TFG - Ocupando Vazios

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CENTRO UNIVERSITÁRIO DE JOÃO PESSOA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS EXATAS E TECNOLOGIA CURSO DE GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

IVANA SILVA ACCIOLY

OCUPANDO VAZIOS Análises sobre os dissensos entre vazios e ocupações urbanas de imóveis do Centro Histórico de João Pessoa.

João Pessoa, junho de 2019.


IVANA SILVA ACCIOLY

OCUPANDO VAZIOS Análises sobre os dissensos entre vazios e ocupações urbanas de imóveis do Centro Histórico de João Pessoa.

Trabalho Final de Graduação apresentado ao Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ, como exigência para a obtenção do título de Bacharel em Arquitetura e Urbanismo.

Orientadora: M.ª Fernanda Rocha de Oliveira

João Pessoa, junho de 2019.


A169o

Accioly, Ivana Silva Ocupando vazios: análises sobre os dissensos entre

vazios e ocupações urbanas de imóveis do Centro Histórico de João Pessoa / Ivana Silva Accioly – João Pessoa, 2019. 129f.

Orientadora: Prof.ª M.ª Fernanda Rocha de Oliveira Monografia (Curso de Arquitetura e Urbanismo) – Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ.

1. Vazios. 2. Ocupações. 3. Direitos I. Título.

UNIPÊ / BC

CDU - 721




Aqui registro minha gratidão e admiração pelas pessoas incríveis que tive nesta jornada, me sinto abraçada pela presença de cada uma na minha vida. Poder contar com vocês foi fundamental para este resultado.

Agradeço... Aos militantes do MTD, Terra Livre e Mãos Dadas por me apresentarem suas lutas e sua humanidade, que aqui busco transmitir. Aos meus amigos Bruno, Danilo e Arthur pela acolhida e todos os ensinamentos, closes e experiências compartilhadas durante o período da graduação. À Ana Luísa, melhor chefe que eu poderia ter, por todos os anos acompanhados de trocas - experiências e opiniões – que contribuíram para minha formação profissional e pessoal. À Mirella, pelos incentivos escritos (muitos recadinhos fofos) e falados, sempre reconhecendo e prezando o desafio de me atrever ao tema escolhido. Suas energias vibraram forças para prosseguir com este trabalho. À Fernanda, minha orientadora, por me ter confiado para explorar novos caminhos - compartilhando suas (muitas) experiências acadêmicas – entre aulas, projeto de extensão e neste trabalho. Seu suporte foi essencial para construir e concluir este ciclo. Grata por inspirar a vontade de ensinar. À minha família por condicionar as oportunidades, os ambientes e as situações favoráveis para a minha formação – realidade, esta, ainda distante para muitas pessoas -, e por me permitir a liberdade de discordar e de lutar pelas minhas convicções.


A todas e todos que direta e/ou indiretamente contribuíram para este resultado, me emprestando seu tempo, suas palavras, seus registros e/ou suas memórias! À Deus por desenhar todos estes encontros.

OBRIGADA!


O arquiteto e urbanista deve defender o direito à Arquitetura e Urbanismo, às políticas urbanas e ao desenvolvimento urbano, à promoção da justiça e inclusão social nas cidades, à solução de conflitos fundiários, à moradia, à mobilidade, à paisagem, ao ambiente

sadio,

à

memória

arquitetônica

e

urbanística e à identidade cultural. (Resolução CAU/BR nº 52, 2013, p. 11)


Resumo Ocupando vazios tem por objetivo analisar os dissensos entre vazios e ocupações urbanas de imóveis, suas dinâmicas e seus grupos atuantes no Centro Histórico de João Pessoa, incluídos na poligonal de tombamento do IPHAEP. O objeto de estudo foi assim delimitado por ser entendido como uma área de interesse cultural com exemplares de imóveis ociosos, um cenário que, deste modo, possui discutido potencial para transformação e qualificação urbana e social, através da recuperação (reabilitação e restauro) destas edificações. O trabalho estrutura-se em etapas de levantamento, análise e sistematização de dados, tendo sua base instruída por meio de conceitos, relatos de experiências e estudos de caso centrados na área estudada, reportando, portanto, exemplos próximos desta realidade, conjuntamente, levantando e questionando os modelos de política eventualmente solicitados nos casos debatidos. As pesquisas de campo envolvem o acompanhamento do Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD), com visitas a ocupações, para o conhecimento da atuação do Movimento, assim como as tipologias percorridas. Foram, ainda nesta etapa, permeadas vias, desta poligonal de tombamento, para a elaboração do produto de um mapa de ocupações de imóveis (ativas e inativas). Este mapeamento, assim como as experiências e vivências aqui registradas, possuem a intenção de dar visibilidade à situação, comprovando a necessidade do uso dos instrumentos que legitimam o direito de morar dignamente. Entre análises sobre inversões de direitos, desigualdades sociais, negligências perante o patrimônio edificado da cidade e compreensões sobre as qualidades habitacionais, este trabalho afirma que: há lugares, mas não há lares para todos.

Palavras-chave: vazios. ocupações. direitos.


Abstract Occupying empty spaces aims at analyzing contrasts between empty spaces and realstate urban occupations, its dynamics and acting groups at the Historic Center of João Pessoa, these included in IPHAEP’s (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba) regulated polygonal section for buildings construction. The object of study was defined since it was considered as an area of cultural importance with a lot of unoccupied real-state units, in a scenario with considerable potential for social and urban improvements by means of restoration (rehabilitation and repair) of these buildings. This paper is divided into data collection, analysis and systematization stages based on concepts, experience reports and case studies focused on the studied section, therefore, reporting examples close to this reality while collecting and questioning policy models requested in the discussed cases. The field researches deal with keeping track of the Movimento das Trabalhadoras e dos Trabalhadores por Direitos, or MTD (English: Movement of Workers for Rights) focusing on the occupation in order to get to know how the Movement works as well as its used typologies. Still, at this stage, it was established ways to elaborate a map of real-state occupations (active and inactive) considering the polygonal of construction. This mapping, as well as the experiences reported here have the intention of giving visibility to this situation by proving the need for instruments that legitimize rights for proper housing. By analyzing the inversion of rights, social inequalities, negligence in relation to the built heritage of the city and comprehending about housing qualities, this paper emphasizes: there are homes, but not for all.

Key words: empty spaces. occupations. rights.


Lista de Figuras

Figura 1 - Arte em grafite. Superintendência da antiga Alfândega............................ 19 Figura 2 - O vazio ocupa um espaço imenso ........................................................... 20 Figura 3 – Cidade pra quem? Homem dormindo em elemento de acesso à Igreja de Nossa Senhora do Carmo, no Centro Histórico de João Pessoa. ............................ 23 Figura 4 - Cachorro na janela - Imóvel da Rua Duque de Caxias ............................. 25 Figura 5 - Requalificação de antigos casarões da Av. João Sussuna ...................... 26 Figura 6 - Imóvel vazio localizado no Largo São Frei Pedro Gonçalves ................... 31 Figura 7 - Gráfico comparativo da situação de vacância da poligonal de tombamento do IPHAN em João Pessoa, entre os anos 2012 a 2018 .......................................... 33 Figura 8 - Muro de alvenaria construído no “18 andares”. ........................................ 34 Figura 9 - Parede do Prédio da Antiga Alfândega escorada sobre o imóvel vizinho . 34 Figura 10 - Coração de pedra também desaba. Parede do Prédio da antiga Alfândega ................................................................................................................................. 35 Figura 11 - Parte da alvenaria do Prédio da antiga Alfândega desabou. .................. 35 Figura 12 - Imóvel ocioso na Rua Duque de Caxias ................................................ 37 Figura 14 – Processo de vedação do prédio conhecido por “Tijolinho Vermelho” após despejo dos moradores ............................................................................................ 41 Figura 15 - Ambiente desocupado do imóvel nº 619 ................................................ 42 Figura 16 - Ambiente desocupado do imóvel nº 619 [2] ........................................... 42 Figura 17 - Patrimônio ocioso .................................................................................. 43 Figura 18 – Espaço público é a cidade, ocupe-a! ..................................................... 44 Figura 19 - Imóvel abandonado na Rua das Trincheiras .......................................... 46 Figura 20 - A desigualdade tem cor. O que ficou para trás de uma antiga ocupação de imóvel na Rua das Trincheiras ................................................................................. 48 Figura 21 - Linha do tempo. Conquistas subsequentes à Lei das terras .................. 49 Figura 22 - Com quantos pobres se faz um rico? ..................................................... 50 Figura 23 – Crianças reunidas durante o 1º Encontro Nacional das Crianças Sem Terrinha ................................................................................................................... 51 Figura 24 - Mensagens urbanas | Ladeira de São Francisco ................................... 52 Figura 25 - Corte longitudinal IPASE ........................................................................ 54 Figura 26 – Vista aérea de João Pessoa.................................................................. 54 Figura 27 - Localização do Prédio IPASE ................................................................ 55


Figura 28 – Quadro síntese de viabilidade para três alternativas de uso da edificação ................................................................................................................................. 57 Figura 29 – Situação do segundo pavimento do Edifício do antigo IPASE ............... 58 Figura 30 – Croqui de estudo ................................................................................... 59 Figura 31 - Aqui. Vista para o atual estado de conservação do Prédio do antigo IPASE ................................................................................................................................. 60 Figura 32 - Cobertura do Prédio do antigo IPASE serve de criadouro para mosquitos transmissores de doenças ....................................................................................... 61 Figura 33 - 1º pavimento e térreo do prédio do antigo IPASE estão ocupados ........ 62 Figura 34 – Fachada do prédio do antigo IPASE com a Rua Guedes Pereira .......... 63 Figura 35 - Estado dos imóveis na ocasião da intervenção e proposta. ................... 64 Figura 36 - Conjunto de fachadas Art-Déco da Rua João Suassuna........................ 65 Figura 37 - Requalificação de imóveis do Villa Sanhauá .......................................... 66 Figura 38 - Apartamento decorado da Villa Sanhauá ............................................... 67 Figura 39 - Atual fachada da Villa Sanhauá ............................................................. 69 Figura 40 – Quem cuida da cidade? Rua Padre Antônio Pereira ............................. 80 Figura 41 - Mapa de Uso e Ocupação do solo da cidade de João Pessoa............... 82 Figura 42 - Fazemos parte dessa história. Manifestação contra despejo da Vila Nassau ................................................................................................................................. 83 Figura 43 - Novo conjunto Habitacional Saturnino de Brito ...................................... 85 Figura 44 – Palhaçada. Bonecos criados através do reaproveitamento de materiais | Largo de São Frei Pedro Gonçalves ........................................................................ 86 Figura 45 – Moção contra despejo da Ocupação Tijolinho Vermelho ....................... 90 Figura 47 - Policiais armados despejam famílias do Acampamento Novo Pindaré, no Maranhão. ................................................................................................................ 91 Figura 48 - Logotipo do MTD ................................................................................... 92 Figura 49 - Quem mora lá? - Imóvel ocupado na Rua das Trincheiras ..................... 99 Figura 50 - Mapa esquemático. Ocupações espontâneas e organizadas............... 100 Figura 51 - Mapa de localização da Comunidade do Papelão ................................ 102 Figura 52 - Fachada sudeste do imóvel ocupado pela comunidade do papelão .... 103 Figura 53 - 1ª reunião entre moradoras da Comunidade do Papelão e o MTD ...... 106 Figura 54 – Vão de entrada do prédio da Comunidade do Papelão ..................... 1067 Figura 55 - Acessos e percursos ao prédio da Comunidade do Papelão ............... 107 Figura 56 - Quarto em prédio da Comunidade do Papelão .................................... 108


Figura 57 - Quarto de Dona Margarida .................................................................. 109 Figura 58 - Solicitação de espaços para atividades distintas na Comunidade ........ 110 Figura 59 - Ambiente interno ao prédio da Comunidade do Papelão ..................... 111 Figura 60 - Comunidade do Papelão. Ao fundo, Igreja de São Frei Pedro Gonçalves ............................................................................................................................... 112 Figura 61 - Imóvel ocupado no Centro Histórico de João Pessoa .......................... 113 Figura 62 - Imóvel localizado próximo ao Centro Cultural São Francisco ............... 114 Figura 63 - Imóvel com estrutura comprometida .................................................... 115 Figura 64 - Sala do imóvel vizinho à residência Walfotovideo contém materiais inflamáveis ............................................................................................................. 116 Figura 65 - Criança moradora da ocupação ........................................................... 117 Figura 66 - Sandálias na janela .............................................................................. 117 Figura 67 - Águas pluviais cascateiam através da escada da Ocupação ............... 118 Figura 68 - Fachada atual do prédio da Superintendência da antiga Alfândega ..... 119 Figura 69 - Início das obras de restauração do prédio da Superintendência da antiga Alfândega ............................................................................................................... 120 Figura 70 – Imóvel desabado em partes ................................................................ 120 Figura 71 - Prédio da Superintendência da Antiga Alfândega abriga atividades esportivas .............................................................................................................. 121 Figura 72 - Salão do prédio da Antiga Superintendência da Alfândega .................. 122 Figura 73 - Grafites no Prédio da Superintendência da Antiga Alfândega .............. 124 Figura 74 - Aqui tem gente! Menina moradora da Villa Nassau produzindo cartaz para a manifestação contra o despejo da sua comunidade. ........................................... 126


