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CRÔNICA
BELLA ITALIA
Laura Medioli
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A Itália me encanta; suas cores, seu cheiro, sua gente, seus Olho para as fendas no teto, vestígios da guerra e de alguns jardins... terremotos. Cicatrizes deixadas nesta casa antiga, onde, sentada
Encontro-me na casa de campo de minha sogra, rodeada por a uma mesa ampla, resolvo escrever um pouco. cedros, pinheiros e uma variedade de frutos do bosque. Também nas paredes, quadros com retratos de mulheres que
Da cozinha, vem o cheiro do minestro- há muito já se foram, algumas de forma ne, feito com legumes e verduras da horta, prematura. Maddalena, a avó de meu misturando-se ao cheiro da grama cortada marido que, com 26 anos, dando à luz o que entranha pela janela. São oito horas da noite, e o sol lá fora ainda brilha. Lá embaixo, onde as sexto filho, partiu numa manhã de agosto de 1910. Ao seu lado, outra jovem, sua
Construída pelo bisavô do meu mari- paredes são geladas, bisavó, morta também precocemente. do, a casa completou 112 anos. Vincenzo, um empresário pioneiro e resquícios de uma Olhando para elas, tento captar um pouco daquilo que provavelmente viveram, sob visionário, foi o primeiro na província de fábrica caseira de este mesmo teto, nesta mesma casa, que Parma a eletrificar uma fábrica, no lon- vinhos. As uvas eram há mais de cem anos pertence à família. gínquo ano de 1888. Também foi dele a primeira indústria de extrato de tomate amassadas com os Penso nela, na Maddalena, que com 26 anos já havia gerado seis crianças. de que se tem conhecimento. pés, fermentadas no Estranhamente morreu para dar a vida. Feita de pedras retiradas do rio e transportadas em carroças, a casa levou tonel, num processo Penso em quão forte deveriam ser essas mulheres, doadoras incontestes, cujos três anos para ser concluída com seus que durava oito dias. destinos já eram traçados desde sempre, enormes pés-direitos, paredes largas e vivendo na mais completa resignação. robustas, algumas rachaduras – causa- Provavelmente, esposas submissas, abdas por terremotos –, quatro andares, negadas mães, carregando seus fardos... incluídos sótão e porão. A menos de cem metros, próximo ao jardim, uma profunda cratera provocada por uma bomba – herança da Segunda Guerra.
Lá embaixo, onde as paredes são geladas, resquícios de uma fábrica caseira de vinhos. As uvas eram amassadas com os pés, fermentadas no tonel, num processo que durava oito dias. O vinho fazia e continua fazendo parte da cultura do país.
Gosto de explorar cada recanto da casa, seu silêncio e seus detalhes me atraem. Com a permissão de minha sogra, abro baús, portas emperradas, caixas empoeiradas e, assim, vou viajando no tempo, me deleitando na mais pura e prazerosa imaginação.
Na sala de jantar, um antigo gramofone, fabricado na década de 20 do século passado. Por inúmeras vezes tocou Caruso, o maior tenor de todos os tempos. O disco ainda existe, e o gramofone, inacreditavelmente, funciona. Ao seu lado, um velho piano, cujas teclas desgastadas enchem de sons e desafino o silêncio do recinto.
em passos lentos... em silêncio...
As fotos na parede me atraem, observo suas expressões, a força oculta dentro de seus olhares, os cabelos presos, as vestes escuras, compridas e cheias de recalques. E se vivessem hoje? Morreriam dando à luz o sexto filho? Talvez seus olhares não fossem tão profundos, cujas pálpebras se fecham sob o peso de seus mensuráveis e densos horizontes. Mulheres! Em cujos cernes correm o mesmo sangue, as mesmas lutas e paixões. Mulheres que se calam, fingindo não saber, que esperam, que labutam, acariciam, fortalecem, partilham, se dão por inteiro... E que por amor... são capazes até de dar a própria vida!
E me transporto para fora, às estradinhas estreitas e bucólicas. Cercadas por trigais, plantações de uvas e tomates, riachos
Laura Medioli
é jornalista e colunista do Jornal O Tempo. que seguem seu curso entre carvalhos...
As estradinhas nos levam às montanhas, onde os bosques vão se tornando frequentes. Nada mais gostoso que passear por ali, observando cervos, lebres, perdizes e faisões, preservados e protegidos por leis.
No caminho, algumas poucas cantinas, onde descemos para comer “focaccias” ou tomar um café expresso. O ar da montanha inebria, aquela sensação gostosa de estarmos num paraíso. A Itália, rica de tradição e histórias, me sensibiliza e desperta. Principalmente aqui, na província de Parma, onde nasceu o meu marido.
Muitos anos se passaram desde quando escrevi essa crônica. Há dois anos minha sogra partiu, e nunca mais retornei à velha casa de campo, rodeada por cedros e pinheiros. Saudades... ||