A Marianne Amazônica

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SIGEOLITERART 2019 Anais do IV Simpรณsio Internacional e V Simpรณsio Nacional de Geografia, Literatura e Arte

Uma interface entre Geografia, Turismo, Literatura e Arte: Entre viagens reais e imaginรกrias

UNIRIO, Rio de Janeiro, 6 a 8 de novembro de 2019


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A Marianne Amazônica: um estudo iconográfico do monumento em comemoração à abertura dos portos da Amazônia Gabriel Lorram Lima Yepez1 Carla Mara Matos Aires Martins2 1 2

Acadêmico de Geografia na Universidade do Estado do Amazonas | glly.geo16@uea.edu.br

Mestranda em Letras e Artes na Universidade do Estado do Amazonas | carla.airesmartins@gmail.com

RESUMO: Manaus, durante a Belle Époque, viveu o auge de seu esplendor artístico no que diz respeito à arte pública. A riqueza que emanava dos seringais sob a égide da exploração servil transformou a cidade numa Paris Tropicaux, repleta de símbolos da art nouveau. Além da arte disposta nas dependências públicas da cidade, a arquitetura, planta urbana e códigos de conduta também faziam parte desse processo de embelezamento e modernização de terras tomadas pelos portugueses no coração da Amazônia. Dentre tais ícones, na estatuária presente por todo o Centro Histórico de Manaus, nota-se uma presença de representações femininas. Tal artigo propõe-se, então, a analisar iconográfica e iconologicamente a escultura central do monumento em homenagem à abertura dos portos da Amazônia, remontando o passado controverso do período áureo da borracha com leituras em voga presentes na capital manauara, analisando qual seu papel e relevância para a memória da cidade. Palavras-chave: Manaus. Belle Époque. Esculturas Femininas. Iconologia, Iconografia. ABSTRACT: Manaus, during the Belle Époque, lived the height of its artistic splendor in its public art. The wealth emanating from the rubber plantations under the aegis of slavish exploitation transformed the city into a Paris Tropicaux, full of symbols of Art Nouveau. In addition to the art displayed on the city’s public premises, architecture, urban layout and codes of conduct were also part of this process of beautification and modernization of lands taken by the portuguese in the heart of the Amazon. Among these icons, the statuary present throughout the Historic Center of Manaus, there is a presence of female representations. This article proposes, then, to analyze iconographically and iconologically the central sculpture of the monument in honor of the opening of the ports of the Amazon, going back the past controversy of the golden age of rubber with current readings in the Amazon’s capital, analyzing its role and relevance to the memory of the city. Keywords: Belle Époque. Manaus. Female Sculptures. Iconology. Iconography. RÉSUMÉ: Manaus, pendant la Belle Époque, vécu l’apogée de sa splendeur artistique à propos de art public. La richesse provenant dos seringues sous l’égide de l’exploitation servile transformé la ville en un Paris Tropicaux, plein de symboles de l’art nouveau. Au-delà de l’art disposé par la

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ville, l’architecture, le plan urbaine et codes de conduite faisaient également partie du processus d’embellissement et de modernisation de terres envahies par les portugais au coeur de l’Amazonie. Parmi ces icônes, à statutaire présente dans tout le Centre Historique de Manaus, il y a une présence de représentations féminines. Cet article propose ensuite d’analyser iconographiquement et iconologiquement la sculpture centrale du monument en l’honneur de l’ouverture des ports amazoniens, remontant au passé controversé de l’âge d’or du caoutchouc avec des lectures en vogue présentes dans la capitale manauara, en analysant son rôle et sa pertinence pour la mémoire de la ville. Mots-clés: Manaus. Belle Époque. Sculptures féminines. Iconologie. Iconographie.