Lista de Siglas

APE

Área de Preservação de Entorno

APR

Área de Preservação Rigorosa

APP

Área de Preservação Permanente

AT

Assistência Técnica

CC

Código Civil

CF/88

Constituição Federal de 1988

CHJP

Centro Histórico de João Pessoa

EMAU

Escritório Modelo de Arquitetura e Urbanismo

GLP

Gás Liquefeito de Petróleo

HIS

Habitação de Interesse Social

HT

Habitação Transitória

INSS

Instituto Nacional do Seguro Social

IPASE

Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado

IPHAEP

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba

IPHAN

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

MALC

Movimento de Moradia Ação Luta Comunitária

MST

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

MTD

Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos

PD

Plano Diretor

PMCMV

Programa Minha Casa Minha Vida

PMJP

Prefeitura Municipal de João Pessoa

PNE

Portador de Necessidades Especiais

PPP

Parcerias Público Privadas

RET

Regime Especial de Tributação

SEMHAB

Secretaria Municipal de Habitação Social


SMS

Secretaria Municipal de Saúde

SOCIC

Sociedade Comercial Irmãs Claudino S/A

UMM-SP

União dos Movimentos de Moradia de São Paulo

ZEIS

Zona Especial de Interesse Social

ZEP2

Zona Especial de Preservação 2


Sumário

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 21 CAPÍTULO 1 | MEMÓRIAS E HISTÓRIAS............................................................... 27 1.1. Preservar memórias e construir novas histórias ................................. 27 1.2. Quanto ocupa o vazio dentro da cidade? ........................................... 32 1.3. Com quantos pobres se faz um rico? .................................................. 47 CAPÍTULO 2 | EXPERIÊNCIAS ............................................................................... 53 2.1. O Prédio do antigo IPASE ................................................................... 54 2.2. A Villa Sanhauá ................................................................................... 64 2.3. Políticas públicas para o direito de morar ............................................ 70 CAPÍTULO 3 | PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ......................................... 87 CAPÍTULO 4 | NOSSO LUTO É VERBO! ................................................................ 91 4.1. O Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos - MTD.. 92 .2. Quem mora lá? ................................................................................... 100 4.2.2. Residência Walfotovideo ............................................................ 113 4.2.3. Prédio da Superintendência da Antiga Alfândega ....................... 119 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 125 REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 127


19 Ocupando vazios

Figura 1 - Arte em grafite. Superintendência da antiga Alfândega Fonte: Arquivo pessoal, 22/03/2019.


20 Ocupando vazios

Figura 2 - O vazio ocupa um espaรงo imenso Fonte: Carioccar.tumblr.com


21 Ocupando vazios

INTRODUÇÃO Quanto ocupa o vazio dentro da

O paradoxo que o intitula busca

cidade? Os espaços são pensados

relacionar os vazios às imagens que

para quem? Quais as consequências

não são vazias, mas ocupadas por

do abandono? Qual a dimensão política

espíritos

e social dos vazios? Por que “muita

demonstra que não há somente as

casa sem gente e muita gente sem

dimensões

casa”1? As inquietantes controvérsias

exploradas, mas dimensões maiores de

da realidade social e da ociosidade de

causas e efeitos de vazios, não vazios.

de

resistência

físicas

para

e

luta;

serem

bens de valor cultural alimentam as discussões do escopo deste trabalho.

1

Dizeres em faixa produzida pelo Movimento Popular do Campo e da Cidade - Terra Livre,

em manifestação em prol da ocupação Tijolinho Vermelho.


22 Ocupando vazios

Os ideais de modernização e

reduzido

poder

aquisitivo

dessas

expansão submetidos à cidade de João

famílias e pela dessensibilização em

Pessoa, durante o seu processo de

relação ao patrimônio.

desenvolvimento,

levaram

a

um

Diante

de

conflito

interesses

para novos contextos periféricos – para

habitacionais e de reabilitação de

fora dos limites, até então, urbanizados.

imóveis de valor cultural, as ocupações

Foram estabelecidas, dessa maneira,

dos espaços negligenciados da cidade

novas

gerando

acontecem, de forma geral e não

transformações na área central – o que

absoluta3, por famílias em situação de

incluiu o esvaziamento parcial2 de

vulnerabilidade

imóveis.

processo desigual de desenvolvimento

Em confronte com o número de

novas

de

crescimento territorial urbano induzido

centralidades,

entre

um

social

provisões

reflexo

do

e construção das cidades.

imóveis ociosos formados na área

As

ocupações

urbanas

são

central pessoense temos a demanda

temáticas de discussão internacional e

habitacional

nacional

da

cidade.

Cenário

(como

exemplos,

as

controverso, considerando que se trata

ocupações da torre de David4, em

de uma localidade provida de boa

Caracas, Venezuela, e muitas outras

infraestrutura

o

que acontecem no centro de São

referido estado de abandono gera a

Paulo, BR) levantam essa tônica,

perda

à

estimulando debates também em João

muitas

Pessoa, cidade que apresenta um

de

preservação

urbana.

Ademais,

elementos

de

presentes

em

valor

destas edificações subutilizadas. Ainda,

na

circunstância

número expressivo de ocupações em da

seu

território.

Buscar

prontamente

solicitação desses imóveis por famílias

soluções para estes conflitos evitaria

de

uma

baixa

renda,

esta

situação

comumente contribui para o processo

extensão

ainda

maior

desta

situação.

de degradação e descaracterização

À vista de ocupações, muitas

das construções originais devido ao

famílias vivem - ou sobrevivem - em

2

Apesar do processo de esvaziamento o qual foi submetido, ele ainda resguarda um dinamismo ligado às atividades comerciais, de serviço e residenciais. (OLIVEIRA et al, 2018) 3 Existem casos de “grilagem” na apropriação de terras e imóveis por grandes latifundiários

que especulam para incorporações imobiliárias ou para a exploração de seus recursos. 4 Foi considerado o maior cortiço vertical do mundo. Desocupado em 2014, as famílias foram transferidas para novos empreendimentos a 53 km de Caracas.


23 Ocupando vazios

constante

ameaça

remoção.

despejo do lugar que habitavam e/ou

Amparadas ou não por programas

por serem distanciadas em novos

habitacionais,

empreendimentos periféricos.

quase

de

sempre

suas

conexões sociais são excluídas - pelo

Figura 3 – Cidade pra quem? Homem dormindo em elemento de acesso à Igreja de Nossa Senhora do Carmo, no Centro Histórico de João Pessoa. Fonte: Arquivo pessoal, 21/02/2019.


24 Ocupando vazios

Ao compreender a poligonal de preservação do IPHAEP como uma área

de

interesse

cultural,

de vida e vazios urbanos gerando deseconomia5.

com

Aqui estão reunidas memórias e

ocorrências de exemplares ociosos e

experiências

de

manifestações

resistências

e

de

apropriação

e

indivíduos lutas,

de

incitando

ressignificação de imóveis, o trabalho

discussões para que se reverberem as

explora

falas

este

recorte

apresentando

visões de ocupações de exemplares de relevância

arquitetônica,

para

de

protagonistas

de

vazios

ocupados.

que

A sistematização dos dados

sejam debatidas suas fragilidades e

coletados resultou no mapeamento de

evidenciados os seus interesses, entre

ocupações de imóveis que figuraram ou

fatores que envolvam inclusão social,

figuram o Centro Histórico inicial de

sensibilização

João

patrimonial,

sustentabilidade

e

a

fruição

a do

patrimônio edificado. Perante

Pessoa

e

trouxe,

também, dentro deste universo de amostragem,

três

experiências

de

e

ocupações espontâneas, permitindo

instrumentos da política pública, este

assim a reflexão sobre esta abordagem

trabalho

a

para, além de detalhes técnicos sobre a

democratização do direito à cidade,

recuperação de imóveis tombados, dar

dando

visibilidade a estas famílias de baixo

traz

programas

(CHJP),

reflexões

visibilidade

às

sobre

fragilidades

representadas por grupos socialmente

poder aquisitivo.

vulneráveis, analisando experiências de

moradores

de

subsídio para demonstrar a dimensão

ocupações, abordando e evidenciando

desta situação neste recorte. Ainda

as opiniões e as condições de famílias

para

que residem nestes imóveis, de modo a

experiências,

compõe

serem repensadas as formas as quais

trabalho

vídeo

vêm sendo historicamente empregadas

vivências

estas

ocupações, compartilhando assim os

políticas,

e

militantes

O mapa de ocupações cria

dando

luz

às

o

enriquecimento

um

o

experimentadas

olhares

sem pessoas, patrimônio sem fruição,

construção deste trabalho.

populações vulneráveis sem qualidade

5

Falta de eficiência na utilização de recursos.

presente

ilustrativo

controvérsias de espaços habitáveis

percorridos

das

durante

das em

a


25 Ocupando vazios

Um olhar para a poesia da cidade, traduzida em imagens, relatos e sentimentos emergidos no percurso deste trabalho.

Figura 4 - Cachorro na janela - Imรณvel da Rua Duque de Caxias Fonte: Arquivo pessoal, 16/12/2018.


26 Ocupando vazios

Figura 5 - Requalificação de antigos casarões da Av. João Sussuna Fonte: Arquivo pessoal, 2018.


27 Ocupando vazios

CAPÍTULO 1 | MEMÓRIAS E HISTÓRIAS 1.1. Preservar memórias e construir novas histórias Preservar memórias e construir novas

histórias

discorre

indispensabilidade

de

busca evitar a destruição desenfreada

sobre

a

do

patrimônio

edificado

concordar

a

resultados irreversíveis.

e

seus

preservação da memória arquitetônica

A instauração do tombamento

com o uso e adequação de bens de

inicialmente, no entanto, transformava

valor cultural para que neles sejam

conjuntos

vividas novas histórias; relacionando

idealizados, orientados pelo seu valor

ainda o construir, não ao efeito de

estético,

edificar, mas de dar lugar a existência

vezes, a história e a população como

de novos relatos.

parte fundamental na narrativa da

Assim, reunidas

as

informações

demonstram

como

aqui foi

tombados

em

objetos

desconsiderando,

muitas

cidade (CASTRIOTA, 2007). Apesar

de

ampliado6

patrimônio

preservação do patrimônio histórico,

inicialmente estava atrelado à ideia de

denotando

de

monumento, e eram definidos como

de

bens àqueles representantes do que

de

era a arte tipicamente brasileira -

imprescindir ressignificação

necessidade os de

agentes espaços

memórias. A política de tombamento é

passando,

sido

conceito

compreendida, ao longo do tempo, a

a

ter

do

posteriormente,

a

-

não

limitar-se a bens excepcionais (como

bastante discutida, principalmente por

arquitetura

limitar a liberdade dos donos de

valores de patrimônio ambiental urbano

imóveis, sendo, contudo, necessária

e também as manifestações populares,

para impedir a descaracterização de

além da moderna cultura de massa

bens de interesse cultural, sabido que

(CASTRIOTA, 2007).

esta medida, inicialmente paliativa, 6

A Carta de Veneza introduz a ideia de sítio urbano e da utilização social dos monumentos.

monumental)

e

incluir


28 Ocupando vazios

Assim,

passou

a

envolver

Em

1975,

a

ideia

objetos além das edificações, como a

desenvolvimento

paisagem urbana, num novo conceito

conservadas é discutida durante o

de conservação, passando a concordar

Congresso

com a inevitabilidade da mudança e a

reconhecendo

tentar conciliar a preservação e o

incentivo à função econômica destas

desenvolvimento urbano (CASTRIOTA,

áreas. Embora, inicialmente ligada ao

2007).

turismo monumental, a ideia de um A

imprecisão

teórica

destes

plano

das

do

de a

integrado

áreas

Amsterdã, importância

demandava

do

o

conceitos, no entanto, nos levou a

reconhecimento da totalidade urbana,

estratégias de “conservação urbana”

para além do mérito arquitetônico ou

das

pouco

estético. Eram, portanto, indissociáveis

efetivas com políticas imobilistas que

o planejamento do patrimônio e o

transformaram

planejamento urbano (CASTRIOTA,

mais

diferenciadas

parte

e

das

nossas

cidades em museus, direcionadas para

2007).

a revitalização econômica a qualquer custo

(CASTRIOTA,

cenário,

além

de

2007). não

Este

contribuir

Os modelos de plano urbanístico elaborados

subsequentemente,

em

efeito da Declaração de Amsterdã,

efetivamente para a manutenção da

diagnosticavam

vivacidade urbana, contribuiu com a

patrimonial

gentrificação7 e a destruição dos laços

melhorias urbanas com provimentos

sociais locais.

para

Ao

passo

transformações,

dessas

ascensão

de

implantação

valor de

socioeconômica,

buscando, dessa forma, meios para o

o

financiamento e conservação dessas

e

o

áreas. Este modelo se associa ao da

integrado

e

reabilitação urbana, que parte da

fundamental para a conservação e para

compreensão da realidade sobre a qual

o equilíbrio da paisagem, necessário

recai o interesse do uso do espaço e a

para promover a qualidade de vida e

busca por estratégias para o seu

possibilitar

desenvolvimento; estratégias estas que

patrimônio

integramos

para

áreas

ambiental

reconhecemos

o

como

urbano

desenvolvimento

do

homem.

podem envolver, a exemplo, projetos

7

residem e/ou utilizam estes espaços por um grupo abastado e sem relação com o lugar.

