OCO: memórias e olhares

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Desenhos página anterior e última: Marillyn Damázio


Ismael Scheffler (org.)

Arte Final 2021


Projeto gráfico: Cecília Berger Capa: Christianne Salas Roldan Fotos da capa: Guto Souza (frente); Daniel Faria Patire (trás). Desenhos de flipbook, p. 81 a 105: José Marconi Bezerra de Souza Revisão: Fernanda Baukat Realização: TUT – Teatro da UTFPR Curitiba Produção editorial: Ismael Scheffler O presente trabalho foi realizado com o apoio da Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR. Este livro contou com o apoio das bolsistas de extensão: Christianne Salas Roldan (BIPEX-Fundação Araucária – Edital 02/2020), Fabiana Kaori de Sousa (PROREC – Edital 02/2020); Ariane Regina Feliciano de Oliveira (Destaque UTFPR – Edital 05/2020). Contato: Ismael Scheffler Av. Sete de Setembro, 3165 – Rebouças – Curitiba – PR - 80230-901 E-mail: scheffler@utfpr.edu.br Facebook: facebook.com/tutteatro/ Instagram: @tut_utfpr Site: https://tut.ct.utfpr.edu.br/ Arte Final: artefinalizando@gmail.com

ESTE LIVRO NÃO PODE SER COMERCIALIZADO. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

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OCO: memórias e olhares / Ismael Scheffler, organizador [et al.]. – Curitiba, PR: Arte Final, 2021. 178 f.: il. Apoio: Universidade Tecnológica Federal do Paraná - UTFPR. Bibliografia: 176-177. ISBN 978-65-993780-0-3 1. Teatro brasileiro - Paraná. 2. Movimento (Representação teatral). 3. Criação na arte. 4. Linguagem corporal na arte. 5. Artes cênicas. 6. Performance (Arte). 7. Acrobatas e acrobacia. 8. Arte e dança. 9. Gestos. 10. Comunicação visual na arte. 11. Música para teatro. 12. Teatros - Cenografia e cenários. 13. Teatros - Sonoplastia. I. Scheffler, Ismael, org. Título. CDD: Ed. 23 -- 792

Biblioteca Central do Câmpus Curitiba – UTFPR Bibliotecária: Luiza Aquemi Matsumoto CRB-9/794


A todos que dão as mãos e lutam por um mundo melhor.


SUMÁRIO HISTÓRICO DO TUT

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PREFÁCIO__Maurini de Souza

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INTRODUÇÃO__Ismael Scheffler

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UMA PALAVRA PARA RESUMIR UM ESPETÁCULO SEM PALAVRAS__Ismael Scheffler

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EQUIPE DE CRIAÇÃO DO ESPETÁCULO

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ELENCO

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FICHA TÉCNICA DO ESPETÁCULO

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PARTE I__DE MÃOS DADAS: O PROCESSO DE CRIAÇÃO

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1.

Sobre as incompreensões de OCO e da vida Rebecca Stauffer

21 R

2. Entendendo contextos anteriores a OCO Ismael Scheffler

25

3. Uma dramaturgia sem palavras Ismael Scheffler

33

4. Comensalidade Ismael Scheffler

41

5. Doçura e bestialidade: os bonecos Ismael Scheffler

51

6. Criando seres híbridos: os bonecos Naira Luiza Bastos

61

7. Figurinos para corpos amalgamados Paulo Vinícius Alves

65

8. Sem ver para fazer ver: as máscaras Ismael Scheffler

71

9. Carinhosa bravura Monique Rau

77


10. Jogar, equilibrar, carregar: descoberta das poéticas acrobáticas Bruno Tucunduva

79 R

11. Montanha, acrobacia e colagem Ismael Scheffler

87

12. O movimento sonoro em meio ao gesto Ágatha Pradnik

97

13. O andar e as atitudes escultóricas Ismael Scheffler

103

14. Gritos Ismael Scheffler

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15. Atmosferas e cores: a iluminação Entrevista com Wagner Corrêa

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16. Vazio e cru: a cenografia Entrevista com Levi Brandão

119

PARTE II__OLHARES DE QUEM VIU

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17. Sob o olhar de Desenhadores de Palco José Marconi Bezerra de Souza

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18. As Mãos: ensaio fotográfico Guto Souza

139

19. O exercício técnico e sensível do olhar Marcelo Abílio Públio

147

20. Uma composição de realidades na fotografia Daniel Faria Patire

155

21. Devaneios telúricos: intimidade, resistência e maravilhamento Karina Souza

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22. Um oco que preenche o meu vazio Luciana Martha Silveira

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REFERÊNCIAS

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HISTÓRICO TUT

O

TUT é um projeto de extensão institucional mantido pela direção do campus Curitiba da UTFPR. Teve seu início em novembro de 1972, tendo como seu primeiro professor José Maria Santos, o mesmo que empresta seu nome ao teatro da rua Treze de Maio, no centro de Curitiba. O TUT teve diferentes nomes, conforme a instituição também foi se alterando: TETEF – Teatro da Escola Técnica Federal do Paraná (1972 – 1978), TECEFET – Teatro do Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná (1978 – 2005), por fim, TUT – Teatro da Universidade Tecnológica - Campus Curitiba (desde 2005). Dos 112 anos que a UTFPR completa em 2021, por 49 anos, o TUT fez parte de sua história, sendo um dos projetos teatrais mais duradouros do Paraná e mesmo do Brasil. Nessa história, pode-se identificar diferentes períodos considerando os professores-diretores de teatro que estiveram à frente das atividades: o início do grupo, com José Maria Santos (1972 a 1990); o trabalho da professora Joana Rolim (1990 a 1997); a continuidade com as professoras colaboradoras Cleonice de Queiróz (1998 a 2003) e Marília Gomes Ferreira (2003 a 2005); a efetivação do professor Ismael Scheffler (2005 a 2010), tendo sido substituído durante seu período de licença para doutorado pelos professores Cauê Krüger (2010 e 2011) e Elderson Melo de Miranda (2012); o retorno de Scheffler (2013-2014). Durante o período de 2015 ao início de 2018, o TUT esteve desativado por determinação da gestão do campus, na época. Em 2018, Scheffler retornou às atividades do TUT

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na gestão do professor Marcos Flávio de Oliveira Schiefler Filho, diretor-geral do Campus Curitiba. De uma atividade extracurricular do ensino técnico, o TUT passou a ser um grande programa de extensão universitária, ampliando suas ações. O grupo de teatro permanece como um dos projetos mais importantes que desenvolve a produção de espetáculos com apresentações públicas abertas e gratuitas. Em 2013 e 2014, foi produzido e apresentado o espetáculo Babel. Em 2019, foi a vez de OCO, tema deste livro. Além disso, o TUT promove oficinas, palestras e vivências diversas, especialmente com temas teatrais, mas também amplia suas ações em diálogos com áreas como circo, dança, artes visuais, design, música e cinema. O desafio de estreitar as relações entre extensão, ensino e pesquisa se aprimoram a cada ano. É preciso ainda destacar que o campo da cenografia foi criando espaço a partir do TUT e se consolidando, em especial, na articulação com o Departamento Acadêmico de Desenho Industrial, no Curso de Especialização em Cenografia e no Programa de Extensão de Desenvolvimento da Cenografia. O TUT também desenvolve pesquisa e promoveu outras publicações, como os livros: TUT, TECEFET, TETEF: 35 anos de teatro na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (Scheffler, 2008) e José Maria Santos: entrevistas e embates (Scheffler, 2017); e os catálogos Babel: o processo de criação do espetáculo teatral (Scheffler, 2013) e Maquetes cenográficas: catálogo da exposição (Scheffler, 2014). Todos disponíveis para baixar gratuitamente na internet.


Foto: Studio Marios Bros

Babel (2013), texto e direção de Ismael Scheffler.

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PREFÁCIO Maurini de Souza

OS SENTIDOS DE OCO NA HISTÓRIA DE CADA UM - Sem fala, Ismael? - Sem fala. E eu pensava na questão que unia Aristóteles e Brecht, esses dois teóricos tão opostos: a fábula é mais importante que os aparatos; a lexis supera a opsis; a retórica mais que a encenação, isto é: a encenação é sedutora, mas o que importa mesmo no teatro são as palavras. Nesse conservadorismo tão bem sustentado por “gente que sabe” (e que marcou o trajeto teatral nos séculos IV aC e XX dC, respectivamente), eu torcia, calada, para que palavras acabassem aparecendo no decorrer dos ensaios. Ou que, mesmo sem dizer nada, o espetáculo fosse bonito e bem aceito como se não restasse outro consolo a essas opções tão pós-dramáticas nos palcos da contemporaneidade. E vieram os ensaios; assisti a algumas partes, surpreendida pela desenvoltura e empenho dos participantes. As atrizes eram orientadas por profissionais perfeccionistas e que pareciam saber onde queriam chegar. Bruno. Karina. Ismael: - Mais uma vez, mas, agora ... E a cena se repetia. Repetia. Repetia. De repente, eu pensava: perfeito!!! Impossível que seja melhor. E, inabalável, uma voz surgia: - Mais uma vez, mas, agora ... Mas a fala, com a palavra, “coisa escrita e decorada”, nenhuma. Será que a gente vai entender?

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E chegou o dia da estreia, plateia compareceu e as expectativas eram muitas. Cores, música, coreografia e, logo de início, comecei a “ouvir”. Em cada cena, abriuse para mim a História da humanidade, com as lutas, a diligência em formar grupos, proteger os seus; a dor da perda, o recomeço, a dor da caminhada, a desconfiança; a descoberta do mundo, a fuga, o embate com os novos povos, os monstros e sua força invencível; o reinício, o sensível, novos grupos, novos males. E o grito. Aquele berro que transmitiu a rebeldia, as revoluções, rebeliões; os momentos em que a humanidade se insurgiu. Entre lágrimas e reflexões, aplaudi em pé aquele espetáculo que falou comigo a todo instante. Mas outra pessoa, naquele mesmo dia, ouviu as “vozes” em OCO. Conversamos e, para ela, já de início, a peça contou a história do ser humano individual; a vida dela, em especial. Com seus estímulos, nos diferentes momentos de sua vida; as dores que sentira e superara; as que lhe marcaram a vida e que a tornaram cismada, prevenida; os momentos em que mudou, buscou novos horizontes; a descoberta de que a vida não é fácil, mas que é preciso, mesmo com os desafios, com as perdas, continuar. E o grito. Aquele grito era seu grito, sua alma se rebelando contra tantas adversidades. Ela também refletira, também chorara, também aplaudira em pé. O terceiro chegou a nós para compartilhar daquela experiência ímpar. Como minoria, observou o caminhar de todos os que ousam respeitar suas singularidades e serem incomuns em uma sociedade tão padronizadora e


cruel; que comentou com o que o acompanhava que as lutas que travaram, para uma sociedade mais inclusiva, mais humana, estavam retratadas naquela hora de espetáculo, naquelas cenas, na beleza daquele texto inaudível, mas claro e objetivo. Aquele grito é o grito de todos os que sofrem preconceitos, que são humilhados, descartados, silenciados, mas que, enquanto conscientes de suas escolhas, abrem o peito e enfrentam o mundo. E ainda outro. E outro. E mais outra. Cada um, que se emocionara e aplaudira em pé esse espetáculo maravilhoso, trazia novos sentidos e novas interpretações à peça teatral. Com suas vivências se entremeando às cenas e criando um diálogo íntimo e significante. Nessas experiências, eu entendi OCO. As causas de tanto ensaio e repetição de movimentos e detalhes e profissionalismo e exigência e e... são o fazer falar o sem palavras para poder falar a cada um, significando a todos de maneira singular. Os sentidos de OCO foram formados nos momentos em que as músicas, as coreografias, as luzes, os figurinos, a cenografia, os rostos mascarados, os bonecos, os artefatos tocaram em cada pessoa que se sentou na plateia e, unidos às experiências ímpares, formaram histórias mil, diferentes em cada noite, em cada lugar daquele teatro. Tais sentidos não se calam e nem se limitam ao tempo de cena. Continuam conosco ao ouvir uma notícia, receber uma mensagem, acordar pela manhã. Daí a importância deste livro, aquele que registra em palavras as palavras que já são tantas que se espalharam pelo mundo, mas que, com o esforço de toda uma equipe de trabalho, conseguiram, algumas, se reunir aqui. Este livro é produto de Universidade Pública Brasileira. É a “cara” da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, instituição em que se insiste em fazer arte em meio a tempos sombrios, sendo facho de luz nesses tempos; que persiste ante adversidades, sociedade endurecida, selvas de concreto, perfurando pedras duras com o tênue

suspiro da esperança. E que, sobretudo, não sucumbe a pandemias. O livro OCO é a prova disso. O que será do teatro em tempos de distanciamento social? Foi a pergunta que esteve entre as questões discutidas e debatidas no início desta praga que assola o planeta. Quase um ano depois, após encontros remotos, reuniões online, projetos por internet, oficinas em rede e uma série de eventos virtuais, o livro OCO vem provar que resistiremos. As palavras que se encontram aqui, daquele espetáculo sem falas, trazem a força da resistência do artista – e de todo artista – que sabe que não pode parar.

Ilustração: Isabel Cristina Ditzel

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INTRODUÇÃO Ismael Scheffler__Coordenador do TUT

O

espetáculo OCO foi produzido, em 2019, pelo projeto institucional de extensão universitária TUT – Teatro da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Foram, ao todo, doze apresentações abertas e gratuitas realizadas no Auditório da UTFPR, entre 31 de outubro e 23 de novembro, que reuniram cerca de 1.700 espectadores que puderam assistir e participar de alguns bate-papos após apresentações. Para alguns, foi o primeiro espetáculo teatral a que assistiram. O projeto foi coordenado por mim, tendo a colaboração do professor Dr. Bruno Tucunduva, da Universidade Federal do Paraná, coordenador do Cirthesis, projeto de extensão e pesquisa sobre circo, na preparação acrobática do elenco. Contou com grande número de voluntários, como o elenco composto por Bruna Martins, Maria Cecília, Monique Rau, Natália Winter, Rebecca Stauffer e Raquel Lorentz, cada qual com habilidades em diferentes artes corporais, formando um grupo eclético extremamente comprometido com o projeto. Também contou com a colaboração de Karina Souza, ex-aluna do Curso de Especialização em Artes Híbridas, da UTFPR, na assistência de direção e de preparação corporal; com o jornalista Daniel Faria Patire, estudante do Mestrado em Comunicação e Linguagens, da UTFPR, que colaborou na assessoria de comunicação e no registro de fotos e filmagens; e com Ayesla Fabian, formada em Artes Cênicas pela UNESPAR, que colaborou na operação

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de som. Também foram voluntários os alunos de Artes Cênicas da UNESPAR Nicolas Caus e Letícia Decker, além de diversos alunos da UTFPR que ajudaram na produção como Gustavo Bittencourt, Vinícius Baptista, Jenifer Rutzen, Mazi Moreto entre diversos outros que auxiliaram na recepção do público, no trato com o cenário, na divulgação. De diferentes maneiras, o projeto OCO teve a participação de docentes da UTFPR. Do Departamento Acadêmico de Desenho Industrial: Simone Landal, com importante contribuição na produção e colaborando na confecção dos bonecos, também José Marconi Bezerra de Souza, Marcelo Abílio Públio e Marco Mazzarotto; tendo ainda envolvimento da professora Maurini de Souza, do Departamento Acadêmico de Comunicação e Linguagem. Relações entre este projeto de extensão foram estabelecidas com atividades de ensino nos cursos de graduação de Design e Letras, de maneira mais intensa com as disciplinas Teoria do Teatro e Teatro Brasileiro, Espaço Cenográfico e Fotografia. A possibilidade de contar com o trabalho de artistas profissionais elevou esta pesquisa artística. Integrouse o professor Paulo Vinícius Alves, da UNESPAR-FAP e da PUC-PR, figurinista profissional, com formação no Curso de Especialização em Cenografia da UTFPR, e Nair Brandt, como experiente costureira teatral. Levi Brandão, egresso da Especialização em Cenografia e também da


Especialização em Artes Híbridas, integrou o grupo com o foco na cenografia e objetos cênicos. A equipe teve ainda os artistas Wagner Corrêa (iluminador cênico), Naiara Luiza Bastos (atriz bonequeira) e Ágatha Pradnik (compositora), que contou com diversos músicos para a gravação da trilha sonora original. O processo de criação levou pouco mais de seis meses, sendo que os dois primeiros meses serviram de base preparatória com o elenco. O espetáculo, propriamente, foi produzido em quatro meses que demandaram intensa dedicação de toda equipe. OCO pode ser classificado como teatro visual, abdicando das palavras para investigar a expressão corporal e a produção de imagens. Mas corresponde, sobretudo, a uma experiência a ser vivenciada pelos espectadores. Foi da mistura de teatro, teatro de formas animadas, dança, dança-teatro, circo, música, artes visuais, design e arquitetura que o espetáculo OCO foi formado, unindo professores-pesquisadores, estudantes, comunidade e profissionais. Envolveu extensão, ensino e pesquisa no âmbito da universidade pública. Para 2020, estavam previstas duas temporadas: em março, no Fringe, do Festival de Teatro de Curitiba; e em junho, sendo as duas datas canceladas em razão da pandemia do Covid-19. Este livro foi produzido durante o período de distanciamento social, quando os encontros públicos ainda estão suspensos. Permanece em nós, ainda o desejo de realizar nova temporada. OCO foi selecionado como um dos 30 projetos mais relevantes realizados nos 13 campi da UTFPR, em 2019. Recebeu o título de Projeto Destaque, tendo sido o melhor classificado dentre os projetos do campus Curitiba por sua qualidade e impacto acadêmico e social. Em 2020 e 2021, a continuidade do projeto OCO ficou como quinto colocado em edital de extensão da UTFPR, dentre 374 propostas. Com isso, obtivemos bolsas de extensão para as alunas Ariane Regina Feliciano de Oliveira, Christianne

Salas Roldan, Fabiana Kaori de Sousa que colaboraram na produção deste livro. Como alternativa à impossibilidade de realização de atividades presenciais pelo TUT, em 2020, foram realizados alguns eventos pela internet, como o Colóquio sobre Cronofotografia e análise do movimento: repercussões nas artes e no design, no mês de agosto; e o Teatro em Pauta: TUT 2020, de agosto a outubro; eventos nos quais alguns aspectos relacionados a OCO foram debatidos. As gravações destes eventos, uma filmagem do espetáculo OCO, a trilha sonora da peça e o documentário estão disponíveis no YouTube, no canal: TUT - Teatro da UTFPR Curitiba. Com isto, ampliamos as produções e estendemos a um público mais amplo alguns elementos do que foi a experiência de produzir e viver este espetáculo. OCO pôde ser realizado graças ao apoio institucional e financeiro da direção do campus Curitiba da UTFPR professor Marcos Flávio de Oliveira Schiefler Filho, da chefe de gabinete professora Rossana Aparecida Finau e de diversos setores administrativos. Assim, pudemos contar com profissionais para a montagem do espetáculo e também para a produção desta publicação. Este livro está estruturado em duas sessões. Na primeira, De mãos dadas, é apresentada uma série de textos dos diferentes agentes criativos de OCO, envolvendo depoimentos, entrevistas e artigos que tratam sobre o processo de criação, estando permeado de imagens dos ensaios, da produção e de apresentações. A segunda parte, Olhares de quem viu, apresenta diferentes registros feitos no processo ou nas apresentações, seja por meio de desenhos, fotografias ou por palavras. Essa seção revela também diferentes desdobramentos do espetáculo e algumas repercussões por meio de depoimentos de quem assistiu a OCO.

A todos, uma boa viagem pelo universo de OCO! 11


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UMA PALAVRA

PARA RESUMIR UM ESPETÁCULO SEM PALAVRAS Ismael Scheffler

O título OCO veio praticamente ao final do processo de criação do espetáculo, quando o enredo da peça e seus principais momentos já haviam sido estabelecidos. Quando o desenho das linhas mais características se configurava. Quando a imagem começava a estar mais clara. Queria um título que trouxesse em si o espetáculo. Eu sempre gostei de dar títulos a peças por mim escritas ou criadas. Ao longo de minha trajetória no teatro (algo em torno de 30 anos), foram várias as peças que fui também o autor ou coautor, seja de argumentos originais ou livres adaptações que requeriam um novo nome. Não que seja fácil. Às vezes, não é. Às vezes, é como decifrar um enigma, algo que lhe toma de refém e com o qual você luta por dias. Queria um título que não fosse um substantivo. Um título que não trouxesse uma imagem clara. Um título que fosse talvez uma percepção sensorial. Não, não um sentimento. Mas um adjetivo. Uma palavra que tivesse elementos do espetáculo, que refletisse desafios que pretendíamos com o próprio espetáculo. Uma palavra que em si fosse uma experiência.

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Foto: Daniel F. Patire


Uma palavra que fosse um som. Um som, uma sensação. Uma palavra ccurta, que não dissesse demais. Se fosse “O oco”, o substantivo com o artigo, já seria demais. Uma palavra que existisse em nosso idioma, mas que bem poderia ser de outro idioma, de outra gente, de outro mundo. Um som. Algo em si. Uma palavra que nos levasse a nós mesmos, mas que pudesse nos deixar a desconfiança de ser outra coisa. Um pouco como as imagens que o espetáculo traz.

OCO Um título que revelasse e não revelasse a peça. O título, afinal, que seria o único texto do espetáculo. Porque ao optar por um espetáculo que não tem texto, o título é a totalidade do texto. E mesmo assim, um texto que não será jamais pronunciado em cena. OCO é um estado. É algo que existe com uma característica do que não existe. Ser oco, estar oco. Oco não é apenas vazio. Passei dias em busca de um título. Numa meditação pessoal e silenciosa. Um espetáculo que não existia. Um espetáculo no qual não se fala. Sensações desejadas. Estados evocados. Imagens evocadas. Evocar. Dar voz e vez. Evocar: chamar para aparecer, tornar presente. Nosso espetáculo não é silêncio. Ele trata sobre voz e silenciamento. Evoca. Como uma voz em eco. Eco no oco.

Queria um título que trouxesse mais perguntas do que respostas. O que é oco? O que está oco? Quem está oco? Oco é sentimento? Oco é estado? Oco é substantivo? Então, em meio ao devaneio oco, OCO pareceu me preencher. Compartilhar o nome do espetáculo com a equipe não me foi fácil. Porque OCO poderia parecer um título tão inusitado. OCO é quase uma palavra boba. Porque eu não queria ter que explicar demasiado o título. Porque antes de apreciá-lo ou rejeitá-lo, era preciso meditar sobre ele. Deixar ele ecoar. Deixar-se preencher pelo oco. OCO revela tudo, mas não diz tudo. OCO é um título insuficiente. O título traz em si elementos que como encenador e autor eu queria trazer ao palco. OCO é uma imagem que se desenha sem preenchimento. OCO também é uma imagem na própria palavra. É um palíndromo. Ela, ao contrário, ainda é ela mesma, lida de trás para frente, permanece sendo a mesma. OCO são três círculos, um deles interrompido. – Isso tem a ver com o espetáculo? Com a história que contamos, com os corpos que torcemos, com os equilíbrios que desafiamos, com os percursos percorridos no palco, com as sombras que nos cercam? Com aquilo tudo que parece nunca acabar? Círculos infinitos. Mas nem todos. Eu queria escrever um texto de apresentação do espetáculo, mas queria tentar não o reduzir em palavras. Então optei por falar sobre a única palavra para tentar expressar aquilo que as palavras não podem dizer. Porque certas coisas não podem ser ditas, embora devam ser tratadas. Porque falar sobre certas coisas é insuficiente. .

Que em cada espectador ressoe o OCO. 13


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e olhares

EQUIPE DE CRIAÇÃO DO ESPETÁCULO Karina (Pereira de Figueiredo) Souza

é mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal de São João del-Rei com pesquisa sobre teatro-dança, especialista em Artes Híbridas pela UTFPR, graduada em Teatro e habilitação de Técnico de Bailarino Contemporâneo – Escola Angel Vianna– RJ. Integra a Companhia de dança-teatro e música Cia. Mano a Mana, que possui o espetáculo Memórias em Improvisos dirigido pelo Chico Pelúcio (Grupo Galpão - MG), que circula o país desde 2012. Também realiza shows musicais com músicas do pai, Chico Mário.

Foto: Daniel F. Patire

Ismael Scheffler administra

projetos,

é coordenador do TUT e

ministra

oficinas

e

dirige

espetáculos com o grupo desde 2005. É doutor e mestre em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina, especialista em Teatro e graduado em Direção Teatral pela Faculdade de Artes do Paraná. Participou do Laboratório de Estudo do Movimento na Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq, na França. É professor do Departamento Acadêmico de Desenho Industrial, coordenador do curso de Especialização em Cenografia e do curso de Especialização em Artes Híbridas da UTFPR, sendo também professor no Curso de Especialização em Narrativas Visuais. É ator, encenador, cenógrafo e pesquisador com diversas publicações de artigos e livros como Teorias da cena: teatro e visualidades (InterSaberes, 2019) e José Maria Santos: entrevistas e embates (UTFPR, 2017). 14

Bruno Tucunduva

é doutor em Educação Física pela Unicamp, na linha de pesquisa Educação Física e Sociedade, com tese sobre a pedagogia do circo na formação de professores. Mestre em Educação Física pela UFPR, na linha de pesquisa Atividade Física e Saúde. Coordenador do Cirthesis - grupo de pesquisas sobre pedagogia do circo e extensão em iniciação ao circo. Diretor pedagógico do Circocan, escola de circo referência na formação artística em circo, com sedes em Curitiba e Florianópolis.

Levi Brandão é cenógrafo, diretor cênico, músico

e produtor musical, graduado em Musicoterapia pela FAP e pós-graduado em Cenografia e em Artes Híbridas pela UTFPR. Desenvolve seu trabalho em Curitiba, principalmente junto à Parabolé Educação e Cultura, desde 2010. Foi diretor cênico do grupo Vocal Brasileirão. Assinou também a direção cênica e cenografia de shows com Grupo Molungo, Suzie Franco, Cida Airam, Jô Nunes e Liane Guariente.


Paulo Vinícius (Alves)

é mestre em Filosofia pela PUC-PR e pesquisa o Espaço Relacional no teatro. É especialista em Cenografia pela UTFPR, graduado em Artes Cênicas pela FAP e em Filosofia pela UNESP. É professor do curso de Bacharelado em Teatro da PUCPR e dos cursos de Bacharelado em Artes Cênicas e Licenciatura em Teatro da UNESPAR-FAP. É artista, diretor de arte, cenógrafo e figurinista, atuando em diferentes grupos e companhias do teatro paranaense. Atualmente dirige e produz suas criações na produtora Figurino e Cena.

Wagner Corrêa

é iluminador desde 2004 e desenha luz para espetáculos de teatro, dança e shows. É colaborador de vários grupos de Curitiba, entre eles, Cia. Senhas, Vigor Mortis e Figurino e Cena. Foi indicado oito vezes ao prêmio Gralha Azul do Teatro Paranaense, sendo contemplado com o prêmio em 2011, 2013 e 2014. Participou de vários festivais pelo Brasil e também no Uruguai e na Argentina, onde também criou a luz de Viejos de Mi, de Sérgio Mercúrio. Além de criador, ministra oficinas de iluminação cênica.

Naiara Luiza Parolin Bastos é atriz e

possui formação em Licenciatura em Teatro pela Faculdade de Artes do Paraná. Em sua formação com teatro de formas animadas, integrou um projeto em São Paulo coordenado por Ana Maria Amaral e fez parte do grupo Centro de Pesquisa da Máscara. Apresentou-se em Santiago do Chile, como resultado do Laboratório Plan B de Natacha Belova. Foi premiada com a cena Valentin vs Valentin, no Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto. Fez residência artística no Taller de Marionetas Pepe Otal, em Barcelona, Espanha. É fundadora do Teatro de Bagagem e atualmente trabalha como assistente de direção do Coro Cênico de Curitiba.

Ágatha Pradnik é acordeonista e compositora.

Formada em Bacharelado em Composição e Regência pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Atualmente desenvolve seu trabalho principalmente no âmbito da música folclórica eslava e autoral. Foi compositora da sonoplastia do espetáculo Esperança, sobre o qual também escreveu o artigo Composição da trilha sonora do espetáculo ‘Esperança’: Processo de criação musical no teatro gestual, em coautoria com Ismael Scheffler (2017).

Foto: Daniel F. Patire

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ELENCO Fotos: Daniel F. Patire

Bruna Martins é formada

no Curso Técnico Subsequente de Teatro no Colégio Estadual do Paraná e atua no meio artístico desenvolvendo habilidades em interpretação, coro, dança, corpo e movimento. Ex-atleta profissional de ginástica rítmica, atuou durante 8 anos participando em campeonatos nacionais em várias cidades brasileiras, além de Chile e Bolívia. Já ministrou aulas de ginástica rítmica para atletas de diversas idades. Em 2016, começou a se especializar no teatro e cinema, com cursos técnicos e oficinas, além de workshops de interpretação com o diretor Bruce Ducat.

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Maria Cecília

é atriz, dançarina e performer, graduada em Artes Cênicas pela Faculdade de Artes do Paraná. Estuda a expressão corporal em diferentes linguagens artísticas e participa de projetos que envolvem a música e o audiovisual. Já ministrou aulas de treinamento físico para atrizes e de balé clássico infantil e adulto. Atualmente, desenvolve sua prática artística por meio de uma pesquisa autoral denominada Boneca.

Monique Rau é engenheira

civil e mestre em engenharia civil pela UTFPR. Atua na área de teatro há mais de 12 anos, tendo já integrado o TUT e participado em oito curtas metragens. Fez cursos e seminários sobre teatro, além de ter cursado o primeiro ano de bacharelado em artes cênicas, na UNESPAR-FAP. Em 2014, começou a sua formação em circo, em diferentes escolas, workshops e cursos profissionalizantes, se apresentando em várias modalidades de números circenses, além de eventualmente ministrar aulas e oficinas.


Fotos: Daniel F. Patire

Natália Winter iniciou seu

contato com a arte através da dança urbana. Após cerca de três anos com a prática da dança, se aproximou da arte circense, com malabarismo e equilibrismo, e interpretação cênica, participando de várias convenções sul-americanas de malabares e circo. Estudou expressão corporal e consciência corporal. Trabalha com arte de rua, com malabarismo em espaços urbanos, possibilitando acesso democrático à arte.

Raquel de Oliveira Lorentz estuda educação

física na UFPR. Fez teatro amador e participou de um grupo de danças urbanas. Ministra aulas de circo para adultos e de ginástica artística para crianças em projetos de extensão da UFPR. Participa do grupo de pesquisa em pedagogia do circo Cirthesis, apresentando sua pesquisa sobre práticas circenses no IV Seminário Internacional de Circo da UNICAMP.

Rebecca Stauffer

é graduada em Relações Públicas, mas também atua há 14 anos no meio artístico, desenvolvendo habilidades em interpretação, dança, percussão e arte circense. Atuou durante dez anos no Grupo Oxigênio, de arte de rua, com apresentações em várias cidades brasileiras, além de Moçambique, Espanha e Sibéria. Em 2012, começou a se especializar na arte circense, com aulas e treinamento. Já ministrou oficinas e aulas de circo. Realiza apresentações de acrobacias em espaços culturais e eventos.

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FICHA TÉCNICA DO ESPETÁCULO CONCEPÇÃO, DIREÇÃO, DRAMATURGIA E PRODUÇÃO: Ismael Scheffler ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO: Karina Souza TREINAMENTO ARTÍSTICO DE ACROBACIAS: Bruno Tucunduva ASSISTÊNCIA DE PRODUÇÃO: Simone Landal ELENCO: Bruna Martins, Maria Cecília, Monique Rau, Natália Winter, Rebecca Stauffer e Raquel Lorentz CENOGRAFIA: Levi Brandão FIGURINO: Paulo Vinícius COSTUREIRA: Nair Brandt DESENHO DE LUZ: Wagner Corrêa OPERAÇÃO DE LUZ: Wagner Corrêa, Nicolas Caus e Letícia Decker TRILHA SONORA ORIGINAL E EDIÇÃO DE SOM: Ágatha Pradnik INSTRUMENTISTAS: acordeon - Ágatha Pradnik; flauta - Denusa Castellain; violoncelo - Maria Luiza Sprogis; fagote - Juliano Pontes; oboé - Carina Cardoso de Araújo; pratos, udu e xilofone - Luís Fernando Diogo OPERAÇÃO DE SOM: Ágatha Pradnik, Ayesla Fabian e Gustavo Bittencourt FORMAS ANIMADAS: Ismael Scheffler ASSISTÊNCIA DE CONFECÇÃO DE FORMAS ANIMADAS: Simone Landal CONSULTORIA DE FORMAS ANIMADAS: Naiara Luiza Bastos PREPARAÇÃO CORPORAL: Ismael Scheffler, Bruno Tucunduva e Karina Souza ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO: Maurini de Souza (ASCOM) e Daniel Faria Patire FOTOGRAFIAS DE DIVULGAÇÃO: Daniel Faria Patire TEASERS: Ismael Scheffler, Aline Scheffler e Mazi Moreto

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PARTE I

DE MÃOS DADAS O espetáculo OCO envolveu uma diversidade de expressões desenvolvidas por um conjunto de artistas amadores, profissionais, professores-artistas e estudantes. Nesta primeira parte do livro, apresentamos uma série de textos envolvendo depoimentos, artigos e entrevistas que tratam sobre o processo de criação de OCO. Apresentamos depoimentos de duas atrizes: Rebecca Stauffer, Sobre as incompreensões de OCO e da vida, e Monique Rau, em Carinhosa bravura. O diretor do espetáculo Ismael Scheffler apresenta dois textos nos quais indica alguns fundamentos do espetáculo: Entendendo contextos anteriores a OCO e Uma dramaturgia sem palavras. Refletindo sobre o processo criativo e algumas cenas, apresenta ainda os capítulos: Comensalidade; Doçura e bestialidade: os bonecos; Sem ver para fazer ver: as máscaras; Montanha, acrobacia e colagem; O andar e as atitudes escultóricas; Gritos. O professor Bruno Tucunduva, em Jogar, equilibrar, carregar: descoberta das poéticas acrobáticas, sintetiza princípios da pedagogia circense que vem desenvolvendo nos últimos anos e que aplicou na preparação acrobática do elenco.

Foto: Gustavo Garcia

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Tratando também sobre formas animadas, retomando aspectos importantes de sua experiência e percepção, Naira Luiza Bastos apresenta Criando seres híbridos: os bonecos. Em Figurinos para corpos amalgamados, o professor Paulo Vinícius Alves, reconstitui de forma clara e didática sua metodologia de criação em OCO. Ágatha Pradnik, por sua vez, aponta de forma esclarecedora diversos aspectos da criação da trilha sonora original de OCO, no capítulo O movimento sonoro em meio ao gesto. Por fim, encerramos esta sessão com duas entrevistas: Atmosferas e cores: a iluminação, com Wagner Corrêa; Vazio e cru: a cenografia, com Levi Brandão. Não se pretende, de forma alguma, restringir ou induzir as leituras pessoais, uma vez que foi premissa da peça a exploração de imagens abertas para que os espectadores pudessem construir, a partir de seus repertórios pessoais, suas leituras de OCO. O que queremos é mostrar o que nos pautou na criação de uma obra de arte poética. Desejamos com este livro contribuir para uma educação artística, colaborando para a formação de um olhar mais sensível, empático, crítico e autônomo.

Foto: Lais Poloni Carvalho

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01. SOBRE AS INCOMPREENSÕES DE OCO E DA VIDA

Rebecca Stauffer

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ia 15 de abril de 2019, segunda-feira, verifiquei meus e-mails e descobri que as audições para a próxima montagem do TUT seriam naquela mesma noite. Coração a mil. Montei uma sequência de movimentos de acrobalance e dança, ensaiei e mandei um vídeo para a Monique dar sua opinião, já que ela também iria participar. Seis pessoas foram fazer o teste. Cada uma apresentou um número dentro de sua especialidade. Lembro como se fosse hoje. O teatro, a dança, a ginástica artística e as acrobacias de solo tomaram conta do local. Fizemos alguns exercícios de criação e interpretação e ali já havíamos criado uma conexão, um carinho. Era nítida a vontade de construir e de crescer, o brilho nos olhos de conhecer e aprender, a respiração e o coração acelerado e ansioso para explorar o novo. No primeiro ensaio, conhecemos mais uma integrante, que havia realizado o teste em outro dia. A instigante Natália, que gesticulava com as mãos. Malabarista, chegou de mansinho, com sua voz calma e presença tranquila, pronta para ajudar, contribuir e aprender. A partir daí, mergulhamos nos ensaios. Tudo foi preenchido pela arte. Três horas de ensaio, três noites na semana, conciliando com estudos, trabalho e outros projetos. Exigiu muito de todas nós. Descobrimos como cada uma se movimentava, interagimos e exercitamos o contato. O Bruno fez a preparação corporal, treinou nossa resistência, nos ensinou técnicas de acrobacias circenses e nos desafiou e encorajou para que criássemos confiança umas nas outras. Instigou a nossa criatividade desconstruindo a técnica e formando o orgânico. Suamos, exploramos e construímos. Foi lindo ver a dedicação da Cecília, autêntica em cada cena e sua evolução nas acrobacias, área em que nunca havia trabalhado, nos carregando com tanta segurança e firmeza.

Foto: Ismael Scheffler

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Foto: Ismael Scheffler

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Com o passar das semanas, o processo intensificouse. Nos tornamos um só corpo. Naquela altura já nos conhecíamos melhor, havia entrosamento, encorajamento, respeito e uma parceria leve e natural. Karina trabalhou na consciência corporal e limpeza dos movimentos. Foram muitos ensaios de subir, descer e caminhar umas em cima das outras, muitos exercícios para firmar a confiança, muito treino de força e equilíbrio. Foram muitos ensaios em que estudávamos cada movimento minuciosamente em busca da pose ideal que transmitisse o carinho, a dor, o cuidado e a solidão. Pesquisamos fotos e pinturas, assistimos a vídeos, conhecemos e estudamos o teatro físico. Aprendemos a respirar, respiramos juntas e descobrimos a força que a respiração traz. Não posso deixar de fazer referência à insistente frase enfurecida do nosso diretor: “não tem ninguém respirando nessa cena”. Ela nos ensinou a respirar sempre e fez toda a diferença para que o espetáculo fosse o que é hoje. Tinha também aqueles momentos em que nos sentávamos em círculo no meio da sala para conversar sobre o ensaio, trocar ideias, filosofar sobre cada cena. Era hora de ficar à vontade, se alongar, ouvir e falar. Parte que a falante e tão amiga Monique amava, ali ou no bar, como sempre sugeríamos ir. Nessas conversas fora de cena que o verdadeiro vínculo entre as atrizes se firmava. O Ismael trouxe o teatro sem fala com o propósito de envolver o público sensorialmente. OCO não seria um espetáculo fácil de entender e interpretar. A plateia faria parte com sua história, sua bagagem, seus sentimentos, reações, intuições, entendimentos ou não de cada cena. Em um espetáculo como o nosso é preciso aceitar que algumas coisas podem não ser compreendidas de imediato. Além de não utilizar a fala, optamos por


não utilizar o rosto. Cobrimos a face com panos para trazer a atenção aos gestos, ao corpo e às interações entre eles. No início foi um desafio ensaiar com uma meia calça na cabeça. Era difícil de respirar, de piscar e de enxergar. Tivemos que deixar a expressão dos sentimentos, tão naturalmente revelada pelo rosto, e expandir e reverberar para todo o corpo, de forma clara e consciente. As personagens se cuidavam, se protegiam, mas também se afastavam, sentiam medo, dor e empatia pela violência sofrida pela outra. Tudo foi construído com base nas relações que estabelecemos umas com as outras. A música foi uma surpresa para nós. A Ágatha ficou encarregada de compor a trilha sonora para o espetáculo, mas ainda não sabíamos ao certo como o processo ia funcionar. Acabou sendo como uma troca. Nos primeiros ensaios, ela se sentava com seu acordeom e improvisava algumas músicas durante nossas cenas. Como era emocionante interpretar com um som que vibrava especificamente para aquele momento, naquela cena! Isso fez toda a diferença. Alimentamos a Ágatha com os movimentos e a trilha dela alimentava o espetáculo. O resultado final foi fantástico! E teve os bonecos. Quando o Ismael disse que os tais monstros e criaturas seriam feitos de espuma, me perguntei se ficariam bons, mas durante esse processo criativo aprendi a confiar no Ismael. Ele sabe o que faz e, acredite, se ele diz que vai ficar bom é porque vai ficar bom! Apesar dos bonecos terem sido incorporados à cena somente mais próximo da estreia, o resultado acabou sendo impressionante. Todo o trabalho de preparação corporal e de respiração que ele tanto investiu revelou-se na manipulação da doce Raquel, que deixou de lado toda a sua timidez e demonstrou a mulher forte que é. Natália também deu vida a criaturas reverberando cada gesto de suas mãos.

O Ismael revelava uma grande sensibilidade não apenas com as cenas, mas também no modo como ele entendia a situação pessoal de cada atriz, nosso estado mental e físico, sempre agindo de forma muito calma. A primeira pessoa em que pensei quando machuquei o joelho foi nele. Um dia, treinando acrobalance, eu caí de um pouco mais de dois metros de altura e rompi o ligamento. Depois de tantas orientações para que a gente se cuidasse, como contar para o diretor, uma semana antes da estreia, que eu não iria conseguir atuar? No início, achei que daria conta se adaptássemos algumas cenas. Comecei a fisioterapia e começamos a pensar o espetáculo com algumas adaptações, mas meu joelho estava muito inflamado e a cirurgia precisou ser antecipada, faltando apenas três dias para a estreia. Eu precisei parar. Parar para escutar meu corpo que estava gritando por cuidado. Precisei me acolher naquele momento de dor e respeitar meus limites. Amei meu corpo e parei de lutar contra ele. Mais uma vez, o Ismael me surpreendeu com sua sensibilidade. Ele, mais do que ninguém, entendia minha decepção. Felizmente, desde o início dos ensaios, o Ismael propôs preparar duas atrizes para o papel principal, que eu Bruna revezávamos. Nos três dias que antecederam a estreia, eu acompanhei os ensaios sentada e tive a oportunidade de admirar ainda mais o trabalho do diretor e das atrizes. Não houve qualquer desespero. Mais uma vez nós mergulhamos ainda mais fundo no espetáculo. Adaptamos algumas cenas, mudamos algumas acrobacias e OCO aconteceu. A determinada Bruna encarou o desafio de frente. Ver ela brilhando no palco também foi ver um pedaço de mim. Pude me realizar por meio dela. Fosse na coxia, em casa me recuperando ou na plateia, eu estava vibrando com todo o elenco. Que honra trabalhar com toda essa equipe!