1 Introdução Indubitavelmente Manaus viveu durante a Belle Époque um esplendor artístico nos lugares públicos nunca antes vivido por tais terras. A ideia de se conceber uma metrópole inspirada na modernidade parisiense sob o sol tropical, financiada pelo dinheiro que emanava dos seringais tão abundantes quanto os rios da região, deram concretude ao que havia de mais artístico na Europa às margens do Encontro das Águas, a expressão mais poética da natureza local? Tal período tão memorável para a cidade aconteceu por meio da exploração da natureza que a “cedia” espaço. A partir da Hevea brasiliensis, a seringueira, homens extraiam um líquido alvo e viscoso, o látex. O processo de comercialização em larga escala desta seiva teve início em 1840, como conta Bueno (2012, p. 34). Logo a economia da região começou a pautar-se sobre ela. Entretanto, o boom comercial da borracha veio sob rodas; a bicicleta, inventada em 1890 e, posteriormente, o automóvel, alavancaram-na. Essa produção desenfreada de pneus foi dirigida pela Amazônia, maior exportadora de matéria prima da época, chegando a corresponder 24% das exportações nacionais na primeira década de explosão, segundo Weinstein (1993, p. 40). A capital amazonense, tão recentemente instituída, outrora vila, viu-se renascer. Com toda a riqueza que o ouro branco proporcionou à cidade e a instalação de uma elite guiada pelas tendências europeias, Manaus renasceu como a Paris dos Trópicos (NASCIMENTO, 2014, p. 56). Para Mesquita (2005 p. 29), o vertiginoso processo de urbanização e o remodelamento do espaço público da cidade teve por inspiração Paris, palco da Revolução Francesa e do Iluminismo no século XVIII. A nova burguesia exigia o seu lugar de poder na cidade antes dominada pelos nobres e pela Igreja. A ideia de modernidade que permeava as ruas de Paris servia de referência para todo o mundo. O formato das ruas e calçadas, arquitetura dos prédios e praças, criação de avenidas, abundância de arte pública, em tudo lembrava Paris, não só na visão, mas na fala e audição,

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sendo corriqueiro o francês em bocas caboclas. Esse movimento trazia consigo um desejo de apagar as raízes exóticas locais, distanciar-se do povo nativo e selvagem que sustentava com seu trabalho penoso e degradante todo esse processo glorioso e cultural do qual foi excluído. Num olhar mais próximo à arte pública, vê-se um investimento pesado em figuras femininas, não só pela ingerência parisiense com a retomada do modelo romano de se fazer arte, mas pelo momento vivido pelo Brasil e pelo mundo, o surgimento do modelo político republicano. O passo em direção à república e a reafirmação do Brasil como uma nação, teve de passar por um distanciamento do Império e a tudo que fazia-lhe referência. Logo, a imagem de mulher, guerreira e mãe, protetora e amorosa, tomou conta das ruas numa referência máxima à República, à pátria mãe gentil, evidenciada na obra de Carvalho (1990, p. 17), A Formação das Almas. Tal movimento artístico trazido da França foi vivenciado por todo o país, com ênfase nas grandes cidades nacionais, reforçando a idéia de que a República Federativa do Brasil representava o progresso aos órfãos do imperialismo português conflituoso vivido. Cidades como São Paulo e Rio de Janeiro abrigam enormes símbolos desse processo, como o grupo escultórico (Figura 1) presente na Praça Ramos de Azevedo, no coração da capital paulistana, onde uma mulher impotente, sobre o símbolo máximo da república, é guiada por cavalos em direção ao progresso. Figura 1 – Alegoria feminina altiva, segurando ramos e tochas sobre o símbolo da República, guiada por cavalos, por Luiz Brizzolara. Praça Ramos de Azevedo, São Paulo.

Fonte: Gabriel Yepez (2018).