Processo de transformação e valorização imobiliária de determinado centro urbano que provoca a alteração de grupos sociais que


29 Ocupando vazios

urbanísticos,

sociais,

da cidade. O conceito da conservação

sempre convertidos pela participação

progride de forma a integrar diferentes

social (CASTRIOTA, 2007).

grupos

O

culturais

conceito

de

e

reabilitação,

neste

deste

cenário,

modo,

necessário,

uma

maior

portanto, dá forças a “novos” agentes

interdisciplinaridade de profissionais

urbanos, intrinsecamente ligados à

envolvidos

construção do espaço, e o Estado

(CASTRIOTA, 2007).

passa

a

desempenhar

um

papel

A

nesta

reabilitação

voltado às restrições para evitar a

históricos

descaracterização

do

considerada

construído,

articulação

projetos

e

de

para

o

patrimônio

finalidade

pode,

de

centros

portanto,

ser

para

o

tanto

dos

reconhecimento e conservação da

desenvolvimento

memória coletiva quanto para suprir

dessas áreas, a serem consideradas,

demandas

inclusive, parcerias público privadas

vulneráveis da cidade, que manifestam

(PPP) como coparticipantes para a

seus anseios e ressignificam imóveis

recuperação das áreas degradadas nas

que foram abandonados.

cidades (CASTRIOTA, 2007).

sociais

de

grupos

No entanto, a restauração de

As medidas administrativas que

imóveis tombados e ocupados por

recaem sobre estas áreas – para o

moradores de baixa renda possui um

processo de reabilitação - requer um

processo de grande complexidade e

complexo instrumental legal para a

alto custo, tanto para atender as

articulação de planos integrados para o

exigências dos órgãos de patrimônio

direcionamento dos recursos aplicados

como os aspectos da ocupação para

e para a sua manutenção.

que sejam renovados – os imóveis -

Nesta

cronologia,

instrumentos

sem perder a sua autenticidade.

criados,

Ainda, para a realização de

substancialmente em decorrência da

intervenções de grandes proporções -

Constituição de 1988, alinhando os

como a restauração e adaptação dos

interesses evidenciados pela massa

imóveis para o uso habitacional -, as

dos

famílias precisam ser temporariamente

movimentos

foram

novos

sociais,

agora

respaldados por ela. O interesse social

relocadas até a conclusão da obra.

passa a reclamar seus direitos básicos,

A incumbência de órgãos de

ora instituídos, sendo cada vez mais

preservação sobre estes imóveis ainda

considerados nas decisões de gestão

pode

inviabilizar

as

adaptações


30 Ocupando vazios

mínimas

para

que

as

tipologias

relacionem confrontos de vazios e

residenciais se adequem às condições

ocupações,

necessárias de uso permanente, além

considerando a indispensabilidade da

disso, é indispensável a articulação da

intervenção

manutenção pós-ocupação do prédio

potenciais

que - atendendo famílias de baixo

replanejamento para a cidade.

poder aquisitivo - necessitam de gestão

normativas

destes de

A

fruições,

imóveis

com

transformação

degradação

e assistência pública competentes para

descaracterização

o funcionamento.

precisam

Portanto, entre vários aspectos,

e

ser

sensibilização

das

e

e

construções

freadas patrimonial

com

a

junto

à

o Estado reluta à recuperar e restaurar

identificação do usuário com o lugar,

estas construções, podendo ser citados

criando assim vínculos com os espaços

como

que ocupam.

impeditivos:

elevados

para

a

(1)

os

custos

realização

de

Enquanto são discutidas estas

intervenções, por se tratar de imóveis

complexibilidades, vemos exemplos da

de valor cultural, com o instrumento do

concretização

tombamento8, exigindo assim maior

que demonstram que é possível o

nível de especialidade de mão de obra,

equilíbrio entre os interesses, como é o

tanto de quem planeja quanto de quem

caso do Edifício Dandara9, na Avenida

executa e (2) a incidência, portanto,

Ipiranga, região central de São Paulo.

de

empreendimentos

além das normativas urbanísticas, de

Assim, seguem as discussões

normativas patrimoniais que limitam o

para demonstrar o quão necessário é

direito de usufruto destes imóveis, além

preservar memórias e construir novas

de, quando estes são ocupados e/ou

histórias.

destinados a atender uma parcela da demanda habitacional de famílias de baixa renda, (3) se configuram como processos complexos e de alto custo para a sua manutenção pós-ocupação. Faz-se, com isso, necessária a ampliação de debates que permeiem e

8

Instrumento de reconhecimento e proteção do patrimônio cultural, instituído pelo Decreto-Lei nº25/37.

9

Edifício reabilitado a partir da iniciativa de Movimentos sociais e através do PMCMV Entidades, do governo federal.


Figura 6 - Imรณvel vazio localizado no Largo Sรฃo Frei Pedro Gonรงalves Fonte: Arquivo pessoal, 2018.


32 Ocupando vazios

1.2. Quanto ocupa o vazio dentro da cidade? Vazios, ocupações e despejos. As

dimensões

destas

Em decorrência de diversos

existências

fatores sociais, políticos e econômicos,

discordam da lógica de produção do

uma parcela do acervo edificado do

mercado

CHJP

imobiliário

que,

encontra-se

de

obsolescência ou abandono (SILVA,

privada

2018), findando assim em vazios

acima

da

dignidade

das

urbanos.

- que se encontram sem uso ou

[...] após o êxodo de grande parte do contingente populacional das áreas centrais, essas edificações passaram por uma ressignificância de uso e atualmente as parcelas designadas à habitação perderam seu uso primordial e passaram a desempenhar meras funções, tais como de depósitos ou estoques de lojas e em casos mais danosos, se encontram vazias, sem nenhum uso ou função social. (SILVA, 2018, p. 15)

subutilizados, em descumprimento da

A afirmação dada por Yanna

função social da propriedade, ferindo

Silva10 é dirigida a esta centralidade

assim os princípios constitucionais e de

que, em número expressivo, denota a

interesse social. (GONÇALVES et. al.,

situação de vacância, onde muitos

2017)

imóveis apresentam seus espaços

Então, quanto ocupa o vazio? Para esta reflexão, os conceitos, que aqui seguem, são fundamentais para dar base ao tema discutido. Os vazios urbanos são áreas da cidade - geralmente envolvidos por A

estado

frequentemente, expõe a propriedade

pessoas.

VA I

em

infraestrutura e equipamentos urbanos

Para este trabalho, a definição

integralmente ou parcialmente ociosos.

de vazios urbanos estende-se também

Imóveis foram esvaziados por

para áreas edificadas, entendendo que

terem se tornado obsoletos para as

vazios

significam

atividades contemporâneas, também

propriamente a inexistência de alguma

por demandarem intervenções mais

construção, mas de uso ou função.

onerosas

10

Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, em 2018.

urbanos

não

Yanna Karla Garcia Silva em sua monografia apresentada para o departamento de

em

virtude

de

exigirem


33 Ocupando vazios

afastadas; não obstante, o centro permanece cheio de imóveis ociosos, vazios, submetidos à prática da especulação imobiliária (KOWARICK, 2009 apud PATERNIANI, 2016, p. 31)

especialidades para o tratamento de bens de valor cultural. O centro, então, esvazia-se de habitação, porquanto as elites mudam-se para áreas mais

Figura 7 - Gráfico comparativo da situação de vacância da poligonal de tombamento do IPHAN em João Pessoa, entre os anos 2012 a 2018 Fonte: Yanna Silva, 2018, p. 33

O gráfico da Figura 7 ilustra a

verificada no Edifício Presidente João

condição crescente de vacâncias do

Pessoa, popularmente conhecido por

Centro Histórico de João Pessoa

“18 andares”, que possui vacantes os

(CHJP) na poligonal de tombamento

primeiros

nacional,

construção

representando

um

pavimentos que,

da

sua

inicialmente,

crescimento de aproximadamente 17%

correspondiam às funções comerciais e

nos

de serviço do prédio, tendo função

decorridos

seis

anos

do

comparativo. Entre

habitacional os

vazios

pavimentos

se

superiores.

Ressalva-se

apresentam de forma parcial no lote,

atualmente,

embora

sua subutilização, em geral, ocorre em

permaneçam

térreos

funções

ociosos, um dos espaços passou a

comerciais e nenhuma função nos

abrigar veículos de condôminos, que

demais pavimentos.

alugaram vagas no local, já que o

atendendo

a

que

nos

A situação inversa – embora não seja a mais comum – pode ser

alguns

que ainda

ambientes

projeto do Edifício não previu área de estacionamento.


34 Ocupando vazios

A

ociosidade

pavimentos

primeiros

indivíduos

Atualmente, o CHJP atende

em

majoritariamente ao viés comercial, ao

situação de rua a se abrigarem sob os

institucional e o de serviço, tendo

pilotis do térreo. Para evitar esta

diminuídas as suas atividades em

situação,

muro

horários opostos a estes usos. A soma

dificultando o acesso às áreas ociosas

destes fatores define uma vivacidade

do imóvel.

pontual dos espaços ainda convidativos

foi

atraía

dos

construído

um

Figura 8 - Muro de alvenaria construído no “18 andares”. Fonte: Arquivo pessoal, 10/05/2019.

para a população residente ou não. O abandono gera a perda de elementos de valor de preservação, e não

raro

são

presenciados

arruinamentos de imóveis que contam – ou contavam - a história da terceira Capital mais antiga do País. Em março de 2019 foi vivenciado o desabamento gradativo de parte do Prédio da Antiga Alfândega, Varadouro. Figura 9 - Parede do Prédio da Antiga Alfândega escorada sobre o imóvel vizinho Fonte: Arquivo pessoal, 22/03/2019


35 Ocupando vazios

Imóvel de propriedade da União com tombamento nacional. Parte

da

A repercussão deste desfecho deu

alvenaria

cedeu

mais

situação

permaneceu

enquanto

ao

prédio

vizinho por alguns dias. O risco do

pedaços

desmoronamento já era evidente e

edificada.

tornara ainda maior nessa situação. Poucos dias depois, desabou.

ao

movimento

interrompido diante dos trilhos11 –

durante fortes chuvas na região, e escorada

atenção

A

rapidamente em do

reversível

escombros edifício

situação

do

-

ficaram memória

imóvel

era

conhecida, era iminente que isso ocorreria, mas o descaso definiu sua

Figura 10 - Coração de pedra também desaba. Parede do Prédio da antiga Alfândega Fonte: Acervo do IPHAEP, 2008 | Editado pela autora, 2019.

nova forma enquanto ainda ficam indefinidas as responsabilidades por estes imóveis. Figura 11 - Parte da alvenaria do Prédio da antiga Alfândega desabou. Fonte: Arquivo pessoal, 01/04/2019.

Não os assumem – o Estado ou os proprietários -, mas, muitas vezes, combatem quem dá novos usos a estes; pois, é nesta situação de abandono

que

uma

parcela

da

população encontra a oportunidade 11

O imóvel fica próximo de trecho da linha férrea de João Pessoa.