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Mas não posso negar que o sonho de subir nos palcos com OCO sempre esteve presente. Depois de meses participando do trabalho de criação e ensaiando um papel principal, no qual eu permaneceria praticamente os 60 minutos de peça ininterruptamente no palco (um grande desafio), ainda não pude apresentar. Com minha recuperação, iniciei os ensaios de 2020 animada para nossa nova temporada no Festival de Teatro de Curitiba. Mais uma vez, pouco tempo antes da estreia, uma nova fatalidade surpreendeu não só a nós. O mundo foi assombrado por um monstro, que não é feito de espuma, é invisível aos olhos, mas veio para destruir. Fomos surpreendidos pela pandemia de Covid-19. Como escrevi no início desse texto: é preciso aceitar que, em OCO, algumas coisas podem não ser compreendidas de imediato. Isso acontece porque OCO é atemporal e pode ser aplicado a qualquer momento da história. OCO foi tempo de experimentar, de desejar, de parar e, mesmo assim, continuar. OCO foi um processo cheio de mudanças, com novos elementos, movimentos que ficaram para trás e percepções que nos acompanharam. OCO está cheio de pessoas que entrelaçaram as mãos para construir e caminhar. OCO está cheio de amor. OCO foi uma tentativa poética de lidar com um momento de angústia, medo, ódio, insegurança e imprevisibilidade sobre os rumos do país e de cada um como indivíduo. Hoje, posso dizer que eu preciso mais do OCO do que precisava ontem. OCO é daqueles espetáculos que, para ser compreendido, não precisa ser apenas assistido, mas vivido. Hoje, gostaria de sorrir, chorar, me angustiar, me assustar, lutar, me renovar e amar. Hoje, queria, de mãos dadas, gritar contra o monstro que está diante de nós.

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Foto: Ismael Scheffler

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02. ENTENDENDO CONTEXTOS ANTERIORES A OCO

Ismael Scheffler

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teatro é uma arte da palavra ou uma arte visual? Ainda é muito comum as pessoas pensarem o teatro como uma arte produzida a partir de um texto escrito ou de falas improvisadas, uma arte que se caracteriza pelo uso das palavras enunciadas em cena. Afinal, o teatro foi durante muitos séculos entendido e realizado dessa maneira. O termo dramaturgia corresponde exatamente ao estudo do texto teatral, sendo o dramaturgo o autor de textos de peças de teatro. Mas, se não tivermos um texto, ainda poderemos chamar de teatro? De forma mais intensiva, no último século, as artes têm sido cada vez mais experimentais. São diversos artistas e grupos teatrais que criam sem ter o texto literário como o centro do espetáculo. O teatro é uma arte que envolve diferentes linguagens (literária, corporal, visual, musical, etc.) e em algumas dessas experimentações, dando-se ênfases a outros elementos, o teatro se aproxima mais de outras artes chegando, às vezes, ao ponto em que não sabemos mais como denominar estas produções, afinal, perderam diversas características “próprias do teatro”. Mas isto é característica de todas as expressões artísticas. É de toda nossa cultura contemporânea que tem experimentado ampliar a forma de entender o mundo e as práticas humanas. O teatro tem em si a característica de questionar e discutir as diversas certezas que temos sobre a vida e a sociedade, problematizando

valores e paradigmas, buscando ampliar o entendimento e as escolhas humanas. Ele também questiona a si próprio – ou melhor, os artistas reinventam maneiras de fazer teatro. Com o desenvolvimento de tecnologias, as imagens têm tomado cada vez mais importância em nossa sociedade. E o teatro tem sido cada vez mais entendido e produzido como arte visual: Os movimentos dos atores, as palavras pronunciadas, os silêncios impostos, o cenário, os figurinos, tudo isso sobre o palco compõe imagem. A potência do arranjo cênico está justamente na sua capacidade de produzir imagens. Nesse sentido, pode-se dizer que o teatro constitui uma arte de composição de imagem. (Isaacsson, 2012, p. 89)

Nesta citação, percebemos como a inter-relação de distintos meios, inclusive as palavras, colaboram para que o espectador visualize em sua mente o universo ficcional que lhe é apresentado. Pierre Francastel também destacou este aspecto de que o mundo fictício do teatro se concretiza na imaginação do espectador, pelas relações imaginárias que o espectador constrói estimulado pelo que lhe é apresentado: o lugar teatral não é apenas a caixa em que se situa o espetáculo teatral, é o quadro mental, a projeção e a reevocação pelo espectador de uma imagem que esteve no espírito do autor,

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no espírito do diretor e dos atores e que vem em seguida ao espírito dos espectadores. Trata-se, em consequência, de um lugar essencialmente imaginário. (Francastel, 1983, p. 89)

Esse autor destaca uma característica do teatro que é o compartilhamento de conteúdos imaginários entre quem faz e quem assiste ao espetáculo. Por isso, ele afirma que “o teatro pode ser fundamentalmente uma arte visual” (Francastel, 1983, p. 93). Isso porque o teatro só ocorre quando visualizado na mente do espectador. É interessante observarmos que Francastel está se referindo também ao autor, ou seja, ao texto teatral. Todo espetáculo teatral é, portanto, provocador de produção de imagens. Logo, a palavra é um dos elementos que contribuiu para isto e este entendimento pode nos ajudar a reconhecer que ela não seria o elemento principal do teatro, mas sim a imagem mental. Daí que, mesmo que se retire a palavra, ainda se manteria esta possibilidade imagética ao espectador por meios visuais, sonoros, espaciais, etc. Estabelecer narrativas por imagens é algo cotidiano para o ser humano, pois nos expressamos visualmente com o rosto e com o corpo, na forma como nos deslocamos em um ambiente, com nossa vestimenta, nossa maquiagem social, como organizamos os ambientes onde moramos e assim por diante. Por diversos meios, buscamos estabelecer impressões e sentidos sobre nós, além de expressar nossas ideias e sentimentos para outras pessoas. A construção de narrativas por produções visuais atravessa a história da humanidade. Lembremos das pinturas rupestres com milhares de anos encontradas nas paredes das cavernas, como as de Lascaux, na França, ou as da Ilha de Celebes (Sulawesi), na Indonésia, nas quais é possível identificar a figuração de seres humanos realizando ações em um contexto, ou seja, essas pinturas apresentam narrativas por meio de cenas. Ao longo das civilizações, podemos encontrar representações narrativas por imagens em pinturas, desenhos, mosaicos, tapeçarias, 26

gravuras, relevos e esculturas, com variação de temas, técnicas, materiais e características (Pimenta e Poovaiah, 2010). As tecnologias de imprensa gráfica, fotografia, cinema e animação audiovisual ampliaram muito o sentido de narrar uma história com imagens. A leitura textual e a leitura visual não são equivalentes nem redundantes. Elas são feitas em diferentes linguagens, uma codificada e outra provocadora de sentido que nem sempre se consegue elaborar de maneira discursiva ou conceitual, portanto nem sempre elaborada racionalmente. Como enfatizado pelo arquiteto finlandês Juhani Pallasmaa (2013, p. 64): “As imagens artísticas parecem se dirigir diretamente ao nosso senso existencial e causam impacto em nosso ser corpóreo antes de serem registradas ou compreendidas pelo cérebro. Uma obra de arte pode ter um impacto mental e emocional vigoroso e ainda assim permanecer para sempre sem uma explicação mental”. A leitura de narrativas visuais exige que a pessoa preencha vazios, já que as imagens sugestionam havendo lacunas de precisão e múltiplos estímulos e informações. A pessoa precisa buscar referências em suas experiências vividas e conhecimentos do passado, tanto no âmbito do real quanto no seu imaginário de fantasias ou sonhos. É buscando na memória (às vezes mais consciente, às vezes mais profunda e inconsciente) que o ser humano reconhece e atribui sentido ao que vê, ou ainda, ressignifica a imagem que tem diante de si. Por isso, “a leitura será sempre parcial, segmentada e particularizada.” (Oliveira, 2009, p. 8). É preciso que este leitor de imagens “encontre, dentro de si, diante das imagens, o fio condutor que liga as imagens e atribua sentido à sequência, produzindo assim uma narrativa.” (Carvalho e Gamba Jr., 2010). São diversos os pesquisadores (antropólogos, filósofos, psicólogos, linguistas, artistas, designers, pedagogos, etc.) que se interessam por compreender como e onde as imagens se configuram, como o ser humano percebe, como articula e constrói o pensamento, as linguagens, as abstrações.


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O teatro ocidental que privilegia o gesto, o mimo, tem origem tão antiga quanto o teatro de texto, havendo manifestações na antiguidade grega e ganhando mais espaço no Império Romano. Em diferentes épocas, a arte de se expressar por gestos e movimentos esteve associada à declamação de texto, pelo próprio atuante ou por outro, com música cantada ou apenas tocada, mas também havia manifestações artísticas gestuais sem a associação à fala. Considera-se o início do teatro ocidental na Grécia Antiga, sendo o texto dialogado encenado. A partir do Renascimento na Europa, o texto foi sendo entendido como o centro, valorizando a escrita mais do que a encenação, considerando que o texto era uma obra prima que se bastava, estando acima dos demais elementos do espetáculo. A ideia do teatro como arte da palavra escrita se tornou muito forte, intelectualizada e com grande zelo por um purismo do gênero. Outras manifestações artísticas mais populares e visuais que não se enquadravam no modelo, como os teatros comunitários religiosos da Idade Média que tomavam as praças das cidades com seus palcos múltiplos eram vistos como inferiores, assim como desconsiderados os estilos de apresentações de mimo que sobreviveram desde a Antiguidade, ao longo dos séculos na Europa. Também a commedia dell’arte, surgida na Itália no século XVI, com seus atores e atrizes, virtuosos artistas acrobáticos e instrumentistas que atribuíam plasticidade e destacada expressividade à cena com seus corpos, figurinos e pelo uso de máscaras, era menos considerada em grande medida por terem suas falas improvisadas. Foi também nas ruas, a partir do início do século XVIII, que a pantomima francesa reforçou a tradição do mimo, com personagens da commedia dell’arte como Pierrô, Arlequim e Colombina. A pantomima sem fala se baseava significativamente em gestos amplos das mãos, na expressão do rosto maquiado de branco e em atitudes corporais. O teatro gestual tem na imagem, em especial na comunicação corporal, seu principal lastro.

Outras expressões artísticas mais visuais, como o circo moderno, que surgiu no final do século XVII e foi agregando diversos artistas e números de variedades e habilidades, explorando o universo imagético das mais diversas maneiras e sensações corporais, também enfrentou, como significativamente ainda enfrenta, preconceitos. As manifestações artísticas são expressões culturais praticadas de determinadas maneiras a partir de escolhas conscientes, mas também por valores inconscientes. Estes aspectos fazem com que em diferentes momentos históricos a maneira de entender e fazer teatro seja legitimada por meios diversos, tanto por quem faz (artistas), quanto por quem assiste (que acolhe ou rejeita a obra artística), quanto por quem detém o poder oficial intelectual (que produz discursos a respeito) e poder sócio-político e econômico (que viabiliza ou não que a arte seja feita). Dentro de um sistema cultural há teatralidades esteticamente legitimadas e outras não legitimadas, isto é, “aceitáveis” e “não aceitáveis” (Villegas, 2003). A importância da dimensão visual e a maneira de se construir imagens no teatro está vinculada à concepção de mundo, de sociedade e do próprio universo imaginário e artístico. Com a aplicação da iluminação elétrica nos teatros, a partir da década de 1880, a cena recebeu perspectivas muito enriquecedoras e transformadoras. A aplicação de princípios do realismo e do simbolismo ao teatro começaram a ampliar as possibilidades estéticas teatrais. As proposições cenográficas arquitetônicas do suíço Adolphe Appia e as do irlandês Edward Gordon Craig, na virada do século XIX para XX, e suas interações com a iluminação, inovaram as possibilidades e passaram a envolver o corpo, o ritmo, criar atmosferas, usar sombras, potencializando a tridimensionalidade do palco com recursos que pensavam as relações do corpo com o espaço.

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No início do século XX, vários artistas percebiam o teatro como esvaziado de expressão e teatralidade, estando muito centrado na declamação. Vsevolod Meyerhold, na Rússia, com o desejo de que o corpo do ator fosse dominado como matéria para a produção de uma obra de arte, buscou para isto referências diversas. Na França, Jacques Copeau também buscava formar um novo ator que não fosse apenas um recitador de texto e, na Escola do Teatro do Velho Pombal [Vieux-Colombier], propunha diversas práticas corporais também com inspirações em Appia e Craig. Acrobacia, palhaçaria, commedia dell’arte, mimo, máscaras, teatro de bonecos, artes orientais, ginásticas, estudos biomecânicos alimentaram pesquisas que buscavam uma renovação da arte teatral, a formação de um ator e de uma atriz mais expressivos e dotados de domínios técnicos. Dois franceses se tornaram muito influentes para o desenvolvimento do teatro gestual (também conhecido como teatro do movimento ou teatro físico): Étienne Decroux e Jacques Lecoq, ambos descendentes do teatro de Jacques Copeau. Lecoq teve sua formação inicial na educação física, na década de 1940, se aproximando do teatro da tradição de Copeau. Com a fundação de uma escola internacional, também difundiu seu ensinamento pelo mundo. A análise do movimento pauta sua pedagogia, considerando todas as formas de movimento existentes. Ele compreende o mimo como um procedimento de investigação, um caminho de passagem para compreender não apenas a mecânica e dinâmica dos movimentos, mas também encontrar o potencial poético a ser utilizado em qualquer tipo de arte (Lecoq, 2010). De diferentes maneiras, a pedagogia de Lecoq tem influências sobre minha prática docente e artística, por eu ter integrado o Laboratório de Estudo do Movimento, da Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq, de setembro de 2010 a julho de 2011, e por ter desenvolvido minha pesquisa de doutorado O Laboratório de Estudo

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do Movimento e o percurso de formação de Jacques Lecoq, defendida em março de 2013. OCO, seguramente, é uma pesquisa na qual aplico alguns de seus princípios técnicos e estéticos. Os espetáculos em que a dramaturgia gestual se destaca ocupam espaços de fronteira. Ao se utilizar também recursos de tecnologias de projeção de imagens e som, ou formas animadas (como bonecos, sombras ou máscaras), muitos preferem denominar como teatro visual, termo empregado a partir da década de 1980, para referir a prática de artistas marionetistas que inovavam nas tradições do teatro de bonecos construindo cenas imagéticas e performáticas (Cintra, 2014). A aproximação do teatro em geral com as artes visuais, no início e ao longo do século XX, influenciou sobremaneira o teatro e o enriqueceu com novos pensamentos e práticas. Hoje em dia, a compreensão da distinção entre texto teatral escrito (literatura) e texto espetacular (encenação) é bastante comum. Se durante muito tempo a dramaturgia era considerada como texto literário, atualmente pesquisadores e artistas têm se referido a dramaturgias, no plural. Se em práticas anteriores o texto literário era ilustrado por figurinos, cenários, atuação, etc., compreende-se cada vez mais que uma cena pode ser construída com diferentes “textos”, utilizando diferentes linguagens desenvolvidas por todos os realizadores do espetáculo, não apenas pelo escritor. Todos os materiais podem, então, compor a dramaturgia de um espetáculo, daí a utilização de expressões como: dramaturgia do espaço, dramaturgia do corpo, dramaturgia do gesto, dramaturgia da luz, dramaturgia das matérias, etc. O espetáculo OCO, criado pelo TUT, em 2019, é herdeiro destes contextos diversos. Partimos de influências variadas, associando referências de produções de obras de arte, que encontraram no corpo e nas imagens as condições para dar ao espectador a oportunidade de revisar sua própria história, suas experiências e de se dedicar ativamente à construção de uma leitura pessoal


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Foto: Daniel F. Patire

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valorizando sua intuição para realizar uma leitura própria de OCO.

MUITO DE ARTAUD E DE OUTROS PENSADORES Seguramente Lecoq é uma referência importante para o processo criativo de OCO, tendo eu tomado princípios técnicos como fundamento de minha ação nesta produção. Mas há uma referência teórica que antecede Lecoq em minha trajetória teatral. Também francês, Antonin Artaud publicou, nas décadas de 1920 e 1930, textos que instigaram inúmeras pessoas, sendo sua obra mais conhecida o livro O teatro e seu duplo. Desde as primeiras leituras de Artaud, me senti estimulado por suas proposições e provocações. Ao realizar minha pesquisa de mestrado, me dediquei ao estudo deste importante teórico do teatro e produzi a dissertação Características do sagrado nas propostas teatrais de Antonin Artaud e Jerzy Grotowski (2004). Alguns aspectos se constituem como um fundamento para a concepção cênica e para a criação da dramaturgia de OCO (que não podem ser dissociadas nessa peça). Artaud foi um dos primeiros teóricos a questionar a centralidade do texto no espetáculo. Ele considerava o teatro de sua época demasiadamente verbal, um grande mal para o teatro, cheio de limites, um meio insuficiente para alcançar mais profundamente o ser humano. Ele não pretendia a exclusão total da palavra, mas diminuir sua presença significativamente, mudando sua destinação da função comunicativa e semântica para uma dimensão mais simbólica, explorando a materialidade da palavra e sua enunciação. Assim, a palavra traria outras referências e evocaria imagens ao envolver qualidades de voz, de ritmos, de entonações, como um gesto vocal, com as sensações que ela pode provocar. Não seria apenas o que se diz, mas fundamentalmente como se diz e se utiliza a voz. Para Artaud, o teatro deveria se reconhecer como independente do texto literário, por isso combatia sua

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supremacia. Ele estava interessado em uma linguagem mais poética, mais física, objetiva, de imagens concretas, que substituísse a linguagem articulada por uma de natureza diferente, cujas possibilidades expressivas chegassem a pontos mais recônditos e mais profundos do ser humano, para além da racionalidade. Esta linguagem indireta, embora não possua a clareza da palavra e mesmo que não seja totalmente apreensível, mantém um sentido intenso perpassando questões intraduzíveis. Artaud (1993, p. 68) acreditava que a imagem no teatro poderia possibilitar experiências significativas: “uma imagem, uma alegoria, uma figura que mascare o que gostaria de revelar têm mais significação para o espírito do que as clarezas proporcionadas pelas análises da palavra.” Para ele, “existe no domínio do pensamento e da inteligência atitudes que as palavras [são] incapazes de tomar e que os gestos e tudo o que participa da linguagem no espaço atingem com mais precisão” (Artaud, 1993, p. 68). A linguagem no espaço, como ele se referia, que inclui os gestos e a própria voz, tem relação com a materialidade de tudo que pode ser percebido pelos sentidos. Ele defende a criação de uma linguagem própria do teatro (que não seria o texto literário) e que atingiria o ser humano de maneira mais imediata. Este aspecto físico de imagens, formas, plasticidade, cores, gestos e sonoridades musicais, vocais e ruídos age sobre a sensibilidade do espectador de maneira direta. Embora, não se possa controlar como uma imagem age individualmente, acredito que existam algumas que têm uma potência de envolver um número maior de pessoas mais profundamente. Artaud considerou uma série de recursos para a cena com fins de envolver e impactar o público. Alguns destes meios são apresentados de forma inovadora, outros já apareceriam em propostas de outros encenadores. Ele vislumbrava possibilidades para o teatro através da utilização de


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gritos, lamentações, aparições, surpresas, golpes teatrais de todo tipo, beleza mágica das roupas feitas segundo certos modelos rituais, deslumbramento da luz, beleza encantatória das vozes, encanto da harmonia, raras notas musicais, cor dos objetos, ritmo físico dos movimentos cujo crescendo e decrescendo acompanhará a pulsação de movimentos familiares a todos, aparições concretas de objetos novos e surpreendentes, máscaras, bonecos de vários metros, mudanças bruscas da luz, ação física da luz que desperta o calor e o frio, etc. (Artaud, 1993, p. 89)

Esses recursos constroem imagens, sensações e experiências variadas, assumindo a imagem o lugar central porque ela age de maneira distinta das palavras. Artaud quer imagens indestrutíveis, inegáveis, que falem diretamente ao espírito sem o filtro do pensamento racional. Sua intenção é de uma ação profunda e impactante sobre o espectador, não apenas sobre suas ideias, mas também sobre seus sentidos. O teatro é, portanto, uma experiência vivencial ampla. Os gestos, para Artaud, eram entendidos com grande potência. Ele, após assistir em Paris uma apresentação do Teatro de Bali, ficou impactado com a possibilidade de um espetáculo utilizar gestos que não fossem ações cotidianas realistas. Escrevendo a respeito, ele fez várias referências aos gestos e às atitudes e seus aspectos ritualísticos, destacando certa mecanização com precisão fixada e certa solenidade. Ele idealizou o Teatro da Crueldade (que agiria com profundidade no ser humano) com gestualidade marcada do começo ao fim, rigorosamente elaborada, o que impediria movimentos perdidos e daria a eles precisão. Ele fez referências a gestos rituais afirmando que pareciam destinados “a envolver o pensamento, a persegui-lo, a conduzi-lo através de uma malha inextrincável e certa” (Artaud, 1993, p. 53). Embora possamos atribuir às pesquisas de Decroux e Lecoq importante influências sobre o teatro do movimento,

mesmo Artaud não tendo posto em prática seus princípios sobre o gesto, os preconizou. Ele considerava imprescindível uma renovação da forma e da estética do teatro, se distanciando do naturalismo de cópia da vida. Artaud percebia que o teatro poderia ser profundamente enriquecido se utilizasse outro tipo de gestualidade, certa abstração, buscandose imagens com sentidos potentes, construindo-se uma dramaturgia corporal própria. O século XX foi marcado por inúmeras investigações sobre a percepção, a expressão e a comunicação humanas. Os estudos relacionados à psicologia da Gestalt referem que o cérebro humano encontra expressões e atribui sentidos também em elementos da natureza ou em objetos produzidos pelo ser humano. Conforme o psicólogo alemão Rudolf Arnheim, no livro Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora, existem elementos estruturais nas formas que repercutem no espírito humano. Percebemos qualidades de solidez, esforço, torção, expansão, submissão pelos sentidos, através do som, do tato, das sensações musculares, da visão e associamos com o comportamento humano pelas generalidades. O isomorfismo corresponde a essa capacidade humana de estabelecer certo parentesco estrutural entre o padrão de estímulo e uma expressão que ele transmitiria: “Uma rocha íngreme, um salgueiro, as cores de um pôr do sol, as fendas de um muro, uma folha que cai, uma fonte que flui, e, de fato, uma simples linha ou cor ou a dança de uma forma abstrata na tela cinematográfica têm tanta expressão como o corpo humano.” (Arnheim, 1997, p. 444). Há um processo de projeção e identificação de nossas subjetividades. Sentimos juntos com qualquer coisa que apresente características equivalentes. O filósofo francês Gaston Bachelard também realizou, no século XX, estudos muito provocativos sobre imagens poéticas, imaginação material e o devaneio. Ele se dedicou 31


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em vários livros a explorar os elementos ar, água, terra e fogo defendendo que estas matérias fundamentais provocam um arrebatamento humano por diferentes imagens. Ele refletiu sobre o devaneio, esta ação humana de se deixar levar pela mente enquanto acordado, associando imagens diversas perpassando por níveis conscientes e inconscientes. Um bom exemplo a que Bachelard se refere é o poder do fogo quando as pessoas, diante dele, o observando, são arrebatadas pelo fogo em devaneio. Ele defendeu que existem imagens primitivas e potentes acionadas a elementos materiais com os quais nos identificamos e, de certa maneira, nos tornamos. Em nossa linguagem cotidiana, utilizamos inúmeras metáforas para nos referirmos a nossos sentimentos e sensações, como estar queimando de raiva ou estar se apagando. Para além da imaginação de formas, ele considera que há também a imaginação material, na qual associamos sentidos a matérias e não a formas. Neste livro, Karina Souza, mergulhando nos estudos de Bachelard, toma imagens relacionadas ao elemento terra para pensar sobre OCO, sendo um bom exemplo de um olhar sensível. Bachelard, como Artaud, também trata sobre a potência das imagens que podem envolver o observador, algo que pode também nos remeter aos interessantes estudos do psicólogo suíço Carl Gustav Jung sobre os arquétipos, estas imagens que habitam a profundidade da mente humana em diferentes épocas e lugares e que teriam sentidos inconscientes e simbólicos para os seres humanos. Fruir um espetáculo de teatro visual implica em fluir por imagens e sons, contemplar, vagar dando espaço para a intuição e ao devaneio. A tendência humana de buscar atribuir sentido ao que vê pode ter mais ou menos encadeamentos racionais, mas passa necessariamente por um processo de estabelecer e descartar hipóteses na busca por construir sentidos que satisfaçam ao

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espectador. A intuição, que opera de maneira inconsciente e espontânea, é uma boa amiga que realiza associações e conexões, gerando conhecimentos que nem sempre se tornam conscientes. Estas são algumas referências que talvez possam interessar aos espectadores de OCO ou aos leitores deste livro. São assuntos distintos, muito estimulantes, que convergem em nosso espetáculo. Foto: Marcelo A. Públio


03. UMA DRAMATURGIA SEM PALAVRAS Ismael Scheffler

O

CO tem relação com o que apresentei no capítulo anterior Entendendo contextos anteriores a OCO. O princípio da proposta, então, foi de criar um espetáculo visual misturando expressões artísticas, sem o uso da palavra, que tivesse, de maneira especial, um trabalho corporal marcante. Com a colaboração do professor Bruno Tucunduva, da Universidade Federal do Paraná, definimos que as técnicas acrobáticas circenses seriam a base do trabalho. Também as formas animadas compuseram um princípio-chave de plasticidade da cena. Pudemos contar com a participação de profissionais convidados para os elementos visuais e para a composição original de trilha sonora, multiplicando os agentes na construção do espetáculo. Para a composição do novo elenco do TUT, elaboramos um edital de chamada para a seleção, na qual cada candidato e candidata deveria apresentar uma cena com alguma prática corporal com nível técnico intermediário. Isto determinou significativamente o perfil do elenco, em quantidade de integrantes, experiências, habilidades e técnicas. O grupo iniciou em abril com seis mulheres e um homem, passando em agosto a contar apenas com as mulheres. Certos princípios estéticos e metodológicos estavam definidos, e a ideia era trazer ao palco uma proposição poética que tratasse sobre relações humanas e sociais de forma sensível. O ano de 2019 principiava com o contexto brasileiro bastante complexo. A crise política que se instaurou com o processo de impedimento da presidenta

Dilma Rousseff, em agosto de 2016, acirrou-se com a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva , em abril de 2018, e com a impossibilidade de sua candidatura às eleições daquele ano. As motivações de decisões de diversas instituições públicas passaram a ser questionadas. A partir do segundo semestre de 2018 durante as campanhas eleitorais, um levante de posições radicais, discursos de ódio e ações violentas intolerantes marcaram o cotidiano de forma mais intensa. A proliferação de informações falsas com intuito de manipulação da opinião pública contribuiu para abalar a compreensão da realidade e falsas verdades começaram a ser construídas a despeito de fatos. A polarização política tomou conta do Brasil. Com as eleições de alguns candidatos que incitavam diversos destes aspectos com declarações e ações públicas, a sensação de fragilidade da democracia e da liberdade estava ainda mais evidenciada. O ano de 2019 iniciou com o agravamento das crises institucionais, econômicas, ambientais, com ataques aos direitos humanos e com as incertezas iniciadas em 2016 sobre os rumos democráticos. Populações LGBTs, negras, femininas e indígenas, ambientalistas, líderes de movimentos populares e religiosos, pensadores e políticos progressistas, servidores públicos, artistas, professores e universidades públicas, entre outros grupos e instituições, passaram a ser repudiados e sistematicamente atacados em diferentes níveis e por diferentes segmentos da sociedade e dos governos, com tentativas de silenciamento. Em todo âmbito nacional, diversas relações familiares 33


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e de amizades se romperam em razão de manifestação de valores conflitantes defendidos em discursos e ações. Diante deste quadro, de insegurança e indignação, iniciávamos a produção de um espetáculo. A produção, sem o uso da palavra, não se configurou como modelo de teatro político historicamente mais reconhecido, pois a formulação do discurso se deu por meios mais metafóricos e por imagens mais poéticas e abertas. As interpretações dos espectadores, bastante pessoais, não abrangeram necessariamente a crise da sociedade brasileira. De qualquer maneira, o espetáculo que iniciávamos em 2019 pretendia ser uma resposta a instabilidade de seus dias. Dias de sentimentos profundos, de muitos vazios, de um nó preso na garganta. Quando já quase finalizada a criação, chamei este espetáculo de OCO. A peça não mudaria a sociedade, mas poderia ter uma ação sobre as pessoas que integram a sociedade. Uma maneira de lembrarmos da importância de “ninguém soltar a mão de ninguém”. Como tema para o espetáculo, parti da ideia de uma viagem, um percurso a ser percorrido, uma jornada. Isto daria possibilidades para um processo evolutivo, toda viagem sendo em si uma narrativa de etapas. Mas de onde e para onde as personagens iriam? E o que faria com que elas deixassem seu local inicial para ir para outro? O que caracterizaria o aqui e o lá? Por diversos aspectos, o teatro pretendido por Antonin Artaud é referido como um teatro sagrado, o que devemos entender em seu sentido antropológico e não como um teatro que pretenda transmitir um conteúdo religioso, como foi o teatro da Idade Média, ou o teatro evangelístico ou catequizador. Artaud buscou explicar isto ao referir que o teatro deveria explorar a potência mitológica da humanidade: Criar mitos, esse é o verdadeiro objetivo do teatro, traduzir a vida sob seu aspecto universal, imenso, e extrair dessa vida imagens em que gostaríamos de nos reencontrar. E com isso chegar a uma espécie de similitude geral e tão poderosa que produza instantaneamente

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seu efeito. Que ela nos libere, a nós, num mito que tenha sacrificado nossa pequena individualidade humana, como personagens vindas do passado, com forças reencontradas no passado (Artaud, 1993, p. 114-115).

O teatro sagrado busca, portanto, dar oportunidades para que o ser humano experimente uma renovação significativa de sua existência. Assim, poderíamos perguntar, em OCO, qual foi o mito “universal e imenso” que foi abordado. O que foi proposto em cena que iria além da individualidade e retomaria do passado algo que pertence à humanidade como um todo? De diferentes maneiras, algumas pessoas que assistiram à peça compartilharam suas leituras de OCO. Estas leituras eram perpassadas por experiências pessoais e sensibilidades distintas e, portanto, bastante variadas. Mas, em certo sentido, havia referências a um processo de instauração de um caos. Podemos reconhecer nesses relatos, de diferentes maneiras, aspectos do ciclo cosmogônico: um cosmo (mundo) estabelecido que se depara com o caos, o fim de um universo, e pode, talvez, iniciar um novo ciclo de estabelecimento de um novo mundo (Eliade, 2001). Juhani Pallasmaa (2013), por sua vez, acredita que as experiências existenciais de sentimentos profundos envolvem questões relacionadas à proteção, segurança, intimidade e prazer, elementos que estão depositados nas memórias de todas as pessoas. Há, na dramaturgia de OCO, um estado de realização, um mundo ordenado, generoso, seguro e pleno de sentido que se desfaz. E esse desfazer, que se dá de pouco a pouco, levando à perda de sentido, de significação, de identidade, de intimidade revela que o caos pode ser sempre pior e trazer situações nunca antes experimentadas. OCO, em certa medida, corresponde a duas afirmações e uma pergunta: existe algo bom; esse algo é destituído contra a vontade de quem o vive; é este realmente o fim? OCO transita pela resistência, persistência e insistência. É evidenciando o caos que se pode, conforme


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Artaud referia, sacudir o ser humano para que ele possa reencontrar sua humanidade. OCO propõe que se retome um mito sobre o devir, sobre o “tornar-se”, sobre o “vir a ser”. Daí sua raiz universal, pois toda pessoa já experimentou algum tipo de “renascimento”, com maior ou menor intensidade, diante de tantas mortes simbólicas que passamos. Pelas imagens propostas, OCO possibilitou abertura para leituras que tenderam a experiências mais psicológicas, mais filosóficas, mais teológicas ou mais políticas. Ao adotarmos imagens e gestos mais sintéticos, criamos algumas imagens mais abertas a leituras, pois, de certa maneira, as imagens estavam incompletas e o espectador era obrigado a completá-las a partir de sugestões da imagem. “Imagens poéticas se ramificam, fundem-se com outras imagens e se transformam nelas. Imagens profundas – até mesmo as mais condensadas e ‘abstratas’ – não são estáveis, uma vez que têm uma vida dinâmica intensa” (Pallasmaa, 2013, p. 88). Coube, portanto ao espectador, ser coautor da história e imaginar por si a partir dos recursos propostos em cena, assumir uma participação ativa como observador atento e, como sujeito, produzir sentidos ao que via. Por isso o espetáculo foi estimulante aos espectadores no compartilhamento das leituras feitas por cada um. Ao não usarmos palavras em OCO, não propomos uma reflexão racional. Propomos que o mito cosmogônico fosse revivido, pois ele ocorria diante do público. OCO foi um rito. Daí talvez a necessidade de muitas pessoas voltarem para assistir ao espetáculo pela segunda, terceira ou quarta vez, pois uma mobilização profunda (e inconsciente) desejava por mais de uma vez reviver a experiência, estar em contato com os conteúdos que OCO possibilitava acessar, pois “no encontro com uma obra de arte, ocorrem uma projeção e uma conexão duplas: projetamos aspectos de nós mesmos na obra e a obra se torna parte de nós”. (Pallasmaa, 2013, p.67). Imagens de pessoas agrupadas se tornaram instigantes para mim no início do processo de criação.

Lembrei das pinturas do brasileiro Candido Portinari Retirantes e Criança morta (ambas de 1944), que retratam os flagrantes de famílias em angústia que se mantêm juntas em meio à realização de uma ação ainda incompleta que envolve deslocamento (estar a caminho de uma outra terra – na primeira; ou indo enterrar um filho – na segunda). Também me impelia a interação das personagens retratadas nas pinturas do austríaco Gustav Klimt, como em A virgem (1913), nas quais as figuras se fundem em um aconchego de segurança.

Pintura A virgem (1913), de Klimt.

Essas imagens inspiradoras compuseram um painel alinhado à ideia de um grupo que de uma unidade segura se desagregaria, implicando um percurso, uma contagem regressiva, um movimento em etapas. Então, nossa peça seria de um agrupamento humano que se desfaz. No

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processo criativo inicial, restavam as perguntas: se desfaz por quê? O que ocorre quando ele se desfaz? Exploramos significativamente este estar junto, estabelecendo relações corporais de afeto, cuidado e confiança. A perda do coletivo seria então a perda de laços profundos e, ainda mais, a instauração da violência, da angústia e da aversão. A ideia era de que o coletivo de personagens tivesse relações mais horizontalizadas, sem hierarquias de liderança. Por isso, a ideia de família não correspondia. Na busca de um termo “menos pior”, passamos a nos referir a este grupo/coletivo/população como um clã. As relações afetivas de fraternidade pautaram a criação do espetáculo, sendo, portanto, OCO uma história de amor. Não o amor romântico ou sexual estereotipado com o qual somos constantemente abarrotados pela industrial cultural, mas amor do humano por outro humano. Com o elenco estabelecido apenas por mulheres, evidenciou-se então a sororidade. Um aspecto importante é de que criaríamos para OCO outro mundo, distinto do nosso real, onde as personagens se aparentassem em parte com o humano, mas que evocasse elementos estranhos remetendo a animais ou seres de outros tipos, um mundo que tivesse criaturas fascinantes. Este princípio visava nos distanciar do realismo e buscar o fantasioso e o lúdico de uma maneira mais libertária à imaginação. Outro aspecto fundamental do espetáculo eram os bonecos. A ideia de incluí-los trazia muitas possibilidades. Poderíamos multiplicar personagens (já que nosso elenco era pequeno), mas eles também inaugurariam outra categoria de personagens não representados por pessoas, mas manipulados. Ao necessitar constituir um corpo, também poderíamos criar corpos diferentes em aparência e tamanho. Daí a ideia de criar um aumento de tamanho dos bonecos tentando atingir a maior escala que o palco pudesse comportar, fazendo com que crescesse este antagonismo.

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PONTUAÇÕES SOBRE A DRAMATURGIA CORPORAL O trabalho de preparação corporal do elenco envolveu três profissionais: Bruno Tucunduva trouxe a base da acrobacia e de estudos técnico-mecânicos do movimento; Karina Souza ampliou com elementos de alongamento, consciência corporal e rítmica, buscando na dança e na yoga elementos técnicos; e eu conduzi um percurso complementar de consciência corporal, espacial e de dramaturgia corporal a partir de elementos técnicos de Jacques Lecoq, pensando também na poética do movimento. Apresento a seguir alguns elementos explorados por mim que contribuíram para a criação da dramaturgia de OCO. Um aspecto importante na pedagogia de Lecoq (2010) na análise de movimentos é a oposição de duas ações consideradas por ele como elementares: puxar e empurrar. Lecoq considerava que tudo que o ser humano faz em vida pode ser resumido a estas duas ações. Puxar corresponde a um movimento de esforço de tração que consiste em aproximar a si. Empurrar, um esforço de repulsão, de afastar de si. Lecoq viu muito mais do que movimentos mecânicos funcionais. Ele considerava as diferentes dinâmicas das ações, que conduzem a pares antagônicos: receber e dar, tomar e oferecer, acolher e rejeitar, amar e odiar. Nisto, considera três possibilidades: o movimento mecânico (simples ações de puxar ou de empurrar); o movimento dinâmico, quando propomos variações, como de ritmos, pesos, direções, etc (como a intenção de pegar ou dar); e o movimento poético (como na subjetividade de amar ou odiar, por exemplo). Podemos perceber como o gesto passa a construir conteúdos dramáticos, ações a partir das quais conteúdos sensíveis passam a se manifestar. O próprio ato de se manter de pé já é dotado de potência dramatúrgica, pois a luta contra a gravidade é uma impulsão oposta à tração que o corpo recebe. Estabelece-se assim uma


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Foto: Ismael Scheffler

tensão, o embate entre essas duas ações contrárias. A variação desse jogo de forças vai construindo narrativas, pois surgem de um conflito: alguém quer algo (se erguer), mas um antagonismo se estabelece (a gravidade). Com variações nisto, se pode construir narrativas cênicas muito potentes e variadas – e não estamos nos referindo aqui a questões emocionais ainda. Com grande importância, Lecoq destaca a respiração humana, que justamente corresponde a puxar o ar (inspirar) e a empurrar (expirar). Conforme a respiração é associada ao gesto, o sentido dele muda. Saber explorar a ação respiratória (inspirar, expirar e a apneia), permite ao ator e à atriz dominar diferentes níveis de tensão do corpo e assim revelar tanto estados de alma quando dramaticidades diferentes. Lecoq também considera as variações do papel do sujeito, entre sua posição ativa ou passiva na ação. Assim, não é apenas puxar e empurrar, mas também ser puxado e ser empurrado. E ainda, sendo o agente e o objeto: se puxar e se empurrar.

Puxar, empurrar, carregar, lutar contra a gravidade.

Logo: eu lanço, eu levanto; eu me lanço, eu me levanto; eu sou lançado, eu sou levantado. Ou ainda: eu amo; eu me amo; eu sou amado; eu desprezo; eu me desprezo; eu sou desprezado. As variações da potência ativa ou passiva permitem criar diferentes níveis de relações e suas alternâncias constroem narrativas diversas. Estes fundamentos do movimento formaram a base do trabalho que desenvolvemos junto ao elenco e na articulação da dramaturgia corporal do espetáculo. Isto perpassando o corpo todo, muito além das mãos. Mas elas e os pés também receberam esta atenção constantemente na criação de OCO. As mãos, mais do que os pés, protagonizaram várias cenas, não com gesticulações em códigos, mas com ações e atitudes: elas pegam, puxam, carregam, soltam, arrancam, acariciam. O ensaio fotográfico feito por Guto Souza, incluído neste livro, evidencia vários momentos do espetáculo. As mãos possuem força expressiva em diversas artes. O escultor francês Auguste Rodin deu grande expressividade às mãos em suas esculturas, sendo sua obra inspiradora para a expressividade de OCO. Também nas pinturas do equatoriano Oswaldo Guayasamín, a representação de mãos ressoou significativamente em nosso processo. OCO é um espetáculo sobre mãos e pés, que tomam e perdem, que se elevam e se arrastam. Outro elemento narrativo que propus para OCO tem a ver com a inter-relação das personagens com os espectadores. Isto ocorreu na maioria das vezes de maneira sutil, com o sentido de fechamento e a abertura da cena. A ideia de “fechamento da cena” consiste em o elenco atuar sem considerar a existência do público. O espetáculo ocorre no palco, sem que as personagens dirijam sequer o olhar para os espectadores. Em OCO, todas as personagens atuam assim, exceto a personagem principal para quem estabelecemos a quebra desta barreira, “abrindo a cena”. Recordando a pintura Os retirantes, de Portinari, percebemos que as personagens olham diretamente para o observador, compartilhando seus questionamentos e desesperanças. O mesmo ocorre 37


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Foto: Ismael Scheffler

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Acima: detalhe da escultura Pierre de Wissant, nu monumental (1886), de Rodin. Ao lado: cena de OCO inspirada na pintura Ternura (1987), de Guayasamín.

Foto: Otavio Henrique de Almeida Langner

com personagens pintadas por Guayasamín, como nas telas Lágrimas de sangue (1973) e Ternura (1987). Também o pintor norueguês Edvard Munch inclui o observador na pintura quando este recebe o olhar e a angústia da personagem da tela O grito. Embora a personagem principal de OCO tenha utilizado o rosto coberto por uma máscara que dificultava ou até impossibilitava o público ver seus olhos, em diversos momentos do espetáculo ela se dirigia aos espectadores e “falava” com eles. Foram pequenas ações, no direcionamento do olhar com um gesto de cabeça ou de mãos juntamente ao rosto ou o corpo todo voltado para a plateia. Na maioria das vezes, esta interação é discreta, mas há um crescente na medida em que o universo da personagem se torna mais caótico. Se, inicialmente, a personagem principal está bem resolvida em seu mundo, no andamento da peça aumenta a necessidade de se conectar com os espectadores, culminando na cena final 38

com o grito de conclamação. É imprescindível, ainda, ressaltar o aspecto sensorial. Uma questão que me instiga é a possibilidade de o teatro agir diretamente sobre o corpo do espectador, levando-o a experimentar fisicamente o espetáculo. O circo tem como característica uma ação sobre o corpo dos espectadores de forma mais evidente, ao explorar o risco. O risco eminente da queda do trapézio ou de uma acrobacia desperta o espectador fisicamente, o colocando também em prontidão, vivenciando no seu corpo a insegurança – e isto não apenas emocionalmente. Basta reconhecer como nos relacionamentos com a cadeira, nos afastando do encosto, nos segurando ao assento, encolhendo os pés ou os fixando no chão (evidenciando isso de maneiras diferentes, conforme a personalidade). Este é um aspecto que OCO explora pela acrobacia, pelo risco da queda, pelo esforço dos corpos. Nossos cérebros tendem a espelhar a respiração que vemos, nossos músculos a se tensionar ou relaxar conforme as pessoas (ou outras imagens, como uma paisagem) diante de nós. Também os sons provocam fisicamente o corpo de diferentes maneiras: sons mais agudos tendem a provocar o corpo, a tensionar o rosto para proteger os ouvidos, ao passo que sons mais graves provocam o corpo de outras maneiras. Nesse sentido, para algumas cenas eu propunha à Ágatha Pradnik, que compôs a trilha sonora para OCO, que buscasse, por exemplo, um som que fosse como uma cólica, que pudesse, talvez, tocar o profundo do ventre. A experiência de assistir OCO presencialmente é absolutamente distinta de ver uma filmagem. Fotos e filmes são lembranças de uma experiência teatral que não visava somente uma ação intelectual ou emocional, mas também física no espectador. Conforme a ação de nossos corpos, nossa mente tende também correlacionar a ação a emoções correspondentes. O corpo do espectador era também uma imagem que buscamos construir com a peça, em tensão e relaxamento (contraindo, expandindo, puxando, empurrando) podendo esta imagem ser ou não percebida pelo público.