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Porém, esse uso abusivo e sutil da imagem feminina em espaços públicos não passava de mera alegoria. Em contrapartida, a estatuária masculina fazia referência respeitosa aos homens importantes da época, mostrando seus feitos com pompa, acompanhados de damas desnudas, como pode ser constatado na mesma praça citada acima, onde em meio a damas alegóricas, Ramos de Azevedo encontra um lugar de destaque. Essa representação artística desigual deixou marcas no passado que se mantém até hoje. Personagens femininas da história da cidade são ocultadas, ofuscadas e reduzidas por homens, processo inscrito na construção da memória da cidade de Manaus, tal como em Madrid, contada por Durán (2008, p. 87), onde a arte pública evidencia um poder social, político, militar e econômico masculino, tendo belas alegorias femininas como moldura. Por se tratar de alegorias, comumente representando divindades mitológicas, a justiça e as artes, por exemplo, sem um significado implícito na memória do povo manauara, encontram-se sujeitas à livre interpretação do público geral sobre seu conceito, por vezes, tida como escultura sem significados. Logo, assim como houve em São Paulo e em Manaus, por mais que haja grande representações femininas na estatuária pública desta época, a imagem da mulher não vai às ruas para enaltecer-se, e sim para aludir um movimento econômico e político comandado por homens que se valeram das suas imagens para suavizar e embelezar tal momento delicado para uma nação recém-colonizada e “liberta” das amarras de Portugal. Tais estátuas dispostas pelo Centro Histórico de Manaus, por mais que não fossem próprias da região, hoje são símbolos de um período áureo, de uma riqueza estética que outrora inundou a cidade, e mantém-se como os poucos exemplos de arte pública em Manaus. A partir desse panorama, busca-se analisar o principal símbolo da estatuária manauara, o Monumento em Comemoração à Abertura dos Portos da Amazônia, com enfoque principal na sua figura central, pautando-se no modelo de Panofsky (1976, p. 23) para a análise iconológica e iconográfica da peça. A fim de compreender as influências políticas na arte pública de Manaus. 2 Borracha: do horror ao esplendor Povos nativos da Região Amazônica desde muito antes da exportação do látex extraído da Seringueira, espécie endêmica da região, serviam-se do mesmo. Este era manuseado e moldado pelos indígenas na forma de calçados, brinquedos e seringas. Tal versatilidade encantou Charles Marie de La Condamine, naturalista francês em visita à Amazônia. Sem nenhum impedimento legal, Condamine levou consigo boa quantidade de seiva para Europa, a fim de estudar e ampliar os usos do material fascinante recém descoberto pelo homem branco, como narra Bueno (2012, p. 13).

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O produto não encontrou dificuldades de se inserir no mercado europeu, apesar dos problemas ligado ao clima, devido o trabalho exaustivo do material, todavia tal obstáculo foi derrubado por meio do novo processo de vulcanização desenvolvido por Charles Goodyear, o que permitiu seu mais diverso uso (BUENO, 2012, p. 13). Mas o grande estopim para a comercialização de larga escala da borracha foi a popularização da bicicleta e a invenção do automóvel. Os números de exportação avançaram ao mesmo passo que a necessidade de mão de obra barata. Trabalhadores nordestinos eram a maioria dentre os migrantes em busca de prosperidade por meio da seiva amazônica, ressalta Bueno (2012). Um incremento populacional de aproximadamente 40 mil novos habitantes na virada do século (SANTOS JÚNIOR, 2013, p. 2). Benchimol (2009, p. 154) afirma que até 1920 cerca de 300 mil nordestinos vieram em busca do ouro branco. Além na necessidade de mão de obra, o aumento vertiginoso de migrantes estava associado à idéia de limpeza étnica necessária para se atingir ao ideal europeu de modernidade (PORTO, 2016, p. 47). Os povos nativos representavam o atraso, indolência e selvageria. A figura do indígena deveria ser meramente figurativa, beirando a inexistência, na metrópole fundada nas terras que outrora foram suas. Ao desembarcar no porto da Paris Tropical, os trabalhadores logo se encaminhavam para os seringais onde viam a face da subsistência servil. O trabalho do seringueiro era todo convertido em pagamento de dívidas resultando num enriquecimento ainda mais veloz de seu algoz, o seringalista. Alimentos, vestimentas, armas de fogo, providências afins eram vendidas com preços exorbitantes para os escravos da borracha. O sonho de fazer fortuna foi se esvaindo junto com cada gota de látex a mais retirado da selva. Os trabalhadores viam-se presos na floresta, sem opção de fuga do cárcere a céu aberto. O clamor do desespero dissipava-se na imensidão da floresta. Euclides da Cunha (1967, p. 127), jornalista, caracterizou tal enredo trágico como “a mais criminosa organização do trabalho que ainda engenhou o mais desaçamado egoísmo”. Enquanto isso, construções pomposas invadem Manaus em busca de modernizá-la, orquestradas por Eduardo Ribeiro. Ruas, calçadas, casaril, prédios públicos e arte pública, fazem parte do novo plano diretor da cidade. A capital do Amazonas transforma-se em uma extensão da Europa em plena zona tropical. Tal ideal pretensioso de modernidade, parafraseando Camargos (2003, p. 137), além de ditar a arquitetura e planta urbana na cidade, trouxe consigo a exaltação da mulher, na figura de Marianne, como símbolo máximo do sistema republicano, a fim de solidificar a base ainda em construção da recém formada república brasileira, por meio da arte pública corporificada em estátuas e pinturas, não apenas em Manaus, mas em todas as principais cidades do país, algo a ser discutido à jusante.

