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CRÔNICA
BELA, CARMELA E FIORELA
Fernando Fabbrini
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Alertaram meu bisavô que iriam invadir as casas dos italianos e quebrar tudo. Ele, um homem culto, pacífico e elegante, balançando as mãos postas à altura do peito, perguntou ao vizinho: — Ma perchè?
O tal sujeito, que se dizia comunista trotskista, aproveitou-se: — Ah! Estamos numa guerra, numa luta de classes. O senhor é italiano; italiano é fascista. Logo, o senhor é inimigo do povo.
Meu bisavô soltou um palavrão e foi se instruir sobre o que ouvira. Da nacionalidade não tinha dúvidas; chegara a Santos no vapor “Espagne” com outras famílias oriundas da Toscana fugindo da fome. Mas, “fascista”, só tinha ouvido falar. Remexeu jornais antigos, folheou livros e trocou ideias com o vigário da paróquia de Santa Efigênia. Daí, concluiu: não era fascista; achava Mussolini um falastrão. Detestava política e políticos; amava os vinhos, a ópera, a música, Dante Alighieri e as morenas brasileiras.
Correu os olhos pela propriedade e fez um rápido inventário. A casa era modesta, porém digna e sempre bem arrumada. No fundo havia o quintal, sem cercas, confundindo-se com a paisagem bucólica da Serra. Foi de lá que ouviu o berro familiar da Carmela: —Bééééé!
Aí seu coração apertou. Carmela era uma das três cabras que habitavam seus domínios e o abasteciam de leite para o queijo de sabor forte – um dos poucos luxos que mantinha. As outras eram Bela e Fiorela, três nomes italianos inspirados no som “é” prolongado, imitando o berro dos bichos. Bastava que meu bisavô gritasse “Béééla, Carméééla, Fioréééla!” para que as cabras viessem correndo, balançando os sinos dos pescoços.
Por perto também andava Benedito, um robusto bode nacional e senhor exclusivo do harém, desfrutando da miscigenação das raças sem preconceitos. Meu bisavô acariciou o pelo macio da cabrita
e decidiu-se: ali ninguém entraria nem tocaria nos seus animais. Segundo cochichavam, a invasão e o saque das casas das famílias italianas e alemãs seria no Sete de Setembro, data simbólica. Nesse dia, meu bisavô levantou-se cedo, ordenhou suas cabras e, ao invés de soltá-las como de costume, fechou-as no curral. Aí seu coração apertou. Carmela era Em seguida, tomou banho, aparou a barba grisalha, perfumou-se. Daí, vestiu seu terno branco de linho e caprichou no laço da uma das três cabras gravata de seda. Foi à cozinha e arrastou que habitavam uma das cadeiras pesadas até o portão de seus domínios e o abasteciam de leite ferro da rua Pouso Alto. Assentou-se com a bengala ao colo, escoltado por Benedito, única companhia que se permitiu, já que a para o queijo de situação era pra machos. sabor forte – um dos — Daqui não passam, Benedetto – poucos luxos que mantinha. disse ao bode. E plantou-se na calçada, impassível, até à noite. O nacionalismo exacerbado e beligerante felizmente ficou restrito ao desfile militar e, afinal, ninguém perturbou meu bisavô e suas cabras. De resto, não demorou até que a guerra acabasse na Europa; todos comemoraram com foguetes, cerveja e abraços patrióticos. Alguns anos depois corri de pés descalços pelas mesmas trilhas de Bela, Carmela e Fiorela, apanhando goiabas e nadando nos córregos da Serra. Meus companheiros tinham sobrenomes esquisitos: Wilke, Scotti, Mattar, Shimba, Jeolás, Grisi, Brant, Polizzi. Era uma nova geração de brasileiros que subia o morro para jogar futebol com os meninos das favelas do Pendura Saia e do Pau Comeu. De coração aberto, sem medo, tínhamos nossa própria ideologia e não nos importavam território, raça, cor ou religião. Ninguém era nada. Éramos só amigos. || Esta crônica faz parte do livro “Só de Bichos” de Laura Medioli e Fernando Fabbrini, que chega à 3ª. Edição, com renda para entidades que trabalham no cuidado, castração e adoção de animais de rua.
Fernando Fabbrini
De origem toscana (Pitigliano, Grosseto) é roteirista, escritor, cronista. Foi um dos fundadores da Associazione Lucchesi-Toscani nel Mondo e ex-conselheiro do COMITES-MG. Tem quatro livros publicados: “Almanaque das Coisas”, “Canalva”, “Só de Bicho” (com Laura Medioli) e “O Café do Sargento”. Participante do projeto “Cabines de Leitura” da FNAC, Lisboa, Portugal. Cronista semanal do jornal “O TEMPO”.
A Câmara de Comércio Italiana de Minas Gerais deseja a todos os parceiros, amigos e colaboradores um excelente Natal e um 2023 repleto de prosperidade, bons negócios e realizações.