Foto: Marcelo A. Públio

DE MÃOS DADAS

DA DIVERSIDADE DE PROCEDIMENTOS O processo criativo de OCO correspondeu a um empreendimento de pesquisa artística, na qual consideramos nossas vivências passadas como fruidores e produtores de arte, bem como nossas leituras e pesquisas acadêmicas e nossas relações sociais, memórias pessoais e coletivas, valores, sensações, deixando fluir a imaginação. Para OCO, partimos para uma sala de ensaio permitindo com que o vagar, o “flanar” e a deriva também fizessem parte. Permitimos estar em um processo de construção artística, atentos à intuição aceitando conhecimentos nem sempre conscientes. Pensar mais por imagens corresponde a se deixar levar pelo deleite e instigação sensorial sem ter que “entender” onde se está a todo

momento. Existe um estado de “estar perdido” que é importante. Em OCO, não partimos de discussões teóricas ou leituras como fundamento. Partimos do corpo em ação. Os primeiros dois meses de trabalho (com dois encontros semanais de três a quatro horas cada – de agosto a outubro foram três encontros), foi de intensa experimentação, preparação, comprometimento, conhecimento e desenvolvimento de estilos coletivos. Foi somente depois desse período, no qual havíamos produzido e acumulado muitos elementos ainda soltos, que fui apresentando à equipe as primeiras ideias (o clã, a viagem, os bonecos...), mas tudo ainda muito disforme. O espetáculo OCO não foi construído de maneira sequencial, com o estabelecimento de um roteiro inteiro, nem as cenas criadas na ordem em que foram apresentadas. Ele resultou de um processo de colagens de cenas. Com o estabelecimento do eixo (o clã com cinco componentes, um de cada vez vai sendo subtraído, além de quatro bonecos-monstros), trabalhávamos com a noção de que determinada cena correspondia a determinada “morte”, por exemplo. Este procedimento teve a ver com diversos fatores, como aproveitar os “movimentos achados”, mas também com o prazo de confecção de outros elementos (como os bonecos e o “objeto versátil” do cenário), assim como inspirações e ideias que apareciam e eram aproveitadas na motivação que traziam. Abaixo, busquei sistematizar alguns procedimentos que empreguei na construção da dramaturgia de OCO, ressaltando em especial a dramaturgia do movimento. Sobre a criação das cenas, poderíamos dizer que houve cinco tipos de conduta: a) o encontro de células de movimentos (microdramaturgias achadas) – a partir da observação atenta durante qualquer tipo de atividade corporal, identificando ações, sequências de movimentos ou atitudes com potência para utilizar no espetáculo (trato sobre isso no capítulo Montanha, acrobacia e colagem);

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b) a pesquisa para produção de ações – consistia em um trabalho laboratorial de exercícios que visavam a criação, mas não de cenas e sim de sequência de movimentos ou atitudes, imagens potentes que pudessem ser usadas em alguma cena específica ou em algum ponto indeterminado do espetáculo (como andares, que abordo a respeito no capítulo O andar e as atitudes escultóricas); c) a criação de cenas dirigidas – um procedimento mais tradicional em que como dramaturgo eu imaginava uma cena, a descrevia para o elenco e a realizávamos a partir deste roteiro, aperfeiçoando-a coletivamente (o capítulo Gritos trata sobre isso); d) a orientação para criação de cenas – eu sugeria um tema, propunha ao elenco que criasse improvisações que eram apresentadas ao grupo, analisávamos, recombinávamos os materiais e determinávamos a partir dos materiais gerados (cenas abordadas no capítulo Comensalidade foram resultantes desse procedimento); e) as conexões entre cenas – com a criação de “amarras” entre movimentos ou cenas para dar coesão nas transições. Também aqui considero ajustes de cena questões de ordem prática, como definir ou alterar o lugar de entradas e saídas do palco (às vezes, uma atriz saía pelo lado direito e, na colagem, ela deveria entrar pelo lado esquerdo, o que em alguns casos foi um enigma para resolver a cena). Outras vezes, precisávamos aumentar a duração de uma cena para ter tempo suficiente para a troca de figurinos nos bastidores (algumas atrizes precisavam de até duas trocas de figurino). Obviamente, também avaliamos constantemente o tanto de esforço físico empreendido pelas atrizes para saber se seria necessário intercalar uma cena de menos esforço para que não faltasse energia, ou alterar quem faz o quê para que o espetáculo pudesse fluir.

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As resoluções dramatúrgicas só foram possíveis pelo envolvimento coletivo, havendo sugestões de toda equipe criativa, significativamente do elenco e dos preparadores corporais, mas também dos demais agentes criativos da cenografia, iluminação, figurino, bonecos e trilha sonora. Também foi importante estar atento à coerência do espetáculo, mantendo-se o sentido unitário narrativo e um ritmo total da peça mesmo ele tendo sido feito “fora de ordem”. Este procedimento não linear de criação também se tornou um desafio para a produção de trilha sonora, pois também ali há uma construção em que importa a sucessão das músicas. Tanto a música de uma cena é importante, quando o desenrolar do conjunto, já que a trilha sonora era presente em praticamente toda peça e conduziria o ritmo e as dinâmicas. A construção da dramaturgia visual se materializou, além das partituras corporais e coreografias, com cada elemento que foi sendo agregado, trazendo significados e interferências nas ações, incluindo novas proposições, compondo cores e formas, volumes, escalas, dimensões, texturas, luzes e sombras, sons, movimentos de outros materiais, etc. A percepção de dimensão, por exemplo, ocorreu quando finalmente pudemos ensaiar com a grande escala do cenário. O impacto das cores da luz mudou toda a nossa percepção sobre a imagem de OCO. A organização de imagens possui um sentido para mim enquanto dramaturgo visual e encenador, mas abdiquei, em alguns momentos de tentar entender ou explicar racionalmente, para mim mesmo, o sentido de algumas imagens. Durante a temporada, pude assistir a OCO diversas vezes da plateia tornando-me espectador, me entregando a uma produção que excedeu minha racionalidade, que tomou materialidade no conjunto de tantos artistas que, juntos, construíram uma poesia visual, sonora, sensorial potente. Há camadas de OCO que ainda não “entendo”. Gosto da ideia que Juhani Pallasmaa (2013, p. 57) apresenta: “A imagem não precisa ser explicada: ela revela seus segredos para nós, ou não.” OCO ainda se revela para mim.


04. COMENSALIDADE Ismael Scheffler

A

transformação de uma situação de vida e sua deterioração é um dos principais eixos da dramaturgia de OCO, sobre o qual foram construídos todos os demais. A história principia apresentando uma realidade marcada por plenitude, alegria, afeto, cuidado, segurança e identidade social, e isto vai sendo corrompido, se diluindo até a instauração do medo, da angústia, da confusão, da revolta, do vazio e da perda da identidade, encerrando-se o espetáculo no ponto em que seria o início da interrupção deste processo. A primeira imagem dada aos espectadores, ao abrir as cortinas, é um prelúdio. O palco, com pouca luminosidade, com um único foco de luz branca à pino, bem ao centro do palco onde cinco personagens estão reunidas em círculo, realizam um movimento que se repete continuamente associado à inspiração e à expiração sonoras em uníssono. Há certa solenidade no silêncio que se rompe discretamente com a respiração. A estética se evidencia como não naturalista. A primeira aparição das personagens não permite apreender muito sobre elas. Há algo de ritualístico. Uma a uma, as personagens saem prostradas, como que puxadas pelo quadril. As integrantes que restam se redistribuem uma de cada vez sem interromperem o ritmo do movimento-respiração mantendo a harmonia na configuração circular. Ao restar apenas uma das personagens, ela se posiciona face a face ao público. Seu último movimento encerra a cena: ela fica ereta, rosto para o público na linha do horizonte com a inspiração retida (o ciclo respiratório que naturalmente seria encerrado na expiração não ocorre) e, com um único passo à frente, ela se posiciona sob a luz (Foto p. 75).

Foto: Handreowyllyann Lopes

Esta primeira cena funciona, em certo aspecto, como um aquecimento às atrizes que se conectam em ritmo e respiração umas às outras. Ao público, é proposto uma experiência de tempo e espaço: a duração da cena possibilita um desacelerar da vida cotidiana e uma conexão respiratória com as personagens. O ambiente de penumbra dificulta a percepção do espaço, entrevendose pouco do cenário pálido disposto. O estranhamento da imagem prepara o espectador a uma estética própria. São provocações sensoriais, apreensões corporais. Este prelúdio não é apenas um resumo da narrativa (um coletivo que se desfaz, uma personagem que resta e encarrando se aproxima de quem a olha – nós espectadores), mas

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também uma preparação para a linguagem do espetáculo que é incomum. Para o estabelecimento de um contexto de plenitude rumo ao vazio, a melhor maneira de distinguir um do outro é pelo contraste de características. Assim, delinear o primeiro contexto (o cosmo) se tornou importante, pois quanto mais a violência e dor fossem percebidos (o caos), mais o afeto, o cuidado e a alegria seriam privados das relações entre as personagens. Foto: Gustavo Garcia

A segunda cena de OCO traz outro clima: luz intensa em profusão de cores, grandiosos elementos do cenário dados a ver, uma música que se propaga por todo ambiente, os sentidos do espectador estimulados do silêncio e escuridão para a luz e um mergulho sonoro. As personagens entram em cena saltitantes, realizando uma sucessão de brincadeiras acrobáticas revelando uma atmosfera alegre e despreocupada, lúdica em sua essência. Em um entra-e-sai por todos os lados do palco, são exibidas ações revelando um estado de infância, de alegria plena e de encantamento. Nada, de fato, se narra em complexidade, pois são rápidas cenas brincadas. Apenas se embebe o espectador em um estado de maravilhamento estético e prazeres da liberdade, leveza e equilíbrio tranquilo. Para demarcar este mundo de plenitude e criar o sentido de ser uma cultura outra que não a em que vivemos diretamente, era preciso apresentar hábitos, costumes e valores destas personagens. Estabelecer um sistema de relações sociais. Há neste mundo um sentido de comunidade e civilização, o que distingue as personagens de animais e evidencia 42


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uma sociedade organizada que, por certos aspectos, remete a um povo originário/primitivo. Propus a criação de quatro ações que demonstrariam esta sociedade: caminhar em conjunto; cuidar do bebê; domir; e comer. A caminhada em grupo correspondeu à formação de uma figura única na qual todos se acoplavam como um sistema integrado e interdependente. A formação desta figura se dava de forma natural, evidenciando que cada uma sabia onde se encaixar, com familiaridade espontânea e intimidade. Esta figura já anuncia que, mais do que a individualidade, a constituição de um ser coletivo importa. As personagens deste coletivo não são por si próprias, mas integram um espíritocorpo único. Foto: Ismael Scheffler

Para esta sociedade, propus que não houvesse uma hierarquia entres seus membros, por isso esse grupo não seria uma família. A denominação que adotamos foi de clã, por terem vínculos, mas não necessariamente relações de filiação. Ter um bebê reforçaria vínculos familiares, mas não estabelecemos uma mãe específica que teria mais responsabilidades do que as demais do grupo. O trato com o bebê se dava em interações carinhosas e divertidas, passando-o de uma para a outra, com cuidado, mas sem excessiva proteção. A doçura do bebê se revelava na expressão de alegria corporal das atrizes e nos movimentos de atribuição de vida ao boneco utilizado. De maneira mais sistemática, as práticas sociais cotidianas de dormir e comer demonstraram melhor a cultura deste povo e seus valores sociais. Dormir e comer aparecem várias vezes em OCO. Para o sono, construímos um ritual de dormir de maneira que o grupo se fundia (podemos lembrar das pinturas de Klimt) e se acolhia (podemos lembrar da Pietà (Piedade), representação cristã em pinturas e esculturas da Virgem com 43


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Foto: Ismael Scheffler

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O movimento sucessivo de tomar o pulso, criando uma corrente de segurança e cuidado. A mão de uma é a mão de todas.

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Foto: Daniel F. Patire

Foto: Marcelo A. Públio

Escultura em mármore Pietà, de Michelangelo (1499). Sobreposições de pietà durante os ensaios no início do processo de criação de OCO.


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o Cristo crucificado em seus braços). Além de uma personagem servir de suporte de apoio físico para a outra e para o grupo, desenvolviam um gesto de segurar o punho, estabelecendo elos de uma corrente. Esta sequência repetida reforçava a interdependência: um carinho no toque e uma segurança no pegar. Mais do que ser funcional (já que não necessitam de outros objetos para dormir), esta composição demonstra subjetividades e reforça o modo de vida de interrelacionamento e uma identidade social de unidade. Há entrega e acolhimento (me doo e te recebo), uma generosidade em ser e estar, pois cada uma não pertence apenas a si. É significativamente pela repetição deste hábito no andamento do espetáculo, que cada perda de uma integrante é sentida. Eram nesses momentos de fusão para dormir que as mãos encontravam o vazio, já que não tinham o que segurar, e que a dor e a ausência eram mais percebidas e demonstradas. Este ritual do sono é repetido iniciando com o grupo de cinco personagens (quatro representado por atrizes e pelo boneco do bebê) chegando até o ato solitário. Cada vez, a dor e a falta são expressas por uma gestualidade distinta, sejam as pancadas no próprio peito, seja a mão aberta no vazio, ou ainda na forma solitária, quando a personagem principal, sozinha, segura seus próprios tornozelos (foto p. 165).

A mão busca no vazio o bebê perdido.

Foto: Ana Luiza Pilatti

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É também pelo ritual de dormir que vai sendo demonstrada a perda da intimidade corporal. Se primeiramente o abraço e encaixe se dão de forma livre e fluída, em fazer e receber, mais adiante, o abraço demora em ser recebido e é confundido com o medo do toque do abusador: o corpo se retrai, repele e tenta escapar por instinto. A inter-relação ainda se estabelece, mas é marcada pelo trauma: o corpo físico individual abusado reverbera no corpo coletivo do afeto.

Foto: Camila Martins de Jesus Aguiar

Outro hábito biológico que revela o modo de vida coletivo de uma sociedade é a alimentação. A comensalidade é a prática de comer junto, partilhando a comida (Carneiro, 2005). Sua realização é permeada por simbolizações, feita a partir da organização de regras, tecida a partir de redes de relações sociais, políticas, religiosas, econômicas e estéticas. A comensalidade é uma celebração de vínculos humanos que partilham o alimento, evidenciando a solidariedade e o pertencimento, sendo uma forma de celebração (Oliveira, 2016), que envolve (ou não) dinâmicas igualitárias, estima de uns

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pelos outros, cuidado, realização pessoal e sensação de liberdade (Fernandes, 1997). Estes aspectos do comer junto se configuravam como base para OCO, o sentido de evidenciar a convivialidade existente naquela comunidade. O universo simbólico da comensalidade pode possuir diversas modalidades de expressão, carregado de múltiplas significações que se revelam em sua morfologia (Fernandes, 1997). Pensar as cenas de alimentação em OCO incorreu em escolhas criteriosas a fim de que estas ações apresentadas em imagens conduzissem para os sentidos pretendidos. Logo ao início do espetáculo, a primeira cena de alimentação ajuda o espectador a conhecer este agrupamento humano. Ela pode ser apontada como tendo cinco momentos: a preparação, o servir, o comer, o retirar e a digestão (dormir). A alimentação não está disponível automaticamente na primeira cena de OCO: é preciso prepará-la. A cena de preparação do alimento é a que mais possui a descrição manual de gestos (mímica). O processo de compor a cena envolveu primeiramente uma listagem de ações do ato de cozinhar, partindo do princípio de que não seriam usados utensílios invisíveis para o trato com o alimento, mas que as mãos seriam os instrumentos. As ações realizadas possuem diferentes qualidades e foram organizadas em diferentes arranjos de direção, peso, fluidez, ritmos, dimensão e duração, combinadas em relações com os sentidos, experimentando-se cheiros, sabores, sentindose as texturas, apreciando-se o aspecto. Não há uma receita propriamente feita, mas uma diversidade de ações realizadas com fluidez, ou seja, a preparação segue espontaneamente, um ato orgânico e cotidiano. Os modos de preparo de alimentos revelam aspectos da cultura ao se transformar o mundo natural por meio de conhecimentos acumulados. Em OCO, a preparação da alimentação revela valores sobre a natureza e a saúde (não há nojo ou reservas no trato com o alimento e com a


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higiene, não há desperdícios ou rejeições de alimentos), bem como sobre as organizações sociais, pois, enquanto duas personagens cozinham, as demais se entretêm no cuidado com o bebê, informando a divisão de trabalho. Cozinhar em OCO é trabalho e ócio, é uma dança. A não utilização de utensílios e ferramentas no manuseio da preparação da refeição e, posteriormente ao comer, situa o mundo de OCO em algum tipo de sociedade primitiva pela sua falta de refinamento de ações delicadas. Embora os alimentos manipulados sejam imaginados, o que abre uma instigação ao espectador, a não utilização de artefatos reforça a relação do corpo com a comida, da ação direta. O único objeto que existe no espetáculo é tomado nesta cena da alimentação como uma espécie de fogão-panelabandeja. Ele serve como organização espacial para o preparo, ajudando a ilustrar o cozimento e também, por sua forma e dimensão, remete a um banquete, à fartura, a uma expressão da abundância e plenitude – uma redundância de um estado de felicidade mostrada nas cenas anteriores. Foto: Lais Poloni Carvalho

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O ato de servir flui da preparação para o comer. O banquete é levado ao resto do grupo que se curva para dar passagem à grande bandeja, em um gesto rápido de reverência. Sobre o chão, com o grupo sentado à volta, reforça-se a relação de escala do objeto, que é percebido grandioso na dimensão de quatro pessoas. As personagens de OCO não se fascinam com a abundância, pois ela não é incomum. Diante do banquete, a primeira comida que cada personagem toma com a mão é dada a alguma outra integrante do grupo. Este ato não apenas demonstra um autocontrole (porque se sabe que há fartura e não faltará, então se pode dividir), mas, em especial, revela que as personagens sabem que o coletivo zela por cada uma e que suas necessidades serão supridas. Envolve também reciprocidade, pois tudo o que é oferecido é aceito sem estranhamento, desconfiança ou rejeição pois a premissa do cuidado é certa. Não há gula. Mas há um deleite na troca de prazeres. Há uma relação quase infantil com a comida, como quando o bebê desejoso do seio confia e recebe o leite materno com avidez. A celebração não é apenas da nutrição do corpo, mas de comunhão em partilha simultânea de reciprocidade, cuidado e afeto. É a alimentação da vida plena. Nesta cena de OCO, a maneira de servir pra o outro ou para si, envolveu ações diversas: abocanhar, mordiscar, mastigar, beber, sorver, petiscar, lamber, arrancar, em diversas direções, em diferentes tamanhos, em diferentes ritmos – importa para a cena como comem, usando partes distintas do corpo, da ponta dos dedos a duas mãos. Na aparência visual das personagens há o uso de máscaras sem boca, mas isto menos importa à cena, pois o não realismo já está explicitado ao público. A saciedade chega suavemente e o banquete é posto ao lado, à disposição. A cena segue no cotidiano da digestão. Saciadas, vem o aconchego do abraço. A digestão é o encontro, a fusão dos corpos. Após comerem elas dormem; não por fadiga, mas por acolhimento e realização. Comer as transforma, as reafirma. Estão seguras. 48

Foto: Daniel F. Patire

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Comunhão em partilha de reciprocidade, cuidado e afeto: a alimentação da vida plena.

No andamento da peça, surgia uma criatura estranha, bestial que dominava as personagens e devorava o bebê (ver o capítulo Doçura e bestialidade: os bonecos). Após este acontecimento, no processo de retomar à vida cotidiana, um novo banquete era servido, aproveitandose o que ainda estava disposto no mesmo lugar desde a refeição anterior. O público reconhece o hábito: estar sentado em torno da bandeja. O alimento tomado com esforço pela mão era oferecido, como sempre se fazia. Uma a uma, cada personagem rejeita o alimento. O que se oferece não é aceito e tampouco se consegue comer. O ato de comer foi maculado com o monstro devorando o bebê. O apetite e a abundância não existem mais. O que se rompeu não foi apenas o alimento corporal, mas foram abalados os vínculos. Embora o desejo de alimentar a outra tenha se mantido, não houve a recepção e o acolhimento e as possibilidades de interpretação se abrem para os espectadores.


Há, então, este outro contexto de alimentação: os monstros que devoram. Na sequência da peça, outra criatura bestial se aproxima. Temendo pela vida, as personagens se aglutinam, se reviram, se protegem. A criatura, como um animal se aproxima, cutuca, rela, se diverte, brinca com a comida antes de ingeri-la. As personagens do clã não possuem bocas desenhadas ou abertura em suas máscaras, mas o primeiro e segundo bonecos utilizam suas bocarras. Este segundo monstro lambe e abocanha uma das personagens e é misturada à cena o apetite sexual impregnado de libido e o abuso. Por fim, há ainda mais um contexto de comensalidade ao final do espetáculo, após a última personagem sobrevivente do clã encontrar outras três novas personagens de um novo povo. Da reação de aversão e medo dos primeiros contatos, elas caminham à deriva

Foto: Daniel F. Patire

Foto: Otavio Henrique de Almeida Langner

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e no vazio, sem perspectiva de futuro, sem destino, até cessarem a caminhada com dor (ver o capítulo O andar e as atitudes escultóricas). Estão juntas, mas não unidas. Fatigadas, feridas, param. Uma das personagens então, toma um punhado de alimento que tinha consigo, principia comendo escondida e só, mas decide oferecer, abrindo a mão no meio do grupo. As duas outras

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Foto: Alexander Costa da Rosa

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Na partilha de um punhado de migalhas, elas se unem.

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personagens deste novo povo tomam bruscamente um pouco do alimento e devoram esfomeadas, protegendo a comida e se preparando para fugir antes que lhes tirem o pouco, agindo instintivamente como animais. A fome e a penúria são demonstradas pela relação com a comida na forma mais básica da sobrevivência. Existe aqui outra morfologia da comensalidade. Se há quem come de maneira individualizada, houve ainda o oferecimento e isto revela a solidariedade. Há uma consideração, uma honradez reconhecida. Comer é existir. Comer juntas as torna companheiras – do latim cum panem, os que comem pão juntos. É na comensalidade onde elas se reconhecem, dando um salto da animalidade em direção à humanidade, passando da natureza à produção da cultura onde estabelecem um relacionamento, o princípio de uma identidade coletiva. É na partilha de um punhado de migalhas que elas se unem, que tomam um caminho de cura para a falta de orientação de mundo. A divisão do pão apazigua a fome e, de forma simbólica, expressa esperanças profundas. Revela o valor da cooperação. A solidariedade comensal é uma estratégia para reconstruir o sentido de comunidade, o sentido de pertencimento (Oliveira, 2016). A cena segue com as quatro personagens dando as mãos, a mão do alimento oferecido. Estabelece-se um vínculo forte ao dar as mãos: a união em razão do pão. Afirma-se a responsabilidade pelo coletivo (que é frágil). Amenizam-se as tensões entre seus componentes. As personagens consolidam metas de sobrevivência, como se revezar na vigília para que todas possam dormir enquanto alguém zela. Outro modo de dormir se configura, muito distinto do abraço do início do espetáculo. Agora, em prontidão, dormem de pé, em círculo, apenas lado a lado, uma única mão dada. É uma grande conquista estarem próximas. A estima e a liberdade não são as mesmas do coletivo primeiro. O medo permanente persiste. O trauma do corpo ainda não se foi. Em OCO, a representação externa das personagens é sempre a representação de seu mundo interior.


05_DOÇURA E BESTIALIDADE: OS BONECOS Ismael Scheffler

A

concepção do espetáculo OCO partiu da ideia de que bonecos desempenhariam papel essencial de serem antagonistas, desestabilizando o mundo no qual vivem as personagens e, por causa deles, elas seriam impelidas a se lançar em uma viagem sem rumo. São os bonecos-criaturasmonstros que provocam o conflito. Uma das propostas da peça era a de criar outro mundo e para isso, não apenas o cenário e as personagens representadas por atrizes teriam aspectos distintos de nosso mundo real, como também ele seria habitado por criaturas estranhas que poderiam pertencer a uma fauna distinta da que conhecemos ou a dimensões fantasmagóricas e mágicas. Assim, teríamos duas categorias de personagens: as humanas e os bonecos. A forma e a função de cada boneco foram definidas pela necessidade dramatúrgica durante os ensaios no processo de criação. O espetáculo OCO contou com seis bonecos com técnicas e materiais diferentes. Os bonecos podem ser agrupados em duas categorias: os dotados de doçura e as criaturas bestiais. Era objetivo despertar diferentes experiências no espectador e estabelecer vínculos distintos: de empatia e desejo; de repulsa e medo. Foi durante o Grupo de Estudo sobre Teatro de Animação, em 2018, na UTFPR, que estabeleci maior proximidade com atriz-bonequeira Naiara Luíza Bastos e que surgiu o desejo de realizar um projeto prático com bonecos em um espetáculo. Inicialmente, a ideia era de

que ela desenvolvesse toda a parte de animação de OCO, mas os planos tiveram que ser readequados, ao que ela passou a ser uma interlocutora e consultora, na troca de ideias e no compartilhamento da técnica de confecção de bonecos híbridos (leia neste livro o capítulo Criando seres híbridos: os bonecos, escrito por Naiara). Assumi, então, a tarefa de concepção e produção dos bonecos, contando com o olhar interessado da professora Simone Landal em acompanhar todo processo criativo e que também se tornou assistente de confecção. Após delineadas as características gerais, foram identificadas as necessidades para cada boneco. Assim, partimos para pesquisas considerando referências que já tínhamos, buscando imagens inspiradoras também em livros, especialmente de teatro de animação, assim como assistimos a vídeos com trabalhos instigantes com bonecos. Estávamos em busca de definições técnicas, materiais e formas estéticas. O primeiro boneco a aparecer em cena no espetáculo era um bebê que compunha parte do núcleo familiar, era cuidado e envolvido por ações de afeto. Inicialmente foi previsto confeccioná-lo, mas uma boneca de pano trazida ao ensaio pela atriz Natália Winter, de sua infância, atendia às necessidades em termos de tamanho e movimentos. Com aparência relacionada à das personagens das atrizes, era objetivo que a personagem bebê tivesse relação com todas as demais personagens humanas para que não se pudesse identificar de maneira categórica quem poderia ser a mãe. Este núcleo de personagens deveria demonstrar

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uma vida comunitária sem hierarquia de liderança, compartilhando responsabilidades e amorosidade, sem vínculos afetivos priorizados por relações parentais. Por este motivo, o bebê deveria ganhar vida nos braços de diferentes atrizes, sendo manipulado por uma só pessoa ou ainda duas durante a transferência de colo. O trabalho da bonequeira alemã Ilka Schönbein foi inspirador e, conforme Naiara destacou no processo inicial de planejamento dos bonecos, quanto mais afetiva, doce e alegre fosse a vida da personagem bebê, mais angustiante seria o destino que receberia. Este boneco sublinharia para o público a existência de vínculos familiares de um contexto de plenitude, realização, felicidade, altruísmo e afeto. Foto: Marcelo A. Públio

A outra forma animada de doçura correspondeu a um ser aéreo que entrava em cena no meio do espetáculo, criando um momento de restabelecimento de paz, um “respiro” em meio à tensão da trama, sendo também uma inspiração e consolo. Para ela, foi utilizado um equipamento de malabares buugeng (S-staff), técnica que Natália já praticava e que apresentou no seu teste no processo de seleção de elenco. Essa técnica que exige habilidosa manipulação de um par de S de madeira possibilita o maravilhamento quase hipnótico, conduz ao devaneio e surpreende pelas várias possibilidades de combinações das linhas curvas em movimento, com fluência e leveza. O equipamento pessoal de Natália tinha uma pintura que remetia a cobra coral e os movimentos que realizava exploravam esse aspecto de serpente. Para OCO, utilizamos o mesmo modelo de maneira e tamanho, aos quais Natália já estava acostumada. A colorização foi feita pelo cenógrafo Levi Brandão, mantendo uma face branca e outra com listras irregulares de branco e dois tons de azul, oferecendo, com isso, duas possibilidades de imagens. Desafiei Natalia a descobrir outros movimentos do buugeng, inspirando-se em seres voadores como pássaros e borboletas. Mas em razão da forma em S do buugeng, este ser não se tornava figurado de semelhança com algum animal de nosso mundo, sendo mais abstrato. Foto: Marcelo A. Públio

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Em cena, vestindo um figurino neutro, Natália era vista pelo público durante a animação do ser voador. Embora não pretendêssemos atrair a atenção sobre a atriz-manipuladora, seu corpo também foi coreografo buscando-se criar movimentações orgânicas e dinâmicas. Este ser voador, na dramaturgia do espetáculo, contracena de forma ativa com a personagem principal que se tornava reativa às interações (ver fotos p. 153). De certa maneira, era este personagem voador que conduzia a personagem humana a uma transição de estado, passando da desolação do corpo isolado e cerrado em si após uma extenuante caminhada de sucessivas perdas do núcleo familiar, a um novo recomeço, recobrando força, tomando um novo andar em seguimento à viagem. Para esta cena, Ágatha Pradnik compôs uma música inspirada no ritmo da manipulação, buscando a leveza. Os sons da flauta transversa e da respiração da instrumentista Denusa Castellain estabeleceram uma relação de adensamento com a vida da forma animada. Foram quatro as criaturas bestiais, ou monstros, que compuseram o antagonismo da narrativa, desestabilizando o mundo das personagens humanas e destituindo o núcleo de afeto. Eram criaturas grotescas, algumas com aspectos antropomorfos, outras mais animalescas. Estes personagens bonecos precisavam ter força suficiente para que provocassem e mantivessem uma mobilização de fuga das personagens que se encontravam, inicialmente, em um contexto de estabilidade e plenitude. Em certo sentido, as criaturas de OCO possuem inspiração, embora modesta, em monstros e bestas de espetáculos do brasileiro Duda Paiva, e, de forma mais direta, tem referências nas pinturas negras do espanhol Francisco de Goya. Quatro aspectos dos bonecos são remarcados na dramaturgia visual da peça: o tamanho das criaturas; a inversão da manipulação; a convenção; e o som. O crescimento da escala dos bonecos monstros contribuiu para um sentido de intimidação crescente das demais personagens. Inicialmente, pensou-se que

seria a mesma criatura que a cada aparição se tornaria maior e mudaria de aspecto. Para esta correspondência, a ideia seria adotar uma mesma paleta de cores para os quatro bonecos. Porém, depois concluímos que, pelas muitas variações anatômicas, pelas variações de luz durante o espetáculo, que poderiam alterar esta percepção do público sobre a paleta de cores, talvez fosse difícil demarcar que se tratasse da mesma criatura, ainda mais que não haveria fala para afirmar isto. Porém, de certa maneira, este aspecto se manteve como um eixo, uma vez que a relação das criaturas com as personagens humanas se estabelecia em um mesmo espírito que perpassava todas as situações de interação. Foi mantida a proporção crescente: cada nova criatura tinha escala maior, potencializando seu poder. Iniciava com uma escala humana atingindo a estatura da dimensão total do fundo do palco (aproximadamente 7m de largura por 5m de altura). Outro aspecto dramatúrgico diz respeito à inversão na manipulação: as atrizes manipulam os bonecos, mas e se os bonecos manipulassem as atrizes? Cada criatura tinha uma interação específica com as personagens e foram utilizadas técnicas de teatro de animação distintas para isto. As mãos, em OCO, têm função importante em todo o espetáculo, construindo-se sua dramaturgia a partir das ações de puxar e empurrar (Lecoq, 2010). A animação dos bonecos de nossa peça também era marcada pela manipulação aparente, à vista do público (e não escondidas como em muitas técnicas, como o fantoche ou mamulengo), logo, ele percebe que os bonecos têm vida em decorrência da ação das atrizes, do poder que elas exercem sobre os bonecos. As atrizes estão no topo da hierarquia de poder nesta relação. Ao mesmo tempo, cada criatura exercia um poder sobre as personagens representadas pelas atrizes, isto é, o boneco manipulava o humano. Estas ações correspondiam a diferentes formas de violência. Este aspecto foi determinante para a criação do espetáculo: a ambiguidade manipulação-manipulado, quem está submetido a quem. 53


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Foto: Marcelo A. Públio

Isto tem relação a um terceiro aspecto: a convenção. Todos os bonecos, tanto os de doçura ou bestiais, tinham sua manipulação aparente ou revelavam elementos das atrizes evidenciando a convenção de que é um objeto que tem vida porque uma pessoa o movimenta. Não apagamos da observação do espectador a referência de que se trata de teatro e não o conduzimos totalmente ao aspecto ilusionista de que as criaturas teriam vida própria. Por fim, o quarto aspecto dramatúrgico tem relação com a sonoplastia, por meio da qual se criou uma dilatação da presença das criaturas bestiais. Todas elas foram preconizadas por sons: no primeiro momento, como sinais sonoros estranhos às personagens e também ao público. Mas nos momentos seguinte, Ágatha Pradnik foi incorporando estes sinais sonoros às músicas, que passaram a ser prontamente entendidos pelas personagens como o prenúncio da aparição das criaturas. Em determinada cena (quando a penúltima personagem do clã decai), o sinal sonoro evocava a aproximação de uma criatura e, embora ela ainda não tivesse adentrado no palco, a personagem do clã “se entrega” como forma de prevenir a aproximação do monstro, algo tido por ela como certo. A presença e poder dos monstros excediam sua presença física e ações. A ação principal de cada criatura bestial era consumir uma das personagens esfacelando a unidade do clã. Estes sons funcionavam como sinais condicionantes inspirados nos estudos de Ivan Pavlov, que despertavam reações crescentes de medo por anteverem que algo as assolaria. As criaturas, em si, eram silenciosas, não rugiam ou rosnavam, mas pela trilha sonora se criou referências de onipresença (ver o capítulo O movimento sonoro em meio ao gesto). 54


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O poder de cada criatura bestial era revelado para além de sua aparência e de seu impacto visual que causava a aversão pelo grotesco ou pelo maravilhamento. O poder estava também, significativamente, na maneira como as personagens atrizes as temiam, sentiam sua violência e manifestavam isso em seus corpos. A primeira criatura foi um boneco vestível que entrava e saía de cena caminhando. Silenciosa, esta personagem apresentava-se como um elemento diferente na estética do espetáculo até então, pela sua aparência e pelo seu ritmo lento e pesado. As próprias personagens a recebiam com estranhamento e temor. Embora aparentemente não se pudesse ver que ele era animado por uma atriz, a vista de seus pés, seu braço e sua mão, que surgiam e sumiam de dentro do corpo do boneco estavam revelando a convenção de que havia uma atriz dentro do boneco. Esta criatura realizava duas ações principais em cena: primeiro, dominava as personagens à distância, manipulando como que magneticamente com sua mão o corpo de cada personagem, impondo-se, tirando a autonomia de movimento de cada uma. A última personagem humana manipulada era a que tinha o bebê em seus braços. Ela resistia à manipulação para proteger o bebê desejado pelo monstro. A segunda ação era de devorar o bebê que primeiro era lambido pela longa e serpiginosa língua que saía da bocarra. O elemento grotesco da língua e da aparência bestial se potencializavam no ato de engolir, provocando, segundo relatos de espectadores, grande asco e horror. Esta cena teve inspiração na pintura Saturno devorando um filho, de Goya. A reação sóbria da criatura, nem celebrativa, nem agressiva, e sua saída da mesma maneira que entrou, contrastava com a tensão expressa fisicamente pelas personagens em reações intensas encadeadas e sequenciais (inspiradas na cronofotografia). Isso repercutia de maneira similar em todas, com grande contração muscular e respiratória. A dimensão da dor da perda era dada a ver ao público pelos corpos das atrizes, algo que palavra alguma poderia expressar (ver ilustração p.131 e fotos p. 138 e 167).

Foto: Camila Martins de Jesus Aguiar

Pintura Saturno devorando um filho (1819), de Francisco Goya. A primeira criatura devorando o bebê diante das personagens impotentes em impedir.

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Este boneco foi construído com cabeça esculpida em bloco de espuma, com boca articulada, adicionandose elementos como olhos e sobrancelhas, e corpo com espuma acoplada tendo algumas referências em répteis. Sua confecção foi inspirada em um boneco híbrido de Naiara, que orientou o processo construtivo. Foi feito um estudo considerando a estrutura, proporções, mecanismos, ergonomia, materiais e acabamento. Do ponto de vista estrutural, era preciso pensar no processo da devoração, considerando o tamanho do bebê, a abertura do maxilar da criatura e o tamanho da garganta por onde o bebê deveria passar. Ainda considerar alocá-lo dentro do monstro após ser engolido. Foi um desafio projetá-lo e lhe dar vida. A atriz Raquel Lorentz, além de vesti-lo, emprestava sua mão para ser a do monstro, usava um braço para dar vida à língua e administrava o sistema da mandíbula do boneco. A mesma técnica de esculpir a cabeça em bloco de espuma com boca articulada foi utilizada na segunda criatura, embora esta tivesse outro tipo de configuração, sendo manipulada externamente, à vista do público, como um boneco híbrido. Possuía cabeça e abertura de maxilar, com pescoço, ombros e peito, por vezes parecendo que flutuava, por vezes dando a impressão de que as pernas da atriz-manipuladora eram as do boneco. Este corpo permitia movimentos respiratórios evidentes e o direcionamento do olhar. Tinha olhos profundos e vazios, tendo sido colocados pequenos espelhos no fundo das cavidades oculares para a criação de sensação de infinito ao mesmo tempo que provocando, dependendo o ângulo, um rápido flash de luz para alguns espectadores. Um braço da atriz manipuladora era o braço do boneco, cujo tamanho se sobrepunha às outras atrizes. Se o primeiro boneco não tocava no corpo das demais personagens, este, como um predador que se diverte rondando e vendo sua presa acuada antes de devorá-la, as tocava, cutucava, alisava e segurava sendo o braço de Raquel o da criatura. 56

Foto: Vinícius Baptista

Foto: Daniel F. Patire

Os primeiros ensaios da cena foram feitos ainda sem o boneco, planejando-se toda movimentação de interação.


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A gravura Disparate do medo, de Francisco Goya, e a pintura Morte e vida, de Gustav Klimt, foram referências para esta cena, tomando a composição em que uma figura cadavérica se aproxima de um grupo de pessoas que se abraça.

A criatura de nossa peça tomava uma das personagens do grupo, rendendo-a junto ao seu corpo segurando seu pescoço e nela se esfregava, a manipulava, a lambia, a mordia, levando-a, por fim, consigo para fora do palco. A reação das personagens que restavam em cena correspondia à de terem sido elas que sofreram a ação, como sobreviventes da brutalização. A terceira criatura possuía outra forma, algo como um corpo de serpente ou dragão chinês sem rosto, com segmentos como caudas, barbatanas ou tentáculos, com cerca de 3,5 m de comprimento. Foi construído com tubos flexíveis e leves de espuma cinza claro de polietileno. Entrava em cena conduzida em movimentos circulatórios contínuos no ar, manipulada de forma aparente por uma atriz (Natália Winter) que vestia o traje neutro. A leveza e a circularidade dos movimentos apareciam em silhueta conforme as mudanças de luz, e provocavam um envolvimento sensorial de maravilhamento nos espectadores, embora o anúncio sonoro e a reação de temor das personagens contrastassem com a imagem leve. Foto: Daniel F. Patire

Acima: pintura Morte e vida (1916), de Gustav Klimt. Abaixo: gravura Disparate do medo (1815-1819), de Francisco Goya.

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Foto: Ismael Scheffler

Esta criatura, ao aproximar-se do grupo, envolvia e arrastava uma das personagens, representada por Maria Cecília, que se debatia e era levada para fora de cena. Há, em relação a esse boneco, um processo duplo de manipulação: ele entra manipulado, mas ao envolver a personagem (passando das mãos de uma atriz para outra) tem alterada a qualidade de manipulação, como se ganhasse autonomia, pois tinha-se a ilusão de que a criatura é quem conduzia os movimentos da personagem humana. A quarta criatura bestial é determinante para o encerramento do espetáculo. De grande dimensão, ela ocupava o fundo inteiro do palco, tendo aproximadamente 5 metros de altura e 7 metros de largura. Inicialmente foi pensada para ser manipulada como marionete com cordas presas no urdimento do teto do palco, mas a melhor resolução técnica se mostrou com o uso de varas e manipuladores aparentes. Em razão da estrutura arquitetônica do palco, que não possuía área superior para fazê-la descer inteira durante a cena, nem espaço nas coxias para que entrasse pelas laterais, a única opção era de erguê-la a partir do chão, para uma entrada em cena com imponência. Para isto, foi estudado atentamente o comportamento dos longos segmentos do boneco (corpo, asas e varas de manipulação) e as articulações de maneira a se obter sua entrada potente e orgânica. Para se atingir este efeito, foi preciso além do elenco da peça, a colaboração de mais duas pessoas, a cada apresentação, para a manipulação das asas (alternaram-se Letícia Decker, Gustavo Bittencourt, Rebecca Stauffer e Daniel Lagos), sendo o corpo conduzido por Natália. O boneco estava, portanto, no palco durante toda a peça, ocultado por elementos do cenário, projetados ao fundo para este fim. Estes elementos do cenário foram pensados primeiramente por uma questão técnica (é preciso esconder o boneco). Com o desenvolvimento de um refinado design para eles pelo cenógrafo Levi Brandão, se tornaram integrados compondo de maneira rica a

Foto: Ismael Scheffler

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Foto: Daniel F. Patire

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Na página anterior: croqui inicial para o quarto monstro; montagem do mostro; últimos ensaios antes da estreia com boneco sendo manipulado por três pessoas. Acima: cena do espetáculo.