36 Ocupando vazios

amplo de todos os direitos subjetivos patrimoniais, por outro, tornam-se legítimas diante do Estatuto da Cidade que ordena ações de interesse social para a democratização de utilização de espaço urbano, calcadas pela função social da propriedade. [...] (NASCIMENTO, 2016, p.148)

para estabelecer sua moradia: sem tapetes de boas-vindas. A ocupação de edifícios ociosos é

um

indicativo

da

demanda

habitacional - e associadas12 - na área central da cidade, contribuindo para

De forma geral, estão divididas

este motivo a proximidade com um polo

de acordo com os aspectos que

ainda muito produtivo, gerador de

iniciaram a sua conformação, podendo

renda para estas famílias, e que possui

ser consideradas como espontâneas

ainda, toda uma infraestrutura urbana e

ou organizadas. Do primeiro modo ela

de transporte bem consolidada, com

acontece por iniciativa individual ou

oferta, inclusive, de diferentes modais

coletiva, de forma desordenada13, e

para deslocamento pela cidade.

comumente conformam comunidades

Conforme os estratos sociais mais altos ocupam uma determinada região fora do centro, os estabelecimentos de serviços os seguem e as classes populares ocupam o centro de maneira pouco organizada aos olhos das elites – fundamentalmente, ocupações de prédios ociosos, moradias improvisadas e trabalho informais. Esse centro torna-se, então, aos olhos das elites, “decadente”. Posteriormente, utiliza-se o argumento da decadência para promover intervenções saneadoras nessas regiões, equacionando pobreza e criminalidade. (PATERNIANI, 2016, p. 31)

PA

E

A A

As

ocupações

urbanas

são

consideradas as manifestações de apropriação

de

espaços

ociosos,

públicos ou privados, impulsionadas por uma necessidade ou desejo. [...] Se, por um lado, as ocupações urbanas emergem como áreas ilegais diante das premissas jurídicas que colocam o direito de propriedade como o mais sólido e 12

Em referência às demandas diversas derivadas pela proximidade com moradias.

informais,

que crescem de forma

gradual e silenciosa. As ocupações organizadas são frutos de lutas de famílias de baixa renda que, junto aos movimentos sociais, reclamam seus direitos à moradia

ora

negados

pelas

suas

condições sociais e pelo poder público. São planejadas e possuem objetivo de adquirir a posse do imóvel que estão ocupando

ou

de

habitações

de

interesse social (HIS) em outras áreas. Estas ocupações estão fundamentadas juridicamente pelo direito social à moradia, garantido através da emenda constitucional nº26, de 14 de fevereiro de 2000.

13

Do ponto de vista de serem minimamente pensados seus arranjos e funcionamento.


37 Ocupando vazios

Os Movimentos Sociais

são

Os Movimentos Sociais de Luta

conhecidos como a expressão da

por Moradia da cidade de João Pessoa

sociedade civil organizada, que agem

possuem

por meio de ações sociais coletivas, de

frentes

natureza sócio-política e cultural, como

lutando por direitos junto a milhares de

forma de resistência à exclusão e luta

famílias. Estes diferentes movimentos

pela inclusão social. (GOHN, 2011).

se articulam, entendendo o comum

Estes,

de

interesse entre eles, e se reúnem por

mobilizações sociais - como passeatas

meio do Fórum Nacional de Reforma

e ocupações - para chamar atenção

Urbana.

se

manifestam

através

atualmente organizadas

mais (MTD,

de

20

2018),

para as necessidades de determinado grupo.

Figura 12 - Imóvel ocioso na Rua Duque de Caxias Fonte: Arquivo pessoal, 16/12/2018.


38 Ocupando vazios

Embora não tão expressivo, se

Nada obstante a isso, ligações

comparado a grandes cidades do

clandestinas

Brasil, como São Paulo e Rio de

solicitadas, expondo os sistemas a

Janeiro, o número de ocupações na

sobrecargas e intensificando os riscos

cidade

de incêndios, por exemplo.

de

João

Pessoa

tem

são

constantemente

de

“Infelizmente, só numa tragédia

restabelecer estas lacunas da cidade

dessas é que a gente vira manchete”,

urbanizada,

afirma

demonstrado

a

necessidade

tendo

registradas,

Evaniza

atualmente, número superior a 30

representante

núcleos

entre

Movimentos de Moradia de São Paulo

ocupações e assentamentos na capital

(UMM-SP), para o curta produzido a

acompanhados pelo Movimento de

respeito do desabamento do Edifício

Trabalhadoras e Trabalhadores por

Wilton Paes de Almeida, na capital

direitos - MTD (MTD, 2018), sendo este

paulistana: “muito teto caindo, muita

apenas um dos Movimentos da Capital.

gente sem teto”14 publicado em maio de

Em meio às ocupações, famílias

2018. Trata-se de um cenário comum

de

resistência,

são constantemente marginalizadas,

a

situação

de

vulnerabilidade e nega, inclusive, os serviços de infraestrutura sanitária para essas famílias. Esta situação agrava ainda mais a manutenção dos imóveis ocupados e limita, ou até mesmo exclui, as alternativas para o tratamento

A definição dada pela jornalista

adequado de todo resíduo gerado, intensificando

uma

situação

de

dos

Os invisíveis são aqueles muitos sujeitos que também contribuem na estrutura produtiva das cidades, mas que têm acesso dificultado aos direitos sociais e às políticas públicas, bem como não possuem lugar garantido no sistema de divisão do território em propriedades. Por não se encaixarem claramente em nenhuma parcela, costumam ser malvistos por grande parte da sociedade e não ganham a atenção das autoridades. (SOARES, 2015)

vezes, invisíveis para o poder público, negligencia

União

de “invisibilidades urbanas15”.

excluídas da sociedade e, muitas

que

da

Rodrigues,

Vanesca

Soares, do

livro

baseada Metrópoles

em

insalubridade ambiental e sujeitando

discussões

e

indivíduos a enfermidades.

Invisibilidades, associa-se ao sujeito “invisível” que ora também contribui

14

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=D7toEfdIU zs>. Acesso em Out. de 2018

15

Pessoas ou imóveis negligenciados pelo poder público.


39 Ocupando vazios

necessidade da pessoa. Num residencial, por exemplo, quantas pessoas vão para esse residencial; são mil crianças? Então são mil vagas de escola, né?

para a construção e para a dinâmica da cidade. Em analogia aos inanimados – às construções –, a figura do invisível cabe

igualmente

negligência

em

das

relação

à

(...)

autoridades

O pessoal da delegacia16, 15 famílias, foram para o Vista Alegre17, essas famílias tinham crianças, inclusive crianças especiais, com deficiências intelectuais. Aí o que é que acontece: foram pro vista alegre. Aqui [na ocupação da delegacia] tinham escola, um posto médico que é em frente à delegacia, [...] e tinha a creche; Tinham tudo perto e foram para o Vista Alegre. No Vista Alegre eles não têm escola, eles tiveram que ver vaga no Grotão, aí as escolas de lá já estão cheias [...], então não tinham vagas de escola, então o que essas assistentes sociais disseram a eles: não, vocês deixam lá no Centro, até que seja feita uma escola, não sei o quê... Tu é pobre, como é que tu vai levar teus filhos? [...] (Militante do Mãos Dadas. Conversa informal realizada em 24/05/2019).

“responsáveis”. Embora estas relações possam ser complementares – entre famílias e imóveis abandonados - estas trocas, muitas

vezes,

são

desfeitas:

são

comuns as ordens de despejo de famílias em situações irregulares de moradia. As remoções das famílias, que ocupavam

imóveis

anos

abandonados, ocorridas no CHJP, são inquietantes: a estas são proferidos discursos

que

apresentam

meias

vantagens, que embora possam ser

Entre as situações de despejos

supridas por unidades habitacionais, é exceção terem grandes qualidades urbanas, e mais parecem carimbadas em terreno estéril e em contextos longínquos da cidade, com pouca infraestrutura. A gente sente que falta, por parte da prefeitura, um olhar para as famílias. Não tem a questão da assistência social, não faz visita nas casas [...] O acompanhamento que eles têm [antes e somente na entrega das casas]: as assistentes vão pra lá, aí montam uma tenda, bota um algodão doce, uma pipoca, aí vai fazer a reunião. Eu acredito mais no olho a olho, no sentar, no conversar, saber a 16

Referente à antiga ocupação da delegacia do menor na Rua das Trincheiras.

sem o amparo de novas moradias, por vezes as famílias são atendidas pelo benefício

temporário

do

auxílio

moradia, no entanto, seu valor é incompatível com os aluguéis regulares da cidade, devolvendo as famílias novamente

para

a

situação

de

ocupação ou similar. Ainda outras não recebem qualquer suporte e ficam sem alternativas senão viverem nas ruas ou procurarem novas ocupações.

17

Conjunto habitacional popular localizado no Colinas do Sul.


40 Ocupando vazios

A

Ocupação

Mulheres

A Prefeitura de João Pessoa

Guerreiras, no Bairro das Indústrias 18

(PMJP), representada pelos agentes

vivenciou um violento despejo em julho

em campo, ordenava que “voltassem

de 2018, onde cerca de 250 famílias

para onde estavam antes de invadir”.

que ocupavam um conjunto de prédios,

(TERRA LIVRE, 2018) Nem todos têm forças para suportar tudo isso, para continuar lutando, algumas famílias desistem da luta e voltam a viver de favores ou até mesmo deixam de fazer algumas refeições para pagar o aluguel. (Militante do Terra Livre. Conversa informal realizada em 25/03/2019)

com obras abandonadas há mais de um ano, foram removidas a base de bombas e balas de borracha por mais de 400 homens das polícias Militar e Federal, causando traumas às crianças e ferimentos nos adultos (TERRA

As pessoas que permaneceram

LIVRE, 2018), levando uma mulher a

foram levadas para ocupar um ginásio

perder seu bebê em meio a situação vivida.

na Praça da Juventude, no mesmo bairro, e para que se dissipassem, cortaram até o abastecimento de água

Vamos cantar pra nossos mortos Vamos chorar pelos que ficam Orar por melhores dias E se humilhar por um novo abrigo

do imóvel. (Militante do Terra Livre. Conversa

informal

realizada

em

25/03/2019) Entre

os

diversos

despejos

ocorridos na Capital, os de imóveis Casa de Papelão - Criolo, 2014

tombados e negligenciados pelo poder público são um combinado do descaso

A palavra resistência traduz a vida dessas ocupações. Relatos de militantes e moradores contam os transtornos

psicológicos

desenvolvem precisam

se

quando,

que

se

infelizmente,

submeter

a

serem

interpretados

como

marginais para a sociedade.

18

assistência às famílias – não resolvem efetivamente a demanda por moradia, tampouco devolvem o imóvel para fruição.

estas

condições desumanas de moradia e ainda

- com a memória da cidade e com a

Bairro da Zona sul da Capital Paraibana.

Neste contexto, é fácil citar os casos de ocupações como a do “Tijolinho Vermelho19” e a do Edifício sede do antigo IPASE, ambos imóveis

19

Nome popular dada à antiga ocupação do Hotel Tropicana em João Pessoa, PB.


41 Ocupando vazios

de interesse cultural, abandonados por

vedação de todos os possíveis acessos

anos, e que voltaram para a ociosidade

à construção para que não ocorram

após terem sido desocupados.

novas ocupações. Este tipo de medida

Este desfecho do retorno da

agride ainda mais o patrimônio e não

ociosidade dos imóveis citados é dado,

soluciona as lacunas da falta de

mediante ações para criar dificuldades,

moradia e de uso.

inclusive, de ordens físicas, quando da

E se não resistir e desocupar Entregar tudo pra ele então, o que será? E se não resistir e desocupar Entregar tudo pra ele então, o que será? Sonho em corrosão, migalhas são Como assim bala perdida? O corpo caiu no chão! Num trago pra morte cirrose de depressão Se o pensamento nasce livre aqui ele não é não Convoque seu Buda - Criolo, 2014 Figura 14 – Processo de vedação do prédio conhecido por “Tijolinho Vermelho” após despejo dos moradores Fonte: G1 Paraíba, 2016 | Editado pela autora, 2018


42 Ocupando vazios

É dever dos proprietários a manutenção dos seus imóveis, apesar disso, alguns deles os mantêm vazios, por

anos,

aguardando

uma

supervalorização imobiliária visando lucro,

mantendo

assim

imóveis

improdutivos na cidade e com inúmeras dívidas

públicas

da

propriedade,

enquanto que o governo não arrecada estes

recursos

para

que

sejam

revertidos em contrapartida na cidade. Figura 15 - Ambiente desocupado do imóvel nº 619 Fonte: Arquivo pessoal, 22/03/2019.

(TERRA LIVRE, 2013) O prédio que ocupamos é um dos inúmeros prédios que estão abandonados no centro, esperando a supervalorização pela especulação imobiliária, para que sejam transformados em grandes centros comerciais, shoppings, enquanto governos isentam dívidas de proprietários em troca de favores políticos. (TERRA LIVRE, 2013)

O relato feito pelo movimento Terra Live retrata os interesses e desinteresses dos responsáveis pela fiscalização imóveis,

e

ordenação

relativizando

negligenciando controversas

dívidas

as do

destes e

situações

destino

destas

unidades e do direito à cidade. Entre os casos de imóveis que tiveram seus ocupantes despejados, alguns deles ainda, de propriedade pública, demandam despesas mensais - como com seguranças particulares contratados pelo Estado – mesmo Figura 16 - Ambiente desocupado do imóvel nº 619 [2] Fonte: Arquivo pessoal, 22/03/2019.

sendo mantidos ociosos e degradados.