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A cidade cresceu em solo tropical erguida pela ilusão française. O que de mais belo havia na art nouveau e o dinheiro dos barões da borracha pudesse comprar foi construído em Manaus. Ruas largas e calçadas reestruturaram ruas que nem sequer pavimento tinham. Vitrines enchiam os olhos dos pedestres com o que de mais requintado e atual importava-se da Europa. Prédios inteiros, como o Palácio da Alfândega, chegavam à cidade partimentados em navios e, posteriormente, erguidos. Todo esse processo de remodelamento urbano e embelezamento público foi desenhado como uma forma de converter a imagem do selvagem para o civilizado. A materialização dessa nova forma urbana em estruturas sólidas renderam símbolos imponentes para a cidade, símbolos que ainda reverberam. Tomando por exemplo o Teatro Amazonas, Av. Eduardo Ribeiro, Monumento à Abertura dos Portos e afins, como ícones vigentes da cidade mesmo que pensados e concretizados em outrora. Entretanto tais bens públicos não eram de consumo de todos, tudo tinha de ser o mais vitrinal possível, desde o que se via, onde se via e quem via. No suspeitar de qualquer conduta anormal, como pedintes ou comércio ambulante, forças policiais agiam a fim de manter distante tais subversões que não condiziam com a imagem em voga na cidade (SANTOS JÚNIOR, 2013, p. 13). A população pobre foi apartada desse processo, mas, ao mesmo tempo, foi a base. Esse cenário condiz com a crítica feita por Tolstói (2016, p. 23), quando afirma que a população pobre exaurí-se em atividades maçantes a fim de sustentar indiretamente, por meio de subsídios governamentais, a arte, que “além de não ser útil, é até mesmo danosa” se repensarmos em todo o processo em que a art public de manaus foi concebida. 3 Arte Pública e Memória: a imagem feminine Antes de discutirmos a arte pública em Manaus é importante salientar conceitos norteadores sobre o tema. Para Hein (1996, p. 2), “as a public phenomenon, art must entail the artist’s self-negation and deference to a collective community”, ou seja, a arte pública é muito mais um reflexo da comunidade em que está inserida do que do próprio artista. Esse tipo de arte, deixa de ser apenas um objeto e torna-se indissociável da paisagem e do convívio cidadão, ainda segundo Hein (1996). Essas marcas presentes na história de uma cidade, assim como na de seu povo, ajudam a formar a identidade de ambos, como defende Durán (2008, p. 43). Esse processo inscreve-se nas páginas de uma cidade pelas mãos de seus habitantes constantemente, entretanto a participação feminina nesse processo de construção memorial urbana é recente, pois durante muito tempo encontrava-se reclusa ao privado. Esse cenário de exclusão muito se deve a figura de Eva, defendida como a primeira mulher criada por Deus segundo o mito cristão-judaico, apesar de contestações (LARAIA, 1997).

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Todas as outras mulheres posteriores a Eva deveriam carregar consigo as consequências dos atos falhos de sua antecessora. Os homens, então, justificam a sua dominação sobre as mulheres e a exclusão das mesmas ao privado, pelo caráter fraco, pecador e dúbio herdado de Eva. Outra figura chave nessa história é a imagem da mulher ligada ao privado e a do homem ao público, algo que originou-se na Grécia e reverberou em por todo o Império Romano. Essa dicotomia sexual envolvendo o espaço da cidade tinha como plano de fundo Héstia e Hermes, deuses que desempenhavam funções totalmente distintas, enquanto a deusa era responsável por manter a chama do lar acesa, Hermes era quem ia ao público buscar provisões para o lar (ROBERT, 1996, p. 2). O contraditório é que a arte pública analisada no recorte do trabalho é influenciada justamente pela sociedade romana, sociedade que se valia do corpo engessado feminino no espaço público, mas não permitia o corpo vivo feminino no mesmo. Essa discrepância se amplia ainda mais no caso de Manaus, pois, apesar da mulher já poder circular e transitar pela cidade com restrições, o corpo rijo que ocupa lugar central em praças e fachadas de prédios é o corpo da mulher europeia, feições e dimensões da mulher europeia. 4 Marianne Manauara Ainda com um olhar voltado apenas para as alegorias femininas, com um foco detido no monumento em comemoração À Abertura dos Portos da Amazônia, disposto no centro da Praça São Sebastião, a frente do icônico Teatro Amazonas, maior símbolo da Belle Époque na arquitetura local. O monumento foi encomendado pelo então governador do estado, José Cardoso Ramalho Júnior ao pintor e escultor Domenico de Angelis, artista já conhecido por trabalhos em Belém e em Manaus, como dois panos de boca e pela pintura no teto do salão nobre do Teatro Amazonas. A obra substituiu uma coluna antes existente na praça, monumento que também fazia referência à abertura dos portos da Amazônia, mas que, como conta Mário Ypiranga Monteiro (1990), já encontrava-se em estado de deterioração. O monumento teve sua inauguração no dia 15 de novembro de 1900, no mesmo dia em que comemora-se a Proclamação da República. É importante destacar e, mais a jusante discutir, que o mesmo ostenta um brasão da república em uma de suas laterais, em cima da embarcação que representa as Américas. Para termos mais técnicos, a obra possui 12 metros de altura, tridimensional, tendo sua estrutura basilar de mármore de carrara (Figura 2), suas quatro embarcações são de