Foto: Camila Martins de Jesus Aguiar

cenografia. Estes volumes do fundo possibilitaram importantes efeitos de luz e fumaça durante a peça. Sem este boneco e sem as limitações do palco, a cenografia e a iluminação teriam sido diferentes. Dotado de grandes asas roxas translúcidas, um corpo delgado e uma grande cabeça com múltiplos olhos, embora de aparência material frágil, seus grandes movimentos e estatura, recobrindo o campo de cena do palco, impressionavam pelo contraste de escala com as atrizes. Salienta-se ainda a importância da luz e da fumaça, juntamente com a trilha sonora, criando-se uma atmosfera impactante. Embora se pudesse entrever na penumbra enevoada atrás das asas os manipuladores, esse elemento da convenção (que recordava que o boneco não tinha vida própria) se tornava secundário. Essa besta se impunha por sua presença e induzia as personagens a reações de subserviência e entrega. Do ponto de vista da criação narrativa era como se um ciclo de condicionamento das personagens estivesse bem estabelecido após as ações violentas das criaturas anteriores: uma que arrancou e engoliu, outra que violou e devorou; outra

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que envolveu e arrastou. Esta, por fim, tudo via e sua presença já subjugava. O espetáculo encerra-se neste ponto: com a aparição epopeica do monstro e com uma caminhada da personagem principal em direção ao público, irrompendo um grito profundo e conclamando os espectadores a um levante. Ao desenvolver o espetáculo com estética não realista, as personagens representadas por bonecos nunca foram nominadas, algo que trouxe abertura interpretativa às experiências dos espectadores. Mesmo a descrição dos bonecos para este texto, implica em possível redução de leitura, uma vez que para este Foto: Handreowyllyann Lopes

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estudo é necessário pôr em palavras elementos que podem ter tido outras percepções e interpretações. O objetivo aqui não é condicionar uma leitura, mas indicar processos de criação, tanto da dramaturgia quanto das resoluções técnicas, buscando demonstrar pensamentos e decisões articulados neste aspecto de OCO. Dentro da cronologia de ensaios, o trabalho de preparação das atrizes com os bonecos foi muito menor do que o trabalho acrobático. Foi desenvolvido muito mais próximo a data de estreia em razão de necessidade de construção dos bonecos. Em diversos ensaios de criação, simulávamos os bonecos com outros objetos (almofadas, por exemplo), como maneira de estabelecer a cena representada pelas personagens das atrizes, acertar o tempo da música e o desenvolvimento da movimentação do espaço. Isto, porém, não solucionava a necessidade de dar vida aos bonecos, algo que se pôde fazer apenas com os bonecos definitivos, visto que parte da vida e da personalidade de um boneco são conhecidos apenas ao mover o objeto boneco e descobrir as expressões mais explícitas e as mais sutis. O que foi notável é que diversos princípios da animação de bonecos já haviam sido trabalhados intensivamente na preparação corporal, como o eixo de alinhamento do corpo, a direção do olhar, a limpeza de movimentos, ritmos e deslocamentos, a intenção de atitudes corporais e a respiração. Para encerrar, importa sublinhar que a força dos bonecos em OCO suplantou seus aspectos estéticos. A trilha sonora e a iluminação foram complementos radicais. Também a inter-relação entre os bonecos, como o primeiro monstro comendo o bebê, ou ainda a construção da memória traumatizada pela violência que cada criatura exerceu, aspecto que conduziu ao temor crescente que culminou na última criatura. E, sem dúvidas, as reações das personagens em relação a cada boneco induziram o público em suas relações com os personagens-bonecos de OCO.


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06. CRIANDO SERES HÍBRIDOS: OS BONECOS

Naiara Luiza Parolin Bastos

E

ntrei na sala de ensaio para acompanhar a criação do espetáculo OCO em meados de julho de 2019. Cheguei ao trabalho numa etapa já bem desenvolvida, embora minha participação na criação viesse mais adiante na consultoria de confecção dos bonecos que integrariam as cenas e fariam parte de um elemento essencial para a construção da narrativa. No entanto, o que mais me recordo dessa noite de ensaio era o meu espanto e encantamento ao ver em cena um elenco feminino executando ações complexas e de grande exigência física. Lembro que pensei: como elas são corajosas. Esta configuração de elenco não foi planejada, mas ao final se tornou muito significativa no contexto social e político em que a obra estava e está inserida. Naquela noite saí do ensaio impactada com a conexão, confiança e intensidade daquelas mulheres em cena. Esse resultado também reverberou nos comentários que ouvíamos na plateia após o fim do espetáculo, quando o elenco tirava as máscaras que faziam parte do figurino e relevava que todo aquele trabalho forte, pulsante e potente era realizado por cinco mulheres. Ao sair do ensaio naquela noite, notei que a obra estava criando um caminho próprio ao borrar as fronteiras de várias linguagens como o circo, o teatro de animação, o teatro físico e a dança. Percebi que o que estava se desenhando era muito diferente do que se produz e sobretudo que se entende por teatro de animação no

Brasil. Notei também como esse gênero teatral foi e ainda é muito desenvolvido por mulheres, que apresentam um vasto material na área, tanto no contexto latino-americano como mundial. Ao retomar elementos sobre a confecção de marionetes híbridas para o espetáculo OCO, também passamos pelos nomes de artistas mulheres que são referências contemporâneas no teatro de animação. Dois bonecos que foram criados para o espetáculo OCO tiveram como ponto de partida um tipo de confecção de marionete híbrida que tive a oportunidade de aprender em 2015, durante o “LaboratorioPlan B de Marionetas” ministrado por Natacha Belova e Tita Iacobelli. Estas duas artistas atualmente trabalham juntas na companhia Belova-Iacobelli. Natacha é russa e se destaca pelo seu trabalho de confecção para várias companhias e também é muito conhecida pelos cursos que ministra por vários países. Tita é uma diretora e atriz chilena que possui um trabalho muito relevante de voz e de manipulação de marionetes. Esse tipo de marionete híbrida mescla o corpo do manipulador com o corpo do boneco e permite uma movimentação muito fluída, em muitos momentos os corpos se confundem, sem que o público saiba qual corpo pertence a quem. Isso gera um jogo entre ilusão e curiosidade, o público deseja saber como é realizada a manipulação do boneco, porém também suspende esse pensamento lógico e passa a crer na existência do ser 61


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Foto: Naiara Bastos

Foto: Daniel F. Patire

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Acima: Naiara Bastos e Simone Landal, em reunião de estudo. Abaixo: Cabeças esculpidas em bloco de espuma. Na foto, Ismael Scheffler e Simone Landal, sob orientação de Naiara Bastos.

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inanimado. A marionete híbrida nos proporciona a criação de seres muito diferentes e cada boneco terá sempre sua peculiaridade. Muitas vezes, para determinadas ações que o boneco precisará cumprir serão necessários criar outros dispositivos de manipulação. Existem duas formas mais frequentes de se pensar a construção de uma marionete: podemos nos guiar por uma proposta pré-determinada, já tendo em mente o que o boneco irá executar, como por exemplo um texto ou uma sequência de ações; ou podemos trabalhar de forma mais livre, esculpindo ou modelando e tendo, pouco a pouco, uma ideia mais ampla do caráter que se deseja para a marionete à medida em que a construímos. Assim é possível ir desvendando suas possibilidades em contato direto com o material produzido. No caso de OCO, durante a consultoria que fiz com o diretor do espetáculo Ismael Scheffler e a assistente de produção Simone Landal, trabalhamos com a primeira opção. Apesar de não existir um texto predeterminado para a execução de OCO, existia uma ideia de roteiro, no qual o papel que os bonecos precisavam cumprir ao longo da peça era bem claro e também tínhamos a ideia de trabalhar com as marionetes híbridas. Sabíamos que elas fariam um contraponto com a ideia de clã/ estrutura familiar que o elenco apresenta no início da peça. Sempre que os bonecos aparecem em cena eles desestabilizam o grupo, dão medo, aterrorizam, causam asco. Dessa forma já existia um caminho para começar a pensar em referências de rostos, pinturas, esculturas e marionetes. Este passo é muito importante para a construção, afinal as referências nos guiam. Um exercício muito simples é olhar para uma pintura, por exemplo, e identificar o que nela me causa determinada sensação: se são as formas, as cores, os espaços ou preenchimentos, as dimensões, etc. Assim podemos transformar estas impressões e aplicá-las de forma ressignificada na construção de marionetes. Entre as referências que utilizamos ao longo do processo criativo, destaco o


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Foto: Daniel F. Patire

trabalho da bonequeira alemã Ilka Schönbein, que possui diversos espetáculos atuando como atriz, diretora, figurinista e também com construção de marionetes. Após nossas primeiras reuniões, definimos as proporções da cabeça de cada boneco e passamos estas dimensões para o material que o boneco foi confeccionado – em OCO as marionetes foram feitas em espuma. Assim se iniciou o processo de escultura, sempre alternando entre as referências escolhidas e a análise das respostas dadas pelo próprio material, que sempre pode apresentar caminhos interessantes e inesperados à medida que foi sendo esculpido. Outro passo muito importante foi definir a altura que teria o boneco para que a estrutura de manipulação fosse confortável para quem iria manipulálo. Em OCO, os bonecos encontraram espaço para se desenvolver nos corpos de um elenco fisicamente preparado e disposto a dialogar com a matéria. Vale lembrar que para se apresentar uma marionete viva, que “parece que se move sozinha”, é preciso um corpo vivo de manipulador por baixo dela. Talvez se tirássemos todas as camadas de espuma do boneco que estão sobre a mão do manipulador, ainda assim poderíamos ver a intenção e ler as sensações que aquele corpo nos apresenta quando se movimenta. Outro fator importante que fez os bonecos terem mais potência em cena foi o trabalho de respiração que as atrizes focaram ao longo de todo o processo criativo. Como seus rostos estavam cobertos, portanto sem expressão, elas também tiveram que trazer para seus corpos qualidades expressivas que comunicassem as sensações pelas quais as personagens estavam passando. Para cumprir essa demanda, a respiração é sempre fundamental, pois quando se trata de manipulação de bonecos temos a respiração como um dos pilares para a criação da vida da marionete. A variação de intensidade de respiração pode dar intenções diferentes ao corpo do manipulador e também ao corpo do boneco, ou seja, é

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possível construir estados corporais. No caso de OCO, temos uma marionete que em determinado momento expira pela boca, e essa sensação se dá pela união da escultura e da manipulação focada na respiração. Outro pilar importante na manipulação é o que a marionete vê. Se fazemos um boneco ver um objeto, o público por consequência também irá vê-lo. O exercício de ver pode trazer nuances à vida do boneco podendo ter diferentes qualidades, como: ver de perto, ver de longe, focar em um objeto, ver rápido, ver lentamente, acompanhar algo que se desloca, se deslocar olhando para algo. Essas bases de manipulação fizeram parte do processo criativo do espetáculo e é possível vê-las na encenação. Foram indispensáveis para que todas as movimentações trabalhassem sobre o essencial, sobre o necessário em cena, dessa forma o sujeito da ação na peça é a própria ação. OCO é um espetáculo a ser completado pelo público, por ser uma obra aberta e rica em visualidade, ganha significados diferentes para cada pessoa que o assiste. O espetáculo acontece no palco e é criado também na imaginação da plateia. Foto: Otavio Henrique de Almeida Langner

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07. FIGURINOS PARA CORPOS AMALGAMADOS

Paulo Vinícius Alves

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processo de criação de figurino é parte integrante da concepção visual e dramatúrgica de uma encenação teatral. A importância do figurino no desenvolvimento de uma poética cênica é sempre determinada por mais de um fator. A proposição de um figurinista poderá ser de maior ou de menor impacto criativo no processo, conforme o espaço que o figurino ocupará na encenação. O início dos trabalhos de figurino no processo criativo de OCO se deu quando o vocabulário corporal do espetáculo já estava em andamento. A gramática corporal estava sendo mapeada e algumas proposições de narrativas já eram experimentadas. O diretor Ismael Scheffler e o treinador físico Bruno Tucunduva já ensaiavam com o elenco de atrizes há algum tempo, período suficiente para imprimirem uma poética específica, sem textos, elaborando discursos que se efetivavam pelos movimentos e gestos. Os corpos das atrizes estavam sendo treinados para desenvolver movimentos acrobáticos, viscerais, escultóricos e que eram permeados pelo contato físico de um corpo ao outro, entrelaçando-se, nos quais os abraços eram estratégias para um corpo-a-corpo amalgamado. Desenvolvia-se uma poética baseada num teatro de movimentos, rumo a um mundo imaginário. O diretor registrava o processo dos ensaios em vídeos e compartilhava com os demais artistas da equipe criativa,

de modo que, quando cheguei pela primeira vez ao ensaio, não tinha a menor dúvida de que aquele figurino, antes de qualquer coisa, deveria ser técnico e, sobretudo, não poderia atrapalhar o trabalho corporal que vinha se desenvolvendo. A respeito da técnica, nesse momento eu já visualizava que o figurino deveria estar moldado ao corpo das atrizes e que não poderia apresentar formas muito salientes, o que impossibilitaria os movimentos que se desenvolviam. Os materiais também já se impunham, não deveriam ser deslizantes, escorregadios, porque um corpo precisava do suporte do outro corpo para se movimentar. Eu também já sabia que necessitaria de uma boa costureira, que dominasse a técnica de malharia, especificamente de malhas e collants para ginástica e balé, principalmente pela modelagem específica e pela costura reforçada. A outra informação que o trabalho anunciava nesse início era a respeito das personagens que estavam sendo pesquisadas e sobre a criação de um universo ficcional, baseado numa realidade metafórica sobre o afeto, a perda dele e a imposição da violência, desestruturando e desmanchando famílias. O ideal desenhado pelo diretor era o de um mundo desconhecido, formado por seres de um mesmo clã, sobre os quais, nós enquanto espectadores não tínhamos nenhuma referência, mas pelos quais éramos atraídos, criando elos de ligação, principalmente pela empatia. Instigado, questionei ao 65


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diretor sobre a natureza dessas personagens. Foi quando ele me respondeu dizendo que elas poderiam ser de um outro mundo, desconhecido e eram criaturas híbridas, entre humanos e animais, talvez, mas que ainda assim nos reconhecíamos nelas. Tais personagens se distinguiriam de outro grupo que apareceria só nas últimas cenas do espetáculo. O sentido de estranhamento permaneceria compondo um clã diferente. Havia ainda um figurino coringa, com aparência neutra, que remetia mais à visualidade cenográfica do que à caracterização de personagens. Esses últimos seriam os trajes que vestiriam os “corpos suportes”, responsáveis para darem os devidos apoios às personagens principais. O processo de criação e construção do figurino exigiu que enumerássemos as peças, sobretudo pelas adequações de tempo para a confecção e de orçamento disponível. A enumeração dos figurinos, bem como a análise de sua importância, ajudou no processo de estabelecimento do espetáculo, fazendo com que o diretor Ismael Scheffler, por um lado, repensasse algumas cenas, revendo personagens que não eram muito relevantes para a trama ou, por outro lado, remarcando entradas e saídas de cenas para que as atrizes tivessem o tempo necessário para as trocas de roupas, já que algumas atrizes desempenhavam até três papéis distintos. As negociações entre o desenvolvimento da encenação e as necessidades de cada elemento criativo do espetáculo sempre são necessárias na fase final das produções, principalmente quando os ensaios já estão acontecendo no palco do teatro. O desafio então estava lançado para a criação do figurino, amplo e ilimitado enquanto personagens e restrito e limitado enquanto forma, por conta das exigências técnicas, relativas aos movimentos. A minha relação com os principais artistas responsáveis pelas visualidades era de afinidade e parceria, já que tanto com o cenógrafo Levi Brandão e com o iluminador Wagner Corrêa, não seria o primeiro

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trabalho que desenvolveríamos juntos. Além da amizade, dividíamos ideias sobre processos criativos em parceria. Ambos estavam disponíveis para o desenvolvimento de um trabalho colaborativo, preocupados com as questões individuais de cada artista responsável pelos demais elementos visuais. Uma das primeiras proposições de figurino foi estabelecer a paleta de cores. Como de costume, percorri as principais lojas de tecidos pesquisando a respeito dos materiais disponíveis naquele momento, meu foco estava nas cores e texturas. Fotografei padrões, solicitei amostras e anotei os devidos valores. Depois de algumas saídas já era possível pensar numa paleta de cores harmônicas para apresentar para a equipe. É importante dizer que nesse momento o cenógrafo já havia manifestado o desejo de trabalhar com uma proposição monocromática na cenografia, criada a partir de cores neutras entre o creme e o caramelo, o que permitiria o desenvolvimento de qualquer paleta colorida para destacar o figurino. O resultado foi o desenvolvimento de uma paleta formada por cores menos saturadas e sóbrias, permitindo diferentes composições entre elas. As escolhidas foram: o marrom, o marinho, o rosa antigo, o bordô, o cinza e o ciano para o grupo principal das personagens. Como cor contrastante, presente em cada uma das personagens, estava o mostarda. O meu segundo passo era propor ideias a partir das possibilidades encontradas. Entrei no atelier e lá fiquei por alguns dias, desenvolvendo uma das fases mais gostosas de um processo criativo em figurino, os desenhos de croquis. Esse é o momento no qual todas as informações e pesquisas convergem, o momento no qual o repertório do figurinista vai agir de forma autoral, solucionando técnica e criativamente todas as necessidades do espetáculo. As mãos e os pés das atrizes eram muito importantes para a expressividade e execução dos movimentos. Chegamos a cogitar a possibilidade de revesti-las, mas consideramos a necessidade de deixá-las despidas em razão dos apoios


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Acima: Alguns croquis dos figurinos desenhados por Paulo Vinícius. Abaixo: Paulo Vinícius apresentando os desenhos dos figurinos ao elenco.

Foto: Ismael Scheffler Foto: Ismael Scheffler

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e pegas nas acrobacias, por segurança. Este fato de deixar mãos e pés nus potencializou estes elementos na imagem e valorizou a sua expressividade, algo que a direção estava investindo sobremaneira no espetáculo, com o detalhamento de andares e as ações das mãos. A fase dos desenhos de croquis foi muito importante para amadurecer uma ideia inicial do diretor, que era a de cobrir os rostos das atrizes para, de alguma forma, neutralizar as expressões, inspirado na ideia da máscara neutra, parte de sua pesquisa sobre Jacques Lecoq, principalmente sobre a potencialização expressiva do corpo todo, pois: “Sob uma máscara neutra, o rosto do ator desaparece, e percebe-se o corpo mais intensamente. Geralmente se fala com alguém olhando-o no rosto. Com uma máscara neutra, o que se vê é o corpo inteiro do ator. O olhar é a máscara, e o rosto, o corpo! Todos os movimentos se revelam, então, de maneira potente” (Lecoq, 2010, p. 71). Havia ainda a ideia de agregar às máscaras algum elemento de caracterização, que distinguisse uma personagem da outra, e reforçar a proposta de serem seres desconhecidos, híbridos de humanos com animais ou alienígenas. Foi quando inseri nos desenhos uma espécie de forma orgânica na cabeça de cada personagem, lembrando uma espécie de chifre ou uma crista, uma forma minimalista. Tal elemento foi de total importância para a diferenciação entre as personagens e um elemento norteador para que o espectador não confundisse as personagens e não perdesse de vista a protagonista, responsável pelo fio condutor dramatúrgico, já que todas as atrizes vestiam malhas grudadas ao corpo e que, facilmente seriam embaralhadas na cena conforme as alterações da iluminação, pois:

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Nos figurinos, as texturas, dobras e cores são características que já constam nas roupas, e não qualidades atribuídas por algo externo, como a luz. Porém, dependendo da maneira como as roupas são iluminadas, elas podem mudar de aparência. (...) As cores ficam mais fortes e as texturas podem perder relevo dependendo da intensidade e do ângulo de

Foto: Ismael Scheffler

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projeção da luz. (Camargo, 2012, p. 35).

Os figurinos eram compostos por malhas ajustadas ao corpo e uma ilusória simplicidade das formas foi quebrada pela complexidade de recortes em cores variadas, criando diferentes composições para cada uma das personagens e, ainda assim, mantendo uma unidade necessária para a identificação do grupo familiar. Alguns elementos, como franjas e barbatanas, foram acrescentadas entre os recortes, agregando movimentos e dinamizando os trajes, tudo para ser construído em malhas com elastano, uma fibra sintética com propriedades elásticas, tornando possíveis todos os movimentos desenvolvidos nos ensaios. A modelagem e a costura ficaram sob a responsabilidade de Nair Brandt, uma excelente costureira que soube minuciosamente dar forma aos desenhos. Antes de executar os recortes, ela produziu e experimentou uma malha piloto em cada uma das atrizes para que as alturas de cada recorte fossem marcadas diretamente no corpo de cada uma, servindo de teste para a modelagem e respeitando as especificidades individuais. Depois de modeladas e montadas, as bases do figurino foram para o ensaio para serem experimentadas durante a passagem das cenas, evitando qualquer problema antes de serem finalizadas. Sobre a fase das costuras é importante observar que, embora as malhas fossem do mesmo tipo, elas eram de diferentes fabricantes. O que se evidenciou no processo da costura, é que as malhas reagiam de forma diferente às costuras, por terem elasticidade distinta. Como o figurino foi modelado a partir da ideia de patchwork, exigiu atenção para que as costuras não franzissem em um ou outro tecido, resultando em um bom acabamento.

Dona Nair entre moldes e tecidos.

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A finalização dos trajes foi realizada em tempo de serem incorporados aos corpos das atrizes nessa fase final dos ensaios. O sucesso referente ao processo de criação e desenvolvimento de um figurino cênico é um percurso que não depende somente do figurinista responsável. O processo desenvolvido no espetáculo OCO exemplificou bem as diferentes e necessárias fases de uma criação em figurino. Muitas foram as questões surgidas no decorrer dos ensaios, de várias ordens e departamentos. A comunicação clara e bem especificada entre o diretor e os artistas criativos do espetáculo foi uma das mais importantes ferramentas experimentadas no processo criativo de OCO. Foi necessário demarcarmos diretrizes específicas, bem pontuadas, para que eu, enquanto figurinista do espetáculo também utilizasse bem as ferramentas necessárias de comunicação com a equipe, apresentando referências, amostras de materiais, desenhos e outras especificações que elucidasse o entrelaçamento com os demais departamentos criativos. A função do figurinista foi marcada pela interferência de toda a equipe e o seu bom desempenho foi construído sob muita responsabilidade e sobre uma cuidadosa gestão, administrando vaidades, desejos, expectativas, limitações, tempo e verba disponíveis, entre outros fatores. O processo criativo para o figurino do espetáculo OCO foi pontuado pelo bom andamento das diferentes fases e etapas necessárias na produção, resultando no desenvolvimento de um trabalho colaborativo harmônico, realizado entre os principais artistas responsáveis pela construção da poética cênica, idealizada pelo diretor. O entrosamento da equipe, a participação nos ensaios e a abertura para que as decisões importantes fossem tomadas em conjunto, foram fatores determinantes para que cada artista propositor também se organizasse com as suas questões específicas. Com o figurino não foi diferente, a comunicação interpessoal e a adequação realizada por parte de cada uma das áreas convergiram para o sucesso do objetivo comum a todos os elementos espaciais, visuais e sonoros do espetáculo. 70

A oportunidade de escrever este texto, como registro processual, foi importante para revisitar escolhas e procedimentos desenvolvidos no decorrer da trajetória criativa do espetáculo OCO e para compartilhar conhecimentos específicos da área teatral, indo ao encontro dos interesses de estudantes, artistas e pesquisadores focados nos procedimentos laboratoriais do figurino cênico.

Ilustração: Isabel Cristina Ditzel

OCO memórias

Desenho de Isabel Cristina Ditzel durante o ensaio, quando Paulo Vinícius finalizava as máscaras aplicando os elementos de cada personagem.


08. SEM VER PARA FAZER VER: AS MÁSCARAS

Ismael Scheffler

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a concepção inicial do espetáculo havia a ideia de utilização de máscaras, mas era algo ainda indefinido. Com a proposta de se criar um mundo que se distanciasse do realismo cotidiano, o recurso de máscaras seria uma possibilidade para a caracterização de criaturas visualmente distintas do mundo real. O recurso também possibilitaria contar com um número maior de personagens do que o número de atrizes do elenco. O espetáculo já estava sendo criado com diversas cenas já coreografadas, mas o uso ou não de algum tipo de máscaras ainda não estava definido. Na medida em que o trabalho corporal foi sendo refinado, a questão da expressão facial foi recebendo mais atenção. Mesmo cogitando-se usar máscara no espetáculo, não estava claro qual seria sua aparência, que elementos teria no rosto ou sua dimensão (meia-máscara, todo rosto ou toda cabeça ou ainda maior). Por fim, a neutralidade do rosto pareceu uma alternativa interessante, alinhada com a tendência de usarmos poucos elementos como estava sendo considerado, para ressaltar a gestualidade. O recurso da ocultação do rosto no treinamento de atores contribui para a melhor percepção da expressão do corpo, para deixar sobressair as atitudes corporais, as posturas, os ritmos e as inter-relações dos corpos no espaço, para a compreensão do movimento e do que consiste a limpeza dos gestos. Na fase de prepraração do

elenco, já haviam sido feitos alguns exercícios com o rosto coberto por um lenço, o que passou a fomentar o interesse para as contribuições do mascaramento de neutralização facial. A ideia de uma máscara neutra como elemento pedagógico teve início no ensino da Escola do Teatro do Velho Pombal [Vieux-Colombier], em Paris, entre 1921 e 1924, projeto encabeçado por Jacques Copeau. O objetivo era desenvolver a expressividade do ator, contribuir para a diminuição da timidez e para a percepção das possibilidades corporais, por isso propunham a realização de exercícios silenciosos para que a palavra ou o rosto não dominasse a cena. Esse tipo de prática para a formação de atores não visa, a princípio, ser utilizada em cena durante o espetáculo, mas tem importante função pedagógica na sala de ensaios. Nesta herança, Jacques Lecoq conheceu a máscara neutra e a incluiu em seu ensino, sendo um dos temas mais importantes. Do período em que estive em sua escola, pude conhecer mais desse trabalho. No artigo A máscara neutra e Jacques Lecoq: considerações históricas, plásticas e pedagógicas (Scheffler, 2018), resultante de minha pesquisa de doutorado (Scheffler, 2013), abordo diversos aspectos sobre o tema que ganha a sua maior experimentação prática no espetáculo OCO. O princípio de desenvolvermos no TUT, em 2019, um espetáculo sem falas tem influência de princípios

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envolvidos no uso da máscara neutra. Também alguns temas propostos em exercícios por Copeau e Lecoq foram explorados na dramaturgia de OCO, como o estado de interesse e descoberta pelo mundo circundante, a relação com elementos da natureza, a espera e a apreensão. Ao ocultar o rosto das atrizes em nosso processo no TUT, além de enfatizar o corpo, havia a contribuição de desumanizar as personagens, criando um distanciamento do mundo real, remetendo a seres desconhecidos. Solucionávamos também com isso certo desnível entre a expressividade facial do elenco, o que liberava as atrizes da preocupação com suas expressões faciais. Sem dispor de máscaras neutras apropriadas para o exercício, utilizamos lenços de voal atados cobrindo a face. Este foi o primeiro tipo de ocultação do rosto para neutralizá-lo usado no Velho Pombal, prática que Étienne Decroux também utilizou posteriormente (Braga, 2013). Uma das principais diferenças entre uma máscara e um lenço está na existência de um rosto que a máscara possui, ao passo que o lenço reveste toda a cabeça, deixando as atrizes com um aspecto mais abstrato, o que altera a percepção do espectador.

DE LENÇOS À MATERIALIZAÇÃO DAS MÁSCARAS A partir do momento que decidimos pela utilização de máscaras, passamos a considerar diversos aspectos. A proximidade e contato corporal entre as personagens era elemento dramatúrgico fundamental do espetáculo. A incorporação de máscara não deveria alterar as composições corporais e a atuação. Duas questões foram identificadas como fundamentais: o conforto e a segurança. Em razão da necessidade da execução de ações acrobáticas, de equilibrismo e do alto nível de contato físico, a máscara a ser usada em OCO precisaria ser flexível e aderente à pele para que o objeto não ferisse as atrizes e não precisasse ser reposicionado durante o uso por ter sido deslocado em uma acrobacia, bem

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como as dificuldades respiratórias em decorrência do alto esforço associado aos movimentos do trabalho corporal deveriam ser minimizadas. A questão da visibilidade foi, seguramente, uma grande preocupação, pois o material não deveria prejudicar a visão em razão da necessidade de precisão de movimentos acrobáticos e era preciso considerar como o material a ser utilizado reagiria com a incidência de luz cênica, algo que só conseguiríamos testar quando os refletores estivessem posicionados para o espetáculo poucos dias antes da estreia. O primeiro material usado foi o tecido de voal de que eram feitos os lenços. O material atendia algumas necessidades, como a maleabilidade e certa aderência ao rosto, permitindo fácil respiração com boa visibilidade, já que o tecido tem certa transparência. A utilização implicaria em vestir toda cabeça e o problema se mostrou no fato do material ser escorregadio e não ser elástico e o uso de zíper, velcro, botão ou amarras não pareceu indicado, principalmente porque geraria elementos duros que poderiam provocar desconforto ou ferimentos umas nas outras. O segundo material testado foi nylon de meia-calças cortadas. Os tubos elásticos se ajustavam melhor ao rosto, revestiam toda cabeça e se fixavam sem necessidade de outras formas de prender, porém o material exercia pressão excessiva sobre olhos e nariz, comprimindo e distorcendo o rosto além da dificuldade de ver por pressionar os cílios. Como vantagem, apresentava variação de tonalidades e de espessuras em níveis variados de transparência. O terceiro material experimentado foi o tule com elastano. Ele atendia as exigências, tendo a vantagem de variações de cores e de suportar costura (dispensando outras formas de fixação), podendo-se, com isto, controlar os níveis de tensão do material sobre o rosto. Uma apreensão era se com a incidência da luz cênica no palco haveria ainda mais diminuição de visibilidade, mas por fim o material não apresentou comprometimento neste ponto fundamental.


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Foto: Daniel F. Patire

Foto: Ismael Scheffler

Foto: Vinícius Baptista

Foto: Ismael Scheffler

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Como maneira de distinguir cada personagem, o figurinista Paulo Vinícius propôs a inserção de elementos sobre a máscara-base feitos de malha recheados com fibra, como cristas, chifres ou um penteado minimalista, ganhando assim volume sem risco de ferimentos pela rigidez no contato entre as personagens ou em acrobacias. Estes elementos contribuíram para que se diferenciasse uma personagem da outra e significativamente para permitir uma melhor percepção dos movimentos da cabeça e do olhar, uma vez que estabeleceram elementos de referência ao formato oval da cabeça e a dinamizaram plasticamente.

A NEUTRALIZAÇÃO DO ROSTO A neutralização do rosto conduz a um processo de autopercepção corporal e do movimento muito enriquecedor. Ao mesmo tempo, provoca o espectador a olhar de outra forma. Se habitualmente dirigimos nossa atenção ao rosto, ao nos depararmos com o ser sem rosto nossa atenção se distribui para a forma do corpo como um todo, pois não havendo palavras nem rosto, nosso cérebro passa a buscar informações em outras referências. Há um aguçamento da percepção do observador, pois é preciso perceber as nuances, destinar a atenção e estabelecer um vínculo. Surge um tipo de estado contemplativo que exige uma atenção dirigida com um sentido receptivo. Assim, a dramaturgia corporal ganha enorme importância em espetáculos deste tipo, especialmente se não possuem fala. A máscara neutra parece evidenciar o ritmo de maneira que o tempo de cada gesto pode ser mais bem percebido, já que há menos distrações. Tudo se torna forma plástica e ganha maior vitalidade, cada gesto maior ou menor fica evidenciado, como que ampliado por uma lente de aumento. O gesto realista perde espaço, pois no cotidiano nossa gestualidade costuma ser marcada por inúmeras interferências, sujeiras visuais, oscilações de tonicidade. A clareza do gesto possui maior precisão de

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comunicação ao se eliminar o desnecessário, o excesso, os defeitos. O processo de purificação gestual se desenvolve com o princípio da economia de esforço. Expressar com os movimentos essenciais, o mínimo para se obter o máximo de clareza, conduz a certa abstração, uma vez que, ao se tomar o mínimo de elementos, se toma os mais característicos, específicos e necessários, pois eles bastam e são suficientes. Isto em nada significa mecanizar o movimento, apenas deixá-lo ser pleno e justo. Refletindo sobre a máscara neutra, Jean Dasté (1977) esclareceu que ao mesmo tempo em que há uma simplificação dos gestos, há uma espécie de potencialização e isso permite avançar a um ponto mais extremo do sentimento a ser expresso, dando-se a esta expressão uma dimensão maior do seu gesto. Também o ritmo dos gestos e dos deslocamentos pelo espaço ganham potência. Embora o rosto recoberto com um lenço aparentemente não tenha uma face que indique a direção do olhar, exige-se do corpo como um todo que ele dê clareza direcional para que sua intensão se torne aparente. Assim, também o dimensionamento do espaço pode ser manifestado e ser percebido e, portanto, explorado pela dramaturgia. Com o mascaramento, as atrizes de OCO podiam conduzir o público a perceber com mais potência as qualidades do espaço e explorar as dimensões e amplitudes, pois é o corpo todo da atriz que se eleva e se abre para ver o horizonte longíncuo ou se fecha e se contrai para um ponto diminuto do palco. A atriz, com o rosto neutralizado e no silêncio, é ainda mais desafiada a criar níveis de atenção para conduzir o espectador, exigindo-se dela um engajamento de sinceridade e autenticidade, pois ao espectador todos os seus gestos ficam evidenciados. As atitudes corporais se tornam essenciais para a comunicação e se o corpo todo não estiver integrado, uma parte do corpo pode enfraquecer toda expressão. É preciso, portanto, uma entrega à ação presente para que ela tenha autenticidade.


DE MÃOS DADAS

Foto: Daniel F. Patire

O presente é o tempo da ação em OCO. Com a máscara silenciosa que não verbaliza por palavras nem por gesticulação usando sinais com as mãos, não há como criar conjecturas hipotéticas futuras e nem mesmo discutir o passado da memória. Há o presente e o sentimento do presente, um estado de alma presente. Enquanto uma decisão não for tomada, permanece a angústia ou a incerteza e se evidencia a forma como se lida com ela.

Resta apenas a experiência direta, o presente no qual se está. Ao espectador a quem nada é dito, resta observar, perceber e intuir sobre o que se vê. A máscara sem face provoca uma despersonalização das personagens que tendem a ser vistas com maior universalidade, como personagem de síntese humana. Todos estes aspectos não são exclusivos de OCO, pelo contrário, são aspectos observados por diversos pesquisadores e referidos em diversas publicações que tratam sobre a utilização da neutralização do rosto com máscaras neutras ou lenços no processo do trabalho atoral. No caso da máscara em OCO, um aspecto interessante que pudemos constatar foi que seu uso gerou experiências distintas aos espectadores. Sua semi-transparência permitia a quem estava mais próximo ao palco entrever alguns traços do rosto e, portanto, expressões, algo que à distância era muito menos perceptível. Também o tecido, por sua maleabilidade, criava dobras e rugas que remetiam por vezes a dobras de pele, criando também sensações. Assistir ao espetáculo próximo ao palco trazia uma experiência diversa da de quem assistia mais do fundo da plateia. O entrever do rosto completamente coberto trouxe para alguns espectadores certa angústia de asfixia, algo que se potencializava em várias cenas nas quais a respiração era audível. Embora as personagens não falassem, elas respiravam e estas respirações compuseram a dramaturgia da peça e as máscaras em OCO contribuíam para que esta sonoridade fosse claramente audível. Diferentes dinâmicas da respiração foram exploradas no espetáculo, da ampla e relaxada, ao susto, ao sufocamento, à voz silenciada que culminou ao final, na única presença da voz manifesta como um grito profundo incontido. A máscara no espetáculo, portanto, não era silenciosa. Além das máscaras das personagens principais, duas variações da máscara ainda foram utilizadas: para o “outro povo” e para os “não-personagens”. 75


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A história de OCO se passa entre seres de uma mesma comunidade (ou clã) que se vê impelida a uma viagem de fuga sem um destino certo. Mais ao fim do espetáculo aparecem outros três seres com aspectos parecidos entre si e com alguma relação com a população inicial. A mesma base de máscara neutra de tule com elastano foi adotada, distinguindo-se em dois elementos: a cor do tecido e o elemento unificador do trio. Adotou-se então o tom verde escuro do tecido e uma espécie de peruca de malha que cobria a cabeça inclusive os olhos. Este elemento foi escolhido pelo figurinista Paulo Vinícius por potencializar os movimentos principais realizados na cena por estas personagens, que era de se curvar e reerguer e giros rápidos da cabeça. O mesmo tipo de elemento foi utilizado sobre o corpo podendo estabelecer-se correlações com pelos ou vestes. Foto: Daniel F. Patire

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O terceiro tipo de máscara visava uma neutralidade maior das atrizes. OCO foi concebido de maneira que as atrizes, além de representar personagens, também estariam em cena desempenhando outras funções como manipular bonecos, mover objetos de cena e compor cenário (a cena da montanha). Para todas essas situações foi proposto um figurino de “não-personagens” que descaracterizava a individualidade. A malha base foi também utilizada na cabeça, deixando apenas o rosto recoberto com o tule elástico, sem elementos adicionais. Com isso, pretendeu-se estabelecer um acordo com o público de se perceber de maneira diferente aquelas presenças em cena. A manutenção de uma área de rosto era relegada apenas à funcionalidade de possibilitar às atrizes a ver e a respirar. Na atuação em cena, as atrizes também passaram a ter uma experiência contemplativa ou meditativa. Com o rosto coberto, em silêncio, e com diminuição da capacidade de ver, em vários momentos elas atuavam com os olhos fechados. Isto trouxe a necessidade de estarem em sintonia apurada entre si, pois não conseguiam se comunicar durante a cena nem mesmo pelo olhar. Era pela percepção e projeção da presença que poderiam se conectar. É importante dizer que em nenhum momento do processo houve qualquer sacralização ou ritualização no trabalho de atuação ou na utilização da máscara. Todo processo de OCO foi sempre objetivo. Os aspectos sempre demarcados por diversos artistas que utilizam a máscara silenciosa como recurso pedagógico, de que essa máscara conduz a um estado diferente de percepção e de elaboração mental de quem a usa, também se percebeu no processo de OCO. Mas isto não correspondeu a um estado alterado de consciência em sentido místico. Havia, de fato, um isolamento no interior da máscara. Este tema, do isolamento, também era o tema de OCO. De certa maneira, o drama das personagens de se sentirem isoladas era também o drama das atrizes ocultadas pelas máscaras.


DE MÃOS DADAS

09. CARINHOSA BRAVURA

Espetáculo A breve dança de Romeu e Julieta, do TUT, apresentado na Praça Eufrásio Correia, em 2009, com direção de Ismael Scheffler. No elenco, no lado esquerdo da foto, Levi Brandão e Monique Rau. Abaixo: Monique Rau em ensaio da peça. Foto: Ismael Scheffler

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ntrei no TUT em 2005, ainda enquanto aluna de Engenharia Civil da UTFPR. Fui parte do elenco de três espetáculos durante a graduação - Bodas de Sangue (2007), Ubu rei (2008) e A breve dança de Romeu e Julieta (2009) - e depois de formada participei de Babel (2013-2014). Nesse intervalo, encontrei em outra expressão artística uma paixão: o circo, e nele me esbaldei de 2014 em diante. Em 2019, soube que o TUT tinha aberto um processo seletivo para um espetáculo de circo e teatro. Fui selecionada e após a comemoração, os ensaios iniciaram. A oportunidade de juntar duas paixões em uma mesma apresentação foi tão maravilhosa quanto desafiadora. A técnica e precisão dos movimentos acrobáticos deveriam estar alinhadas e integradas com a dramaturgia do espetáculo, além de coordenadas com as demais atrizes, com o cenário, iluminação e figurino. Na condução dos ensaios estavam presentes o diretor do espetáculo, Ismael Scheffler, o Bruno Tucunduva com o trabalho acrobático, e a Karina Souza que vem da dança. Os três se revezaram na criação e limpeza dos movimentos. Todo e qualquer gesto produzido no palco – a posição dos dedos dos pés, a força, peso e velocidade de cada movimento – transmitiam uma sensação ao público, que interpretariam uma história contada sem falas. A maioria das cenas foi criada a partir de exercícios propostos nos ensaios. As quase doze horas semanais, divididas em três noites, produziam imagens

Foto: Débora Kretzer

Monique Rau

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e cenas a partir da criação, experimentação e repetição de movimentos até a exaustão dos corpos. Os fragmentos escolhidos viraram recortes não lineares do espetáculo que, apenas semanas antes da estreia, ganharam sua forma completa. E assim surgiu OCO No dia da estreia, além do nervosismo, tivemos um teste surpresa (e sem consulta): uma das atrizes, a Bruna, caiu durante uma difícil caminhada por cima dos nossos ombros, na cena da montanha. A situação foi contornada com naturalidade e, apesar de nunca ter acontecido nos ensaios, improvisamos uma subida graciosa e firme ao mesmo ponto antes da queda. O espetáculo seguiu com demonstrações delicadas de força e de carinhosa bravura. Permanecíamos em cena praticamente durante todo o espetáculo, que durava aproximadamente uma hora, indo para a coxia somente para uma troca rápida de roupa ou para atravessar o palco por trás do cenário. Apesar das máscaras que quase não deixavam enxergar e dos figurinos molhados de suor pelo esforço dos corpos que se contraem e se torcem, o público vivenciou conosco o amor e a dor de um clã desesperançoso. Quando os aplausos iniciavam, as máscaras eram retiradas, revelando mulheres tão fortes quanto a personagem principal da ficção, e assim que as luzes se acendiam, presenciávamos as lágrimas e os gritos de uma plateia incrédula com estas amáveis guerreiras. Foto: Marcelo A. Públio

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10. JOGAR, EQUILIBRAR, CARREGAR: DESCOBERTA DAS POÉTICAS ACROBÁTICAS

Bruno Barth Pinto Tucunduva

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ma questão atual nos processos criativos e na formação de artistas circenses é como inovar na complexidade dramatúrgica do espetáculo. Essa inquietação motivou minhas interações com o teatro físico buscando recursos criativos para a poética cênica circense. A base de meu trabalho no espetáculo OCO enfocou as acrobacias circenses coletivas – aquelas que tratam de criar lançamentos ou equilíbrios em uma lógica de dependência ou interação entre duas ou mais pessoas. A minha prerrogativa foi encontrar caminhos para que, além da exibição do extraordinário, uma das características cênicas mais marcantes do circo, fosse possível explorar outras potências expressivas nas acrobacias. Certamente, isso dependeria de criar propostas pedagógicas que conduzissem o praticante a descobrir elementos da gestualidade que pudessem moldar as acrobacias, sem lançar mão da firmeza técnica necessária para manter a segurança da performance. Por outro lado, demandaria educar um novo olhar para a acrobacia circense, que revelasse suas outras potências poéticas, além da execução por si mesma. Abreviando essa minha jornada, a reflexão consequente foi como justificar o gesto acrobático, ou seja, como incorporar no aprendizado de circo a lógica do ‘gesto justificado’ tão presente no teatro físico (Lecoq, 2010). A raiz mais ancestral dessa jornada está no diálogo com o professor Ismael Scheffler e nos intercâmbios que

realizamos entre teatro e circo, entre 2009 e 2010. Nesse período, fui professor substituto no curso de Educação Física da UTFPR e todas as minhas ações extensionistas foram dedicadas ao circo, junto ao Núcleo de Cultura do Departamento de Extensão, então sob sua coordenação. Desde essa época, surgiu um forte desejo de misturar nossas pesquisas em alguma experimentação artística. Naquele momento, foi fundado o Cirthesis – Grupo de Extensão e Pesquisa em Pedagogia do Circo, sob minha coordenação, que agora está radicado no Departamento de Educação Física, da Universidade Federal do Paraná, onde ingressei como docente em 2015. O espetáculo OCO foi uma afortunada oportunidade de exercitar o desmanche de barreiras e delimitações entre as artes do movimento. Esses limites funcionam bem para fins didáticos instrucionais, mas na prática criativa não são nada mais que limitações que muitas vezes impomos ao nosso olhar para o movimento como um todo, para a expressão de si em suas livres pulsões. As reflexões que instruíram estas atividades têm relação com minhas pesquisas sobre a pedagogia do circo, presentes em minha tese de doutorado defendida em 2015. O maior incômodo foi constatar a dicotomia entre aprendizado técnico e educação estética e poética no circo. Em muitos casos, sobretudo na iniciação artística, o conteúdo técnico acrobático se sobrepõe à expressão e criatividade. Prioriza-se a demonstração/exibição do

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extraordinário e deixa-se uma margem restrita para a expressão de si por meio da linguagem circense. Apesar de reconhecer o processo histórico da multiplicidade circense e a caracterização dessa arte sobre esses fundamentos, isso gerou uma inquietação sobre formas alternativas de aprendizado. As experiências e experimentos aqui descritos estão inseridos no contexto de uma pesquisa-ação que conduzi sobre a metodologia de educação gestual na iniciação ao circo, entre os anos de 2016 a 2020. Seria possível conduzir o praticante de circo desde suas primeiras experiências a conhecer caminhos para transformar o movimento mecânico em gesto artístico? O trabalho de preparação corporal foi dirigido em conjunto por três pessoas: por mim, pelo Ismael Scheffler, com os elementos da pedagogia teatral de Jacques Lecoq e a dramaturgia visual do espetáculo, e pela professora Karina Pereira de Figueiredo Souza, com a preparação rítmica, expressão e consciência corporal advindas da dança e do teatro. As minhas contribuições para a preparação corporal giraram em torno de três eixos: o condicionamento físico para as acrobacias coletivas, a compreensão de bases técnicas para a criação cênica com segurança, e a educação gestual e expressiva para compreender a lógica interna dessas acrobacias. Isso ocorreu em um encontro por semana com duração de cerca de duas horas. O grupo de atrizes possuía um perfil favorável ao trabalho de acrobacias coletivas, todas com experiência em circo, ginástica ou dança, muito conscientes da natureza do trabalho corporal que as esperava e, portanto, receptivas e reativas aos exercícios e atividades propostas. O perfil das atrizes selecionadas também foi favorável: resilientes, fortes, dispostas a enfrentar o medo que faz parte do processo de aprendizado, disponíveis para percorrer o caminho de preparação corporal específico e, sobretudo, perceptivas, atentas e carinhosas entre elas, três aspectos essenciais para o trabalho em acrobacias coletivas.