43 Ocupando vazios

O exemplo dado se relaciona com o imóvel nº 619 da Rua das Trincheiras, que mantém esta situação com a propriedade fechada. Em visita20 ao local foi possível constatar os danos ao patrimônio provocados pela antiga ocupação que, provavelmente,

aconteceu

sem

qualquer orientação sobre o valor cultural do bem e (obviamente) com poucos

recursos,

reforçando

a

necessidade de assistência para o controle

do

processo

de

descaracterização do imóvel e para condicionar melhores espaços. Embora aqui não se defenda a ocorrência das ocupações, é defendido o direito de ter um lugar, uma moradia, entendendo

as

consequências

ocupações de

um

como sistema

desiquilibrado e injusto da política brasileira e de muitos outros países. Portanto, enquanto esta situação não é resolvida,

medidas

discutidas

e

amortização

precisam

praticadas destes

ser

para

impactos

desordem pública e social.

Figura 17 - Patrimônio ocioso Fonte: Arquivo pessoal, 22/03/2019.

20

Visita realizada em 22 de março de 2019.

a de


44 Ocupando vazios

Segundo Silva (2018, p.16), “Tratar de vazios urbanos é tratar da

legitimando seus usos e atendendo à demanda da cidade.

dinâmica das cidades”, e deve ser traduzido também na reabilitação e adequação de construções ocupadas,

Reconhecer as ocupações como solicitações da cidade é meio para a identificação

das

necessidades

Figura 18 – Espaço público é a cidade, ocupe-a! Fonte: Arquivo pessoal, 2017

entre

outros

fatores,

de

direitos

fundamentais.

de

A reabilitação de edifícios com

famílias de baixa renda que buscam

adequação para novos usos, incluindo

essa inserção em espaços que melhor

o de habitação de interesse social (HIS)

se relacionam com suas ligações

- quando combinada a sensibilização

sociais e com o provento econômico,

patrimonial dos moradores -, se dá


45 Ocupando vazios

numa associação de funções capazes

expansão desnecessária da cidade, e

de contribuir com a qualidade do

(4) todos os fatores decorrentes dessa

espaço urbano tocante a ele. Esta

expansão – fatores ecológicos, por

variedade subsidia novas formas de

exemplo. Ofertar ambientes adequados

habitabilidade

o

para seus usos esperados é planejar

benefício da preservação da unidade

novas dinâmicas capazes de contribuir

de valor cultural e, colabora ainda, para

com o processo de regeneração de um

minorar o déficit habitacional da cidade.

espaço antes ocioso.

no

centro

com

Na reabilitação os maiores interessados estão na população residente, além de profissionais e militantes ligados à história e memória da cidade. A participação social e a solidariedade são valores que predominam sobre os do mercado. [...] (MARICATO, 2013. p. 126)

É indispensável considerar a reabilitação e transformação de imóveis tombados, preferindo assim dar-lhes função

a

mantê-los

inalterados,

ocasionalmente perdendo elementos de valor de preservação, e sem contribuição para a população desta centralidade.

preservação de conjunto de interesse cultural, deve preservar, o quanto

Embora necessidade

Dentre as especificidades da

seja de

defendida uma

a

avaliação

possível,

os

usos

da

população

residente. Maricato complementa ainda

minuciosa sobre a viabilidade das

que:

reabilitações desses imóveis, ainda, os

infraestrutura existente para adaptá-la

impactos ambientais destas são, quase

a novas necessidades procura não

sempre, menores quando relacionados

descaracterizar o ambiente construído

às demolições e novas construções

herdado” (2013. p. 126), devendo ser,

(BAKER,

portanto, solicitadas as “intervenções

2009

apud

DUARTE

e

TSUDA, 2018). Intervir no déficit qualitativo é,

“a

segurança 2013).

conservar as relações dos indivíduos que figuram estes espaços, (3) evitar a

na

conforto ambiental, acessibilidade e

com a readequação de imóveis que já

consolidar os seus lugares de origem e

necessária

mínimas” necessárias para assegurar

antes de tudo, (1) preencher lacunas

fazem parte da imagem da cidade, (2)

reforma

estrutural

(MARICATO,


46 Ocupando vazios

Vรฃo-se as cores Os tetos Os dias Onde se abriga a memรณria de quem fica depois que todos jรก foram embora?

Suellen Paulina, 2019.

Figura 19 - Imรณvel abandonado na Rua das Trincheiras Fonte: Arquivo pessoal, 22/03/2019


47 Ocupando vazios

1.3. Com quantos pobres se faz um rico? Para entender os processos de construção

de

desigualdades

de

acesso à cidade, é necessário resgatar algumas bases desta formação. Com a Lei das Terras, de 1850, no Brasil - que vivia sobre um contexto –

escravocrata obrigatoriedade

foi do

instituída registro

a da

propriedade das terras, os requisitos para este registro excluíam negros, índios, mulheres e imigrantes pobres (LELIS, 2013). Com uma trajetória baseada no modo

capitalista

de

produção,

a

apropriação privada da terra conferiu a este bem natural e coletivo o valor de mercadoria21 no espaço urbano. De um modo contraditório, conforme constata ilva (2012, p.124), “o capital provem não do trabalho, mas da exploração do trabalho”; a então força de trabalho, de valor

de

produção,

constituiu

o

proletariado. Deste modo, o surgimento

Os processos de constituição do proletariado moderno e da moderna propriedade privada estão profundamente atrelados, pois, apesar do que afirma a ideologia burguesa, o proletariado não existe naturalmente, sendo fruto de um processo histórico e geográfico bem específico. Tendo a sua disposição a propriedade dos meios de produção necessários a sua sobrevivência nenhum ser humano em sã consciência se submeteria a trabalhar para outros. E sem a existência de uma massa de trabalhadores possuidores apenas de sua força de trabalho o capitalismo não poderia existir como modo de produção historicamente determinado (SILVA, 2012, p. 124). (...) Se no campo a mercantilização da terra traz inúmeros problemas, na cidade tal processo considerando a concentração populacional e de equipamentos urbanos (indústrias, ruas, fábricas, etc) possibilita também uma série de problemas como a violência urbana, o desemprego, a precariedade das moradias etc., que permanecem até hoje em nossas cidades como a testemunhar que o capitalismo é um sistema de reprodução sócioespacial absolutamente desigual e gerador de desigualdades. (SILVA, 2012, p. 125)

das cidades está estreitamente ligado ao

surgimento

da

sociedade

de

classes. Oséias T. da Silva (2012), Doutor em Geografia, sobre o mercado de terras urbanas, escreveu: 21

Para saber mais sobre o mercado de terras urbanas, recomento a leitura de Silva (2012). Disponível em:

<https://seer.ufs.br/index.php/geonordeste/arti cle/viewFile/2459/2141>.


48 Ocupando vazios

Figura 20 - A desigualdade tem cor. O que ficou para trás de uma antiga ocupação de imóvel na Rua das Trincheiras Fonte: Arquivo pessoal, 22/03/2019.


49 Ocupando vazios

Figura 21 - Linha do tempo. Conquistas subsequentes à Lei das terras Fonte: Elaborado pela autora, 2019.

18 0 ei das terras

1888

1 48

Abolição da escravatura

eclaração dos ireitos Humanos

1 88 onstituição ederal

Racismo ambiental No Brasil quem tem o controle da

de que todos estão à mercê das

terra possui também a concentração do

desigualdades, embora há a nítida

poder. É importante recorrer aos fatos

divisão daqueles que estão submetidos

históricos para entender quem tem o

às desigualdades, sem alternativas

controle da terra, quem está sobre e

senão da luta por direitos igualitários, e

sob as desigualdades do país.

aqueles que estão acima destes, não

Sobre

e

sob

se

tornam

redundantes quando do ponto de vista

pela

superioridade,

mas

por

um

histórico egoísmo de poder.

Desigualdade faz tristeza Na montanha dos sete abutres Alguém enfeita sua mesa

Duas de cinco - Criolo, 2014

Embora movimentos

nem de

luta

sempre por

os

colonizadores tirou as terras dos índios

moradia

e dos negros, até então, escravizados,

relacionem diretamente a temática com

excluindo-os

o histórico de acesso à terra, “as

territorialmente (SOUZA, 2017).

vítimas da falta de moradia têm cor no rasil”22, e as desigualdades raciais estão pautadas na construção das nossas

atuais

apropriação

22

classes

sociais.

latifundiária

MARICATO, 2019.

A

pelos

socialmente

e

A disputa pelo poder por meio do controle da terra surgiu no período colonial em que foi instituída a propriedade privada com a Lei de Terras de 1850. A terra passa a ser acessível somente pela compra direta impossibilitando sua posse à população negra escravizada então “liberta” e os imigrantes camponeses europeus


50 Ocupando vazios

e asiáticos que vieram para o Brasil no fim do século XIX e no princípio do século XX. Portanto, a lei não permitiu a democratização da estrutura fundiária. Assim a propriedade privada da terra passa ao controle dos latifundiários (SOUZA, 2017).

“escravos livres”, os quais não tinham condições para adquiri-las. A luta pela terra tem, portanto, historicamente, ligação com a questão racial, com a luta de classes e pelo direito à moradia.

A terra “roubada” foi repartida entre latifundiários e dificultada para os

Figura 22 - Com quantos pobres se faz um rico? Fonte: Sou ES Notícias23, 2014 | Editado pela autora, 2018.

A democratização da terra seria,

Brasil e que pouco ou nada receberam

portanto, no mínimo, uma reparação

por

histórica das diferentes oportunidades

construídas através de exploração,

dadas aos grupos que formam esta

sonegação

nação, uma retratação àqueles que

deveriam ser redistribuídas para que

foram usados para e na construção do

fosse feita a justiça social.

23

s/ler.php?cdnoticia=1659>. Acesso em 18/12/2018.

Disponível em: <http://www.soues.com.br/plus/modulos/noticia

isso.

As

e

grandes

fortunas

corrupção,

estas,


51 Ocupando vazios

Figura 23 – Crianças reunidas durante o 1º Encontro Nacional das Crianças Sem Terrinha Fonte: MST, 2018 | Editado pela autora, 2019.

Raumi de Souza, militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem

Terra

(MST)

O negro historicamente compõe

opiniões

a maioria dos segregados socialmente,

estruturadas em percepções por ele

as lutas pela terra e de classe, portanto,

feitas sobre as pessoas que compõem

deveriam

assentamentos

movimento

sendo,

mestre

preconceito de classe e do racismo.

em

Geografia,

e

brasileiras, vítimas combinadas do

discorre

e

acampamentos,

majoritariamente

afro-

se

articular negro

junto para

ao uma

transformação social mais completa (SOUZA, 2017).


52 Ocupando vazios

Figura 24 - Mensagens urbanas | Ladeira de SĂŁo Francisco Fonte: Arquivo pessoal, 16/12/2018.


53 Ocupando vazios

CAPÍTULO 2 | EXPERIÊNCIAS O

trabalho

a

destinados para habitações, comércios

experiências de casos que buscaram a

e serviços, envolvendo questões para

reversão da realidade de imóveis de

preservação e fruição do patrimônio.

relevância

recorreu

arquitetônica

cultural,

A terceira experiência assim,

centrados no cenário abordado, para

buscou discutir os instrumentos e

exemplificar

programas

suas

potencialidades

e

e

limitações

e

relacioná-las

às

políticas públicas praticadas.

imóvel anteriormente ocupado que sofreu o processo de despejo dos seus moradores, e que buscou, através da Municipal

de

Habitação

Social (SEMHAB), sua requalificação para atender famílias de baixa renda, no entanto, apesar de levantados esforços de estudo e projeto, foi limitado a permanecer, até então, ocioso. O

segundo caso ilustrou a

restauração de 8 casarões históricos, que apesar de não terem registros de ocupação

de

uso

política

pública

relacionados e comumente solicitados nestas situações para o planejamento

O primeiro caso representou um

Secretaria

de

habitacional

possivelmente devido ao estado de conservação (ruína) de quando foram submetidos à intervenção - foram

urbano e patrimonial.


54 Ocupando vazios

2.1. O Prédio do antigo IPASE O edifício que abrigava a sede do IPASE (Instituto de Previdência e

era, até então, comumente produzido na cidade.