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bronze, o corpo central é feito de granito Baveno com quatro colunas de granito Ponsevene verdes, e a imagem central, onde fica a imagem feminina a ser analisada, no topo do monumento é de bronze. Figura 2 – Base da figura alegórica analisada, com colunas de granito e brasão da República Brasileira.

Fonte: Gabriel Yepez (2019).

Agora, aproximando o olhar para apenas o grupo escultórico superior do monumento (Figura 3), a figura feminina é o destaque central do mesmo, sendo ladeada por uma figura masculina, abaixo de seu braço esquerdo. Tal figura masculina possui um capacete alado, referência direta ao deus do comércio grego, Hermes. A imagem feminina, no entanto, não remete ou simboliza nenhuma divindade grega, na verdade ela é a personificação da Amazônia. E essa representação da Amazônia por um corpo feminino está atrelada a diversos fatores, o primeiro deles é a imagem da própria mulher como ser alegórico recorrente, principalmente nessa época em que a obra foi concebida, vide a discussão à montante feita. Além disso, volutas femininas aclimatavam e embelezavam o ambiente urbano. Essa referência muito se deve aos romanos. Há, também, relatos de rumores que Mário Ypiranga Monteiro escreveu sobre a imagem de mulher ali representada, segundo ele, a população da época não aprovo muito a escultura visto a semelhança facial da mesma com uma amante de um homem importante

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na época, porém ambas as identidades não foram reveladas. Mas isso não está aquém da realidade, o artista há sempre em quem se inspirar, o encomendador da obra também tem suas inspirações, amores e afeições, como foi o caso de Giulia Farnese que serviu de inspiração para artistas como Michelangelo ao retratarem Nossa Senhora, por pedidos do Papa Alexandre VI, de quem era amante. Figura 3 – Figura central do Monumento em Comemoração à Abertura dos Portos da Amazônia, em destaque a alegoria feminina.

Fonte: Gabriel Yepez (2019).

Voltando à análise a obra, apesar de ambas as alternativas, após toda uma pesquisa sobre a cultura, arte e símbolos em voga, é de bom tom dizer que a representação da Amazônia é, na verdade, Mariane, a República. Alguns traços iconográficos podem atestar isso com mais exatidão. O primeiro desses traços é a tocha elevada pelo seu braço direito, pois dentro do modelo republicano, a tocha carrega o significado de democracia, a luz que guia o povo até a liberdade. livre das mãos da monarquia, cujo representante máximo era o rei, o homem. O seio exposto representa o alimento, alusão ao leite materno que sustenta o filho, assim seria a república com seu povo. Percebe-se isso como, também, um dos símbolos marcantes da Marianne retratada por Eugene Delacroix, em La Liberté Guidant le Peuple, pintada em 1830, obra símbolo da Revolução Francesa, o movimento que culminou na queda da monarquia e a ascensão da república. Sendo ela, até hoje, o símbolo máximo da república francesa, como consta no site da presidência da França (2019).