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As reações pessoais de cada atriz ao longo do processo também serviram como catalisadores da integração do grupo e da criação pedagógica. O riso eufórico ou de constrangimento frente às atividades coletivas surgia com certa frequência no início do processo, sem ser convidado. Em nosso caso, essa reação demonstrava uma trava ao falhar em um território desconhecido, ou uma falta de consciência dos elementos do treinamento criativo que estava em jogo. Em ambos os casos, esse riso freava a imersão na linguagem corporal que gradualmente se explorava. De outro lado, surgiam também risos de se impressionar ou de se divertir, esses muito bem-vindos e aclamados, espontâneos do brincar com o corpo e o movimento, raízes do espírito lúdico circense. Outras duas reações podem ser consideradas polaridades opostas de uma mesma questão. Uma foi a incapacidade coordenativa para moldar de modos alternativos a execução de movimentos e acrobacias, resultando em ações estereotipadas. Outra foi a ação restritamente apoiada sobre um padrão firmemente estabelecido nas expressões retilíneas da acrobacia (como na ginástica esportiva ou na virtuose sublime do Professor Bruno Tucunduva em orientações para o elenco.

Foto: Daniel F. Patire

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circo), que criava uma visão embaçada sobre a variedade de formas que o corpo pode assumir quando esse possui ampla competência física. O desafio ao qual me propus foi descobrir processos criativos que desconstruíssem as técnicas acrobáticas em suas unidades menores ou em sua lógica criativa, ou se aproveitasse da construção, permanência e progressão dessas acrobacias para identificar poéticas dramáticas. Para isso, o caminho do aprendizado técnico-acrobático enfocou os fundamentos biomecânicos e as condutas de segurança para a prática. O aprendizado foi baseado em uma exploração lúdica de ações motrizes básicas das acrobacias coletivas – movimentar-se dependendo do outro em situações de equilíbrio, contrapeso, apoio ou suspensão. A ênfase dos experimentos foi o processo de construção/desconstrução das técnicas acrobáticas, as transições de um movimento ao outro e a forma como se estabelecia a presença cênica das atrizes em todos os momentos. O processo criativo se configurou por três eixos que progressivamente se entrelaçavam, como em uma espiral: 1) preparação corporal, focada na base física e perceptiva para a ação acrobática; 2) progressão técnica de aprendizado acrobático, com ênfase na segurança e aquisição de repertório; 3) o jogo com fundamentação nas perspectivas de Caillois (2017) e Huizinga (2010) com as formas, estética e expressividade dos gestos acrobáticos, observando a poética de posturas e movimentações circenses. Na medida em que esses filamentos teciam essa espiral, novas histórias ou fragmentos poéticos surgiam. Então, progredíamos em dificuldades técnicas, refinando a mecânica dos movimentos, expandindo a intenção gestual das ações, ou conectando esses fragmentos em uma dramaturgia. Avançávamos em dificuldades técnicas, refinávamos a mecânica dos movimentos, expandíamos a intenção gestual das ações, descobríamos sentidos dramatúrgicos a esses fragmentos. Essa exploração acabou por se desdobrar em três caminhos mais marcantes – o

aprendizado técnico de acrobacias que resultava em sequências, poses ou movimentos com potência para ser matéria-prima da dramaturgia; temas abertos preliminares, propostos pelo diretor, que orientavam as provocações para jogar com as acrobacias coletivas; e jogos ou brincadeiras que surgiam espontaneamente em conjunto com as atrizes ao explorar as temáticas dos ensaios ou treinos. A seleção dramatúrgica, por fim, foi estabelecida pelo diretor a partir das potências expressivas que afloravam com os exercícios. O planejamento das sessões de treino e criação foram orientadas por discussões com a direção artística que me inspiravam a moldar o aprendizado acrobático a partir de imagens, desafios, emoções e outras ideias subjetivas. Eu passava então para a condução das práticas mantendo essas provocações estéticas como pulsão lúdica para jogar e brincar. Ora o jogo era com o que o corpo podia fazer ou como podíamos estimular sentidos e percepções para o movimento. Ora era uma brincadeira socioafetiva das atrizes consigo mesmas ou em interação umas com as outras, gerando confiança e partilha. Ora jogávamos com o que mais podíamos fazer, como dificultar o caminho, ou como progredir a partir de uma temática. O que foi especialmente favorável para o sucesso do processo foi o exercício de aprendermos (eu, a direção e as atrizes) a olhar em diferentes perspectivas aquilo que ocorria em cena. Para a direção artística, o exercício apresentava processos técnicos desconhecidos. Para mim, o exercício gerava consciência da variedade de significados e representações que a progressão técnica acrobática (já tão conhecida) permitia.

CAMINHOS DE UM TREINAMENTO CRIATIVO O primeiro fundamento do trabalho foi conduzir um aprendizado sobre como jogar com as acrobacias coletivas. Ao

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Foto: Ismael Scheffler

invés de reproduzir técnicas acrobáticas, o foco foi em compreender a lógica motriz (Mateu, Bortoleto, 2017) que resulta na criação dessas técnicas, ampliando a liberdade criativa das atrizes. O segundo fundamento foi o aprendizado de recursos técnicos de segurança, como a biomecânica do movimento acrobático para manter a integridade dos corpos, as formas de aterrissar ou chegar ao solo sem se machucar, e um extenso treinamento de atenção, posicionamento espacial e técnica de ajuda manual para recepcionar as colegas a partir de movimentos acrobáticos. O terceiro fundamento foram as qualidades expressivas comuns ao espetáculo circense, resultado preliminar de minha pesquisa mencionada anteriormente, um conjunto de recursos que identifiquei como catalisadores da criatividade no circo – o jogo com o risco como um uso poético das técnicas acrobáticas; o grotesco, como valorização da deformação e do bizarro no repertório criativo; o sublime, em sua interação com o

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treinamento técnico e o refinamento/precisão do gesto acrobático; e o cômico, como dilatação humorística da normalidade que traz alcance irrestrito para a matériaprima criativa e permite um olhar lúdico para as experiências de aprendizado. O aprendizado foi composto por etapas dedicadas à consciência corporal, à recursos técnicos de segurança e desempenho, e à formação atitudinal e técnica coletiva. O jogo motriz das acrobacias coletivas se baseia na interdependência dos sujeitos e explora como usar o corpo para criar caminhos para chegar e/ou conectar figuras estáticas (poses) ou formas dinâmicas de movimento (rotações, balanços, locomoções, saltos, etc.). A ação motriz dessa modalidade é impossível de ser realizada sem o auxílio ou dependência do outro (em duplas, em pequenos ou grandes grupos). Essas acrobacias são compostas por três momentos técnicos – montar, permanecer, desmontar. Utilizei dois modos de ação para explorar as bases técnicas desse tipo de acrobacia: a) modo dinâmico, em balanços, elevações, lançamentos ou locomoções; b) modo estático, em permanência ou transições suaves dando ênfase no jogo com a estabilidade da figura. Já as bases técnicas exploradas foram as seguintes:

Apoio: a mecânica das ações motrizes ocorre em vetores de força que se encontram. Evocam-se valores como a oposição e a resistência.

Contrapeso: a mecânica das ações motrizes ocorre em vetores de força em sentidos opostos. Evocam-se valores como a dependência e a confiança.

• Equilíbrio: exploração de ações motrizes em bases instáveis, em que o centro de equilíbrio está próximo do limite da base de sustentação. Evocamse valores como o desafio, o risco, a conquista e a superação. •

Elevação: a propulsão gerada com auxílio do colega e o voo. Evoca o sublime e a transcendência.


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O aprendizado técnico e mecânico das acrobacias coletivas foi moldado por interações com os fundamentos estéticos e expressivos do circo e suas qualidades expressivas. Houve duas intenções com essa abordagem: a) orientar o aprendizado das atrizes para além da mecânica, oferecendo caminhos para compreender as principais ‘regras do jogo’ criativo do circo; b) compartilhar com a direção artística os valores artísticos do circo, ampliando o diálogo com o teatro físico. A cada encontro com o elenco, eu definia as atividades de preparação corporal das atrizes, o foco da progressão técnica de aprendizado, os temas ou inspirações dramatúrgicas junto com o diretor, e os valores expressivos circenses que contaminariam todo o processo. Abordei quatro grandes temáticas circenses. A busca pela dificuldade é um pilar básico para a criatividade no circo. Ela trata de explorar as habilidades de modo progressivo, rumo ao limite e à superação do limite. A dificuldade se integra com a realização de ações extraordinárias, segunda temática, seja pela mecânica do movimento ou pelo contexto da ação. Por sua vez, ela trata de exibir ou demonstrar ações fora do comum como realidade palpável ao invés de apenas uma representação metafórica. Assumir o risco como catalisador da criação é outro elemento seminal da linguagem circense: ao invés de inibir a presença do risco, as atrizes foram provocadas a flertar com ele, reconhecendo que isso traz noção do perigo real ao mesmo tempo em que potencializa a representação poética da dificuldade. Como inspiração poética para o jogo motriz desse aprendizado, as quatro qualidades expressivas circenses mencionadas anteriormente também tomaram forma como: a) a distorção exagerada do corpo e dilatação das emoções do cômico; b) a estética do desconforto e do anormal do grotesco; c) superação e domínio sobre a natureza humana do sublime; d) estar sujeito a natureza humana e a chance do erro ao ousar fazer do risco.

Foto: Ismael Scheffler

CONSCIÊNCIA CORPORAL O foco do trabalho de consciência corporal foi educar um olhar criativo para a funcionalidade do corpo, ou seja, compreender a biomecânica dos movimentos como base para a criatividade expressiva. Uma abordagem foi por meio do ‘espírito lúdico circense’, que se radica em brincar de descobrir o que o corpo é capaz de fazer individualmente ou em interação coletiva. O objetivo desse brincar é exibir algo extraordinário, seja um modo fora do comum de executar uma ação simples (como caminhar) ou exibindo alguma habilidade acrobática (como um equilíbrio em dupla). Para isso, foram empregados jogos que quebrassem com

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preconcepções e limites auto-estabelecidos para explorar as habilidades e capacidades físicas. Na prática, as atrizes foram provocadas por jogos de locomoção individual ou coletiva, com ou sem obstáculos, compostos por regras que inibiam ou impunham o uso de algum recurso corporal. Outro recurso para a consciência corporal foi a biomecânica acrobática em exercícios diretivos de aprendizado técnico. O foco foi compreender como ajustar o corpo para ter mais potência, estabilidade ou força em movimentos de base nas acrobacias coletivas. Na prática, as atrizes executaram exercícios técnicos em torno de seis padrões básicos de movimento: saltos, aterrissagens, balanços, locomoções, posições estáticas e rotações. As orientações enfatizaram o reconhecimento da postura, ângulos de apoio no solo e formas de interação coletiva (pegadas e pontos de sustentação no corpo) para efetividade biomecânica.

RECURSOS TÉCNICOS DE ACROBACIAS COLETIVAS A primeira abordagem foi realizar atividades de percepção do risco nos exercícios técnicos e como se portar frente a eles. Isso ocorreu por meio de exercícios de integração de grupo, comunicação não verbal e sem sinais intencionais, no sentido de refinar a percepção de si como parte do todo e mover-se coletivamente, um aprendizado sobre escuta e de sensibilidade de vias perceptivas sutis. O primeiro processo foi rítmico, partindo da respiração em sincronia coletiva para guiar o movimento a partir da respiração. A locomoção pelo espaço teve variações de formas de caminhar e jogos com regras que evocassem a espontaneidade, sem que fosse regida por um comando, e a atenção ao grupo para agir, como visão periférica e monitoramento de sua relação com o espaço. Por exemplo, caminhar pelo espaço seguindo uma líder com alternância de condução realizada espontaneamente pelo grupo; ou exercícios de marcha em sincronia; ou ações coletivas espontâneas em sincronia, como executar um 84

salto ao mesmo tempo sem um sinal inicial. O próximo passo foi aprender técnicas posturais e fundamentos biomecânicos para manter a integridade da portora (de portar, portagem, que carrega sobre si), pessoa que faz a base para a volante (de voar, aquela que sobe, que ocupa a porção superior da figura acrobática) subir. A portora deve saber direcionar a sobrecarga de sustentar o peso corporal da volante de modo a preservar o alinhamento natural da coluna e aproveitar alavancas e encaixes dos membros para favorecer a mecânica de montagem, permanência e desmontagem das figuras. A volante, por sua vez, deve manter o corpo rígido nas transições, para facilitar o equilíbrio e a manipulação realizada pela portora, e compreender formas suaves e progressivas de transferência de peso sobre ela. Ao longo dos ensaios e do espetáculo, todas as atrizes passaram pelas duas posições, ora dando base, ora subindo sobre a colega. Antes de progredir para figuras acrobáticas, o aprendizado foi sobre como voltar ao solo com segurança. Para a portora, o foco foi em acompanhar a volante ao Fotos: Ismael Scheffler


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chão, em como conduzir o corpo que cai amortecendo sua queda progressivamente, e como antecipar a queda e corrigir a própria postura para gerar maior estabilidade. Para a volante, o aprendizado foi centrado em como ‘cair devagar’, utilizando ações de desmonte que ampliassem o tempo de queda, permitindo que a portora se reposicionasse, e em como ser manipulada pelo grupo no momento da queda. Para aquelas que não estavam diretamente envolvidas na ação acrobática, a orientação foi sobre técnicas de spotting: formas de se posicionar em torno das colegas prevendo pontos de instabilidade, formas para segurar o corpo que cai e dissipar o impacto ‘caindo junto’, e condicionamento da percepção a um estado de alerta e prontidão para reagir a acidentes e erros de execução. Foram realizadas diversas variações de exercícios de queda. Um exemplo de exercício de prontidão e percepção foi executar uma queda com o corpo rígido, espontaneamente, enquanto as demais atrizes caminhavam pelo espaço cênico em direção aos espaços vazios. Não havia uma ordem ou direção sobre quem iria cair, mas todas as atrizes deviam reagir apartando a queda daquela que caia, pousando-a no solo. Em paralelo ao processo de criação, houve orientações para desenvolver a dimensão atitudinal para acrobacias coletivas. Todas as atrizes deveriam ter consciência clara do comprometimento pela segurança de todas as envolvidas, gerando com isso maior autonomia criativa e ousadia para jogar com o risco. Isso implicou em uma atitude de atenção constante, silêncio e concentração durante a montagem, permanência e desmontagem das figuras. Todas as ações deveriam ser reconhecidas como responsabilidade do grupo. Essa atitude gerou confiança para se pôr em risco e criar as cenas acrobáticas, pois o risco é compartilhado com aquelas que estavam fora da montagem. Outro ponto foi a crescente interdependência do grupo e o reconhecimento de um ‘corpo coletivo’ que implicou em um profundo processo de reconhecer o corpo-outro como parte da expressão de si.

CRIAÇÃO DE REPERTÓRIO E POÉTICA O processo criativo partiu da combinação de acrobacias em sequências orientadas por um jogo com regras de movimentação coletiva, por exemplo: criar formas de locomoção quadrúpede em interdependência; utilizar figuras acrobáticas como parte do caminho em um caminhar cênico; exploração de possibilidades de movimento a partir da segunda altura (portora em pé com a volante em equilíbrio sobre seus ombros). Em seguida, tendo a mecânica da sequência estabelecida, a direção das atrizes observava o potencial dramatúrgico e indicava variações para elaboração poética. Isso então ajustava a dinâmica dos movimentos, as qualidades do esforço, a respiração e a interpretação das atrizes. O outro caminho criativo foi inspirado em temas abertos preliminares definidos pelo diretor, criando abstrações na linguagem corporal das acrobacias coletivas. As atrizes realizavam sequências que interpretavam imagens, personagens ou palavras-chave, como ações, objetos, arquétipos ou emoções. Um cuidado especial da orientação das atrizes foi a noção de presença cênica em todos os momentos. A questão é que tradicionalmente a acrobacia coletiva circense possui um ponto principal de exibição, aquele momento após a montagem das bases da figura acrobática. Por exemplo, a segunda altura tem seu ápice expressivo no momento em que a volante se estabiliza sobre o ombro da portora. Em acrobacias coletivas é mais comum observar que o caminho até o ápice é meramente funcional e sem representações, quase como se esse fosse o único momento de exibição e o resto fosse apenas um hiato de técnica em técnica. Nesse espetáculo, a montagem e desmontagem de toda acrobacia deveria se integrar

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com a personagem e enredo, de modo que todos os movimentos possuíssem sentido poético e densidade dramatúrgica.

aprendizados sobre processos pedagógicos para as artes do movimento. A profundidade dessas trocas foi ao ponto de descobrir novas formas de analisar o movimento no circo, de modo a reconhecer outras potências poéticas para as acrobacias. Isso andou junto a minha jornada de pesquisa sobre a pedagogia do circo e incentivou um longo processo reflexivo para a formulação de uma metodologia de ensino. Aproveitando a metáfora, OCO reverberou em mim pondo em evidência a lacuna possível de ser preenchida nos processos criativos nas artes do movimento.

DESDOBRAMENTOS E DESCOBERTAS

Foto: Vinícius Baptista

Deu certo. O que de início foi quase como um experimento de laboratório, um teste de uma hipótese que talvez não se comprovasse, consolidou-se como um intenso intercâmbio e produção de conhecimento de base extensionista. A disposição ao diálogo que imperou em minhas participações resultou em amplos

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Foto: Lais Poloni Carvalho

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11. MONTANHA, ACROBACIA E COLAGEM

Ismael Scheffler

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xiste uma cena em OCO que chamamos entre nós, criadores da peça, de cena da montanha. Ela é divisora do espetáculo porque corresponde a uma travessia solitária e estabelece um antes e um depois. Se a peça principia com um grupo que vai se desfazendo (o clã), esta cena é realizada pela última integrante daquele grupo, dando seguimento à viagem de fuga. Nada do que ela conhecia, até então, existe mais. Ela vaga sozinha por terras desconhecidas. É uma das cenas mais longas do espetáculo e é composta por diferentes momentos que envolvem elementos de acrobacia, permeada de simbolismos e sensações, tendo uma trilha sonora marcante. Essa cena talvez tenha sido a que por mais tempo trabalhamos, enriquecendo-a e modificando-a regularmente. Sua célula inicial surgiu a partir de um exercício que Bruno propôs ao grupo, como um desafio que visava principalmente o desenvolvimento do cuidado com o outro e o estabelecimento de um sentimento de colaboração. O exercício consistia em o grupo tomar posições corporais estáticas criando um caminho com seus corpos e uma pessoa (a volante) se deslocar se apoiando sobre os demais. Esse exercício implicava no cuidado de como a pessoa se ofereceria como superfície de base estável para a volante que precisava confiar que poderia pisar, se apoiar, depositar seu peso sobre a que lhe desse base. Dá medo de machucar e se machucar. Há, então, o desenvolvimento da confiança que um zela pelo outro e que existem formas de pisar e ser pisado, locais do corpo

que não implicam em nenhuma dor ou numa dor muito pequena, assim como existem áreas muito sensíveis. O exercício promove a consciência do corpo, da força, da resistência. Não obstante, o exercício consiste em uma brincadeira, como um quebra-cabeças para achar o local certo de cada peça. Uma brincadeira de equilíbrios e de desequilíbrios constantes, de ousadia, de experimentar formas de locomoção do andar, de quadrupedar, de rolar, de saltar, de permanências (sentado, deitado, em pé) e de ritmo. Ao observar o grupo realizando este exercício, percebi que havia uma densidade, um foco e uma verdade corporal. A dramaturgia estava ali: entre cuidar e ser cuidado, bem como no risco do equilíbrio/desequilíbrio. Dinâmicas de instabilidade de equilíbrio trazem em si muita potência dramatúrgica porque há um jogo complexo de conflitos reais entre o risco de cair e não se deixar cair – é uma luta constante. Assistindo àquilo, me sentia instigado e vinculado como observador pela eminência da queda e por imaginar se a pisada sobre o corpo doía ou não. Observando, reconheci a ideia primeira do espetáculo que era de ser uma história sobre uma viagem, pois na sucessão de um corpo se posicionando após o outro, formava-se um caminho, um percurso a transcorrer. Para mim se tornou muito claro: em nossa história haveria um caminho de pedras, ou uma ponte, ou montanhas a serem 87


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atravessadas. Um percurso de luta e de esforço pela sobrevivência (Foto 1). Fomos, Bruno e eu, propondo variações na medida em que o grupo se tornava mais confiante e superava as dificuldades. Propusemos formações corporais que tornavam o andar da volante mais fácil ou mais difícil, o que permitia corridas, pequenos saltos, deslizar, se dependurar, encontrar apoios nas mãos das que faziam a base. Também propomos variações de níveis de altura, utilização de apenas algumas partes do corpo, maior e menor aproximação entre uma e outra pessoa da base, fusão de corpos, variações de ritmos. Os movimentos e as formas corporais remetiam a pontes, florestas, rochas, cordilheiras – nada estava ali, mas tudo estava implícito. Em um primeiro momento, se pode pensar que a pessoa que estava no alto (a volante) é significativamente reativa, sendo as pessoas da base que decidem a direção e propõem as dificuldades e a direção e ela segue sem

Foto 1

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Foto: Ismael Scheffler

muitas escolhas. No entanto, ela pode ser a mais ativa, decidindo para onde quer andar e, mesmo sem olhar, ter a segurança de que ao mover seu pé para o vazio, vai encontrar um apoio ali. Ou ainda, a volante ser totalmente manipulada inerte pelas pessoas da base que utilizam suas mãos e seus corpos para levá-la. De todas estas formas, se trata de um ambiente inteligente (formado pelo grupo) que propõe ou supre necessidades. Este jogo de quem é ativo e quem é reativo, estabelecendose níveis de passividade e controle, foi também revelando potências dramatúrgicas. Há, inevitavelmente, uma interdependência, uma cumplicidade e um cuidado. A descrição deste exercício e desta cena serve bem como exemplo para um procedimento que adotei para a criação do espetáculo. Mantendo o olhar atento, assumi o papel de observador, esperando e procurando que alguns gestos e atitudes corporais interessantes e extremamente potentes surgissem e pudéssemos tomá-los para criar o espetáculo. Estas cenas, gestos ou poses corporais passei a chamar de células dramatúrgicas, pois delas geraríamos a peça. São como micronarrativas, pequenas dramaturgias encontradas que têm conteúdos que evocam sentidos – e isso sem estarmos fabricando cenas propriamente ditas. Materiais corporais de qualquer origem poderiam ser usados, fossem exercícios de aquecimento, de condicionamento físico ou para desenvolvimento de consciência corporal, de domínio técnico ou desenvolvimento de unidade e pensamento coletivo do grupo. Também poderiam ser movimentos de repertório técnico que as atrizes tivessem previamente ou os realizados em momentos de descontração entre uma e outra atividade de nosso trabalho. Em certa medida, tinha uma relação com o acaso, com o princípio de reademady ou de objet trouvé, em que artistas plásticos do início do século XX encontravam objetos e identificavam aspectos interessantes. Estas células de movimento ou microdramaturgias eram como figuras que encontramos ao folhear uma revista, que recortamos para usar numa colagem embora não necessariamente saibamos onde ou como serão utilizadas. Neste estado de disponibilidade


Foto: Daniel F. Patire

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A travessia pelas montanhas começa entre duas companheiras, mas logo no início, há uma perda e a última personagem do clã segue solitária.

Foto 2

atenta, eu buscava tanto aspectos plásticos provocativos quando mininarrativas instigantes. No caso deste exercício de andar sobre corpos, tudo se tornava material dramatúrgico: o equilíbrio, o desequilíbrio, o risco da queda, a dor de quem está embaixo e a de quem está em cima, o cuidado mútuo, as iniciativas, as passividades, os erros, os acertos, a apreensão e a fascinação de nós que observávamos externamente. A cena da montanha é uma colagem que foi se ampliando ao longo do processo de criação. Tinha momentos em que pensávamos que ela estava pronta, mas encontrávamos uma imagem nova que complementava, dinamizava, reforçava ou diversificava um conceito que já tínhamos para a cena, porque aquela nova imagem tinha uma potência que aprofundava a experiência da personagem principal na montanha. Gostaria de mencionar três imagens (de várias existentes) que integraram a montanha e que surgiram de experimentações técnicas que o Bruno propôs ao grupo. Esses exercícios não foram propostos com interesse em se criar cenas, mas vi naqueles movimentos potências plásticas e sentidos poéticos. No treinamento elementar de preparação para acrobacias em grupo, Bruno experimentou exercícios de elevação de uma pessoa por outras duas que a seguravam pelas pernas. Propôs 89


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variações disso e pegadas no ar a partir de quedas de confiança, que ocorriam quando alguém libera seu peso para frente ou para trás e deve ser amparada pelos demais para que não caia no chão (Foto 3).

seria agregada. Posteriormente, ela foi colocada mais ao fim da cena da montanha e não apenas a dinamizou, mas agregou camadas profundas de sensações e sentidos.

Foto 4

Foto 3

Foto: Ismael Scheffler

Os exercícios foram se tornando mais complexos e envolvendo combinações de ações de tombamento, amparo e elevação. Em um deles, o grupo sustentava com as mãos no alto uma pessoa deitada (ora de frente, ora de costas). Ao propor que o grupo se deslocasse e fosse movimentando as mãos e ondulando o corpo de uma pessoa ao alto, surgiam duas imagens: ela de barriga para cima estava entregue e remetia a um funeral ou oferenda de sacrifício humano; de barriga para baixo, sugeria um vôo. As imagens de queda e vôo traziam elementos de entrega e confiança, pois havia neste momento uma total dependência entre as atrizes (Foto 4). Quando esta imagem apareceu, antes ainda da cena de travessia sobre corpos, não estava claro em que momento da peça ela

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Foto: Ismael Scheffler

Outra experimentação técnica proposta pelo Bruno foi o desafio de descobrir o mecanismo de subida, sendo uma pessoa deitada de bruços sobre o chão como base na horizontal (a portora) com outra em pé na vertical sobre ela (a volante). O desafio era de a portora se colocar pouco a pouco de pé com a volante o tempo todo sobre si. Juntas, deveriam encontrar os mecanismos de transferência de peso e pontos de apoio de maneira que a portora finalizasse em pé com a volante em segunda altura (em pé sobre seus ombros). Para isso, deveriam encontrar os melhores meios, empreendendo o menor esforço e o menor número de movimentos mantendo o equilíbrio. Embora se tratasse de um exercício técnico de desafio mecânico, existia nele potências dramáticas espetaculares, histórias fortes e diversas que aconteciam ali: a luta de uma atriz tentando se erguer tendo outra pessoa que a subjugava em pé sobre si, mas ao mesmo tempo tendo cuidado com quem está em cima para que não caísse. Uma atriz sendo erguida e mantendo seu instável equilíbrio. Outra ajudando quem está a erguendo ao aliviar e redistribuir o seu peso para que o esforço alheio seja menor (um cuidado). Todos estes temas interessavam sobremaneira à nossa produção (Fotos 5, 6, 7 e 8). Uma das atrizes que se dispôs a ser base não era muscularmente forte como muitas vezes se vê em


Foto: Ismael Scheffler

Foto: Daniel F. Patire

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Foto: Lais Poloni Carvalho

Foto 6

Foto: Camila Martins de Jesus Aguiar

Foto 5

Foto 8

Mesma ação vista em quatro ângulos diferentes, em ensaios e apresentações.

Foto 7

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números de acrobacia com pessoas de grande massa muscular que assumem este papel de portor. As primeiras tentativas envolviam muito esforço e erros. Mas a perseverança foi revelando outro sentido àquilo que era feito de que o corpo aparentemente não tão forte pode realizar esta ação que parece exigir grande carga de energia – nova microdramaturgia revelada na imagem do corpo que se empenha sobremaneira para a realização de uma luta contra a gravidade. Uma terceira imagem a referir surgiu de outro desafio de exploração de transferência de peso lançado pelo Bruno ao grupo. Uma atriz (volante) seria segurada no ar apenas pelos pés por outras duas. Depois desta etapa, a volante deveria caminhar dando a impressão de que andava no ar. A própria descrição já é a imagem poética, a microdramaturgia que emana do exercício técnico. Mas há o esforço da base, a necessária confiança e uma sincronia que funde as três atrizes. São muitas as possibilidades de detalhes que se podem estabelecer. Mas a segurança deste andar tão inseguro se mostrou potente. Em nosso processo ainda faltava achar o lugar do espetáculo em que esta célula que lida com aspectos como risco eminente de queda, segurança e insegurança, cuidado e foco, seria empregada. Este tipo de técnica de andar no ar segurando os pés não é, em si, original, tendo já sido usado algo parecido, por exemplo, no espetáculo Néfes, de Pina Bausch. A questão em si não é de um movimento ser ou não original, pois seu sentido dramatúrgico depende de uma variedade de elementos, do contexto dramatúrgico, de quem realiza e dos demais elementos cênicos. Não é a mecânica de um gesto que dá o sentido poético à imagem, mas todos os elementos envolvidos que são percebidos pelo espectador que lhe atribui sentido (Fotos 9 e 10).

Foto 9

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Foto: Daniel F. Patire

Foto 10

Foto: Daniel F. Patire


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Estas ações encontradas ao acaso ganharam contextos em suas associações. Ao se referir ao procedimento de colagem nas artes visuais, Juhani Pallasmaa (2013, p. 72) afirma que: A colagem cria um denso campo narrativo não linear e associativo por meio de agregados inicialmente não relacionados, uma vez que os fragmentos obtêm novos papéis e significados por meio do contexto e do diálogo com outros fragmentos da imagem. Os ingredientes sugerem origens e histórias variáveis, enquanto as descontinuidades sugeridas oferecem mudanças e vazios na narrativa ou lógica da imagem.

A mente humana tende a buscar automaticamente significados no que vê, inclusive em imagens arbitrárias ou em padrões não intencionais. Em OCO, algumas das células achadas foram mantidas com a mesma forma do exercício proposto nos ensaios. Por vezes, foram utilizadas na peça de maneira mais “bruta” (como foram encontradas no contexto de origem) ou mais “polidas” (como uma pedra que permanece pedra, mas refinada em aspectos externos). O vôo, a subida da horizontal e a caminhada no ar foram utilizadas de maneira mais bruta (o que não significa que não estivessem integradas na fluência do espetáculo), ao passo que a travessia sobre corpos foi mais manipulada e polida. Significativamente, o contexto em que foram utilizadas estas microdramaturgias passou pela leitura do espectador que recorrentemente busca dar sentido às imagens apresentadas a ele em cena. Para a travessia sobre os corpos, estabelecemos para a montanha um circuito, limpando os movimentos e coordenando as mudanças de posição das atrizes da base, variando níveis de altura, complexidade das formas, distâncias, estudando uma continuidade do circuito e pensando em variar dinâmicas. Para algumas composições buscamos imagens e denominamos de pedras de rio, penhasco, ponte, tanto para ajudar imaginativamente as

atrizes quanto para funcionalmente nos referirmos nos ensaios ao ponto em que trabalharíamos em determinado momento. Há momentos em que a personagem realiza o percurso insegura, instável, sem conseguir andar com seus pés, precisando se apoiar com as mãos e o corpo. Com pouca energia, se senta, descansa, olha ao redor desorientada. Propus que existisse uma relação da personagem principal com a montanha. De certa maneira, as atrizes que emprestavam seus corpos para a base tornaram-se cenário, sendo um ambiente ora um pouco figurativo, ora abstrato. Mas a montanha é mais do que algo inerte. Ela age e interage sendo, portanto, uma personagem que se relacionada com a pessoa que lhe percorre. Em parte, a personagem em fuga percorre o trajeto que a montanha dedica a ela, sendo mais passiva em relação ao que a montanha oferece. Mas, a partir de certo ponto, essa personagem principal manipula os elementos da montanha, ela puxa, ela coordena e ela passa a controlar esse ambiente no qual ela está inserida. Além de seguir passivamente o caminho que encontra, ela inverte esse papel e se torna senhora da montanha. O andar rápido exige com que as atrizes da base se movam mais rapidamente para atender à necessidade imposta (Fotos 11, 12, 13 e 14). A subida da horizontal para a segunda altura (com a volante em pé sobre os ombros) também evidencia isto, pois a personagem principal vai conduzindo a base quase magneticamente com suas mãos. Colocamos esta ação o mais para frente do palco possível, mais próximo do público. No processo compositivo da imagem da cena, também é preciso considerar como se dará a ver, se mais à frente ou ao fundo do palco ou em uma lateral ou em pontos intermediários. Mais ao fundo, a personagem ficaria

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Foto 11

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Fotos: Camila Martins de Jesus Aguiar


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Foto: Camila Martins de Jesus Aguiar

mais à linha do horizonte. Mas nesta cena, colocamos bem à frente, porque queríamos que o público visse o crescimento da personagem em sua maior escala. Quem se sentasse na primeira fila precisaria erguer o olhar significativamente para vê-la. Isto tornava a personagem grandiosa, acima tudo e de todos, ganhando poder. Estando nessa segunda altura, a personagem principal era deslocada pela montanha não precisando se esforçar para transcorrer um percurso. No caminhar sobre os ombros, ação que incorre maior risco e vulnerabilidade à queda, a personagem segue focada, mais segura apesar da fragilidade do apoio para os pés. Neste momento, também há uma mudança na noção de espaço, pois se antes havia uma figuração de rochas, agora se estabelece uma abstração maior que se reforça ao andar no ar. Ela caminha sobre um solo, sobre objetos, sobre a água, sobre o ar? Ela caminha ou é conduzida pelo caminho? Quem exerce sua vontade dentro disso? (Foto 15) A travessia é também uma experiência de tempo alterado, havendo em toda a cena uma contribuição importante da música minimalista e cíclica. Após andar no ar, a imagem volta à do começo da montanha. A ideia é de afirmar que o tempo todo ela esteve no mesmo caminho embora tivesse passado por muitas experiências físicas e emocionais. A imagem da personagem em pé em segunda altura sobre os ombros, que já havia aparecido em cena, agora está bem centralizada no palco, com uma luz de pino sobre seu rosto, em vertical. No ponto mais alto é quando ela se entrega à queda e voa. Voa ou a fazem voar? As atrizes da base, ou a própria montanha, ou os seres que o espectador imagina amparam a queda e manipulam o vôo (Fotos 16 e 17). A ambiguidade em várias cenas visa criar aberturas para a interpretação do espectador. Nesta cena de queda e vôo há margens para se ver um fim, mas também 95


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Foto 16

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Foto: Daniel F. Patire

Foto 17

Foto: Camila Martins de Jesus Aguiar

para se ver um recomeço. Um desistir e um confiar cegamente. O vôo do controle ou da vulnerabilidade, do poder e da fraqueza. São pequenas ações que atribuem referências ou suscitam questionamentos para o espectador. Finalizando o vôo, do ponto mais alto é que surge uma pequena pausa e a grande descida em aterrissagem à terra. E isso encerra a cena, um ciclo, uma experiência profunda. Tecnicamente, ao encontrar os mecanismos do movimento, o esforço se torna muito menor do que parece ao observador, pois existe um processo de peso e contrapeso que, embora possa dar a impressão de que o movimento machuca, exige menos esforço e provoca menos dor. Os espectadores vão construindo sentidos a partir de suas experiências, das imagens e sensações que tiveram em sua vida e em seu corpo, ou vão criando suposições com essa base. No processo de se identificar com a personagem, retomamos nossas referências. Isso aciona o próprio corpo de quem assiste ao espetáculo, criando tensão muscular ou relaxamento, modificando sua respiração, lidando com a dúvida sobre o sucesso ou não de realizar uma ação. A tensão do risco estabelece um vínculo que é além de uma apreensão emocional, pois se estabelece uma sincronia corporal. A dualidade de curiosidade e de medo que instiga o olhar. No caso da cena da montanha, as vinculações dos espectadores ocorrem tanto para com a personagem principal quanto para com as atrizes da base. Se a cena ocorresse sobre vários objetos ao invés de ocorrer sobre corpos, as leituras do público seriam muito diferentes. Embora as atrizes da base não expressem sentimentos (seus rostos são cobertos e agem com relativa neutralidade), seus movimentos trêmulos do esforço sublinham as ações. Ademais, ao colocarmos as atrizes da base em prostração, condição mais recorrente da cena, as colocamos subservientes suportando silenciosas algo. O que cada espectador vê leva à construção de uma leitura bastante pessoal sobre OCO. 96


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12. O MOVIMENTO SONORO EM MEIO AO GESTO

Ágatha Pradnik (Leticia Grockotzki Goularte)

Foto: Ismael Scheffler

Espetáculo Esperança (2016), com trilha sonora de Ágatha Pradnik, que aparece na foto com Karina Souza, também do elenco. Figurinos de Paulo Vinícius com dramaturgia e direção de Ismael Scheffler. Apresentação no Terminal Metropolitano do município de Fazenda Rio Grande.

M

eu contato com a produção de trilha sonora para teatro iniciou em 2014, durante a graduação no Bacharelado em Composição e Regência, na Escola de Música e Belas Artes do Paraná, Campus I da Universidade Estadual do Paraná, em Curitiba. Nesse ano fiz a trilha sonora para uma peça de teatro de alunos do curso de Artes Cênicas da Faculdade de Artes do Paraná, parte da mesma instituição, como Campus II. Em 2016, realizei meu primeiro trabalho profissional de composição, na sonoplastia do espetáculo Esperança, ocasião em que conheci Ismael Scheffler, na direção. Foi meu primeiro trabalho também com o teatro gestual. Desta experiência também escrevemos o texto Composição da trilha sonora do espetáculo “Esperança”: processo de criação música no teatro gestual (Scheffler; Goularte, 2017). Para encarar a proposta de OCO, eu já tinha a experiência de trabalhar com teatro sem falas e conhecia a linha de pesquisa do Ismael. Isso facilitou a nossa comunicação e a articulação em relação a essa criação. De qualquer maneira, foi algo novo, pois logo de início percebi que precisaria fundamentar um “corpo sonoro” mais complexo com mais instrumentos, detalhes e significados.

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PRIMEIRO CONTATO COM OCO E ESCOLHA DOS INSTRUMENTOS Quando fui chamada para começar a compor a trilha sonora, a peça estava na fundação de suas bases. Um dos aspectos primordiais a definir era quanto à textura dos elementos, escolhendo entre uma estética mais orgânica ou mais artificial. Esse momento de decisão era importante pois tudo deveria estar em harmonia. A princípio, havia a proposta de utilizar elementos de aspecto artificial e então, na trilha, a ideia de utilizar música eletroacústica. Mas ao passo em que a peça foi tomando forma viu-se que ela se dirigia a um sentido mais orgânico: construía-se a partir das formas do corpo humano, utilizava bastante o solo e o movimento trazia uma sugestão animalesca. Foi pedido do diretor da peça uma paisagem sonora que, segundo ele, nos remetesse a algo profundo, interno, como uma referência às sensações de angústia e melancolia. Assim, além do acordeom, instrumento que toco, escolhi logo em seguida o violoncelo, feito de madeira e cordas e produz som através do atrito de uma crina, para trazer um som grave, um timbre forte e com muitas possibilidades de variação. Para contrapor o peso, escolhi a flauta, que trabalha com o ar e nos remete à leveza. Outra escolha foi da percussão: marimba, pratos e udu. Instrumentos com os quais explorei o toque preciso, ritmado e contínuo.