Assistência dos Servidores do Estado), antecessor do INSS, na capital paraibana, caracteriza-se

como

um

marco da verticalização das construções de João Pessoa. Erguido entre 1949 e 1951, rompia com o gabarito que Figura 25 - Corte longitudinal IPASE Fonte: Juliana P. e Marina G. Figura 26 – Vista aérea de João Pessoa Fonte: Acervo Humberto Nóbrega | Editado pela autora, 2019.


55 Ocupando vazios

O prédio de modelo modernista tem seu projeto atribuído a Benedicto de Barros, e integra elementos e soluções construtivas inovadoras para a época, sendo de excepcional valor cultural. O imóvel é formado por 8 pavimentos, sendo 1 semienterrado, 1 térreo, 1 mezanino e 5 pavimentos tipo. Instalado próximo à Praça Vidal de Negreiros [a], tem limites com a Rua Duque de Caxias [b] e a Rua Guedes Pereira [c]. Encontra-se dentro de Área de Preservação Rigorosa (APR) do CHJP,

protegido

pelo

(SEMHAB/PMJP, 2011)

IPHAEP.

[b] [c]

[a]

Figura 27 - Localização do Prédio IPASE Fonte: PMJP | Editado pela autora, 2019


56 Ocupando vazios

O

edifício

abandonado

pelo

mau cheiro do local, que chegava a

INSS – Governo Federal – por volta dos

provocar

anos 90, foi ocupado por famílias sem

(FELIPE, 2012)

teto no início dos anos 2000. Estas

mal-estar

nas

pessoas.

Diante de condições impróprias

ocuparam os pavimentos tipo, sendo o

de

pavimento

para

reivindicaram a reciclagem do edifício

depósito de vendedores ambulantes.

para Habitação de Interesse Social

(SEMHAB/PMJP, 2011)

(HIS), sendo, em maio de 2011, feita a

térreo

ocupado

salubridade,

entidades

sociais

A ocupação do edifício chegou a

solicitação do imóvel pelo Ministério

ser considerada a ocupação irregular

das Cidades para relocação de famílias

mais longa de João Pessoa, onde

e adequação do edifício para Habitação

permaneceram por anos famílias que

de Interesse Social (HIS).

dividiram o mesmo espaço com o lixo, sendo

contadas

até

50

famílias

morando no imóvel. (FELIPE, 2012)

Em junho do mesmo ano foi feita a

contratação

da

assessoria

do

Professor Hélio Costa (UFPB) para,

Abandonado há mais de 30 anos, o prédio apresenta fissuras, rachaduras e infiltrações em todas as partes. A única escada que serve de acesso para os andares mais altos não tem corrimão e está com degraus quebrados. O prédio também não tem portas e nem janelas e os moradores usaram pedaços de ripas e caibros para fechar as entradas. (FELIPE. Jornal da Paraíba, 2012)

junto à equipe IPASE/SEMHAB-PMJP

Além das situações relatadas

Tendo sido discutidos (1) os elevados

por Rizemberg Felipe, ele comenta que

custos para o restauro e adequação do

o prédio funcionava por meio de

edifício para fins de HIS devido ao seu

ligações elétricas clandestinas e que

valor histórico, (2) a planta livre24 com

possuía uma única torneira para o

lâmina muito profunda que conflitava

abastecimento de água dos moradores,

com as exigências do Código de Obras

estes constantemente faziam uso de

do Município para conferir salubridade

baldes para que a água chegasse aos

às

seus cômodos. Felipe relatou ainda o

extensa

24

divisórias, permitindo flexibilidade ordenação dos espaços internos.

A planta livre é um dos 5 pontos defendidos pelo arquiteto Le Combusier, o qual implica na desvinculação entre estrutura e as paredes

iniciar

trabalhos

para

conferir

a

viabilidade técnica, econômica e social do imóvel. (SEMHAB/PMJP, 2011) Durante

sua

pré-avaliação,

questões levantadas contestavam a viabilidade da adequação do prédio.

unidades área

habitacionais,

(3)

a

envidraçada

e

a

para a


57 Ocupando vazios

necessidade

de

elevadores

que

pavimento térreo com destinação ao

sugeriam altos custos de manutenção

comércio

pós-ocupação,

2011).

sendo

inviável

economicamente para famílias de baixa

O

popular

quadro

(SEMHAB/PMJP,

representado

na

renda, (4) a exigência das leis de

Figura 28, denota a síntese das

proteção do patrimônio de manutenção

alternativas levantadas para o uso da

rigorosa dos imóveis e (5) a improvável

edificação, fundamentando à Habitação

solução estratégica de financiamento

Transitória (HT) como melhor opção

dos custos de condomínio através da

para a reciclagem e manutenção do

captação de recursos com o aluguel do

edifício.

Figura 28 – Quadro síntese de viabilidade para três alternativas de uso da edificação Fonte: Estudo de caso da SEMHAB, 2011

Diante

da

recomendação público

e

envolvidas

às era

análise,

dirigida

ao

entidades a

de

que

a

do edifício para HT, entendendo que

poder

esta conformação contribuiria para

sociais

conciliar conflitos, entre outros, o de

fosse

interesse social direto (demanda dos

considerada a hipótese da intervenção

sem

teto)

e

a

preservação

do


58 Ocupando vazios

patrimônio histórico. Atentando-se ao

digitalização

fato que esta solução demandaria uma

prospecção da natureza tectônica do

gestão pública eficaz (SEMHAB/PMJP,

edifício, identificação preliminar de

2011).

danos A

metodologia

de

desenvolvimento do trabalho buscou referências

em

projetos

e

das

o

plantas

originais,

desenvolvimento

de

propostas arquitetônicas alternativas (SEMHAB/PMJP, 2011).

de

A produção, portanto, foi de

realizados

grande contributo no registro das

anteriormente, estudos de trabalhos

condições do edifício de valor cultural,

acadêmicos

e

com o resgate e preservação da

conservação de edifícios de valor

memória do edifício. Os registros

histórico, e sobre o valor histórico e

fotográficos realizados ilustraram as

cultural

IPASE.

condições da ocupação, denotando

Subsequentemente, foram realizados

inadequadas para a permanência de

levantamentos gráficos e fotográficos,

famílias.

reciclagem/retrofit

do

sobre

Edifício

restauro

do

Figura 29 – Situação do segundo pavimento do Edifício do antigo IPASE Fonte: Alessandra Soares, 2011 | Editado pela autora, 2019.


59 Ocupando vazios

As

plantas

relativas

ao

pavimento tipo do edifício são repetidas

Mínimo

de

40

unidades

habitacionais;

em 5 lâminas, e foram, assim como

Escada de incêndio;

todas as demais plantas originais do

Depósito

edifício,

de

material

de

digitalizadas

e

com

os

Lixo;

levantamentos físicos realizados pela

Playgroung;

equipe da SEMHAB em 2011.

Escritório / estudo;

O programa de necessidades -

Sala de reuniões;

conforme indicado em apresentação

Lavanderia;

produzida pela equipe da SEMHAB

Inclusão digital;

para defesa do projeto - buscou atender

Centro profissionalizante;

as seguintes orientações:

Creche;

Comércio e serviços;

Área de lazer e convivência.

compatibilizadas

limpeza;

Figura 30 – Croqui de estudo Fonte: SEMHAB, 2011.


60 Ocupando vazios

Embora todo o desempenho

histórico devido às especificidades dos

realizado para adequação do edifício às

imóveis de valor cultural que exigem

tipologias propostas, o imóvel voltou à

custos maiores para a intervenção e

ociosidade.

manutenção.

Segundo

Yuri

Duarte

Além

disso,

havia

Lopes25, não existia uma linha de

problema com a titularidade do prédio,

financiamento, quando foi desenvolvido

existindo outros interessados pela sua

o projeto, que pudesse viabilizar o

aquisição.

empreendimento.

interesse na disputa da propriedade.

O

PMCMV

era

A

prefeitura

não

teve

inviável quando se tratava de centro

Figura 31 - Aqui. Vista para o atual estado de conservação do Prédio do antigo IPASE Fonte: Rafaella Dantas, 2018 | Editado pela autora, 2019.

25

Yuri compôs, em 2011 e 2012, a equipe técnica para o projeto de requalificação do prédio do antigo IPASE. Atualmente é

coordenador de Habitação da Secretaria de Planejamento na Prefeitura Municipal de Conde/PB.


61 Ocupando vazios

Além da fragilidade estrutural, a Eu não preciso de óculos pra enxergar O que acontece ao meu redor Eles dão o doce pra depois tomar Hoje vão ter o meu melhor

negligência com o edifício mantém outras situações de risco, como a fiação elétrica comprometida e exposta, e pontos de acúmulo de água das chuvas na laje (as telhas da laje do

Mariô - Criolo, 2011

último pavimento do prédio foram retiradas), transformando o local em um

Diante

das

circunstâncias

apresentadas, o fato é que o disputado imóvel voltou para a ociosidade e assim permanece por anos decorridos após seu projeto. Em agravante, o edifício foi, seguidas vezes, apontado pelo risco

iminente

de

transmitir doenças (FRANÇA, 2015). Esta

última

facilmente

situação

observada

pode

ser

através

da

cobertura do prédio vizinho, o Edifício Regis.

desabamento

(MEIRELES, 2018), e, apesar disso, nada tem sido feito para reverter esse quadro.

criadouro de mosquitos que podem

Figura 32 - Cobertura do Prédio do antigo IPASE serve de criadouro para mosquitos transmissores de doenças Fonte: Arquivo pessoal, 10/05/2019.


62 Ocupando vazios

Devido a esta disposição para a disseminação de doenças, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) indicou ter disponibilizado um agente da vigilância ambiental para que a cada 15 dias fossem feitas aplicações de larvicidas no local (FRANCA, 2015). Reflete-se aqui

a

controvérsia

geradas

para

a

de

despesas

manutenção

do

abandono. Embora

apontada

a

atual

fragilidade estrutural do edifício, sua ociosidade é considerada parcial pois, este, ainda abriga um restaurante no primeiro

pavimento

e

pequenos

comércios instalados no pavimento térreo - como depósito e até mesmo como estabelecimento comercial – devido à proximidade com um shopping popular de João Pessoa, entre outros empreendimentos, que movimentam grande número de pessoas durante os horários comerciais. Um

dos

precursores

da

arquitetura modernista em altura da capital está sendo encaminhado para ruir, para perder todo o seu status de protagonismo na cidade da qual é legado da sua história e expansão, ao passo que não são resolvidas as necessidades de inúmeras famílias que lutam por um lugar para morar. Figura 33 - 1º pavimento e térreo do prédio do antigo IPASE estão ocupados Fonte: Arquivo pessoal, 10/05/2019.


63 Ocupando vazios

Figura 34 – Fachada do prédio do antigo IPASE com a Rua Guedes Pereira Fonte: Arquivo pessoal, 2018.

.


64 Ocupando vazios

2.2. A Villa Sanhauá O projeto da Villa Sanhauá no

O projeto, que já levou o nome

bairro do Varadouro em João Pessoa é

de

um exemplo de requalificação de 8

construção

casarões

habitacionais, sendo uma adaptada

históricos

da

Rua

João

Vila

Moradouro, de

viabilizou

17

para

Municipal de Habitação Social de João

Especiais

Pessoa (SEMHAB), em 2013.

comerciais e 1 unidade institucional

proporcionar

condições

de

de

unidades

Suassuna, almejado pela Secretaria

Seu objetivo principal era o de

Portadores

a

(PNE),

Necessidades 6

unidades

(SEMHAB, 2013). Os

casarões

habitabilidade ao local, oferecendo uma

desapropriados

nova dinâmica de usos, com unidades

inúmeras

habitacionais,

estavam em avançado estado de

de

comércio

e

de

por

foram

dívidas

de

apresentarem IPTU;

serviços, inserido em uma política de

deterioração

na

valorização e requalificação do Centro

intervenção,

oferecendo

Antigo (SEMHAB, 2013).

inclusive, aos transeuntes de seu

Figura 35 - Estado dos imóveis na ocasião da intervenção e proposta. Fonte: SEMHAB, 2013.

logradouro.

ocasião

estes

da riscos,


65 Ocupando vazios

Os imóveis estão inseridos na

casarões

receberam

um

novo

poligonal de tombamento Nacional (do

esqueleto estrutural, também metálico,

IPHAN). Moradores da Villa Sanhauá

independente do original, que não toca

contam que uma das antigas unidades

as

comerciais era ocupada de forma

descarregando os esforços das novas

irregular por um comerciante do local,

estruturas de laje e coberta (que

tendo

precisaram

este

sido

posteriormente

paredes

originais

ser

do

prédio,

reconstruídas)

nas

atendido com um imóvel do citado

fundações, estabilizando a construção

empreendimento.

e garantindo a distinção entre o original

Não

foram

encontrados registros de ocupação de

e as intervenções contemporâneas.

uso habitacional no prédio, o que pode

A intervenção buscou respeitar

estar diretamente ligado ao seu antigo

os condicionantes de preexistência dos

estado de conservação (ruína).

imóveis, buscando manter a estrutura

O projeto traçou a abertura de um

pátio

Casarões comum

interno, e

de

integrando

gerando acesso

habitacionais,

às

unidades

foram

necessárias aberturas de alguns vãos para

a

viabilização

do

projeto

(SEMHAB, 2013).

natural,

atender famílias incluídas no segmento

viabilizando este uso (SEMHAB, 2013).

de faixa 126 (com renda de até 3

Foi metálica

iluminação

criada que

permitir

embora

Foi inicialmente pretendido para

e

de

espaço

restaurada,

a

ventilação

além

um

os

original

uma

atravessa

passarela os

lotes

conectando os apartamentos, e os

26

salários mínimos), sendo, no entanto,

Declarações feitas por Raissa Monteiro, Arquiteta e Urbanista que compôs a equipe técnica do projeto da Villa Sanhauá, durante o

Figura 36 - Conjunto de fachadas Art-Déco da Rua João Suassuna Fonte: SEMHAB, 2013 | Editado pela autora, 2019

Seminário Paraibano de Política Urbana, em 2018.