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5 Considerações Finais Monumentos públicos circunscrevem na história de uma cidade, são marcos importantes e permeiam o imaginário das pessoas a cada dia mais ávidas por informações. Tais marcos atravessam gerações, mantendo vivas as lembranças que os cercam. Na cidade de Manaus a maior parte dos monumentos públicos estão dispostos ao longo do Centro Histórico da cidade, erguido pela égide da borracha e desejo da nova burguesia. Tais monumentos se dividem em dois grandes grupos, o primeiro faz menção honrosa a figuras marcantes e relevantes para a história da cidade, estado e país, multiescalar, o outro, em contraponto, é composto por alegorias que serviam para emoldurar o processo vertiginoso de urbanização nos moldes parisienses que se impunha em solo local. Tal grupo de figuras que representam pessoas histórica é composta apenas por homens, como Tenreiro Aranha, o primeiro presidente da província do Amazonas, Eduardo Ribeiro, governador do estado em meados da Belle Époque, e Álvaro Maia, outro ex-governador do estado, entre outros militares, artistas, políticos e homens religiosos. Entretanto não há nenhuma escultura que faça menção direta ou indireta a mulheres que tiveram papel de destaque em 350 anos de história da cidade, ocultando e desvalorizando a figura histórica feminina na capital. Em contrapartida, a imagem feminina é mais da metade das alegorias que compõem o segundo grupo, sendo, como exemplo, Diana, deusa romana da caça, ninfas e deusas vestais, personagens símbolos de uma mitologia não pertencente ao local, imposta a ele. Além dessas figuras da mitologia, é forte a presença de Marianne, como já mostrado no monumento escultórico mais importante da cidade. A ressalva que se faz é referente a imagens de santas dispostas, como Nossa Senhora da Conceição, colocada em praça pública pela igreja, não pelo poder público. Dois pontos salientam-se ao fim desta análise, o primeiro faz referência às mulheres locais, onde elas estão na história da cidade e quais os motivos que impediram de eternizar-se na história monumental da cidade? Atrelado a isso, é importante negritar que além de todas as figuras femininas serem alegóricas, as mesmas carregam visíveis traços europeus, afastando, assim, os traços das mulheres indígenas da memória cultural da cidade. Outro ponto é a objetificação do corpo feminino, quase sempre desnudo ou esculpido segundo a técnica dos panos molhados, técnica que permite que se observe as curvas do corpo feminino mesmo que ele esteja vestido. Essa objetificação se acentua no momento em que, como já dito, as esculturas que aludem uma mitologia estrangeira perdem o seu significado ou ganham ressignificados numa sociedade distante desta. Ou seja, o espectador não habituado ou conhecedor de tais mitos romanos e gregos, irá atribuir significados rasos por sobre a obra de arte, assim, as imagens femininas tornam-se apenas meras imagens vazias de significados, apenas uma mulher desnuda embelezando

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um espaço público da qual foi imposta e não remete a população local, descaracterizando-se como arte pública no conceito de Hilda Hein (1996). Referências BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: Um Haussmann Tropical. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1990. BUENO, Ricardo. Borracha Na Amazônia: As cicatrizes de um ciclo fugaz e o início da industrialização. Porto Alegre: Quattro Projetos, 2012. CAMARGOS, Márcia. Belle Époque na Garoa: São Paulo entre a tradição e a modernidade. São Paulo: FES São Paulo, 2013. CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CUNHA, Euclides. À Margem da História. Porto: Editora Lello, 1967. DURÁN, María-Ángeles. La Ciudad Compartida: conocimiento, afecto y uso. Chile: Ediciones SUR, 2008. ELYSEE. Marianne. Disponível em: www.elysee.fr/la-presidence/marianne. Acesso em: 17 abr. 2019. HEIN, Hilde. What Is Public Art?: Time, place, and meaning. The Journal of Aesthetics and Art Criticism, New York, v. 54, n. 1, p. 1-7, 1996. Disponível em: http://www.jstor.org/ stable/431675. Acesso em: 15 maio 2019. LARAIA, Roque de Barros. Jardim do Éden Revisitado. Revista de Antropologia do FFLCH/ USP, São Paulo, v. 40, n. 1, p. 149-164, 1997. MESQUITA, Otoni Moreira de. La Belle Vitrine: O mito do progresso na refundação da cidade de Manaus (1890/1900). 2005. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2005. MONTEIRO, Mário Ypiranga. História do Monumento da Praça de São Sebastião. Manaus: [s.n.], 1990. NASCIMENTO, Maria Evany do. Do Discurso à Cidade: Políticas de patrimônio e a construção do espaço público no Centro Histórico de Manaus. 2014. Tese (Doutorado em Design) – Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 2014.

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