DESENVOLVIMENTO O próximo passo foi levar para os ensaios ideias sonoras baseadas no que eu tinha visto. A partir dessas ideias percebeu-se que a dinâmica dramática também se modificava. Um som mais tenso que eu levava despertava uma gestualidade mais tensa, uma música mais rápida acelerava a velocidade da cena. Essas adaptações também aconteceram quando o figurino e o cenário começaram a chegar. Por ser um trabalho corporal intenso, cada objeto que entrava na cena alterava o formato do todo. Ao mesmo tempo em que o movimento das personagens dava ideias 98

para a escolha de sonoridades, formas e tecidos, esses elementos influenciavam o gesto e instigavam mudanças entre si. O desenvolvimento da criação era plural e precisava estar em harmonia. Todo esse processo coletivo permitiu que, pouco a pouco, ao longo dos ensaios, tudo crescesse ao mesmo tempo. Como cita Jean-Jacques Lemêtre, compositor da companhia francesa Théâtre du Soleil:

A música se procura ao mesmo tempo em que os atores procuram, que a diretora procura, que o cenógrafo procura, que os figurinos e a maquiagem aparecem, e isso é formidável. Alimentamo-nos uns aos outros, ninguém trabalha sozinho no seu canto. É um trabalho de todos juntos. (Lemêtre in Amalfi, 2015, p. 83).

Todos ali (diretor, atores, cenógrafo, figurinista, iluminador, compositor) precisavam contribuir para um mesmo objetivo. Cada linguagem tem sua expressão e suas referências. Além disso, cada profissional, por mais integrado que esteja, terá sua própria interpretação do contexto. Não é um problema, muito pelo contrário, é isso que enriquece o teatro, enriquece a arte. Mas construir uma unidade coesa demanda diálogo e tempo de convivência. No início, o cenário tinha formas abstratas e o figurino se mostrava neutro. Como faríamos para caracterizar cada cena além da expressão corporal? Tornou-se um desafio para todos e a responsabilidade incorria também sobre a música que envolveria a peça. O cuidado era principalmente com a subjetividade das sensações aliadas ao som. Como escolher as sonoridades para compor uma proposta junto ao gesto, expressar um sentimento, desenvolver uma narrativa? Timbres, frequências e ritmos precisavam ser combinados para terem um significado associado à atuação. Uma das primeiras coisas que devemos nos atentar ao debruçarmo-nos sobre a criação de música para cena, e principalmente para a cena no teatro gestual, é o aspecto


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temporal. No cinema a estrutura na qual deve ser inserida a trilha vem com um tempo estabelecido, na dança, os dançarinos muitas vezes seguem a música, já no teatro gestual a liberdade para uma dinâmica de volatilidade do tempo nos traz possibilidades diversas. Em OCO, exploramos a criação baseada em estruturas musicais com elementos repetitivos que pudessem ter sua quantidade aumentada ou diminuída. Era comum, por exemplo, não sabermos exatamente quando uma cena terminaria; então, as músicas, nas mudanças de momento da trama, não poderiam ter cortes bruscos. Observando o macro tínhamos uma margem de tempo confortável para alongar ou encurtar a cena durante sua apresentação na temporada. No micro, a pulsação (mais rápida ou mais lenta) influenciava no ritmo das personagens. Precisei atentar-me muito mais ao micro do que ao macro, no final das contas. Em vários momentos usei como base o ritmo que eu percebia da cena. Na cena da música intitulada “Praça”, as personagens entram pulando e interagindo entusiasmadas umas com as outras. Observando isso na sala de ensaios, aos poucos fui acompanhando-as tocando algumas notas no acordeom. Essa estrutura serviu de base para toda a composição, que se desenvolveu fundamentada no ritmo dos saltos das primeiras personagens que entram em cena. O mesmo aconteceu com outras cenas. Normalmente era esse o primeiro experimento no ensaio: assistir à cena, compreender o ritmo – seja de um pequeno movimento, ou um conjunto de ações – e interpretá-los musicalmente. Nisso pensava-se o instrumento, a harmonia, construção melódica, disposição das vozes... Constituía-se o componente sonoro como um todo. Por exemplo, as músicas “Clã I” e “Clã II” caracterizavam o momento de partilha entre as personagens. Essa situação estabeleceuse de maneira mais estática durante toda a cena. Utilizei disso na música, dispondo as notas sem muita alteração harmônica, o ritmo de maneira contínua, pouca oscilação

de intensidade e usando sempre o mesmo tipo de produção do som. Em outra circunstância havia tensão, trazendo a sensação de um ritmo mais intenso, agitado. Foi quando entrou na composição o udu, os pratos (na música “Criatura I”). Após isso, em uma condição de luto, inseri o violoncelo solo, com o afeto melancólico (música “Luto”). Para a cena do “Pássaro”, precisava-se de alívio, um suspiro. Logo, a flauta solo proporcionou uma condição mais calma. Com a cena da caminhada (música intitulada “Caminhada II”), na qual as personagens formam um ritmo sincronizado de movimento, tive uma situação em particular quando estabeleci a pulsação a partir da velocidade do andar delas. As personagens se revezavam e adotavam ritmos diferentes umas das outras. Determinando o ritmo na música como fixo, elas absorviam a sensação temporal proposta e transformavam isso em ação. Podemos refletir sobre a interação que acontecia entre elas também. A cena começava com apenas uma personagem e aos poucos as outras entravam (esta cena é analisada no capítulo O andar e as atitudes escultóricas). A interpretação dessa primeira personagem guiava o ritmo das outras? As que ingressavam depois interferiam no ritmo desta? Independente de como se estabelecia essa a relação, o resultado era a sintonia. Voltando a observar o macro, analisando essa cena em especial, percebe-se que ela acabou tendo uma duração sempre muito parecida pelo fato do ritmo de todas as ações (derivadas do ritmo do som) ser sempre muito similar.

A EXPERIÊNCIA COM OS MÚSICOS Partindo da prática de observar a subjetividade nas relações entre a música e a cena, quando pensei o trabalho com os instrumentistas tive

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o cuidado de considerar esses aspectos. Fiz questão de me encontrar com os instrumentistas, antes mesmo de definir as composições e explicar-lhes sobre a peça, sobre os afetos, experimentar e gravar alguns sons para levar ao ensaio. Interpretar uma música vai além de tocar as notas e acertar o ritmo, é a respiração que se faz entre uma frase e outra, a intensidade que se modifica a cada toque, a dinâmica entre os tempos. E isso está intimamente ligado à origem e à intenção do som, de onde ele surgiu e ao que ele está destinado. Com a violoncelista Maria Luiza Sprogis que participou da gravação da trilha foi uma vivência singular, porque ela pôde assistir a um ensaio e improvisar junto com a cena. Assim, ela teve a oportunidade de absorver a cena além das minhas interpretações e orientações como compositora. Compartilhamos a experiência direta da cena e a sinergia da criação. Isso me possibilitou um trabalho diferente com a instrumentista. Por ela ter participado do processo criativo da cena ficava mais clara a intenção sonora e também nos sentíamos mais livres para realizar uma composição que não fosse fechada, ou seja, com possibilidades de variação dentro dela mesma. Duas músicas da trilha sonora de OCO Foto: Ismael Scheffler

Ensaio para o desenvolvimento da trilha sonora. Cena da segunda criatura (usando ainda uma almofadano lugar do boneco).

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foram improvisos guiados de violoncelo solo. Eu anotei os momentos da narrativa visual, as características timbrísticas que imaginei e referências sonoras. Levei essas anotações até ela, improvisamos juntas e, a partir disso, construímos a música da cena. A cada ensaio surgiam novas ideias, assim foi também no dia da gravação e possivelmente seria durante o espetáculo caso a música fosse executada ao vivo durante as apresentações. Quantas possibilidades teríamos a cada encenação? Um gesto diferente, um olhar, uma respiração distinta ou qualquer ação poderia modificar o som e vice-versa. A música em cena faz teatro junto com os atores.

O SOM DA CRIATURA Outro ponto a se destacar foi a proposta vinda do diretor de um sinal sonoro característico e marcante que estaria presente em vários momentos da peça fazendo referência a um elemento específico: a entrada de uma criatura monstruosa. A ideia era ter um timbre que se destacasse dos outros e produzisse um envelope sonoro de início e fim bruscos, quase como um alarme. A escolha foi de dois instrumentos da família da madeira: fagote e oboé. O som produzido por eles caracterizaria os momentos de maior tensão e violência na peça, representando que algo ruim estava por vir. Esse significado foi construído na junção com a cena no primeiro momento em que apareceu. A sensação de suspense foi criada com a expressão das personagens que se moviam inquietas e ofegantes com o som distinto, isolado, destacado da música e intercalado com momentos de silêncio, deixando evidente a atmosfera aflita e apreensiva das personagens que reagiam a cada toque. Em outras situações, o timbre foi incorporado na música da cena, porém, sem perder seu aspecto intenso e sua propriedade de provocar a sensação de alerta. Era nessa circunstância que a cena tomava outra forma, que o clima mudava.

A MONTAGEM DO TODO Um aspecto importante é que a trilha sonora não foi criada na sequência que aparece no espetáculo. Ao invés disso houve um crescimento mútuo com as cenas que se desenvolviam paralelamente, como momentos diferentes da peça. Havia uma ideia cronológica, mas o espetáculo não se criou nessa ordem (“cena 1”, depois “cena 2”, etc.). Portanto, não havia uma linha definida de dinâmicas onde pudesse ser prevista a variação de instrumentos ou melodias. Em algumas músicas eu comecei a compor tendo apenas alguns experimentos e uma ideia do conteúdo. Além disso, durante o processo as cenas sofriam alterações de estrutura e tamanho, o que modificava também como a música seria pensada. Outra característica colocada em questão foi a influência da trilha sonora no processo de delimitação da cena: a mudança das sonoridades marcando as passagens da narrativa. Isso porque, na maior parte do espetáculo, não há blecautes para distinguir o final de uma cena para outra, há um fluxo constante. Esse ponto, inclusive, foi um aspecto sempre muito discutido entre o diretor e eu, pois cada um tem uma interpretação sobre onde muda o clima da cena. Ter a música o papel definitivo no contorno dessas nuances era um aspecto delicado para lidar, mas também muito interessante, gerando contribuições para ambas as linguagens. Um dos maiores desafios que enfrentamos foi a necessidade da música ser gravada. Saber o tempo da música exato para uma arte que requer flexibilidade. Após um processo tão orgânico e sincrético de composição precisávamos definir padrões, cronometragem e intensidades. Ou seja, chegou um momento em que a música delimitou que haveria um

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Foto: Arquivo

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Ágatha Pradnik apresentando elementos da trilha sonora gravada ao diretor do espetáculo Ismael Scheffler.

tempo máximo para a cena. A conexão entre as atrizes e a sonoplastia seria pré-estabelecida. Os últimos ensaios foram cruciais para os ajustes da trilha sonora. Com exceção da última música, todas as outras foram gravadas com um tempo maior do que tínhamos calculado na prática e mesmo com essa conjuntura tivemos que lidar com muitas instabilidades. Na montagem do espetáculo, o cenário ficou pronto e chegava por fim a luz, que contribuiu muito na criação

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da parte sensível do espetáculo, criando profundidade e sensações visuais, completando a referência das sensações além do corpo e da música. Tudo isso também intervia na percepção do todo, consequentemente influenciando no movimento das atrizes, no deslocamento dos objetos cenográficos. A volatilidade estava sempre presente. Diferente do cinema, por exemplo, que é gravado, o teatro é ao vivo, é ali, corpo no palco, sujeito a alterações de respiração, tempo, ânimos, interação. Está em constante mudança. Em OCO, essa mutabilidade era ainda mais palpável, pois o fazer acrobático incitava que o risco nos envolvesse a cada instante. Com isso voltávamos sempre à particularidade do processo criativo que era de ultrapassar a ideia de uma simples sobreposição de linguagens. Tudo sempre se deu na base de muito diálogo, com abertura para mudanças, seja o diretor sugerindo a intensidade da música ou, por exemplo, o cenógrafo aconselhando a posição das atrizes. A forte cooperação entre os processos criativos é o que também faz OCO ser íntegro. Entender as especificidades de cada elemento e conectá-las em uma mesma construção traz a amálgama que torna o espetáculo uno. Ter participado da criação de OCO foi uma experiência muito enriquecedora, tanto pelo contato com a narrativa quanto pelo desafio da composição. É um trabalho relevante nas suas múltiplas áreas. A trilha sonora em especial, tem certa autonomia, uma vez que pode ser apreciada também destacada da cena. Após a temporada realizei a edição das músicas para serem publicadas como faixas separadas que podem, atualmente, ser encontradas em plataformas de streaming digital (YouTube, Deezer, iTunes e Spotify). É interessante observar como a sonoplastia teve um papel importante em OCO e escutála nos conecta com as lembranças da peça. Sons que foram construídos para um propósito e que, mesmo após as apresentações, carregam significados relacionados à trama para quem a conhece.


13. O ANDAR E AS

ATITUDES ESCULTÓRICAS

Ismael Scheffler

C

omo dramaturgo, assumi o papel de observador atento, esperando e procurando que alguns gestos interessantes e potentes surgissem e pudéssemos tomá-los para criar o espetáculo. A importância das atitudes corporais como elemento criativo para o teatro esteve presente no trabalho de diferentes teatristas, como Étienne Decroux (Braga, 2016) e Jacques Lecoq (2010). Ambos chamaram a atenção ao fato de que pequenos movimentos de cabeça, por exemplo, modificam o sentido que o espectador atribui ao corpo. A análise de movimento vai conduzir ao princípio de economia e de limpeza de movimentos, a um trabalho que define cada gesto, dá precisão minuciosa, o que valoriza tudo que é colocado em cena. Isto não significa mecanizar o corpo, mas agir com criteriosa atenção. Em certo sentido, se aproxima do trabalho do escultor, pois é feita uma modelagem corporal. No artigo Em busca de um gesto perdido: de Paul Bellugue a Jacques Lecoq (Scheffler, 2020), trato sobre como Lecoq identificou em atitudes corporais de ações esportivas ou do cotidiano, atitudes análogas e evocativas a estados emocionais, posições corporais (imagens) que nosso olhar atribui como dotadas de narrativas/dramaturgias. Em OCO, estes princípios foram utilizados. O andar, ação básica do ser humano para sua locomoção, pode ser considerado como algo elementar, mas é complexo em seu mecanismo. Todos os grandes teatristas que se dedicaram ao estudo do movimento do ator tomavam o andar como uma premissa. Lecoq foi um

destes. Entender a mecânica do andar é considerado em sua pedagogia como um elemento essencial: entender a marcha neutra. A marcha é o termo usado para se referir ao mecanismo, um andar ideal que na verdade inexiste, pois cada pessoa possui uma anatomia e uma condição fisiológica própria e “defeituosa” ou “errada” (uma pisada torta, um desalinhamento da coluna, um encurtamento muscular) em relação a este andar idealizado. E se estas características não são permanentes ou constantes, elas se estabelecem nas diferentes condições do andar, que variam de acordo com o ambiente, seja o tipo de solo (irregular, declive, deslizante, etc); a condição climática (frio, tempestade, etc); de acordo com a situação (sozinho, em companhia, em multidão – andando na mesma ou em variadas direções); com a condição física (faixa etária, cansado, doente, drogado); ou conforme o objetivo ou a condição psicoemocional (chegar rapidamente, estar ansioso ou tranquilo) bem como na relação cultural (como a pessoa se formata a condições sociais hierárquicas de gênero, de classe social, de idade, de convicções religiosas, políticas, existenciais, profissionais, etc.). Andar não é apenas um mecanismo biológico, mas reflexo de contextos históricos, geográficos, econômicos, enfim, culturais, além de forma de expressão da individualidade e de suas subjetividades. São muitos os aspectos que influenciam na maneira

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que um andar se estabelece visualmente. Segundo Lecoq (2010), entender a marcha neutra possibilita perceber as inúmeras dinâmicas que o andar pode ter e como uma caminhada pode estar permeada de sentido, de dramaturgia, de poesia. Durante o processo de trabalho de OCO, foram desenvolvidas centenas de caminhadas. Por um lado, como aquecimento físico, por outro, como exercício de análise do movimento e suas propriedades, e ainda para o desenvolvimento da percepção e sentido de grupo. Todos estes contextos eram momentos que poderiam revelar imagens potentes de caminhadas. Mas evidentemente, muitas sessões foram feitas com foco específico em produzir variedades de andares dinâmicos e, com eles, sentidos metafóricos. Somente alguns foram levados ao palco. Foto: Ismael Scheffler

Andares partilhados envolvem muitas vezes carregar a companhia. Existem inúmeras possibilidades de levar alguém consigo.

O andar é feito por um conjunto de instantes, de posições, algo revelado pelas pesquisas do francês Étienne-Jules Marey e de inglês Eadweard Muybridge, no final do século XIX, ao fotografarem sequencialmente (cronofotografias) as mais diferentes ações humanas evidenciando etapas distintas. Como dramaturgo visual, eu procurava nas caminhadas sequências de movimentos como se fossem fotografias ou um conjunto de estátuas que revelassem atitudes corporais que, a meus olhos, tivessem potência de significados. Foi num desses processos de intensa experimentação que foi proposta uma caminhada que selecionei para analisarmos. Este procedimento, de pinçar um movimento e analisá-lo em conjunto, permite dar mais atenção e poli-lo de eventuais “sujeiras” gestuais, encontrando sua forma mais econômica ou ainda realizar alterações para fortalecer aspectos latentes que ele possui.

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Foto: Guto Souza

e olhares

Foto: Daniel F. Patire

OCO memórias


DE MÃOS DADAS

A cópia do movimento por outras pessoas é uma estratégia rica, pois às vezes, a cópia imprecisa fica melhor que o gesto original, ou outro corpo o expressa melhor que a própria autora, estando mais limpo, com mais acento ou mais longilíneo, mais tensionado, etc. Para melhor observar o gesto, é interessante dispôlo de maneiras variadas para ter melhor percepção de ângulos e pontos de vista ou, no caso de deslocamentos como uma caminhada, vê-lo vindo do fundo para a frente, o inverso, em diagonais, em laterais. Ver o movimento feito por apenas uma pessoa, ou experimentá-lo feito por duas pessoas simultaneamente, ou três, ou todo grupo em variadas dinâmicas, em sincronias, em sequências, em espelhamento, em oposições permite tanto perceber como analisar efeitos provocados nestas variações – que são os princípios da composição. Examinamos laboratorialmente o gesto para conhecêlo melhor e ver potências plásticas, motoras e poéticas que ele possui. Foi em um processo assim que toda cena da penúltima caminha foi criada. Ao encontrarmos este andar, como dramaturgo ainda não sabia em que momento do espetáculo ele seria usado. Era provável que fosse mais ao final da peça, pela carga de cansaço que o gesto transmitia. Mostramos o gesto para a compositora da trilha sonora, Ágatha Pradnik, em um ensaio, para vermos o que essa ação sugeria musicalmente. Com o acordeom, ela começou, ali mesmo, a experimentar ritmos e melodias e foi intenso porque se estabeleceu um processo simbiótico entre o movimento corporal e a música. Essa contribuição

foi fundamental. No ensaio seguinte, ela trouxe mais elaborada aquela célula musical: minimalista e cíclica, como era o andar. De fato, este andar faz parte de uma das últimas cenas de OCO. A cena se tornou uma longa caminhada da personagem que sobreviveu até aquele ponto do espetáculo. Ela perdeu várias pessoas que faziam parte de sua existência. Ela estava só. Estava banida de sua terra, fugindo, vagando sem saber para onde. O caminho até ali havia sido árduo e permeado de desistências, retomadas de força e novas desistências. Já não podia sentir demais nem pensar demais. Precisava seguir persistente e mecanicamente. Era preciso mover-se. Decupando o andar, podemos estabelecer uma sequência semelhante às realizadas por Muybridge, com a cronofotografia. A sequência inteira envolve dois ciclos de subida e descida, primeiro com o braço direito à frente, depois o braço esquerdo. Podemos perceber nesse movimento a ondulação: o movimento de elevação e verticalização do corpo seguido de nova decadência. E isto ocorria sucessivamente na cena: elevação e decadência. Ao assistir ao espetáculo, as transições são percebidas, mas não há tempo de analisá-las como proposto neste texto, o que não significa que as sensações inconscientemente não fossem apreendidas pelos espectadores do espetáculo.

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OCO memórias

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Tomando duas dessas poses de um ciclo podemos observar como existe um esforço para se erguer (A). Existe uma narrativa, uma dramaturgia nesse corpo ao se erguer: não é fácil, há peso, é preciso vontade, é preciso esforço. Isso também ocorre na descida (C), no decair, no desfalecimento, pois grande energia foi gasta na subida e no alto e agora é preciso resistir à força da gravidade para não sucumbir.

(A)

(B)

(C)

No ponto mais alto do movimento (B) há uma força e determinação que promove o andar dessa personagem, de segurança e vitalidade: a revitalização e a resiliência atravessam a cena. De certa forma, essa narrativa parece afirmar: “eu me esforço para poder me erguer”, “eu tenho força”, “eu desfaleço” – “eu me esforço – tenho força – desfaleço”, e assim vai estabelecendo um ciclo de repetição, de cansaço e vigor, de vida e morte, de começo e fim. A persistência do prosseguir e a decadência sempre constante sublinham uma insistência em não desistir. Um aspecto que também foi utilizado na dramaturgia de OCO foi com a relação vertical. Se nas cenas iniciais o âmbito aéreo foi explorado com saltos e carregamentos em níveis mais altos, o espetáculo foi sendo conduzido a um nível mais horizontal e aterrado. Esta última caminhada,

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assim como outras ações do final do espetáculo, se deu mais presa ao chão. A alegria da pirueta foi substituída pelo esforço do arrastar-se. A vida se tornou pesada demais e todo deslocamento é um imenso esforço. É interessante observar que detalhes da forma do corpo trazem diferenças de significado. Nas fotos (D) e (E), podemos perceber que elas são bem sequenciais e que há diferença no ângulo do braço e da cabeça. Estas diferenças poderiam ser verbalizadas em aspectos como: “eu ando com clareza e objetividade” (D) e “eu ando com segurança e determinação” (E). Esses pequenos elementos das atitudes vão criando camadas de significado inconscientes. Do ponto de vista plástico na estrutura das formas, podemos ver, como nas fotos (E) e (F), a variação entre o braço direito na frente e o braço esquerdo. Embora, aparentemente seja o mesmo gesto, do ponto de vista da plateia, o espectador pode perceber uma diagonal forte que se estabelece na imagem (E), com o cotovelo em ângulo e a perna direita, o que atribui velocidade. Na outra imagem (F), surge uma vertical estabelecida e muito clara com a perna direita, estabelecendo segurança, existindo movimento entre os braços em espiral mais evidente.

(D)

(E)

(F)


DE MÃOS DADAS

Na cena que envolve esta caminhada ondulatória de luta e persistência (esforço e decadência repetidamente), a personagem principal solitária encontra um novo ser que se aproximou por trás, seguindo-a caminhando sincronicamente com a mesma gestualidade. Ou seja, se estabelece uma correspondência: o andar da primeira também é o andar desta nova personagem, o que multiplica a sequência gestual. Essa sequência de luta de se reerguer e perecer infindavelmente também é assumida como o drama do novo ser. Isso ocorre uma segunda e terceira vez: a caminhada de uma é mesma de todas. Elas se identificam e passam a andar juntas, como um bando, passando da caminhada solitária para uma coletividade. Há uma identificação. Mas é interessante ainda perceber que na cena, a personagem principal, ao ser seguida pelas outras três, foi tornada uma líder e, portanto, espera-se algo dela. A partir do pensamento escultório, o espaço e a tridimensionalidade da forma também são considerados para a cena. Esta sequência de andar era plasticamente interessante vista isoladamente, mas também em arranjos, o que levou a ideia da cena de usarmos tanto o andar feito por apenas uma pessoa quanto por mais. No processo de ensaios, também percebemos que o andar apresentava riqueza e potência se vista lateralmente, mas também de frente e por traz, o que Foto: Camila Martins de Jesus Aguiar

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foi utilizado na cena. Assim, além desta vista lateral (p. 107) que predomina na cena (por ser o percurso mais longo que dispúnhamos no palco), o andar também foi utilizado em proximação e afastamento do público, quando as personagens avançavam em direção aos espectadores indo do fundo do palco até a frente (proscênio),e de costas quando se dirigiam ao fundo do palco. A cena foi criada, em suma, pela potência plástica do movimento, descobrindose possibilidades de sentido na experimentação. Para a continuidade deste estudo, utilizaremos desenhos feitos por José Marconi Bezerra de Souza a partir da filmagem da peça. Estas ilustrações ajudam a percebermos com clareza atitudes corporais das personagens em diferentes composições. O último ângulo da caminhada é quando sua composição estava mais numerosa, como um bando em aproximação com o público, como na ilustração (G). O avanço do conjunto na direção dos espectadores demonstra força, pois as personagens caminham em forma linear e devido à aproximação se tornam maiores no palco por estarem mais perto. A caminhada se encerra com uma afirmação de força e de final da solidão.

(G) 108

A cena imediatamente a seguir (H) é de desfalecimento e dor, como se derretessem daquela forma para esta, sem acolhimento, amparo, abraço ou colo, como ocorreu em situações de desolamento no início do espetáculo. Elas estão juntas, mas ainda isoladas em suas dores pessoais.

(H) Gostaria de destacar ainda outro aspecto da cena da caminhada. A personagem principal, que vagava sozinha, reagia à presença de cada nova personagem. A caminhada era interrompida e surgiam atitudes corporais que foram pensadas como esculturas que respiravam. Assim, por alguns segundos, deixávamos a imagem parada respirando o que permitia aos espectadores uma observação mais delongada das atitudes e das respirações, sublinhadas pela música. Três temas principais compuseram estes encontros: 1) a reação violenta da personagem principal, o que revela sua transformação ao longo da peça, uma vez que sua condição inicial era de afeto e acolhimento para com o outro; 2) o rápido reflexo de rendição e clemência de cada uma das novas personagens, o que remete a um condicionamento de sobrevivência bem incorporado; 3) a reação da personagem principal de reflexão ao elaborar questionamento ou inconformidade.


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As imagens a seguir demonstram estes três momentos. A ilustração (1) traz a ideia de uma preparação para um ataque violento, uma reação com certa animalidade. A ilustração (2) traz a ideia de enfretamento, uma preparação para o confronto, embora menos violenta.

(1) (2) 109


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As reações das novas personagens trazem sentidos diferentes. A figura (3) remete a uma súplica e mendicância, na qual a personagem se coloca em inferioridade, subserviência e prostração. Na ilustração (4), a outra personagem se protege e, ao mesmo tempo, se rende com certa passividade, pois protege a cabeça e o pescoço, mas deixa o corpo vulnerável se preparando para receber a violência. A personagem na figura (5) se rende, também se coloca em certa prostração inferiorizando o olhar e parece pedir tolerância. Diante destas condições, a personagem principal se apercebe da situação estabelecida. Na ilustração (6), ela elabora um questionamento sobre si mesma, a respeito de sua ação, ao observar suas duas mãos. Na outra situação (figura 7), ela demonstra uma angústia (com uma mão no maxilar ao lado da boca) e um questionamento (com a outra mão na têmpora ao lado do olho). E ao deslizar as mãos subindo e descendo entre as duas posições, potencializa o sentido de confusão emocional, ao mesmo tempo em que lança um clamor. Ela se questiona, mas não se questiona só para si, como antes, mas também para o alto, em espiral, buscando uma resposta que não encontra em si. Na terceira situação (figura 8), com as mãos cerradas bate nas laterais da cabeça, onde os pensamentos e dúvidas lhe ocorrem, exercendo a única ação explicitamente agressiva do espetáculo. Embora o espetáculo aborde também a violência, não há agressão corporal de pancadas em cena, exceto o autoflagelo. A angústia incompreendida sobre si mesma leva também a um fechamento do corpo, na curvatura sobre si, comprimindo o abdômen, o que leva a uma asfixia e revela o desejo de isolar-se dentro de si, em pose fetal em um retorno uterino em busca de proteção e regresso ao momento mais primeiro de proteção que o ser humano experimenta (o ventre materno). Estas descrições são simplistas, uma tentativa racional de buscar demonstrar aspectos que estiveram por trás do processo de criação. Em certa medida, ajudam a descrever a transformação da personagem principal e sua inconformidade com sua nova condição. Todas as ações de reação violenta e reflexo rápido de rendição eram permeadas por forte tensão muscular e respirações intensas. O alívio destas dinâmicas ocorria entre uma caminhada e outra que, no movimento de comprimir e expandir da caminhada, estimulava a respiração e o alívio físico. A caminhada em conjunto também correspondia a uma aceitação da outra presença, talvez algum tipo de perdão, embora não se estabelecesse de fato um acolhimento.

(3)

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(4)

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(6)

(7)

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14. GRITOS Ismael Scheffler

A

pintura O grito, de Munch, foi uma das imagens que compuseram um painel referencial em meu processo criativo como dramaturgo. A imagem pode ser facilmente reconhecida como uma inspiração para a cena final de OCO, tanto pela sua intensidade expressiva, quanto pelo olhar inquisidor que a figura dirige ao observador. Para mim, parece haver na pintura um grito mudo, um grito inaudível que utilizamos em OCO em duas cenas que antecedem o grito sonoro derradeiro da peça. No processo de produção do presente livro, tomei conhecimento de um estudo publicado pelo filósofo

Foto: Daniel F. Patire

Pintura O grito (1893), de Edvard Munch.

carioca Charles Feitosa (2015) intitulado Introdução à filosofia do grito. De forma surpreendente, o artigo traz uma série de reflexões que pautaram o processo artístico de OCO e tomo aqui alguns aspectos. Feitosa chama a atenção ao fato de que o grito pode ter diversas origens e sentidos, sendo um deles a dor. Embora a posição das mãos da pintura de Munch e a da cena de OCO pareçam corresponder à mesma expressão, há uma sensível diferença: na pintura, Munch coloca as palmas das mãos do ser ao lado da boca, sobre o maxilar e ouvidos, ao passo que em OCO, as mãos são postas ao lado dos olhos, nas têmporas. Em Munch, a angústia do desespero parece sobressair-se como um vômito de exteriorização da dor, tendo um processo de expurgar. Em OCO, as mãos ao lado da cabeça ressaltam mais a 111


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incompreensão que gera angústia, uma incapacidade de entender a brutalidade, um esforço em tentar ver alguma alternativa futura. Em ambas as obras, o grito silencioso expressa uma angústia e a impotência. Como grito silencioso, ele é ainda o grito evitado, retido e parcialmente reprimido pela racionalidade. Feitosa (2015) ressalta que o grito também é manifestação dos animais, não apenas humana. E que o grito tem em si uma carga de irracionalidade sendo uma expressão sem palavras. Pontua também que há certa incompatibilidade entre gritar e pensar. O grito seria uma expressão pura, não domesticada pela linguagem, mas que libera sentimentos extremos de dor, ódio, desespero, prazer, alegria e nisso se aproxima do animal. O grito sem voz em OCO, ainda está Foto: Daniel F. Patire

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em um ponto do ser sem voz, do ser que não libertou seu espírito. Feitosa ressalta o pensamento do filósofo alemão Lessing que afirma que “gritar é a expressão natural da dor” e que o grito é um direito do ser que sofre. Neste sentido, talvez pudéssemos afirmar que os gritos sem voz de OCO ainda resistem a seu direito. Foto: Daniel F. Patire


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No entanto, o grito silencioso também existe, porque o grito não é apenas um som vocal bruto (se liberado em sua potência). O grito é corpo, porque é o corpo que o exprime sonoramente, pela musculatura, sendo a voz decorrência desse corpo. Um grito, portanto, é também imagem carregada de tensão, em certa medida, de desarmonia, sendo um tipo de corpo grotesco. Essencialmente, o grito não é um ato isolado do rosto. OCO é um espetáculo sem palavras, mas não é um espetáculo silencioso. As respirações sublinham as ações e são mais ou menos audíveis, dependendo da distância que o espectador se situa do palco. Por diferentes motivos, a respiração é importante à ação corporal para que ela flua integralmente. A respiração do esforço, por vezes, se modula escapando em consoantes ou vogais. Remete à fala, é vestígio de uma possibilidade que é a produção da voz. Desde a primeira cena de OCO, a respiração das atrizes aparece para o público, criando uma sintonia das personagens entre si e delas com o público. De diversas maneiras, a busca pelo fôlego e a inspiração ou a expiração suave ou bruta marcam as cenas em expressões que se tornam crescentes de angústia, susto e dor. Contrair e dilatar, puxar e empurrar, não são ações realizadas apenas com os movimentos mais visíveis do corpo externamente, mas pela respiração em um jogo de conflitos e interesses. A respiração é dramaturgia. Charles Feitosa ainda refere que a música instrumental é uma voz sem logos (sem a palavra) e, portanto, sem significado. Assim, poderíamos afirmar que OCO é pleno de vozes, não apenas pelas respirações das atrizes, mas também dos instrumentos presentes na trilha sonora. Ágatha Pradnik, em sua composição, propôs diversos instrumentos nos quais o ar é fonte para a produção do som, como a flauta transversa, o fagote, o oboé e o acordeom. Pradnik manteve nas gravações diversos vestígios corporais, como a inspiração da flautista e mesmo da violoncelista principalmente nos momentos de música solo. Do violoncelo, poderíamos ainda relacionar um elemento respiratório nos movimentos das arcadas,

existindo por vezes uma “inspiração” e uma “expiração”, no puxar e empurrar do arco. Por característica própria do instrumento, há certa rouquidão do som produzido com o violoncelo no atrito do arco sobre as cordas, assim como existem gritos em outros instrumentos, como na flauta. Embora qualquer som seja produzido por meio de vibração e transmitido pelo ar, em OCO, respiração e vibração são colocadas também nas composições musicais cíclicas de Pradnik. Mas há o último grito em OCO em que a materialidade da voz ganha sua expressão mais explícita. Porém, dizer que a peça terminaria com um grito pareceria genérico demais. O grito final de OCO deveria evocar alguns sentidos: ter dor, liberar a angústia e o cansaço, ter revolta, ter protesto e conclamar. Ser algo como o que Feitosa chama de “grito como afirmação de vida”. Esse autor ilustra esta ideia com Zaratrusta, de Nietzsche: “Assim, gritava qualquer coisa em mim: o meu espanto, o meu ódio, a minha repugnância, a minha solidariedade, todo o meu bem e o meu mal se puseram a gritar em mim em um grito só.” (apud Feitosa, 2015, p. 114). Em OCO, o grito final não é apenas um lamento, mas uma proposição criativa de força, um chamado para a construção de um levante. A personagem que encarou o espectador em diferentes momentos do espetáculo, como que furando a separação entre o que ocorria no palco e a presença do público na sala, agora olha profundamente para o espectador e grita. Este grito foi preparado pela trilha sonora sendo, de fato, o único momento do espetáculo em que Ágatha conduziu a confluência precisa de ações do elenco com música, ensinando a atriz a identificar com exatidão na música o tempo preciso de cada ação para que o grito ocorresse no ponto de culminância da dramaturgia musical. Música e grito têm unicidade aqui. Esta unicidade também está nas ações finais: o olhar da personagem que encara o público dando as costas ao monstro imperioso em decisão segura e sóbria; a aproximação lenta em direção ao público tornando-se cada vez maior a partir do ponto de vista da plateia; o olhar

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frontal para o público como o retratado nas pinturas de Munch e Portinari; o gesto dos braços firmes em ascensão lenta como que arrancando a terra com as mãos tomando força, como nas pinturas da série O grito (1989), de Guayasamín. O grito visceral que libera é um chamado à dignidade, é um grito de empoderamento, de coletividade. Por isso, sua duração deveria ser longa, a mais longa que a atriz pudesse sustentar e, próximo a seu fim, ele deveria ser reforçado e multiplicado com o grito das demais personagens e, ainda mais, ao apagar das luzes do palco, ser mantido e receber todos os demais gritos da plateia que quisessem se juntar a esta expressão tão fundamental ao ser humano. A participação do público teve diferentes adesões. Alguns da equipe de criação, ou amigos, por seu desejo, adensavam o grito final após o blecaute. Isto gerou experiências importantes a muitos outros espectadores que também liberavam suas vozes em um grito coletivo profundo. Estes são alguns aspectos que pautaram o processo de criação do espetáculo OCO, que perpassam pela respiração, pelos gritos mudos e pelo grito final. Com o interesse em acionar aspectos interiores, inconscientes ou instintivos, fizemos algumas escolhas no processo dramatúrgico da peça. Toda esta descrição, no entanto, se apresenta como insuficiente para a experiência de assistir ao espetáculo, pois envolvem camadas sensíveis que se perdem, inclusive, em filmagens. Todo espetáculo OCO se dirige e culmina para a cena final e tentar explicar este ponto será sempre uma redução. E por buscarmos acessar elementos mais profundos do que a razão permite é que o grito existiu. Foto: Karina Souza

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15. ATMOSFERAS E CORES:

A ILUMINAÇÃO CÊNICA

Entrevista com Wagner Corrêa por Daniel Faria Patire e Ismael Scheffler

Daniel: Como foi seu início na iluminação cênica? Wagner: Eu comecei a trabalhar com teatro profissional em 1998, mas antes já tinha certo contato com o teatro amador. Mas foi após fazer um curso de cenotécnica e outro de iluminação cênica, este com a professora Nádia Luciani, da UNESPAR, que iniciei e não parei mais. Primeiramente, fui chamado pra fazer uns trabalhos de contrarregragem em espetáculos e depois fazendo também operação de luz, a partir de 1999. Desde 2004, trabalho com criação de luz tanto em produções teatrais independentes, quanto em colaboração com diferentes grupos teatrais curitibanos, como Antropofocus, Figurino e Cena, Selvática, Vigor Mortis e Cia. Senhas. Também desenvolvo projetos de luz para espetáculos de dança, shows, vídeos e eventos. Daniel: Esse trabalho foi diferente de outros que você já realizou? Wagner: OCO foi o primeiro trabalho que eu fiz com o Ismael. OCO foi um trabalho diferente, porque envolve o corpo, a acrobacia, a dança, mas ao mesmo tempo envolve plasticidade, tem uma questão visual forte. Não é um espetáculo de dança, nem de teatro, nem exclusivamente de acrobacia. É uma mistura disso tudo, envolvendo muitas linguagens. E não tinha um texto escrito previamente pra descrever os ambientes, as ações das personagens. Eu não me lembro de ter feito algum trabalho assim antes.

Daniel: OCO tem uma marca muito forte, no trabalho corporal, na ausência de palavras... Wagner: É muito impressionante o que as atrizes conseguem fazer com os corpos. Elas têm uma unidade muito bacana e todas são bem preparadas pelo Ismael, Bruno e Karina. O fato de não ter um texto joga mais ainda pro visual. E aí você tem corpos que produzem imagens e que têm muita força nessas imagens. Elas têm corpos distintos e ao mesmo tempo, em alguns momentos, elas se juntam, se separam, elas criam figuras que para a luz é muito legal, pois dá para trabalhar esse volume. Elas estão se movimentando praticamente o tempo todo e dá para explorar várias possibilidades de ângulos. Dependendo onde está posicionado o refletor, a luz chega nesse corpo e cria uma forma, um volume, uma sombra. E, com a alteração da luz, você acaba também movimentando esses corpos mesmo nos poucos momentos em que estiveram parados. Então, esse trabalho especificamente da luz de OCO é muito estimulante para experimentar. Eu curti muito fazer. Acho que a gente conseguiu encontrar muitas soluções mesmo dentro de certa limitação que a gente tinha em termos de instalações do palco para colocação de refletores. Talvez, se tivéssemos também mais recursos de equipamentos, a gente pudesse, de repente, criar outras possibilidades. Não que fossem poucos, a gente tinha até uma boa quantidade de equipamentos e criamos com o que havia disponível.

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OCO memórias

e olhares

Por conta de as atrizes estarem em movimento quase o tempo todo, a luz tinha uma pulsação que caminhava junto com elas. A tentativa era de expressar com a luz a mesma intensidade que elas estavam expressando, trazer a mesma força em todas as imagens do espetáculo. Foto: Ismael Scheffler

da cor, então, a gente experimentou bastante. Trabalhar com cores tem essa possibilidade de remeter a ambientes mais leves, mais festivos, ou de sofrimento e cansaço. Além de criar as atmosferas, a luz ajudava a construir a passagem de tempo. Um aspecto bacana que tivemos foi de ter acesso à estrutura da UTFPR e pudemos ensaiar uns dias antes da estreia no próprio auditório, o que permitiu uma familiaridade com o local e ajudou no planejamento conhecendo as possibilidades técnicas do palco. Daniel: Como que foi o processo de criação da luz na relação com a cenografia e o figurino, a relação com o Levi Brandão e com o Paulo Vinícius?

Wagner Corrêa, Nícolas Caus e Letícia Decker instalando equipamentos de iluminação em torres laterais nas coxias.