66 Ocupando vazios

posteriormente repensado para rendas

maior necessidade de manutenção

mensais compreendidas entre 1 (um) a

exigida pelo imóvel que sucumbe

10 (dez) salários mínimos27, devido à

interesse cultural histórico.

Figura 37 - Requalificação de imóveis do Villa Sanhauá Fonte: Arquivo pessoal, 2018

A

o

dinâmicas na área, mantendo esta ideia

empreendimento de uso misto com a

mesmo que implicasse, para isso, o uso

intenção

de recursos próprios do Município - já

27

gestão

de

defendeu

promover

melhores

Conforme consta nos critérios do edital para seleção de interessados nas unidades da Villa Sanhauá. Disponível em:

<http://www.joaopessoa.pb.gov.br/portal/wpcontent/uploads/2018/01/EDITAL-DESELE%C3%87%C3%83OCASAR%C3%95ES-DA-JO%C3%83OSUASSUNA-1.pdf>


67 Ocupando vazios

que os do PMCMV só financiavam empreendimentos habitacionais. Desta ficaram

forma,

caras,

que

às experiências com empreendimentos

unidades

SEMHAB

revisou

desistência, de futuros proprietários,

habitação

para

pela

concessão,

de

refletiu

semelhantes em outra capital28, a

na

aquisição

o

as

Diante desta situação e devido

alguns

destes

o

projeto

formulação

viabilizando

de

assim

o

mantendo

a

imóveis. As unidades habitacionais

empreendimento

tornaram-se inviáveis para o público

propriedade

alvo a que foram destinados os

concessão permitiu aos inquilinos a

apartamentos (artistas, trabalhadores

segurança da moradia por 20 anos,

da área central e demais pessoas que

podendo ser renovada, com um valor

movimentavam o centro culturalmente).

equivalente

Embora estes estivessem enquadrados

(aproximadamente R$ 300,00/mês).

nos

critérios

de

uso

e

de

pública

a

um

do

prédio.

aluguel

A

social

do

Foram assim entregues, em

empreendimento e interessados pela

junho de 2018, apartamentos melhor

compra, muitos não tiveram condições

avaliados qualitativamente em relação

de arcar com os valores de entrada dos

às provisões do PMCMV, com aluguel

imóveis.

acessível e regulado, bem inseridos no Figura 38 - Apartamento decorado da Villa Sanhauá Fonte: PBhoje, 2018 | Editado pela autora, 2019.

||

28

Informação colocada durante conversas técnicas locais sobre empreendimento em São Luís, MA.


68 Ocupando vazios

CHJP,

em

uma

malha

urbana

ao descarte do lixo proveniente das

amplamente construída e diversa, com

unidades habitacionais, não tendo sido

disponibilidade de infraestrutura urbana

pensado espaço comum para seu

e de diferentes modais de transporte

destino temporário e não permitindo a

público, tendo ainda reabilitados os

estes a permanência em frente as

casarões de valor histórico para a

unidades devido às normativas e regras

cidade e contribuído com a criação de

do condomínio.

novas dinâmicas de uso dos espaços

Entre outros pontos, não foi

imediatos, se tornando um exemplo de

previsto

o

sistema

para

ar-

viabilidade de projetos desta natureza

condicionado (devendo ser repensada

para a cidade.

a sua necessidade ou não), o que pode

A Villa Sanhauá representa uma

implicar na intervenção e disposição

incipiente política de requalificação

destes aparelhos nas fachadas dos

para o Centro inicial da cidade de João

imóveis; além disto, já ocorreram

Pessoa,

solicitações

no

entanto,

frente

aos

de

adaptações

para

benefícios advindos dessa oferta, seu

unidades comerciais que demandaram

uso

adições de espaços apropriados para o

ainda

incongruentes repensadas

levanta que para

situações

merecem os

ser

armazenamento e uso de gás GLP, que

modelos

não foram previstos no projeto da Villa.

subsequentes.

Apesar

da

oferta

de

uma

Por serem imóveis tombados,

unidade acessível – no térreo - para

sucumbem diversas normativas para

PNE, não foi viabilizado o acesso deste

uso

morador ao 1º pavimento, restringindo

do

prédio

necessidade

-

incontestada

deste

a

quesito,

entendendo como fundamental para o controle

de

descaracterização

do

assim seu uso em situações diversas. Estes questionamentos visam levantar

discussões

tanto

o

patrimônio - esbarrando, no entanto,

enriquecimento

em atividades advindas de seu uso,

relacionados

habitacional e de serviço, apresentando

posicionamentos sobre o equilíbrio

imprecisões.

entre as normativas patrimoniais e a

Uma das situações levantadas mediaa pós-ocupação, foi em relação

de

para

quanto

melhor fruição do bem.

projetos para

buscar


69 Ocupando vazios

Figura 39 - Atual fachada da Villa Sanhauรก Fonte: Arquivo pessoal, 2018.


70 Ocupando vazios

Enquanto os arquitetos não fizerem política, os políticos continuarão fazendo Arquitetura

Pedro Ramírez Vázquez

2.3. Políticas públicas para o direito de morar Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (BRASIL, 1988, p. 19)

A Constituição brasileira de 1988 (CF/88) é o grande marco do processo

oposição, em área urbana de até duzentos

e

cinquenta

metros

país29,

quadrados, desde que a utilize para

assegurando o exercício dos direitos

moradia e não possua outro imóvel

sociais e individuais, entre eles, o da

urbano ou rural – usucapião31 (BRASIL,

moradia30

1988).

de

redemocratização

digna,

do

independente

de

classe ou condição social. Trata ainda,

A CF/88 confere, desta forma,

em seus arts. 182 e 183, da política de

meios para o domínio e a concessão de

desenvolvimento urbano e da função

uso de áreas que não estão produzindo

social da cidade (GOLÇALVES, et. al.

- que não estão cumprindo a sua função

2017).

social – para o homem ou à mulher que Em decorrência, programas e

dela

se

utilizar

para

moradia.

instrumentos foram criados buscando

Importante ressaltar que o § 3º do

amenizar ou, até mesmo, reparar as

mesmo Art. também observa que “os

diferenças que foram construídas.

imóveis públicos não serão adquiridos

O Art. 183 da CF/88 expõe

por usucapião” (

A I , 1 88).

medidas para a democratização do uso

O Código Civil (CC) Brasileiro,

do solo, reconhecendo o domínio da

de 2002, sobre a perda da propriedade,

propriedade àquele que permanecer

especifica motivos à ocorrência: (I) por

por cinco anos ininterruptamente e sem

alienação; (II) pela renúncia; (III) por

29

31

Após longo período de ditadura militar (1964 a 1985). 30 O termo moradia foi conferido a partir da Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000.

Medida provisória 17.424/2011.

convertida

na

Lei


71 Ocupando vazios

abandono; (IV) por perecimento da

da propriedade fica à deriva da sua

coisa; e (V) por desapropriação. Ainda

função social, já que o Enunciado 243,

incisivo em seu Art. 1.276 relaciona o

extraído de estudos incentivados pelo

imóvel urbano abandonado:

Conselho da Justiça Federal, sobre o

Art. 1.276. O imóvel urbano que o proprietário abandonar, com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade do Município ou à do Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições.

parágrafo 2º do artigo 1.276 do CC,

[...] § 2º Presumir-se-á de modo absoluto a intenção a que se refere este artigo, quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais. (CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO, 2008, p.298. Grifo nosso)

- perda da propriedade - não dá direito,

Presume-se, portanto, que o proprietário que deixa de contribuir com os encargos sobre sua propriedade, que

não

assume

relacionadas

-

as

atribuídas

dívidas para

arrecadação como contributo para a cidade

-

abandonou

seu

imóvel,

omitindo sua responsabilidade para com ele, ficando assim sujeito à perda do domínio da sua propriedade para o Município ou para o Distrito Federal, cabendo a estes findar seus interesses no imóvel. O não pagamento dos encargos da propriedade é apenas um dos indícios do abandono, mas o confisco

32

Desembargador Federal aposentado do Tribunal Regional Federal (TRF) 4ª Região, onde foi presidente e professor doutor de

“conclui que o dispositivo citado não pode contrariar o artigo 150, IV, da onstituição” (

EITA , 200 ).

Quando

da

constatação

do

abandono, a desapropriação do imóvel

inclusive,

a

(FREITAS,

qualquer 2009).

indenização

Apesar

destes

dispositivos legais, é grande o número de imóveis abandonados, conforme anteriormente

relatado,

em

João

Pessoa, os quais o município não faz qualquer arrecadação, mantendo-os em descumprimento da sua função social. Vladimir Passos de Freitas32, indica medidas voltadas para bens imóveis

que

se

encontram

abandonados, conforme seguem: a) promover um levantamento de imóveis abandonados; b) instaurar um processo administrativo de arrecadação para cada imóvel abandonado, instruindo-o com prova da omissão no pagamento do IPTU e informações do setor de fiscalização (inclusive fotografias); c) notificar o proprietário, pessoalmente por funcionário da Prefeitura (Lei 10.257/01, art. 5º, § 2º), carta com AR ou, no caso de insucesso, por edital, para que Direito Ambiental da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR)


72 Ocupando vazios

exerça seu direito de defesa (CF, art. 5º, inc. LV); d) após, proferir decisão administrativa, decretando (ou não) a arrecadação como bem abandonado. (FREITAS, 2009)

Declarada a vacância do bem imóvel, que deverá aguardar três anos após as notificações, o Poder Público

propriedade.

Estes

estabelecidos

para

expansão

desenvolvimento

das

este obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes. § 4º É facultado ao poder público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:

para reverter qualquer dano social ou perigo que a propriedade apresente. caso

na

dos Planos Diretores Municipais, sendo

devendo, portanto, tomar providências

no

orientar

cidades, são regulamentados através

passa a exercer a posse do imóvel

Entretanto,

e

instrumentos,

do

comparecimento do proprietário dentro

I – parcelamento ou edificação compulsórios;

do limite de tempo do triênio não se

II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;

configurará o abandono (CC, Art. 275, III), devendo o proprietário ressarcir ao

este, preferencialmente, destiná-lo à

III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e dos juros legais. (BRASIL, 1988, p. 95)

atividade de cunho social, a exemplo de

Planejar a expansão das cidades

município todas as despesas a que deu causa. (FREITAS, 2009). Consumado domínio

do

o

imóvel

abandono, deverá

o ser

transferido para o município, cabendo a

Habitação de Interesse Social (HIS),

é

podendo, portanto, em caso de imóvel

impactos socioambientais provenientes

que

de

do seu crescimento, e para que a

ocupação por famílias com interesse de

cidade se aproxime de uma maior

moradia, ser o imóvel devolvido de

qualidade de vida para a população.

passa

por

um

processo

forma a efetivar o uso o qual fora ressignificado.

fundamental

para

minimizar

os

O Plano Diretor (PD) da cidade de João Pessoa foi consolidado, na sua

Foram formulados, em 2001, em

última revisão, pela Lei complementar

decorrência do Estatuto da Cidade (Lei

n° 054, de 23 de dezembro de 2008,

Nº 10.257), inúmeros instrumentos

estando a postos de sua nova revisão

para a consolidação do direito social da

para conformidade com o Estatuto da


73 Ocupando vazios

Cidade, que determina que a Lei que

Urbana.

institui o Plano Diretor da cidade deve

participação

ser revisada, pelo menos, a cada dez

produto dos temas debatidos, um

anos.

manifesto com indicação de diretrizes O PD de João Pessoa é

considerado

um

instrumento

O

evento

foi

popular

aberto

e

à

elaborou,

para composição do novo PD de João Pessoa.

estratégico para a gestão do espaço

O evento aconteceu no Espaço

urbano, com objetivo, conforme seu Art.

