozinha gordinha e delicada que reagia docilmente à sua quando o ensinava a traçar as primeiras letras. Nesse instante mágico e poderoso, como o espelho da alma que ao longo dos anos repete as imagens aprendidas, Rosa soube que logo adiante evocaria em seus sonhos, adormecida e desperta, esses minutos extraordinários do reencontro do aluno com a professora, em um momento que parecia penetrar no longo trajeto percorrido ao longo de suas vidas.

Ao notar que sua presença estava causando um burburinho entre algumas pessoas mais próximas, o escritor perguntou à sua professora onde ficava a entrada dos artistas. — Imagino que seja aquela porta — observou ela, indicando uma pequena entrada lateral pelo qual tinha visto passar algumas pessoas que não estavam vestidas com a formalidade e elegância do público presente.

— Melhor ir antes que alguém me descubra — respondeu o escritor, e a abraçou de novo.

Ela o viu se distanciar, ainda emocionada, minutos antes de abrirem as portas do teatro para o início da encenação da obra, em uma apresentação da Universidade Externado da Colômbia que incluía a participação do dramaturgo e poeta Raúl Gómez Jattín, um dos melhores atores do país.

Sentada em seu cômodo assento de veludo vermelho, Rosa tentou descobrir onde havia se sentado o seu aluno. Percorreu com os olhos os camarotes e também focou seus binóculos no público que ocupava os assentos das primeiras fileiras, sem que seus esforços dessem resultado. Parecia que esse instante recentemente vivido era tão irreal como uma miragem que vai se esvaindo na medida que passam os minutos, mas no final da obra, alguém começou a gritar: — Que apareça o autor... o autor... o autor!

A voz ressonou outra vez de um dos camarotes, seguida de imediato pelo clamor do público que em coro exigia a presença do reconhecido autor. O pedido foi aumentando de volume até se transformar em um mar de vozes e aplausos que finalmente conseguiu que o autor, que havia assistido a obra do camarote do embaixador do México, fosse até o palco.

Rosa aplaudiu como nunca, até sentir suas mãos formigarem. Ao ver o escritor coberto de glória, parecia que, tal como seu aluno lhe havia dito uns minutos antes, seus triunfos também lhe pertenciam. De fato, desde muito tempo atrás havia começado a acompanhar com admiração sua meteórica carreira no mundo das Letras. Suspirou profundamente, pensando que

essa grandiosa noite havia sido a conclusão das viagens que haviam realizado juntos pelas ruas de Aracataca, o povoado a que, em suas lembranças, sempre regressava diariamente. Paradoxalmente, era o Éden que Rosa sempre quisera abandonar, e do qual sentia tanta saudade agora.

Essa noite, antes de cair no sono, Rosa se lembrou que enrubescera ao cumprimentar seu aluno. Parecia quase uma ironia da vida que os papéis haviam se invertidos: antes o menino ficava nervoso e suas bochechas coravam quando via sua professora passar. Seus últimos pensamentos foram para esse extraordinário reencontro, tão longe do ambiente em que viveram e sonharam, em uma fase feliz em que os sonhos eram como um livro aberto ao infinito.

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