Daniel: Como foi o processo de criação e elaboração da luz do espetáculo? Wagner: O intuito nesse processo da criação da luz foi justamente criar atmosferas pra diferenciar os ambientes por onde as personagens estavam passando. Elas percorrem durante o espetáculo um caminho, passando por lugares mágicos e tenebrosos, encontrando criaturas que vão interagindo de alguma maneira com elas. A iluminação cênica conduz o olhar do público pela cena. Dramaturgicamente a luz colabora na criação de imagens e sentidos. Em alguns momentos, por exemplo, a ideia foi retirar toda a cor pra que deixasse a cena mais seca, mais desértica, a vida mais “seca”. Em outros momentos, tinha muita cor. E a gente tinha a possibilidade da utilização

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Wagner: O trabalho com a luz interfere nos demais elementos visuais como um todo. O casamento da luz com o cenário e o figurino é fundamental. Normalmente, a luz acaba entrando na cena mais ao final do processo amarrando tudo, enquanto o figurino, o cenário, as marcações do elenco vão sendo feitas ao longo da produção. Eu já trabalhei com o Levi e o Paulo Vinícius em outros projetos. Paulo Vinícius e eu fomos parceiros em várias produções há mais de dez anos. Ele também é cenógrafo e a gente já fez muitos trabalhos em várias companhias diferentes. Nós três discutimos muito a questão das cores para OCO. O Levi escolheu trabalhar dessa forma como foi feito, porque assim se poderia criar vários ambientes por onde as personagens estivessem passando, sem muitas trocas de cenário para estabelecer lugares diferentes; algo complicado para a produção da cenografia pensar, considerando a maquinaria para a movimentação do cenário. Ele concebeu a possibilidade de um cenário neutro sem que essa neutralidade do cenário o fizesse ser inexpressivo. É um cenário neutro porque ele é monocromático, cor crua, feito de papel kraft e de papelão. Isso dá possibilidade para a luz e o figurino de trabalharem com muitas cores. O Levi também utilizou várias estruturas volumétricas. Na conversa com o Levi, consideramos que, com a luz, eu poderia ajudar a revelar


Foto: Daniel F. Patire

e criar esses espaços distintos, essas atmosferas que a gente gostaria que tivesse no trabalho, tendo um só cenário como base, porque apesar de ser neutro, ele tem bastante possibilidades de transformação com recursos de iluminação. Com a movimentação de elementos volumétricos do cenário (e nem era muita movimentação), a gente conseguia criar outros volumes também. Com relação às cores, o cenário permitia ter uma cor de fundo no ciclorama, dar outra cor àqueles elementos mais baixos próximos ao fundo, dar outra cor a outros elementos do cenário, incluir uma contraluz com outra cor ainda. Dá pra incluir várias cores que vão se misturando, ao mesmo tempo sempre mantendo um pontinho de um branco ou de um tom de branco ou de um âmbar no figurino, para justamente não tirar totalmente as características do figurino que também tem a sua paleta de cores. A cor da luz muda a percepção do figurino agregando ou anulando-o, então também tivemos alguns tons de branco. Com o ciclorama de fundo, isso possibilitou também criar silhuetas. O figurino, em alguns momentos, aparece detalhadamente, em outros, a luz faz com que as personagens virem sombras, ficam totalmente “silhuetadas” e a cor do figurino desaparece, revelando apenas os contornos. Bem no início do processo, eu tinha a ideia de trabalhar com uma ou outra cor apenas. Mas, com o decorrer da criação, mais próximo do dia da montagem e, ainda durante a montagem, foi que a gente foi jogando e tirando cor. Eu gosto muito dessa possibilidade de experimentar, pôr intensidade e, se ficar demais, segurar a mão um pouco nas cores. Em OCO, a gente abusou e foi ótimo. Eu utilizei bastante a projeção de sombras dos bonecos no cenário, trazendo luz de ribalta, de baixo pra cima, fazendo com que essa sombra crescesse também no fundo, dando outra dimensão pra esses monstros. Faz parte da linguagem da luz pensar em como essa luz vai incidir sobre um movimento ou uma figura em cena e, ao mesmo tempo, pensar em como ela passa, atravessa e aonde ela vai chegar.

Ensaio com primeiras experimentações com iluminação.

Ismael: Você falou da plasticidade, falou do corpo. As pessoas viam, mas não era só o corpo expressivo, eram também aquelas cores, aquelas formas, tinha transbordamento sensorial. Penso que a luz inundava o espectador com aqueles efeitos mágicos de fumaça que às vezes apareciam e com tanta intensidade de cor. Wagner: Sim, eu acho que tem isso. Só assistir àquilo que as atrizes conseguem fazer com o corpo, as acrobacias e tudo mais, envolvido pela trilha sonora, já é uma coisa que impressiona. Você já fica: “cara como que elas conseguem chegar nesse lugar!”. Aí a luz veio pra somar junto com figurino, com cenário, enfim, somar com o que já é impressionante que as atrizes fazem. A luz trouxe plasticidade explorando ângulos, a sombra, dando movimento que interfere no movimento corporal, agregando cor e efeitos. A fumaça foi colocada num local específico do cenário que a fazia subir e, às vezes, descer. Isso deu um efeito muito bonito. A gente conseguiu criar muitos efeitos e muitas camadas de cores, algo bem interessante. 117


OCO memórias

e olhares

Ismael: Você mencionou a trilha sonora. Tem relação entre a iluminação com a trilha sonora de OCO? Wagner: A iluminação e a trilha sonora caminharam juntas em OCO. A meu ver, porque tiveram uma função muito parecida, apesar da luz ser um elemento visual e a trilha ser auditiva. Elas se alinharam no sentido dramatúrgico e no sensorial criando atmosferas. A gente teve que criar vários ambientes distintos com atmosferas distintas e só com a iluminação isso não aconteceria. Mas com essa junção da luz com a sonoplastia construiu e alterou diferentes climas da trajetória, do caminho percorrido. A luz e o som foram conduzindo a história junto com o gesto. A sonoplastia normalmente chega antes trazendo o clima para as cenas, muito antes do que a luz ela está presente nos ensaios, sendo concebida no decorrer do processo, contaminando tanto o diretor quanto os atores ou os bailarinos. O iluminador também se contamina com a trilha durante o processo. Ela traz climas pra toda equipe e pra luz, muitas vezes até sem percebermos. Vai envolvendo. Isso é algo muito bacana e importante. Daniel: E como foi a sua relação com os operadores? Wagner: O Nícolas Caus e a Letícia Decker são estudantes da área, fazem graduação em teatro na UNESPAR. O trabalho do iluminador, como criador, é conceber, desenhar, planejar, criar um mapa de luz e fazer a montagem do projeto, planejando cada tipo de refletor, de cor, de posição. Letícia e Nícolas me acompanharam também na montagem de luz, junto com os técnicos, para poder entender tudo que estava acontecendo também. Com o roteiro, planejando cada acender e apagar de luz, a entrada da fumaça, cada movimento e ritmo da peça, o iluminador ensina quem é o responsável pela operação dessa luz. Eles não tinham experiência na área, mas ficaram super ligados nesse processo, estando sempre à disposição pra ajudar na montagem, na configuração de tudo e estiveram em vários ensaios. Para uma determinada cena, eu propus um canhão seguidor, 118

que ficava posicionado no mezanino, no alto do fundo do auditório, com um foco de luz mais fechadinho, para que em um determinado momento esse foco pudesse acompanhar a criatura “voadora” que se deslocava no palco. Eu queria mostrá-la com a luz, mas não iluminar o palco todo. A Letícia ficou com esta função de direcionar manualmente o canhão de luz nessa cena, além de ajudar no palco e nos bastidores; e o Nicolas ficou na mesa de luz fazendo a operação em várias apresentações. Daniel: E o que é OCO para você? Wagner: Pois é... OCO é a viagem que a gente faz enquanto vida... A gente passa por momentos bacanas, por momentos loucos, momentos mágicos, lúdicos, que são prazerosos. Também passamos por situações complicadas, por perrengues, tristezas, perdas... OCO é esse vazio que vamos preenchendo com o tempo. Às vezes, por ações planejadas, outras vezes coisas acontecem e reagimos. Muitas vezes nos sentimos ocos... em outros momentos preenchidos. Temos pessoas e “monstros” em nossas vidas. Alguns deles passam, somem... outros surgem e ficam. Nossa luz está mudando o tempo inteiro na vida. Temos que prestar mais atenção nisso. Essa viagem pode ser mais interessante se ficarmos atentos a essas mudanças. Foto: Ismael Scheffler

Equipe na cabine de operação: Nícolas Caus e Wagner Corrêa, na operação da iluminação (ao fundo) e Ayesla Fabian e Gustavo Bittencourt, na operação do som.


16. VAZIO E CRU: A CENOGRAFIA Entrevista com Levi Brandão por Daniel Faria Patire e Ismael Scheffler

Daniel: Poderia falar da sua relação com o Ismael e a UTFPR? E também de sua carreira? Levi: Já conheço o Ismael há algum tempo. Tive a oportunidade de trabalhar como ator no espetáculo A breve dança de Romeu e Julieta, do TUT, em 2009, um espetáculo clownesco, sem texto, feito na praça. Gostei muito de participar. Depois, eu fiz a Especialização em Cenografia, em 2013, na UTFPR. O Ismael foi meu professor e também orientador do meu Trabalho de Conclusão de Curso. Fiz a Especialização em Artes Híbridas, em 2016, também na UTFPR. Então, já vem uma parceria de algum tempo, sempre trocando idéias e tentando fazer mais alguma coisa juntos. Foi gratificante participar de OCO. Foi muito bonito o resultado. Eu já trabalho com teatro e com música há mais de 15 anos. Comecei a fazer cenário por uma demanda. Eu gostava de dirigir e tinha algumas habilidades em trabalhos artesanais, em desenho e comecei a fazer cenário pra espetáculos musicais e shows. Eram coisas menores, mais simples. Eu queria aprofundar esse conhecimento e comecei a fazer a pós em Cenografia pra ampliar o meu conhecimento, enxergar mais coisas, abrir o olhar para a prática que eu já tinha. A pós-graduação foi muito importante pra mim. Daniel: Como que foi o processo de elaboração do cenário? Levi: Foi um processo em conjunto com o diretor e com as atrizes. Eles já estavam em processo de criação e Ismael

me informava desde o início o que estava acontecendo, mandando fotos e vídeos. Eu fui aos ensaios quando já tinha alguma coisa mais clara. Tinha já algumas demandas, mas também uma parte livre pra criar. Às vezes, o diretor te encomenda um cenário muito pronto. E, às vezes, te dá uma liberdade total, que você não sabe por onde começar. E com o Ismael foi interessante, porque ele deu liberdade de criação e também algumas diretrizes do que precisava, como por exemplo, um objeto, onde as atrizes pudessem se equilibrar e dançar em cima. Essa ideia ele já tinha, mas não sabia o que exatamente. Outra coisa muito importante que ele me pediu desde o início, assim que ele definiu que o espetáculo ia ser apresentado no auditório da UTFPR, era para, de alguma forma, transformar o ambiente daquele palco, de preencher o palco todo com a cenografia. Ele não queria que as pessoas identificassem aquilo como o palco que estão acostumadas a ver nas formaturas e reuniões. Também tinham outras demandas que é em relação ao piso, pois as atrizes precisavam de um piso específico, um linóleo com um revestimento macio por baixo, que não fosse só a madeira do palco, para absorver o impacto e evitar que se machucassem. Também não era pra ser uma cenografia que representasse um espaço específico. Criamos formas mais abstratas pra que a gente pudesse usar o mesmo cenário em momentos diferentes do espetáculo, sem ter que ficar trocando tudo, mas girando a peça, a torre e mudando a luz, você tinha uma sensação de estar completamente em outro ambiente. O foco do espetáculo não é o cenário. É o corpo, 119


OCO memórias

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o movimento, a interação entre as atrizes. Então, tudo o que a gente pudesse fazer pra evidenciar esse movimento, essa interação do corpo, era importante. A partir dessas diretrizes e a partir do que eu assisti dos ensaios, foram vindo imagens e eu fui rascunhando. Foto: Ismael Scheffler

Ao lado: Levi Brandão rabiscando ideias para o cenário. Abaixo: ensaio da cena da montanha no palco sem cenário, dimensionando os movimentos na proporção do local da apresentação. Foto: Levi Brandão

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Daniel: Você, Wagner e Paulo trabalharam juntos algumas questões. Como foi esse trabalho, com o iluminador e o figurinista para compor o cenário? Levi: A cenografia nunca está sozinha. Eu tenho que pensar junto com o figurinista, entender qual é a cor e a textura que ele gostaria de usar no figurino pra pensar um fundo que favoreça e que dialogue. Uma das possibilidades de uso naquele palco é o ciclorama, aquele fundo branco, que é uma parede fixa do palco da UTFPR, que permite com que se trabalhe com as cores, que cada cena seja pintada com um fundo diferente. Qualquer objeto que você põe na frente, ele vai ressignificando porque o fundo muda de cor e a nossa percepção do objeto também muda. Desde o início, eu já tinha vontade de usar o ciclorama e estendê-lo para as laterais também. Eu propus que a gente colocasse toda a vestimenta do palco com papel kraft, eliminando todas as cortinas pretas. Eu me preocupo sempre com quem está nas diagonais assistindo, que muitas vezes acaba vendo apenas metade do cenário e metade do preto das cortinas laterais. Eu queria evitar isso e fazer com que não importasse de onde a pessoa estivesse olhando, fosse frontalmente ou fosse na diagonal, ela visse essa mesma textura, esse mesmo tom de papel. Eu escolhi uma paleta bem básica, uma cor areia, um bege, cor de papel kraft e papelão, que com uma luz neutra destacaria o figurino. O Wagner fez alguns testes no ateliê dele, com luz e cor sobre o papel kraft, pra ver como o papel reagiria absorvendo, refletindo e alterando cores. Funcionou muito bem no palco. Mesmo com cores bastante vibrantes no fundo, o figurino vibrante em frente não ficava apagado. Outra relação com a iluminação foi a preocupação de que o cenário não atrapalhasse a passagem da luz, porque acabei desenvolvendo torres altas, objetos grandes, de quatro ou cinco metros. Então, alguns deles estavam próximos das varas de luz. Isso pode atrapalhar ou pode ajudar. No caso, ajudou porque eu sempre estava em comunicação com o Wagner e ele, sabendo que ia ter esses objetos altos, foi também posicionando mais refletores nas laterais do palco.


DE MÃOS DADAS

Daniel: Como foi a presença dos corpos das atrizes pra você elaborar esse cenário? A interação entre elas, os movimentos, os desenhos que elas criavam com os corpos?

Processo de montagem do cenário.

Foto: Levi Brandão

Daniel: Como foram feitos esses elementos maiores, estas torres? Levi: Fomos procurar no depósito da UTFPR alguns materiais descartados para reaproveitar e não ter que fazer toda parte estrutural do zero. Tinham que ser objetos que fossem fáceis de transportar, que pudessem ser deslocados no palco. Não podia ser um cenário tão rígido fixado no palco. Então, eu usei madeira criando volumes ocos com ripas e com revestimento de papelão ondulado, que tem uma textura. Se você olhar de perto ou sem a luz, sem aquela magia do momento ali do espetáculo, você vê que é um papelão, ele é frágil, ele rasga. Mas no efeito das luzes criou uma ilusão muito interessante e parece até ser uma coisa muito mais rígida do que é. O grande barato da cenografia é fazer uma coisa parecer o que não é. Fizemos objetos grandes e tivemos de calcular como fazê-los entrar no teatro.

Levi: Num primeiro momento, assistindo aos ensaios, eu queria criar muito mais coisas relacionadas a plataformas, onde elas pudessem subir, descer, se apoiar, fazer rolamentos. Até experimentei algo no ensaio, espalhando alguns caixotes pela sala. As atrizes se deram muito bem e o Ismael achou interessante, mas o processo já estava avançando e elas precisavam de mais chão e com plataformas o espaço diminuiria muito. Daí parti pra a ideia de os objetos serem manipulados apenas pro lado, frente e trás, não sendo possível subir ou apoiar-se. Quando essas torres estão na frente do ciclorama, cria-se uma sensação de verticalidade e de luz e sombra. Se colocadas mais pras laterais do palco, o espaço se abre e se tem uma sensação de um horizonte maior e mais profundo. Destaca-se o corpo que está ali na frente. Ismael: Existe relação entre o cenário e os bonecos? Levi: Uma das relações entre o cenário e os bonecos é a de revelar e de esconder. O cenário permite que esses bonecos entrem e saiam de cena, não estejam ali o tempo todo, podendo as torres se tornar esconderijos, passagens pra esses monstros, jogando com a presença deles. Mas teve um desafio que era o seguinte: o Ismael tinha o desejo de fazer um boneco muito grande pra aquela cena final. A gente não tem, naquele palco, pé direito o suficiente para ele entrar em cena pela coxia nem descer do alto. Então, optamos em deixá-lo deitado, escondido durante todo espetáculo para que ele aparecesse ao final, crescendo, abrindo as asas. Então, um dos desafios era esconder esse boneco. Daí, projetei uma camada mais baixa de elementos para o cenário, que fazia uma silhueta de horizonte, onde a gente tinha o boneco grande deitado atrás. Outra questão é que tínhamos os objetos grandes e 121


OCO memórias

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altos, de quatro, cinco metros quase tomando toda a altura do palco. Quando entrasse o boneco ao lado disso, ele não pareceria tão grande. Então, a gente optou por abrir essa cena. Aos poucos, essas torres vão sendo colocadas nas laterais, abrindo o palco, fazendo com que a gente tenha um panorama maior do ciclorama e esse boneco, quando entra, fica valorizado e parece muito maior do que é. Daniel: E o objeto versátil? Ele é diferente dos outros elementos do cenário. O quanto que esse elemento vai construindo também outros espaços? Levi: Ele é bem diferente dos outros materiais, pois é todo de metal. Fiz um protótipo de madeira em escala real a partir de um rascunho que o Ismael deu, de uma “gangorra”, algo assim. Levei pro ensaio, as atrizes utilizaram e funcionou muito bem. Ajustamos algumas medidas para ficar num padrão mais adequado pro tamanho do corpo delas, pra

Ensaio improvisando plataformas.

Foto: Ismael Scheffler

OBJETO VERSÁTIL Ismael Scheffler Há um único objeto utilizado no espetáculo. Tratase de estrutura metálica simétrica e geométrica que é utilizada em posições distintas durante a peça, gerando, portanto, diferentes formas de percebê-la. Se estabelece com o público uma convenção, uma vez que se assume que em um único objeto possam existir muitos, conforme ele seja posicionado e utilizado. Por sua forma sintética de poucas linhas e formas elementares, se abrem possibilidades para que se vejam diferentes imagens. Este objeto encontra quatro usos no espetáculo. Aparece inicialmente sendo usado como plataforma de apoio nas acrobacias iniciais, criando um nível mais elevado no qual as personagens se apoiam.

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O segundo uso é como uma panela-fogão-bandeja de banquete na cena de comensalidade. Ali ele indica um aspecto importante sobre aquele universo, como um objeto produzido por uma cultura, não sendo um objeto da natureza. A produção do artefato revela ciência e domínio de tecnologias sobre o fogo e os metais, algo produzido pela transformação de matérias. As personagens, portanto, não são criaturas de puro instinto, mas detêm técnicas projetuais. Esse artefato é o elemento que remete ao ambiente doméstico. Ele é tudo o que as personagens possuem. A decisão de partir em fuga é expressa ao tomarem o objeto e carregá-lo consigo. Transferir o objeto é transferir o lar. A cena tem relação com refugiados ou retirantes que levam


DE MÃOS DADAS

elas poderem carregar, porque elas precisavam subir naquilo, utilizar, se equilibrar e, em alguns momentos, carregar. Então, tinha que ser algo bem estruturado, leve, ter estabilidade e não poderia ser muito pequeno. Contei com a ajuda de um serralheiro pra executar esse objeto e depois fiz um acabamento. Trabalhei na cor e na textura pra integrar com a paleta de cores do restante da obra. Foi interessante como as atrizes absorveram esse objeto rapidamente, dominaram, começaram a brincar, a subir, descer, utilizar de várias formas. E ficou muito bonita a utilização dele no espetáculo. Foi uma integração total. Você vê o objeto, mas ele não rouba a cena. Ele proporciona diferentes movimentos para o corpo. O que mais ressalta é quando elas estão em cima fazendo aquela gangorra, como um barco, numa cena bem característica do espetáculo. Elas só conseguem aquele movimento por causa do objeto. A cena existe por causa do objeto. Uma

das demandas do Ismael é que esse elemento pudesse ser multiuso e não tivesse um único significado. No teatro a gente pode fazer isso com um objeto comum. Você pega uma cadeira e começa a utilizá-la de outra maneira e logo o público está vendo outra coisa a partir do uso. A gente queria algo com uma forma mais indeterminada, que não existisse. Algo que fosse vazado e permitisse às atrizes entrarem e verem através. Uma hora poderia virar uma gangorra, uma mesa, outra hora uma pedra, uma escada, um barco, uma mochila, uma maca. Tantas coisas quanto pudéssemos imaginar. Era importante que as atrizes se apropriassem do objeto, que seus corpos tivessem familiaridade, que tivessem memorizado os movimentos, equilíbrio, porque aquilo é um troço pesado, de ferro e se elas não se dessem bem com aquilo, poderiam tropeçar, se machucar em cena. Tem que ter muito treino.

consigo tudo o que podem para o início de uma vida em outra terra. A variação das formas de transportá-lo muda a percepção do espectador sobre sua dimensão e peso. A maneira de o terem junto a seus corpos e os rápidos usos que fazem no trajeto vão sugerindo além do cansaço, uma longa distância e tempo percorridos. Em certo momento, ao modificarem a posição do objeto e a forma de usá-lo, como uma gangorra, ele serve como um meio de fuga, um barco. Ele serve funcionalmente para a sobrevivência, as afastando daquilo que fogem. A forma do objeto possibilita movimentos ritmados exigindo força, equilíbrio e cumplicidade em seu balanço, havendo o risco eminente de queda. Por meio dele, as personagens

expressam diferentes níveis de ansiedade. Na medida em que o sentimento de segurança é recuperado pelas personagens, elas parecem perceber sensivelmente em seus corpos a brincadeira e a poesia existente naquele movimento. O artefato deixa de atender apenas à necessidade funcional de fuga, e as personagens, pelo mesmo movimento, passam a experimentá-lo de maneira mais sensível e lúdica e encontram prazer, o que as afasta da angústia. Ao encerrarem este trajeto sobre o objeto-barco, as personagens não o levam mais consigo. Deixá-lo não é apenas abandonar um utensílio, mas perder parte de sua cultura, de seu lar, de sua identidade. Por isso expressam dificuldade em deixá-lo. 123


Atrizes Bruna Martins e Monique Rau em ensaio com protótipo de madeira e em cena.

Ismael: Você acha que o cenário, por si só, traz um efeito sobre o público independente do trabalho das atrizes, independente do trabalho das luzes e da música? Levi: Eu acho que sim. Eu acho que o cenário, por si, tem certo discurso. Ele ficou tão interessante, tão irregular e subjetivo, que a gente fica buscando uma leitura daquilo. Acredito que se tivessem cenas só com os objetos, com eles se movimentando e com diferentes posicionamentos, a gente também teria muitas possibilidades de leitura. Se você abre a cena, você cria uma sensação. Se você fecha, cria outra. Trazendo esses objetos pra frente do palco, causamos outra sensação no público. Tínhamos a ideia de deitar alguns deles. Acabamos não fazendo isso, porque se tornaram muito pesados e também delicados pra fazer esse movimento. Quando a gente tem um cenário que é mais subjetivo e que se movimenta, ele vai causando novidades e sensações diferentes ao longo da peça. Eu acredito que se não tivesse cenário, as atrizes fazendo todo aquele trabalho de corpo, que é o grande foco do espetáculo, já seria maravilhoso. Mas, com certeza, com esse cenário, o espetáculo ganhou outra força, outro lugar, a imagem ficou mais poderosa, mais forte, mais instigante de se assistir. Ismael: Por quê? No quê? Levi: Porque te transporta pra um lugar que não é comum, te transporta pra dentro da imaginação. Parece que o nosso cérebro está sempre tentando achar significados. Eu estou olhando os corpos se movimentarem, recebendo aquelas sensações, aquelas informações: se elas estão ofegantes, se elas estão calmas, se elas estão se empilhando ou não. Além disso, eu tenho outra camada que é a do cenário, que me transporta pra certa ambientação: aberto, fechado, trazendo uma sensação de tranquilidade, de calma ou de movimento. Aquilo complementa o que as atrizes estão fazendo com 124

Foto: Gustavo Garcia

e olhares

Foto: Ismael Scheffler

OCO memórias


Objeto em cena na caminhada em fuga.

Foto: Gustavo Garcia

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Foto: Daniel F. Patire

OCO memórias

Partir e levar consigo tudo o que se possa.

o corpo. E é bem interessante porque tem o elemento orgânico, o corpo, e o cenário é uma matéria inanimada, que complementa a percepção. São objetos grandes, aparentemente pesados, mas que se movimentam. Isso também gera certo temor de que possa desabar. Isso talvez cause no público uma insegurança, dúvida se está se mexendo ou caindo. Há uma sensação de que pode cair e de que deve ser muito pesado. Também pode gerar um suspiro ou travar a respiração. Os corpos das atrizes também sugerem este suspense o tempo todo, a coisa do equilíbrio, a cena da montanha no final, onde elas estão por um triz de cair. Essa queda eminente aparece na história que elas estão contando, mas também literalmente no corpo, porque elas estão totalmente concentradas em ajudar umas às outras pra que não caiam de fato. Na gangorra também vemos esse suspense, o trabalho das atrizes é gracioso, mas o corpo está o tempo todo em desequilíbrio. E esse desequilíbrio faz com que a gente fique em suspense. É um elemento do circo, esse suspense. Tem a ver com o desequilíbrio, tem a ver com essa suspensão dos corpos, dos objetos grandes. Até com

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os bonecos, se você for pensar, quando entram é sempre um suspense, sempre um desequilíbrio. O clã se equilibra, daí já vem outro desequilíbrio. Acredito que nesse ponto o cenário dialoga com o corpo. Daniel: E pra você o que é o OCO? Levi: Pra mim, o que é o OCO?... Difícil… Tem tanta coisa que eu absorvi durante o processo. Participei da criação, assisti aos ensaios... mas, depois, assistindo ao espetáculo com todos seus elementos, a gente vai tomando uma nova percepção. OCO é uma coisa que está faltando… Falta ser preenchida. É o OCO. É um vazio entre... Podendo ser o vazio da perda, que o espetáculo trata muito, o buraco que fica dentro da gente, quando roubam, quando tiram uma coisa que é nossa, seja um valor, um direito, uma pessoa amada, a vida. Esse é um OCO. Mas o OCO que mais me chama a atenção, ali, no espetáculo, é esse vazio que está entre uma mão e outra. No fim, de alguma maneira as mãos vão se unindo. Então, existe essa coisa de preencher esse vazio, de alcançar aquilo que está distante. Então, o OCO é a falta, mas ele dá uma sensação de que quer ser preenchido. É essa sensação que eu tenho. O OCO é um buraco que quer ser preenchido, é uma ausência que quer ser preenchida, é uma distância que quer ser alcançada. É uma falta de fala, mas que precisa vir, que pode vir. É essa sensação que eu tenho do OCO, sabe? Não é o vazio por si só, o vazio da não existência. É um vácuo. Ele precede o movimento, ele precede a ação, ele precede um preenchimento. É essa sensação que me dá. É uma provocação pra que a gente vá e preencha, pra que a gente vá e tome uma ação, pra que a gente vá e se posicione e se una, e olhe uns pros outros e veja que, apesar das diferenças, dos sofrimentos que cada um teve, que cada um passou, apesar dos ocos que temos cada um dentro de si, isso não é o fim. Isso pode ser um recomeço. Pode ser uma provocação pra acharmos uma resolução, preenchermos esse vazio, nos darmos conta daquilo que nos falta.


PARTE II

OLHARES DE QUEM VIU O projeto OCO envolveu outras ações além da produção e apresentação do espetáculo. Principiamos trazendo registros do desenvolvimento do cartaz elaborado pelos alunos Vinícius Baptista e Jenifer Rutzen, do curso de Tecnologia em Design Gráfico. Eles acompanharam ensaios e discussões e geraram duas propostas: uma, em que empregaram fotografias feitas com o elenco, em um estudo que considerou uma característica importante de OCO: as mãos; a outra, em que foi utilizado um desenho que envolve a expressão do movimento, feito por José Marconi Bezerra de Souza que, por fim, foi a versão escolhida para a divulgação da peça. Fotografias e desenhos foram temas de outras ações aqui também apresentados, com seleção de Ismael Scheffler. Os olhares de todas estas pessoas já foram incluídos na primeira parte do livro, mas aqui ganham uma atenção especial. Sob o olhar dos Desenhadores de Palco inclui um texto de José Marconi e desenhos de ensaios e apresentações de Marillyn Damazio, Isabel Cristina Ditzel e Alcindo de Paula; As mãos é um ensaio fotográfico feito por Guto Souza; O exercício técnico e sensível do olhar, com apresentação de Marcelo Abílio Públio, traz uma seleção específica de fotografias feitas por estudantes de Design; Uma composição de realidades na fotografia inclui um depoimento com fotos de Daniel Faria Patire. Além destes, esta seção também inclui o texto Devaneios telúricos: intimidade, resistência e maravilhamento, de Karina Souza, no qual seu olhar sobre OCO considera estudos de Gaston Bachelard e, por fim, Um OCO que preenche o meu vazio, uma carta de Luciana Martha Silveira na qual descreve sua experiência pessoal e reflexões a partir do seu olhar como espectadora.

Foto: Handreowyllyann Lopes

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Foto: Vinícius Baptista

Ensaio fotográfico de Vinícius Baptista em um ensaio da peça.

O cartaz de OCO que explora: na tipografia, o título palíndromo e a circularidade; no desenho de José Marconi, o movimento remetendo à cronofotografia. Projeto gráfico de Vinícius Baptista e Jenifer Rutzen.

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Alguns estudos preliminares para a arte gráfica do cartaz da peça feitos por Vinícius Baptista.


OLHARES DE QUEM VIU

17_SOB O OLHAR DE DESENHADORES DE PALCO José Marconi Bezerra de Souza

O

que seria um bom desenho de espetáculo? Como registrar a cenografia, o figurino, a iluminação cênica, a arquitetura teatral e o corpo em cena tudo-ao-mesmo-tempo-agora (título do sexto álbum da banda de rock Titãs, de 1991)? A busca de respostas práticas a esta pergunta é o objetivo do projeto de extensão da UTFPR Desenhadores de Palco, organizado por José Marconi, com consultoria de Ismael Scheffler. Este projeto foi um desdobramento de um anterior chamado Desenhadores de Rua. Na primeira versão, os desenhadores registraram o patrimônio arquitetônico de Curitiba, tendo publicado um livro em celebração ao centenário do Centro Cultural SESC Paço da Liberdade. Depois, atendendo ao convite de Celise Helena Niero (gerente executiva do Centro), formamos os Desenhadores de Palco para desenhar o Festival de Teatro de Curitiba, em 2017, com novas edições, em 2018 e 2019. Depois, o grupo teve três de seus participantes convidados para desenharem o espetáculo OCO: Alcindo de Paula, Isabel Cristina Ditzel e Maryllin Damázio.

graficamente a informação de uma realidade visual que está à nossa frente, mas que é demasiadamente complexa, fugaz, subjetiva e dinâmica. Durante uma das nossas oficinas preparatórias, em 2017, desenhamos uma improvisação de dança realizada pelas professoras e bailarinas Juliana Greca e Daniela Kuhn, da UTFPR. Esse exercício ajudou a identificar desafios que ocorreriam durante os espetáculos do Festival, em salas de espetáculo tradicionais. Tornou-se evidente a necessidade de usar materiais de desenho compatíveis com a posição rigidamente sentada em cadeiras de teatro ou o uso de tripés que permitiriam desenhar em pé com flexibilidade para mover-se na busca pelo melhor ângulo durante a peça, se fosse possível. O uso de iluminação cênica durante a improvisação também permitiu que os desenhistas identificassem oportunidades de síntese gráfica como, por exemplo, a possibilidade de desenhar a sombra projetada do dançarino ou uma silhueta, ao invés do dançarino em si.

QUEM SÃO OS DESENHADORES DE PALCO

As inspirações históricas mais distantes vêm dos artistas impressionistas franceses Henri de ToulouseLautrec (1864-1901) e Edgar Degas (1834-1917). O primeiro se dedicou aos espetáculos circenses, shows de cabaré e às sensuais coreografias do Moulin Rouge. Degas, por sua vez, se dedicou ao ballet em ensaios, cenas íntimas de bastidores, figurinos e no exuberante contexto cenográfico. Toulouse-Lautrec aparentemente não se apoiou em registros fotográficos para fazer seus croquis, enquanto Degas utilizou fotografias de modo mais sistemático.

O nosso grupo é composto por pessoas de diversas profissões (jornalistas, engenheiros, designers, professores, arquitetos, etc.) com habilidade técnicaartística em formação, sendo mais habituados a desenhar temas estáticos. Os desenhadores aprendem a desenhar fazendo registros gráficos, observando, estudando e refletindo individualmente e em grupo sobre sua produção. Como projeto de extensão, buscamos repostas sobre como podemos contribuir para a instrumentalização do olhar, capacitando os desenhadores a filtrar e sintetizar

INSPIRAÇÕES 1 – TOULOUSE-LAUTREC E DEGAS

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OCO memórias

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Nosso grupo se aproxima da abordagem de ToulouseLautrec, pois nossos desenhos advêm da observação direta, ou seja, são croquis de execução rápida, sem nenhum apoio de fotografias. Assim como ToulouseLautrec e Degas, nossa atividade supõe que o desenhador se posicione dentro do ambiente teatral - seja na rua, nos bastidores ou em teatros fechados e escuros. São situações que obrigam o desenhador a sair da zona de conforto do ateliê onde, tradicionalmente, se trabalha com poses estáticas, com nenhuma ou pouca interação com os modelos. Toulouse-Lautrec e Degas demonstram que o desenho de ações dinâmicas exige que o desenhador seja capaz de identificar subjetivamente os momentos que lhe parecem mais significativos para representar, de modo metonímico, o movimento como um todo.

INSPIRAÇÕES 2 – CRONOFOTOGRAFIA DE MUYBRIDGE E MAREY Além das artes plásticas, a cronofotografia de Eadweard Muybridge (1830-1904) e Étienne-Jules Marey (1830-1904) inspiram e informam os desenhadores. Muybridge e Marey ensinam como o movimento pode ser dividido em micro fragmentos temporais e como estes podem ser dispostos no papel. Muybridge dispôs múltiplos registros em sequência linear numa única prancha (Mulher Dançando, prancha 187, 1887), enquanto Marey fez uso da sobreposição (Salto com Vara, 1890). Aprendemos que a composição dos desenhos tem um efeito muito importante no reconhecimento de propriedades gerais do movimento como deslocamento, trajetória, direção, velocidade, aceleração e força.

ASPECTOS DESAFIADORES PARA O DESENHADOR DE ESPETÁCULO Desenhar um espetáculo ao vivo traz desafios instigantes. Exige da memória, pois o movimento fugidio, por vezes, rapidamente se dissipa diante do olhar. Por isso, a observação atenta é fundamental. Assistir ao espetáculo

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mais de uma vez permite perceber momentos mais significativos e retornar às imagens cênicas. O desenho de espetáculos também parece se beneficiar de esquemas memorizados de simplificação da anatomia e proporções humanas, pois se ganha mais rapidez no registro dos corpos em cena com a ajuda de pontos de ancoragem visual, como articulações dos membros, curvaturas da coluna e direção do olhar do ator. Algumas técnicas e materiais de desenho parecem ser mais adequados tanto pelas condições de espaço, quanto de tempo e de luminosidade. A escuridão do ambiente teatral necessita da adaptação do sistema ótico da visão humana à baixa luminosidade, sendo este sempre um grande desafio. Desenhos feitos em técnicas de alto contraste em preto e branco se tornam mais facilmente reconhecíveis no papel do desenhador durante o espetáculo, assim como o “desenho cego” sem olhar para o papel (que permite um traçado fluído) permite mais rapidez e expressão de dinamismo pela maior fluidez gráfica e, por conseguinte, evocando o movimento de maneira mais intensa. Mas não há regras. Embora o desafio seja o do desenho ao vivo, para alguns participantes a finalização dos croquis em casa, após o espetáculo, parece atender ao desejo de um acabamento mais preciso, seguindo para além do rápido exercício presencial. O desenho de espetáculos supõe a interação com os artistas da cena, pois estes se sentem reconhecidos e até homenageados com esse tipo trabalho. Através desse diálogo de influências mútuas, o desenhador também se torna parte da trupe, assim como ocorreu ao trabalharmos com a equipe do OCO. Na página seguinte: Pintura de José Marconi em técnica mista (aquarela e lápis de cor) a partir de frames de filmagem. Inspirado nas composições de Marey onde camadas de imagens transparentes se sobrepõem. Ambas, pinceladas e cena, tem caráter expressionista e foi a oportunidade de compor uma imagem mais artística, em contraste às desenvolvidas para, ao longo desse livro, demonstrar tecnicamente os movimentos do OCO.


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esenhar os bastidores da peça OCO e, posteriormente, o espetáculo foi uma experiência singular. Faço parte do grupo Desenhadores de Palco há alguns anos e já desenhei algumas apresentações teatrais, porém, foi a primeira vez que pude acompanhar o processo desde os ensaios até a apresentação. Estar presente durante as reuniões do grupo e entender de onde nasceu cada gesto, movimento e intenção passados no palco abriu uma nova perspectiva de registro gráfico. Como desenhadora, tive a possibilidade de registrar o trabalho de corpo e coreografia dos gestos das atrizes, assim como enveredar pela ludicidade dos bonecos animados que entravam em momentos-chave. O fato das atrizes manipularem e serem ‘manipuladas’ pelos bonecos me inspirou a criar desenhos em que essa duplicidade estivesse presente. Registrar sentimentos intensos como a perda de um bebê e o choque de diferentes tipos de violência apresentados somente por gestos no palco foi desafiador, mas também o fio condutor da minha visão artística de registro gráfico de OCO. Busquei dar a dimensão de crescimento da força e coragem da personagem principal ao longo da peça empoderando a sua figura conforme a trama seguia em paralelo ao aumento do perigo que cada criatura que entrava em cena representava. Ver o nascimento do universo de OCO e poder transpor essas formas e gestual para o papel foi absolutamente inspirador. Mais do que linhas e cores os desenhos carregam os sentimentos que a peça suscitou em mim de uma forma bem particular.

Marillyn Damazio 132

Marillyn Damazio é formada em Comunicação Social Publicidade e Propaganda e trabalha com produção de conteúdo para internet.


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urante a participação nos ensaios de OCO, com vistas à produção de desenhos, procurei sentir a peça na medida em que uma profusão de expressões corporais se sucedia. O critério de seleção das cenas ilustradas foi intuitivo, unicamente emocional, marcado pela beleza do conjunto que o grupo construía em cena ou por aqueles efeitos dramáticos provocados pelas luzes e sombras e até mesmo pelas palavras não ditas que dialogavam comigo, enquanto espectadora. Diferentes percepções conduziram cada ilustração. Às vezes, a interpretação da cena, noutras, o gesto e a expressão corporal e ainda o cenário, a iluminação e o figurino. Os trabalhos foram todos realizados em papel 100% algodão, 30 cm x 40 cm, com técnica mista. Os esboços foram executados durante os ensaios e coloridos, posteriormente, em casa, comaquarela e nanquim. A repetição das coreografias me favoreceu na compreensão do roteiro e no consequente processo criativo. Acrescentei linhas livres, ora usando o pincel, ora a caneta nanquim, cujo foco foi enfatizar atenção sobre o gesto e sobre o corpo em movimento. Foi uma experiência única vivenciar os bastidores dos ensaios e perceber os vários elementos que compõem a produção de uma peça teatral. Destaco a resistência física das atrizes e agradeço às surpreendentes imagens apresentadas pelo grupo durante o processo criativo de OCO.

Isabel Cristina Ditzel 134

Isabel Cristina Ditzel é formada em Tecnologia e Gestão de Negócios e em diversos cursos de desenho e pintura.


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uando recebi o convite para desenhar OCO, eu nada sabia sobre a peça, apenas o nome. Durante as sessões, era um misto de encanto e curiosidade. Ao mesmo tempo em que buscava a beleza plástica da coreografia, tentava compreender a trama. A fase de ensaios é como um quebra-cabeça. Nada está pronto, são várias partes sendo construídas ao mesmo tempo. É um processo intenso que vai se revelando aos poucos. Cada novo dia, um novo gesto, um novo signo, algo que tinha passado despercebido vindo à tona. Ter acesso ao ensaio de uma peça é uma experiência bastante interessante. Ali você tem uma liberdade que não encontra numa apresentação. Pode se locomover buscando o melhor ângulo, desenhar atrás do palco, em cima do palco. Os atores não estão maquiados, nem vestidos com o figurino. É bacana chegar perto e ver a expressão facial de cada um. Um movimento que aos olhos do público parece suave pode demandar um grande esforço físico do artista. E isso só ali é possível de captar. A respiração, o ritmo, até o aquecimento antes do ensaio é um bom motivo para desenhos. Para desenhar OCO escolhi como técnica o giz pastel seco. Uma técnica nova em que não possuía nenhuma habilidade. Acertando, errando, compreendendo como o material se comporta. Como os atores estariam em constante movimento, o pastel poderia dar um traço rápido, definir um movimento com poucos riscos. O enredo para mim era um mistério; e continuou sendo até o dia da estreia, com aquele grito visceral!

Alcindo de Paula 136

Alcindo de Paula é Formado em Comunicação Social Jornalismo, é jornalista, fotógrafo, desenhista e ilustrador.


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Atrizes em aquecimento no palco nos ensaios finais já com o cenário.

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Foto: Guto Souza

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18_AS MÃOS:

ENSAIO FOTOGRÁFICO DE GUTO SOUZA

Guto Souza

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a fotografia, buscamos sempre o foco nos olhos. São eles que conduzem a expressividade do retrato. Em OCO, no entanto, as personagens principais não possuem olhos que nos olhem. Tampouco bocas que nos falem. Sem o olhar e sem a palavra, as personagens encontram a comunicação através de seus corpos. E então as mãos hábeis que seguram, apontam, acariciam, ferem... são elas que passam a nos guiar. Elas tomam o lugar dos olhos e tornam-se protagonistas. Levados pelas mãos, os braços, as pernas, os troncos, as cabeças caminham. Saltam. Caem. Levantam-se. Interagem com luzes, músicas e objetos e nos contam suas histórias. Trazem questionamentos atuais e necessários. Não quero, porém, resumir OCO à sua estética. Como toda (boa) obra de arte, a peça nos permite interpretações abstratas. Quem é, por exemplo, o monstro de muitos olhos que nos assombra ao fim do espetáculo? No Brasil de 2019, tantas podem ser as respostas: o Estado; ou as redes sociais; ou o outro que me vê e me julga; ou eu, que me vejo e me questiono. Podem inclusive ser as onipresentes câmeras fotográficas, que nos cercam e nos expõem o tempo todo, em todo lugar. Mas, para os sensitivos, OCO apresenta ao menos uma resposta definitiva: nesses tempos difíceis, em que as instituições são monstros, ninguém pode soltar a mão de ninguém. Talvez venha daí a importância de protagonizar as mãos. A mim, o espetáculo fascinou desde a primeira cena. Como fotógrafo foi natural o desejo de me opor à efemeridade da obra teatral, e de congelar no tempo as

Foto: Daniel F. Patire

Guto Souza no ensaio fotográfico com o elenco.

imagens de OCO. Conversei com Ismael e no dia seguinte, antes da próxima apresentação, já estávamos em cima do palco em um ensaio fotográfico buscando as narrativas das mãos que traduzem as músicas e os sentimentos do espetáculo. Particularmente, assistir a OCO e fotografá-lo também me traz nostalgia. Há quinze anos atrás era eu quem estava ali, nesse mesmo palco, me apresentando com esse mesmo grupo de teatro, o TUT, em Chufone, em 2006, uma criação coletiva, e em Bodas de Sangue, em 2007, texto de Federico García Lorca, ambos com direção de Ismael. Foi em espetáculos do TUT que fiz alguns dos meus primeiros “cliques”, ainda em câmera analógica. Voltar como espectador, e ainda ter a oportunidade de fotografar OCO, foi um privilégio.

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Foto: Guto Souza

Foto: Guto Souza

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Foto: Guto Souza

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Fotos: Guto Souza

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Foto: Guto Souza

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Foto: Guto Souza

Foto: Guto Souza

Foto: Guto Souza

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Fotos: Otavio Henrique de Almeida Langner

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19_O EXERCÍCIO TÉCNICO E SENSÍVEL DO OLHAR

Marcelo Abílio Públio

Nos dias atuais, nossos olhos estão cada vez mais acostumados à linguagem fotográfica, entretanto, a técnica e a arte são gradualmente apagadas pelo modo automático. Viramos uma sociedade em que robôs fazem fotos e nós apenas apertamos o botão. Para aprender fotografia nesse universo, é preciso desconstruir todo conhecimento para criar um novo, longe do modo automático. Para isso, é preciso inicialmente aprender a errar a foto, antes de acertar. Gradativamente, o estudante vai se acostumando com o aparelho e com os resultados do ajuste de cada parâmetro. Nesse sentido, fotografar o espetáculo OCO foi uma experiência única aos estudantes de fotografia que participaram da disciplina ministrada por mim, no segundo semestre de 2019, no curso de Design da UTFPR. Eles tinham toda liberdade para errar e experimentar o aparelho em todas as suas dimensões. A peça OCO proporcionou um verdadeiro espetáculo de luz, cores e movimentos. Os estudantes se viram obrigados a se adaptar rapidamente ao equipamento. Produziram fotos incríveis e únicas. Na semana seguinte a de terem fotografado OCO, nos reunimos para discutir sobre a experiência e sobre as fotos. Percebi que em poucas horas de apresentação aprendemos muito sobre fotografia, sobre espetáculo, sobre imagem, movimento, luz, obturador, lentes, teatro, sensibilidade, força, leveza, composição, temperatura da cor, entre muitas outras coisas. Pedagogicamente, o aprendizado foi inenarrável, basta ver algumas fotos dos

estudantes para perceber o quanto eles aprenderam, cada foto é única e revela a sensibilidade dos olhares que se aprimoraram tecnicamente com essa experiência. A seleção de fotos a seguir foi feita por Ismael Scheffler, e inclui o olhar dos alunos: Alexander Costa da Rosa, Ana Luiza Pilatti, Camila Martins de Jesus Aguiar, Handreowyllyann Leonn Brasil Pereira Lopes, Lais Poloni Carvalho, Naomi Alves Szajnbrum, Otavio Henrique de Almeida Langner. Foto: Alexander Costa da Rosa

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Foto: Handreowyllyann Lopes

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Foto página ao lado: Ana Luiza Pilatti


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Foto: Camila Martins de Jesus Aguiar

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OLHARES DE QUEM VIU Foto: Handreowyllyann Lopes

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Foto: Lais Poloni Carvalho

Foto: Naomi Alves Szajnbrum

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Foto: Alexander Costa da Rosa

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Foto: Camila Martins de Jesus Aguiar

Foto: Otavio Henrique de Almeida Langner

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20_UMA COMPOSIÇÃO DE REALIDADES NA FOTOGRAFIA

Daniel Faria Patire

A

exibição de OCO, durante o mês de novembro de 2019, foi o ápice de um projeto que se iniciara nos primeiros meses daquele ano. Os aplausos repetidos da plateia, o anfiteatro da UTFPR cheio, elogios entusiasmados e os posts no Instagram, podem ser compreendidos como resultados desse longo processo – um roteiro à parte da história deste espetáculo do TUT. E eu pude ser um espectador privilegiado do desenrolar dessa narrativa, através das lentes da câmera – hora fotográfica, hora de filmagem – desde o início dos ensaios até o desmonte do cenário após a última apresentação, em 24 de novembro. Ao longo de sete meses, registrei e acompanhei a formação de um elenco, a partir do encontro de artistas circenses, ginastas, atrizes; o nascimento do enredo; o surgimento das coreografias, gestos; a composição volumétrica, como também de luz e de sombra do cenário; a aparição dos bonecos; o dedilhar das primeiras notas na sanfona que iria determinar a sequência musical. Foi uma experiência única na minha carreira de fotógrafo teatral. Na grande maioria das vezes, fiz registros da peça em meio ao público, descobrindo e percebendo para onde apontar as lentes entre as reações de surpresa, arrebatamento, temor e tantas outras paixões. Outras tantas vezes, fotografei os últimos ensaios ou o ensaio geral, que dá uma maior liberdade de circulação e sem o “peso” de estar atrapalhando a experiência do espectador com os cliques dos disparos. Mas, ainda assim, é sempre um momento de tensão em que é preciso entender a

movimentação no palco, o plano de iluminação e ainda clicar no ângulo correto, para que o momento exato não seja perdido. Na montagem dirigida pelo professor Ismael Scheffler, estive junto no desenrolar de um gesto, de uma cena, do primeiro encontro entre a coreografia, elementos do cenário, os spots e o vibrar das caixas de som. E nem por isso foi menos desafiador, pois houve o envolvimento emocional com o todo que preenche OCO. Uma dificuldade enfrentada foi o instante de decidir o que deveria ser filmado e o momento de fotografar. Apesar de usar o mesmo equipamento, uma câmera Canon 7D, cada ação implicou em uma linguagem distinta, produtos e finalidades também diferentes. Iria eu congelar aquele 1/80 de segundo ou alimentaria o cartão de memória com uma sequência de imagens? Em tantos encontros ou apresentações, priorizei o material que iria compor o documentário ou uma edição expandida do espetáculo. No entanto, o meu eu-fotógrafo se sentiu desprestigiado, preciso confessar. Mas paro por aqui o gênero memorialista, com pintadas confessionais. Como irá perceber ao longo do texto, caro leitor, este não é um artigo científico, ou uma análise técnica da fotografia, nem mesmo um diário de campo. Dei-me a liberdade de construir uma composição de elementos textuais, assim como OCO o fez com o teatro, o circo, a ginástica, o design, a música e tantas outras referências das artes plásticas. A mistura permitiu ao espetáculo propor novas formas, dialogar não só com as sensações, 155


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sentimentos e a razão do plano consciente, como também trazer as lembranças de uma memória coletiva da humanidade, com o inconsciente coletivo (JUNG, 2006), possibilitando um profundo reconhecimento do público com as personagens, mesmo que elas não tivessem nomes ou mesmo rostos. Minha pretensão, ao amalgamar os gêneros, é bem mais modesta. É apenas rabiscar essa essência em palavras e propor um diálogo com você.

O ESPETÁCULO E A FOTOGRAFIA – UMA APROXIMAÇÃO Até chegar neste capítulo, caro leitor, você já percorreu a criação da peça, a formação do elenco, planejamento da luz, do cenário, o processo de composição da trilha sonora, a confecção do figurino; tantos elementos daquele acontecimento, dado naquele momento, naquele palco, a nos oferecer uma síntese de todas essas narrativas. Contudo, o espetáculo é em si um momento único para aqueles sentados nas poltronas vermelhas. Enquanto espectador, o ato principia e se encerra com o abrir e fechar das cortinas. Deste modo, OCO traz em si duas realidades distintas, por assim dizer. Em uma, tem-se o espetáculo enquanto resultado de um trabalho intencional do conjunto de pessoas que o formam, por exemplo, o desenvolvimento das atrizes para as cenas, a direção, etc. E sua segunda realidade se dá no exato momento de sua apresentação, em que a representação se torna um momento real para aquele que a assiste. Para se fazer uma “leitura” ou uma interpretação do espetáculo ou de uma cena, deve-se “ler” os elementos, com a descrição das cores, onde incide a luz, quais desenhos são produzidos pelas sombras e elementos cenográficos, a movimentação no palco, a tonalidade e volume das músicas, quais palavras são ditas (se elas existirem). Perceba que são duas faces distintas. Podemos nos esforçar a vê-las de maneira complementar ou isoladas em si. Com a fotografia, tem-se algo similar. O semiólogo 156

Foto: Daniel F. Patire

francês Roland Barthes descreve o paradoxo fotográfico, em que se dá a coexistência de duas mensagens (Barthes, 1990). Na primeira, a fotografia aponta uma aparente objetividade, uma reprodução do real. Já a outra, carrega em si os códigos, a linguagem, as intenções do fotógrafo, a partir dos ângulos escolhidos, etc. Assim, ao se ver uma imagem fotográfica não se enxerga a realidade como ela é, e sim uma realidade construída, mediada. Espero que esse breve mergulho em Semiótica não tenha causado confusões. Mas ele foi necessário. Daqui em diante, as fotografias contarão suas histórias. Em cada imagem, vou apresentar a primeira mensagem, ou seja, seu aspecto de reprodução do real, somadas à primeira realidade do espetáculo, que envolve sua construção histórica. Por sua vez, os elementos da segunda mensagem fotográfica serão apresentados e somados no decorrer do texto.

O PRIMEIRO GESTO No ensaio de 27 de maio, as atrizes Bruna Martins e Natália Winter seguem as orientações de Scheffler. Ainda sem uma ideia definida para as personagens, os gestos e os sentimentos que deveriam prevalecer na cena começam a ser desenhados. Cuidado, reconhecimento de si e do outro, atenção, foram pronunciadas pelo diretor. Assim, de joelhos, fotografei a cena, em ângulo frontal,


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com a intenção de colocar quem olha a imagem ao mesmo nível dos olhos das atrizes, com o propósito de gerar empatia, e provocando a sensação das palavras ditas. Naquele momento, registrei a primeira movimentação que entraria em uma das cenas do espetáculo. Mas o que você vê ao lado, não é a imagem original. Para dar maior destaque ao gesto, manipulei a foto para retirar-lhe as cores, deixando apenas o vermelho do símbolo do grupo de teatro. Daquele ensaio até o momento da foto abaixo, passaram-se 5 meses. Feita no dia da estreia de OCO no palco do Anfiteatro da UTFPR, dia 31 de outubro, a imagem abaixo mostra o desenvolvimento do primeiro gesto de reconhecimento de si, para o reconhecimento do outro. As mesmas atrizes, agora com o figurino do espetáculo, repetem o ato tantas vezes treinado. Bruna e Natália estão no primeiro plano da imagem. Elas atraem nosso olhar em um primeiro momento. Mas a mão aberta de Maria Cecília sobre as costas de Monique Rau puxa os olhos rapidamente. O abraço das duas figuras é um outro elemento com bastante volume na fotografia. Foto: Daniel F. Patire

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Na narrativa de OCO, a cena registrada é posterior ao aparecimento do primeiro monstro. Em um jogo de empurrões, equilíbrio e desequilíbrio, ele engole o bebê, que estava sob os cuidados das quatro figuras. A luz vermelha domina o palco e banha as atrizes. Os cantos e o fundo ficam mais escuros. Para manter o destaque sugerido pela iluminação, fotografei em plano fechado. As duas duplas preenchem quase que por completo o quadro. Mas, diferente da primeira imagem, o ângulo fotografado é oblíquo, de forma a ampliar um pouco mais o espaço e propor uma profundidade com os elementos cênicos em planos distintos. Ah! Uma ressalva importante. Esta foto foi feita durante o ensaio geral, momentos antes da estreia, o que me permitiu estar no palco e estar próximo da cena. Mesmo assim, você percebe que ela está granulada, como se ainda tirada em um filme fotográfico antigo. Este efeito na foto é consequência da minha escolha. A iluminação, neste momento, era baixa. Para não “borrar” a imagem (sabe quando o gesto vai deixando suas marcas na fotografia?), optei por trabalhar com um ISO mais alto, ou seja, a sensibilidade à luz é maior; no entanto, temos a granulação. São escolhas.

LUZ E SOMBRAS No decorrer deste texto, fomos descortinando a segunda mensagem da fotografia, desvelando as intenções, escolhas, como também muitos acasos ou condições que permitiram a construção das imagens apresentadas. Entre essas condições, como destaquei anteriormente, está o próprio momento em que o fotógrafo se faz presente e isso determinará profundamente suas escolhas. Como você pode notar com a seleção da terceira imagem, tenho uma preferência pelas fotografias captadas nos ensaios. Na imagem da próxima página, Cecília, Monique e Natália são a base instável de Bruna. Elas formam o volume principal da fotografia, feita em plano médio. O ângulo escolhido foi o vertical – de baixo para cima, que

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dá uma sensação de uma cena vertical, mesmo em uma construção horizontal. Elas aparecem em primeiro plano. Uma estrutura ao fundo auxilia no direcionamento dos olhos neste movimento de ascensão, dando suporte ao primeiro plano. O foco de luz e o foco da fotografia possibilitam a definição da figura estruturada pelos corpos das atrizes, dando contornos e limites. Os outros elementos cênicos parecem borrados. Nesta composição entre luz e sombra, foco e desfoque, primeiro plano e segundo plano, em uma perspectiva chamada de contra-plongée, pretende-se criar uma ideia de sonho, no caso um pesadelo, em que a sombra do monstro se torna maior e mais assustadora. A intenção é permitir um diálogo entre a fotografia e a imagem do quadro O Grito, do pintor norueguês Edvard Munch, já inscrita na memória coletiva. A pintura de 1893 é um ícone do movimento artístico chamado de Expressionismo. Mas repare bem no canto direito da fotografia. Viu? Há um braço em movimento, como a silhueta não definida de um homem. Este é o diretor da peça. Aqui, exemplificamos o acaso ou a não intenção. O que para muitos poderia ser um problema, ou mesmo cortado na edição, acredito que sua presença permite o desvelar desse jogo de significações, trazendo mais um elemento da presença do real, do momento registrado. Cliquei essa cena no dia 28 de outubro. Voltando a Barthes, destaco: [...] na fotografia, a mensagem denotada, sendo absolutamente analógica, isto é, privada de todo recurso a um código, quer dizer ainda: contínua, não há lugar para procurar as unidades significantes da primeira mensagem; ao contrário, a mensagem conotada comporta bem um plano de expressão e um de conteúdo, significantes, significados: obriga, portanto, a um verdadeiro deciframento. (Barthes, 1990, p. 15)

A imagem técnica captada pela caixa preta (Flusser, 2002) é ambígua e pode ser traiçoeira, caso seja interpretada apenas como uma representação do real. Ela


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Foto: Daniel F. Patire

é uma realidade mediada, ou seja, uma visão de alguém sobre algo do mundo real (aqui desconsideramos as manipulações em fotografias). Ela traz índices de um momento, frações de segundos congelados de um ato, registrado por alguém – o fotógrafo –, influenciado pelo seu conhecimento de mundo, suas perspectivas ideológicas, e dentro de certas condições técnicas. Para interpretar a segunda mensagem da fotografia é preciso prestar atenção em diversos elementos, como o plano fotografado, que pode ser aberto, médio ou fechado; o ângulo – frontal, vertical, oblíquo (Câmara, 2010), como também o foco da imagem. Encerro o texto, não com uma conclusão, mas com um convite: leia as imagens espalhadas no corpo desta obra. Assim como os diferentes textos, as fotografias contarão diferentes pontos de vista sobre OCO.

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Foto: Daniel F. Patire

Aquecimento das atrizes antes da apresentação, em que elas estão nas sombras. O foco de luz e centro da imagem é o espaço vazio do palco.

Foto: Daniel F. Patire

Segundos antes das cortinas se abrirem: atrizes prontas no palco na expectativa do início. Agora elas ocupam o centro da imagem, o foco da iluminação, para se tornarem “visíveis” aos olhos do espectador.


Foto: Daniel F. Patire

Foto: Daniel F. Patire

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A apanhadora de luz. A imagem construída em ângulo oblíquo, plano médio, coloca a personagem de Bruna no primeiro plano à esquerda, destacando o caminho sugerido pela iluminação da cena. No segundo plano, o objeto cênico “auxilia” no caminho da luz para as mãos.

As personagens parecem olhar para o boneco, como também os braços e as mãos reforçam esse trajeto para o nosso olhar. Os vetores da imagem conduzem para centralizar o boneco, mesmo que esse não ocupe o centro geométrico do quadro.

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Foto: Daniel F. Patire

Sisífo. A fotografia feita em plano médio trabalha com os planos. No primeiro, a personagem carrega o peso do objeto cênico; enquanto no segundo, as personagens em fuga parecem menores. O ângulo oblíquo permite profundidades e diferentes “tamanhos” para destacar o tema central da imagem. Outro ponto importante, é a marcas da movimentação das atrizes, com partes dos corpos desfocados, registrados em diferentes posições pelo tempo de exposição da câmera.

Antes do grito. A fotografia em plano aberto, como esta, sugere um “análogo perfeito” com a cena representada. Contudo, o ângulo oblíquo reforça o tamanho pequeno da primeira personagem, mesmo que em primeiro plano, das outras figuras, sobretudo, a do monstro que ocupa quase todo o plano de fundo.

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21_DEVANEIOS TELÚRICOS: INTIMIDADE, RESISTÊNCIA E MARAVILHAMENTO

Karina Pereira de Figueiredo Souza

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onvidada pelo diretor Ismael Scheffler para assumir a assistência de direção e colaborar na preparação corporal, participei da construção da poética de OCO. Meu contato com o Ismael se iniciou na especialização de Artes Híbridas da UTFPR quando fui orientada por ele no trabalho de conclusão de curso, além de participar como atriz de um espetáculo gestual de rua chamado Esperança, no qual foi diretor. Assim, por meio de minha trajetória artística, voltada para a dançateatro, e acadêmica, em que usei como referencial teórico da minha pesquisa de mestrado o pensador Gaston Bachelard, vi a oportunidade de compartilhar e ajudar a criar a poética do espetáculo OCO. O espetáculo começou sem título, sem narrativa, apenas uma ideia inicial: contar a história de uma viagem. Para a construção da encenação, durante dois meses, o elenco vivenciou experiências acrobáticas diversas, desenvolveu trabalhos de consciência corporal, teatro gestual, reconhecimento, confiança e intimidade com o corpo do outro. Assim, células de movimentos foram criadas e, aos poucos, tomando forma e criando uma narrativa, para posteriormente realizar a tarefa de colagem de cenas. Aos poucos, outras artes chegavam e se agregavam à construção desta viagem, como a música, bonecos, figurinos, cenário e iluminação. A cada ensaio chegava um objeto novo, com o qual as atrizes em pouco tempo tinham que criar uma intimidade para entrelaçar com as

ações que já haviam construído, precisando trabalhar o pertencimento deste novo objeto. Com o tempo, o elenco e todos os componentes das cenas se reconheciam e se afetavam ao relacionar-se. Partindo dos estudos sobre a teoria de Gaston Bachelard, que realizei em minha pesquisa de mestrado (Souza, 2019), escolhi o elemento terra para desenvolver uma leitura de algumas cenas poéticas do espetáculo OCO - um espetáculo sem palavras, gestual, provocador de imersões sensoriais. Gaston Bachelard trouxe os elementos água, terra, fogo e ar para instigar poéticas metafóricas que despertassem imagens com base na realidade da natureza. Para o filósofo, a imaginação é realizada no ato de formar as imagens trazidas por nossa percepção do momento. Bachelard analisou características dos elementos da natureza e as utilizou como norte para sua reflexão. Identificou na terra a intimidade, a resistência e o maravilhamento como fio condutor para seus devaneios telúricos, ou seja, as imagens que se apresentam a priori como dadas na realidade presente despertam características de imagens ausentes que estão no imaginário do espectador. O espetáculo OCO, que é um espetáculo visual, oportuniza que cada espectador visualize nas imagens manifestadas aspectos que despertam em seu imaginário a possibilidade de criar a sua própria narrativa, como por exemplo um objeto de ferro em formato de arco que, ao ser utilizado pelas atrizes

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em movimento de pêndulo, lembra a imagem do balanço de um barco em alto mar.

INTIMIDADE Ao trazer a intimidade para a reflexão sobre o elemento terra, Bachelard aprofunda seu pensamento na matéria terrestre comparando-o com o tempo vagaroso. Diz que para que a imaginação terrestre viva neste tempo mais lento é preciso enterrar-se cada vez mais nesta observação minuciosa, profunda sobre a terra. Por meio desta relação de intimidade que vai sendo construída ao enterrar-se, no sentido de cavar a terra em ritmo lento para refletir sobre todos os níveis de ação, é possível despertar o imaginário nas profundezas telúricas. Segundo Bachelard (2013), a lei temporal da matéria terrestre é viver lentamente e envelhecer suavemente um tempo enterrado, um tempo de intimidade, que guarda o seu passado. É possível identificar no espetáculo OCO uma característica de intimidade terrestre na cena em que o grupo, que podemos chamar aqui de clã, vai se alimentar, pois primeiro um oferece o alimento para o outro e depois é que se alimentam. Este ato sugere uma reflexão que alimentar o outro também é cuidar de si. Essa relação do imaginário material que se come, que se bebe e a

Foto: Daniel F. Patire

Foto 1

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intimidade de se oferecer ao outro como um suporte que media a matéria com o íntimo revela uma ação de intimidade proveniente de uma matéria dura que se pega com as mãos, assim como a terra (Foto 1). Assim, para refletir sobre essa intimidade do indivíduo com o objeto imaginário, no caso as mãos tornando-se alimento e bebida, e a intimidade para com o outro, existe também um tempo suspenso, vagaroso nesta cena, para que os integrantes do clã possam pegar a comida, se deslocar, alimentar o outro e alimentar-se, este tempo é o tempo da intimidade telúrica, o tempo de experimentar cada ação intimamente sem imediatismo. Sobre essa ideia de aprofundar na imagem material com intimidade Bachelard (2013, p.26) diz que: a imagem material é uma superação do ser imediato, um aprofundamento do ser superficial. E esse aprofundamento abre uma dupla perspectiva: para a intimidade do sujeito atuante e no interior substancial do objeto inerte encontrado pela percepção. Então, no trabalho da matéria, inverte essa dupla perspectiva; as intimidades do sujeito e do objeto se trocam entre si; nasce assim na alma do trabalhador um ritmo salutar de introversão e extroversão.

Essa troca de intimidades acontece não somente com as comidas representadas por gestos, mas com os outros sujeitos da cena, pois ao perder o primeiro integrante do clã é possível localizar a dor profunda e a intimidade de viver lentamente e de dividir a dor com o outro. Para Bachelard (1978), todos os espaços de intimidade se caracterizam por uma atração e no espetáculo a cena em que acontece o gesto de limpar as lágrimas do outro que te ampara representa a integralidade do sentimento do grupo e expansão deste espaço da intimidade (Foto p. 159). Segundo Bachelard (2013), a imaginação terrestre vive este tempo enterrado, ou seja, ao se deparar nesse tempo lento de enterramento é possível viver a intimidade. No entanto, no espetáculo OCO podemos identificar dois momentos desse enterrar sobre a intimidade. O primeiro


Foto: Guto Souza

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momento acontece após perder o segundo membro do clã, depois de sentir a dor da perda representada pela fraqueza nos corpos e na respiração profunda. Após enterrar-se nessa dor por meio da expiração acontece um impulsionamento da ação dos integrantes de darem as mãos, o que resulta no fortalecimento dos músculos para continuar a caminhada (Foto 2). O segundo, quando a personagem principal se vê sozinha em sua viagem, num profundo momento de isolamento, em que a dor do vazio habita em seu corpo e respiração (Foto 3).

RESISTÊNCIA É a partir da intimidade que podemos localizar outra característica que Bachelard cita sobre a terra: a resistência. Para Bachelard, a primeira ação poética da terra é a resistência, em que utiliza a metáfora da imagem de matérias duras para designar o agir por meio da resistência. Assim, o filósofo ao observar a terra utilizase de palavras que possibilitam imaginar a resistência como os músculos do corpo humano, o esfolamento do imaginário elementar. Essas palavras aproximam a poética do imaginário terra quando Bachelard (2013) reflete que as matérias de característica duras representam a resistência

Foto: Guto Souza

Foto 2

Foto 3

ao alcance das mãos e que para a imaginação funcionar é necessário esfolar essa resistência, essa matéria associada à vida muscular. Para destacar essa característica de terra dura pensada por Bachelard, aponto uma cena no espetáculo OCO em que os corpos das atrizes se transformam em uma montanha na paisagem. Assim, se inicia um momento do espetáculo em que a única pessoa que sobrou de todo o clã passa mais de três minutos fora do chão, a imagem que remete é a de uma escalada sobre uma montanha com várias modulações desafiantes para aquele ser. O restante do elenco deixa de ser humano 165


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para se transformar em elementos da natureza, como rocha, terra seca, lama, pois em todo o percurso é notável a relação do caminhar sobre os corpos que servem como base, despertando o imaginário para visualizar partes da montanha mais firmes e mais escorregadias, mais ásperas e mais molhadas. Bachelard, ao refletir a resistência como característica do elemento terra, pensa em uma matéria dura onde a resistência está ao alcance das mãos. Quando a base composta pelo elenco para formar a montanha torna-se menos firme, mais instável, a atriz que está caminhando

Foto: Daniel F. Patire

Foto 4

Foto: Handreowyllyann Lopes

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Foto 5

em cima mostra em seu corpo, em seus músculos, o desequilíbrio, a resistência à queda. O que me faz pensar na característica de terra mole pensada por Bachelard (2013) que provoca experiências íntimas e sensíveis da imaginação material guardando os devaneios para si. Como experiência visual proposta ao espectador, é possível detectar uma suspensão do tempo, em que a experiência sensorial proposta é a de um corpo resistindo à queda, cujos músculos das pessoas que também assistem se contraem para resistir essa suposta queda prevista pela instabilidade (Fotos 4 e 5). Outra característica da resistência pensada por Bachelard é quando ela provoca uma ação imediata e constante. No espetáculo OCO podemos identificá-la no aparecimento dos bonecos, que representam criaturas que têm o objetivo de eliminar uma pessoa do clã. Quando esta criatura aparece é possível ver a resistência do grupo em relação ao objetivo do boneco, mas o “que seria uma resistência se não tivesse uma persistência, uma profundidade substancial, a profundidade mesma da matéria” (Bachelard, 2013, p.17). Assim, quanto maior a resistência, maior a persistência e, com isso, mais uma pessoa do clã desaparece (Foto 6).

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Para mim, quando o primeiro integrante do clã é violentamente extinto (o bebê), a reação dos integrantes do grupo se inicia pelos músculos do corpo, no qual se contorcem externando uma dor que não cabe naquele espaço/corpo. Assim, por meio de uma reação muscular constroem uma resistência que esfola o mundo da matéria. Para mim, quando o primeiro integrante do clã é violentamente extinto (o bebê), a reação dos integrantes do grupo se inicia pelos músculos do corpo, no qual se contorcem externando uma dor que não cabe naquele espaço/corpo (Foto 7). Assim, por meio de uma reação muscular constroem uma resistência que esfola o mundo da matéria.

MARAVILHAMENTO Ao permitir essa análise por meio de metáforas poéticas é possível encontrar no fundo do imaginário o que Bachelard chama de maravilhamento, pois, em sua opinião, “a sutileza de uma novidade reanima origens, renova e redobra a alegria de maravilhar-se” (Bachelard, 2009, p.3). Ou seja, ao deparar-se com uma reflexão profunda de uma imagem material não descoberta anteriormente e que surpreende, abre-se a consciência para o maravilhamento, pois essa “consciência de maravilhamento diante desse mundo criado pelo poeta abre-se com toda ingenuidade” (Bachelard, 2009, p.1). Assim, é interessante pensar nessa ingenuidade citada por Bachelard, como uma criança, cuja reação de maravilhamento ao descobrir algo novo torna-se naturalmente esperada. Mas Bachelard também reflete sobre o maravilhamento passivo, ou seja, aquilo que nos é oferecido para maravilhar-se e questiona a necessidade de ativar a imaginação criadora para ocorrer um maravilhamento natural. Ele ainda considera que não participamos profundamente da criação de uma imaginação quando estamos vivenciando passivamente este maravilhamento, pois, segundo Bachelard: Foto 6

Foto 7

Foto: Guto Souza

Foto: Daniel F. Patire

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Foto: Guto Souza

Para apontar o conceito de maravilhamento de Bachelard no espetáculo OCO, destaco a característica de ingenuidade primordial, pois, segundo o filósofo “é essa ingenuidade, sistematicamente despertada, que nos há de proporcionar o puro acolhimento dos poemas” (Bachelard, 2009 p.4). Para mim, no espetáculo, atribuo essa ingenuidade quando o boneco de uma criança surge pela primeira vez em cena representando o integrante mais novo do clã (Foto 8). Diante dessa imagem poética podemos relacionar essa ingenuidade primordial como o que a criança representa para o clã e o despertar do maravilhamento na ação do contato. Também destaco o maravilhamento de quando três integrantes do clã interagem com a iluminação azul, pois da maneira como a cena é retratada, chegamos à conclusão que este espaço imaginado pode ser uma superfície de água, um rio ou um mar, hipótese corroborada na ação em que as integrantes se relacionam com o objeto de metal em forma de canoa que carregam, pois ao subir em cima deste objeto as três se movimentam como uma gangorra tombando de um lado para o outro, despertando assim a esperança de um caminho novo. Segundo Sant’Anna (2010, p. 221),

Foto 8

A fenomenologia da imagem exige que ativemos a participação na imaginação criante. Como a finalidade de toda fenomenologia é colocar no presente, num tempo de extrema tensão, a tomada de consciência, impõe-se a conclusão de que não existe fenomenologia da passividade no que concerne aos caracteres da imaginação (Bachelard, 2009, p. 4)

Assim, Bachelard propõe despertar o imaginário ativo para maravilhar-se por meio da ingenuidade e se permitir criar uma poiesis sobre o objeto proposto. 168

É como se a palavra soasse pela primeira vez para Bachelard e sugerisse a existência de uma realidade inédita, num ato fundador de linguagem e numa tomada de consciência primeira. É o “maravilhamento”, (...), a “ingenuidade primordial”, o paradoxo de uma consciência que se obscurece para melhor cintilar, o estado no qual o ser se perde para melhor se reencontrar, em profundidade, segundo Bachelard.

Neste momento de realidade inédita, o maravilhamento das três integrantes ocorre quando se permitem viver um caminho que não sabem onde vai dar (Fotos 9 e 10). Quando o espetáculo vai caminhando para o final, um novo clã começa a se formar com a chegada de novos integrantes, que se apresentam ao entrar no palco


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Foto 9

Foto: Guto Souza

interrompendo a caminhada solitária e esperando ser aceitos pelo último integrante sobrevivente do outro clã. Essa construção de um novo clã pode ser constatada tanto pelos gestos dos personagens, como visualmente por meio dos figurinos que eram diferentes do primeiro. Em seguida, surge um boneco gigante que atinge o personagem principal levando-o a enfrentá-lo para depois ir à boca de cena e gritar até as luzes do teatro se apagarem. Assim, a novidade tanto de um recomeço como a de um boneco gigante demonstrando o fim se instaura na cena, despertando o maravilhamento. Com isso, constato que o maravilhamento não necessariamente vem de um sentimento de alegria, pode acontecer também por ações fortes, como um susto, o espanto de algo inesperado e que no final do espetáculo OCO revela-se no grito prolongado (ver imagem p. 164). 169


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Foto: Camila Martins de Jesus Aguiar

Foto 10

CONSIDERAÇÕES FINAIS Para dialogar o espetáculo OCO com o imaginário do elemento terra de Bachelard tomei algumas características apontadas pelo filósofo para relacionar poeticamente a obra dramatúrgica: a intimidade, a resistência e o maravilhamento. Na característica do enterrar-se sobre a intimidade, localizei no espetáculo em algumas cenas tanto a solidão quanto a cumplicidade de uma dor sentida e partilhada por todas as atrizes que enterrarem-se na dor profunda

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da perda e essa intimidade coletiva impulsionou para a continuação da caminhada. Ou seja, a intimidade também está refletindo no cuidado com o próximo. Para identificar a resistência pensada por Bachelard, busquei analisar a cena em que a atriz ficou mais de três minutos sem pisar no chão, se deslocando sobre os corpos do elenco que visualmente transformavam-se em uma montanha sinuosa e que considerei como uma matéria dura onde a resistência está ao alcance das mãos, conceito pensado por Bachelard para refletir a resistência no imaginário do elemento terra. Outro conceito de resistência pensada por Bachelard que localizei no espetáculo foi o de provocar uma ação imediata e constante na cena em que o boneco escolhe uma pessoa do clã para devorar e desaparecer. Por fim, também destaquei no espetáculo a reação muscular produzida como uma resistência que dialoga com o conceito de esfolar o mundo da matéria pensada por Bachelard, uma imagem realizada pelos músculos dos corpos. Para destacar o maravilhamento no espetáculo, apontei dois conceitos desta característica pensada por Bachelard: a ingenuidade e a novidade. A ingenuidade aparece no cuidado com o bebê boneco. A novidade do maravilhamento do brotar e da fecundidade revela-se no despertar e na esperança de um novo caminho. Como por exemplo, na instabilidade de navegar em cima de um objeto de metal e também, ao final do espetáculo, quando surge a novidade de um recomeço que desperta o maravilhamento de algo inesperado, revelado pelo espanto e expressado por um grito fechando o ciclo do espetáculo OCO. Localizar a poética do imaginário elemento terra no espetáculo OCO foi uma oportunidade de devanear em meu imaginário poético, partindo dos devaneios telúricos de Bachelard. Com isso, foi possível visualizar o espetáculo de teatro físico por uma ótica poética da natureza, mais especificamente, a terra e, assim, chegar à conclusão que é possível considerar o espetáculo OCO também como uma obra telúrica.


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22. UM OCO QUE PREENCHE O MEU VAZIO

Luciana Martha Silveira Curitiba, 30 de qualquer mês de 2020.

Q

uerida amiga, como está você? Espero que estejas bem! Escrevo-te em meio a esta pandemia, onde nos encontramos reclusas e isoladas socialmente. Era para te escrever somente um bilhete, ou uma mensagem breve, mas por conta das dificuldades em te falar diretamente, olhando nos teus olhos, acabará sendo uma carta! Queria te contar sobre um espetáculo de teatro que assisti antes deste vírus aparecer e interferir no nosso convívio. Foi uma experiência maravilhosa, de puro encantamento, que na ocasião (devo dizer “ocasiões” em que assisti ao espetáculo, pois assisti nada menos do que quatro vezes!!!), aconteceu no teatro da UTFPR. Como você sabe, eu sou professora lá e por causa disso fiquei sabendo de um espetáculo de teatro que iria ser apresentado no grande auditório da Universidade. Você também sabe, minha amiga, que eu não sou muito afeita aos espetáculos teatrais, escondida atrás de uma vida corrida, mas ouvi que se tratava de uma peça dirigida por um colega de departamento, o Ismael Scheffler, dentro de um projeto desenvolvido com muito afinco, como todos os projetos em que ele está envolvido. Diante disso, ouvi aquela voz dentro de mim, dizendo que eu deveria prestigiar meu colega, assim: escute Luciana, você gosta dele, o admira como profissional e como pessoa, a dedicação dele é visível, enfim, vá! Amiga, fui com o intuito de apenas prestigiar.

Pois, o feitiço literalmente virou contra a feiticeira e me encantei. Assisti ao espetáculo completamente maravilhada, do começo ao fim! Por isso fui assistir mais três vezes! Queria te levar para ver o espetáculo OCO um dia, sentir esse maravilhamento como eu senti, mas com essa pandemia e necessidade de isolamento social, não vai ser possível tão cedo. Por isso vou ter que te contar o porquê do meu deslumbre e o motivo de sentir no meu corpo e no meu coração, um alargamento da minha percepção do mundo. Sim, OCO é o nome do espetáculo, mas para além de sentir um vazio, fui acrescida na minha sensibilidade. Está bem, você pode reclamar dizendo que vou estragar a sua experiência contando-te antes a minha, mas amiga, eu não acredito nisso não. Nada substitui assistir e se maravilhar com um espetáculo ao vivo ou estar diante de uma pintura por si, mesmo que você o odeie ou a estranhe. Saber sobre uma obra pelos olhos e tradução de outra pessoa não substitui sua própria experiência de encantamento, então não me sinto minimamente culpada em te contar o que se passou dentro e fora de mim, afetada que fui por este espetáculo. Muita gente acredita que a arte não serve para nada. Ou, até pior, que a arte é um entretenimento que aliena as pessoas e não constrói nada por conta

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Foto: Ismael Scheffler

disso. Essa postura é complicada, penso eu, porque diz muito de como uma cultura inteira considera a arte, desvalorizando seu papel na construção de valores sociais. Como você bem sabe, além de ser professora, sou também artista. A desvalorização da arte atinge todos nós artistas e professores, mas também todas as pessoas, como coletivo que somos. A arte é entretenimento sim, encantando através do diálogo e promovendo a visibilidade da diversidade. Penso que a arte nos modifica como sociedade, alterando nosso modo de pensar sobre nós mesmos, desnaturalizando processos sociais de aprendizado. Os artistas e as artistas são instrumentos para os modos de raciocinar, pois simulam possíveis escolhas de caminhos e vivenciam as consequências, materializando essas vivências em seus trabalhos artísticos. A arte modifica e amplia a sua percepção, se você tem a oportunidade de estabelecer uma relação de alteridade com o espetáculo, fazendo com que você possa pensar seus próprios caminhos.

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O espetáculo OCO me fez vivenciar escolhas e consequências, reforçando argumentos contra essa tal “inutilidade” da arte. O afeto com o espetáculo recuperou esperanças e nutriu minhas energias para seguir vivendo, apesar das adversidades. O contato com o espetáculo me modificou, pois me deixei afetar pela história, pelo cenário, pelas atrizes, pelo figurino, pela música. OCO me fez pensar em como me afeto pelas situações e tempos vividos. Praticar a alteridade na relação com o espetáculo me levou a um alargamento, uma modificação da percepção do meu entorno. Essa é uma vivência importante da arte. Estando afetados por ela, refletimos a nosso respeito, nos fazendo questionar preconceitos. Neste sentido, entrar em contato com a arte é ficar diferente, é se alargar como ser humano, alcançando outros seres-humanos. A história do espetáculo OCO apresenta a vida com adversidades. A cada obstáculo, uma profunda dor se dispara, levando algum tempo para uma possível recuperação e continuidade da caminhada. A vivência desses momentos de recuperação e continuidade


me fez recuperar coisas que eu havia esquecido, ou melhor dizendo, naturalizado, como lutas, resistências e conquistas. A arte tem a capacidade de desnaturalizar processos e lugares de poder. Ela encanta, alarga, simula soluções e desnaturaliza e, neste contexto, o espetáculo OCO me fez ver naturalizações perversas, que invisibilizam cotidianamente minha trajetória de luta dentro das resistências coletivas. OCO é um espetáculo que abriu mão das palavras e também de mostrar os rostos das atrizes. A expressão está em seus corpos, nas suas relações, nos bonecos, nas cores e sons. A leitura do significado vem de um outro viés. Assistindo ao espetáculo, respiramos juntos, ouvimos juntos, sofremos juntos. Tudo, juntos. Precisamos, mais do que nunca, estar neste lugar do “juntos”. A primeira cena do espetáculo mostra as personagens em um círculo, respirando em um só corpo. Sem música, o barulho da respiração fica quase agressivo. Com uma luz que vem do alto iluminando o chão, o centro, começa um resgate da consciência do coletivo, do “estar junto”. Será que ainda podemos vivenciar este lugar? Será que ainda somos um coletivo? A trajetória de construção dessa humanidade tem nos separado da natureza. Tudo o que construímos tem que ser revisitado, reconectado. Precisamos descolonizar e nos ouvir, integrar, pensar na diversidade. As personagens começam então a interagir, a brincar juntas. Exibem seus corpos flexíveis, se expandindo na juventude. Descobrem e se apropriam do espaço. Relacionam-se através de movimentos delicados e de respeito mútuo. Uma das personagens traz um boneco bebê e, com movimentos ainda mais delicados, todas as outras se aproximam e cuidam. Sim, cuidam do bebê e também cuidam de quem cuida do bebê, da mãe. Lidam com objetos, fazem a comida e a bebida, sentem, aquecem, ninam em movimentos coordenados, descansando no cenário azul. Neste momento, fiquei pensando, será que houve um tempo de felicidade, onde brincávamos sem nos

importar com quem, incluindo as pessoas? Será que há na nossa memória esse tempo? Não se pode ter saudades de um tempo que não existiu. Se existe a saudade é porque o sentimos de algum modo. Todas cuidam do bebê e todas cuidam de quem cuida do bebê. O cuidado deve ser preocupação de todas as pessoas, de todas as idades, em todas as instâncias. Um barulho grande avisa da primeira adversidade, o primeiro monstro que se aproxima. Susto, medo. O monstro é vagaroso, mas obsessivo e autoritário. Com sua língua pegajosa rouba o bebê, leva a esperança, a renovação, o procriar, a possibilidade de crescimento. A língua gruda, rouba. A linguagem diz no que acreditamos, os preconceitos e racismo que estamos sedimentando. O discurso de ódio precisa ser combatido com a promoção do diálogo. A dor de ter perdido o bebê é sentida no corpo de todas as personagens. Trazem as mãos à altura do útero, encolhidas. Se cuidam, se tocam, a energia não virá da comida, mas do sentimento do coletivo. O segundo monstro, ou a segunda adversidade chega acompanhado da trilha sonora, reforçando um ritmo que hipnotiza a mãe. Fragilizada pela dor, ela deixa que ele leve seu corpo, já desprovido de energia. Ela se entrega, a dor não foi absorvida. As personagens sentem no corpo a falta da mãe que cuida, que agrega. Sentimos junto a necessidade do cuidado. O cenário escurece. Na tentativa de reaproximação aparece o trauma, o medo. Novamente, permanecer juntas é a única forma de viver. Visualizarse no coletivo é a única forma de sobreviver à própria vida. Para a chegada do terceiro monstro, a terceira adversidade, não há alerta. O medo domestica e sem o alerta não há como se afastar da ameaça. Elas tentam se equilibrar no movimento, mas o monstro dos galhos chega e rouba justamente quem tinha conseguido se equilibrar. Isso desequilibra tudo outra vez. Dependemos das outras pessoas para nos equilibrar. 173


Depois aparece um elemento encantador. Lindo! Faz um movimento que dá vontade de olhar para sempre, se deixar levar, para longe do desespero. Fez pensar que aprendemos com as situações da vida, a ideia é essa, mas convenhamos, fazer do limão uma limonada cotidianamente não é fácil! Onde estão os momentos de resistências? O que conquistamos afinal? Por que temos a sensação de que voltamos a situações que já tínhamos conquistado? O último monstro já não parece um monstro. As personagens já estão diferentes diante dele. Fortaleceram-se vivendo juntas. Uma das personagens se direciona ao público e grita. O grito da personagem na última cena me calou. Fiquei muda. Senti, naquele momento certa culpa por ter me diminuído tanto a ponto de me acovardar diante da vida. Por isso precisei voltar uma segunda, terceira e quarta vez ao espetáculo OCO. Só na quarta vez que estava ali me juntei ao grito, me senti junto, no coletivo daquele público e com as atrizes, única e diferente ao mesmo tempo, plena como há muito não sentia. Assim, amiga, termino esta carta esperando ter-te feito caminhar comigo, encantada com o espetáculo OCO, acreditando que a arte modifica, transforma, expande, solidifica degraus conquistados, liberta e plenifica.

Foto: Karina Souza

Pode gritar!

Foto: Daniel F. Patire


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