Cultural José Lins do Rego, no bairro de

2º, de:

Tambauzinho, e contou também com a [...] assegurar o desenvolvimento integrado das funções sociais da cidade, garantir o uso socialmente justo da propriedade e do solo urbano e preservar, em todo o seu território, os bens culturais, o meio ambiente e promover o bem estar da população. (PLANO DIRETOR DE JP, 2008)

O

instrumento

palestra sobre “Participação Popular na onstrução da

idade” de

ernando

Haddad, que recebeu o prêmio ONU Habitat pelo Plano Diretor de São Paulo durante a sua gestão como prefeito. As

do PD gera

discussões

para

este

provisões para que sejam assegurados

dispositivo

os direitos sociais para todos, sendo

subsequentemente novas tentativas de

um dos mais importantes instrumentos

atingir a diversidade de setores da

de política urbana da cidade, portanto,

sociedade, reunindo profissionais e

é

comunidades,

almejada

que

sua

elaboração

advenha da participação popular. Em João Pessoa, em tentativa da participação popular, em outubro de

seguiram

no

entanto

a

atual

gestão da cidade tem encerrado este processo entre quatro paredes (ROSSI, 2019).

2017 foi realizado o Fórum Plano Diretor Participativo, que organizou o Seminário Cidades Democráticas, onde

O programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV)

discussões

Advindo da lei 11.977/09, é fruto

compreendidas entre cinco temáticas:

de investimentos do Ministério das

(1) Auto Gestão de Comunidades, (2)

Cidades. Surgiu como um grande

Planejamento Urbano e Participação

instrumento de combate ao déficit

Popular, (3) Cidade e Tecnologia, (4)

habitacional

foram

desenvolvidas

Acessibilidade e Direito à Cidade e (5) Transparência Pública na Mobilidade

que,

embora

tenha

apresentado diversos problemas que levantaram duras críticas ao programa, foi, em caráter paliativo, um grande


74 Ocupando vazios

aliado na integração de famílias a condições mais dignas de habitação.

A crítica, portanto, é relativa à posição do indivíduo dentro deste

O programa trouxe instrumentos

contexto, sendo, sobretudo, de extrema

que viabilizaram a aquisição da casa

relevância para que seja buscado o

própria para uma parcela da população,

aperfeiçoamento

como o regime especial de tributação33

questões paradoxais difundidas com o

(RET), praticando taxas de imposto em

advento do PMCMV são discutidas

torno de 1%, permitindo assim reduzir

para que haja uma amortização dos

os custos das construções.

impactos, ora não calculados, dos

O discurso crítico ao programa

do

programa.

As

modelos implantados.

advém massivamente de profissionais

Os espaços públicos imediatos

ligados ao planejamento urbano e de

aos empreendimentos, mesmo não

famílias que têm distanciadas as suas

recebendo um tratamento urbanístico

relações de pertencimento com o lugar

ideal para dar suporte aos novos

que moravam, no entanto, muitas

conjuntos habitacionais do PMCMV,

famílias contempladas pelo PMCMV

atraem

têm

particulares e exploram os valores

sua

realidade

transformada

-

intimamente

quando

analisadas

situações de pessoas que habitavam

novos

comercializados

destas

investimentos

localidades.

(LOPES, 2018)

imóveis de extrema precariedade e que passaram a comportar estruturas que, embora

geralmente

qualidades

com

poucas

habitacionais,

incontestavelmente

superiores

são as

situações anteriormente vivenciadas. “ ão acredito que antes de morrer eu vou morar numa casa de tijolo”, declarações como a de

eu

Severino, morador de uma casa de

Selva A gente se acostuma a muito pouco A gente fica achando que é normal Liberdade para escolher a cor da embalagem

taipa no Conde, PB, são o retrato da excitação

com

a

perspectiva

de

melhores condições de moradia. 33

Menores tributações sobre as atividades e operações relacionadas ao programa.

No meio de tudo, você – Engenheiros do Hawaii, 2007


75 Ocupando vazios

Os

impactos

desses

Esta inclusão no suprimento de

empreendimentos podem ser citados:

moradias para famílias de baixa renda

(1) a elevação do valor dos lotes e

se mostra, portanto, controversa ao

aluguéis

passo que, muitas vezes, as exclui, a

próximos

habitacionais

do

aos

conjuntos

PMCMV,

(2)

a

dizer, que se segrega uma classe social

deficiência do espaço urbano onde

que não tem o privilégio da escolha do

majoritariamente foram inseridos os

melhor lugar para morar. Este é um

empreendimentos e a (3) localização

contundente reflexo do produto em que

dos condomínios nas franjas da cidade.

a terra brasileira se tornou.

O custo elevado para aquisição de novos

lotes

investimentos

dificulta públicos

Duarte

Lopes

(2018)34,

novos

coordenador de habitação da prefeitura

esta

do Conde, relata que parte do problema

para

mesma área.

do PMCMV se deu pela forma com que

Por não terem sido previstos estes

Yuri

empreendimentos

da

pleitear o viés econômico, o programa

cidade suprida de infraestrutura, eles

embutiu-se ao déficit habitacional para

são geralmente lançados para as

que

periferias,

quantitativo e para movimentar

em

lotes

dentro

este sobreveio declaradamente para

muito

mais

houvesse

acessíveis economicamente para as

economia

empreiteiras responsáveis, em áreas

implementação.

desprovidas

de

urbana

distante

e

boa

infraestrutura dos

núcleos

comerciais da cidade. (LOPES, 2018)

tal

quando

reducionismo

da

a

sua

Ermínia Maricato (2019) afirma que, entre 2009 e 2015, passamos por um ataque especulativo imobiliário com número de provisões muito expressivo, tanto de moradias de baixa renda

Corrida pra vender os carros Pneu, cerveja e gasolina Cabeça pra usar boné E professar a fé de quem patrocina

3ª do Plural – Engenheiros do Hawaii, 2002.

34

Declarações feitas durante o Seminário Paraibano de Política Urbana em novembro de 2018.

quanto com o mercado imobiliário. As cidades brasileiras passaram por uma produção imobiliária muito expressiva, tanto a produção de moradias de baixa renda – com o Minha Casa Minha Vida entregando mais de quatro milhões de moradias – quanto com o mercado imobiliário, que mudou


76 Ocupando vazios

o perfil das cidades brasileiras, mas piorou as condições de vida. (MARICATO, 2019)

habitacionais de propriedade privada. (LOPES, 2018)

Esta situação atropelou o que

Ainda

segundo

Yuri

Duarte

até então vinha sendo praticado, em

Lopes (2018), a produção habitacional

termos de planejamento habitacional,

com o planejamento urbano e com o

como o Plano Nacional de Habitação –

mercado do solo (valorização da terra e

PNH

tributação)

(ainda

existente),

que

se

estão

intrinsicamente

apresentava de forma mais completa,

conectados,

vinculando-se,

problemática criticada do PMCMV está

por

exemplo,

aos

grande

parte

da

movimentos sociais e a assistência

relacionada

técnica – AT para além da provisão

prestigiam empreendimentos distantes

massiva

da cidade urbanizada.

de

novas

unidades

as

regulações

que

Quem tem noção das coisas, sente o peso da maldade A cobrança é maior, inteligência atrai vaidade E quem se deixou levar fraquejou Essa é a verdade, aprenda com os erros Não se sinta um covarde

Ainda há tempo – Criolo, 2006

É necessário salientar que o

A

provisão

habitacional

programa, ao longo do tempo, foi

demanda elevados recursos federais

moldado, e as normativas mais atuais

e/ou

apresentam melhorias em relação às

investimentos mais dispendiosos em

anteriores. As portarias atuais possuem

termos de política urbana. Pequenos

critérios para implantação do PMCMV

municípios, por não terem arrecadação

que atualmente levam em conta, por

suficiente para este tipo de programa,

exemplo, a conectividade entre os

dependem do investimento do governo

espaços públicos e habitacionais, a

federal.

acessibilidade e a implantação de equipamentos

comunitários

comerciais

antes

que

relevados (LOPES, 2018).

não

municipais,

De

outro

sendo

modo,

um

o

dos

déficit

e

habitacional pode ser minorado, com

eram

perspectiva de menores investimentos, com

a

qualificação

de

imóveis

existentes, sendo esta uma opção mais


77 Ocupando vazios

viável, em termos de recurso, a

disso,

provisão.

procuram abarcar diferentes contextos,

Com

o

instrumento

da

Assistência Técnica para Habitação de

apresenta

modalidades

que

como a do PMCMV entidades.

Interesse Social (ATHIS) é possível

Para

a

atual

estrutura

do

promover melhorias habitacionais por

programa foram necessárias revisões

intermédio de profissionais qualificados

para

e com projetos participativos.

atendessem

Grande

do

os

recursos na

oferecidos

diversidade

e

déficit

complexidade das situações da política

habitacional brasileiro é qualitativo,

habitacional brasileira, não existindo,

fruto

da

portanto, uma solução única. Novas

precariedade das unidades disponíveis.

revisões devem ser sempre discutidas.

de

parte

que

autoconstrução

Apresentam

e/ou

expressivamente

Os vazios urbanos, conforme

regularização

visto, influenciam no déficit habitacional

fundiárias, ocupações precarizadas,

e possuem potencial para inserção de

pouca ou nenhuma qualidade urbana

novas

de infraestrutura e mobiliário e falta de

consolidadas

acesso a serviços, equipamentos e

urbana.

problemas

com

mobilidade.

habitações e

em

com

Atualmente,

a

áreas

infraestrutura

redução

dos

Para Yuri Duarte Lopes (2018)

repasses de recursos do programa tem

qualificar o existente contribui para que

refletido na estagnação das novas

sejam

provisões, tendo sido transferida esta

evitadas

novas

expansões

desnecessárias da cidade para as

responsabilidade

periferias,

habitacional

expressivos

com

direito

para

o

PMCMV,

entretanto, o Município tem o dever de

devendo, portanto, ser rediscutida a

promover habitação digna para a

escala das provisões habitacionais.

população.

PMCMV

à

mais

política

cidade,

O

de

resultados

de

apresenta-se

diversificado (faixa 1, faixa 1,5, faixa 2 e faixa 3)35 para atender às diferentes demandas e classes sociais, além

35

Conforme informado pelo site da Caixa. Disponível em: <http://www.caixa.gov.br/voce/habitacao/minh a-casa-minha-

vida/urbana/Paginas/default.aspx>. Acesso em maio de 2019.


78 Ocupando vazios

O PMCMV entidades

Aluguel Social

Esta modalidade do programa empodera

os

movimentos

Entre

os

programas

de

sociais,

assistência e incentivo, o Governo

dando a estes a autonomia para a

Federal criou o aluguel social, que é um

contratação

benefício

de

empresa

para

a

assistencial

temporário,

assistência em projetos que mantêm

concedido para famílias ou pessoas

melhores

os

vítimas de desastres naturais, que

profissionais e a população requerente.

moram em áreas de risco ou que foram

Para esta, no entanto, destina a menor

expostas a vulnerabilidade temporária.

parcela dos recursos do PMCMV.

(PIS, 2018)

relações

Os

projetos

entre

PMCMV

O benefício é assegurado por

entidades têm, em geral, qualidade

fundamentos constitucionais e pela Lei

superior às fornecidas pelas empresas

8.742/93, já o decreto nº 6.307/07

responsáveis

de

dispõe sobre o auxílio mensal de um

unidades novas. Isto porque estas

valor para pagamento de aluguel em

últimas buscam produzir com o custo

caso de vulnerabilidade social ou

mais baixo recebendo o recurso mais

calamidade pública. (PIS, 2018)

pela

do

construção

alto para atingir assim uma maior margem de lucro.

Este

atende

atualmente

estados do Rio de Janeiro, Minas

Com a priorização do lucro por

Gerais, São Paulo, Santa Catarina e

parte das empreiteiras, a qualidade dos

Rio Grande do Sul (PIS,

imóveis

cabendo

é

perdida.

os

Na

situação

aos

demais,

2018), medidas

contrária, como a construída em função

similares e igualmente paliativas para

dos interesses dos movimentos sociais,

resolver problemas de urgência, como

a relação do projeto é mais próxima da

o do caso ocorrido com a ocupação

população, sendo melhor consideradas

Pocotó36, em Recife-PE que, após

as necessidades dos beneficiários.

passar por um incêndio que consumiu inteiras algumas das unidades da ocupação,

precisava

de

soluções

imediatas para atender às famílias que perderam todo o pouco que tinham.

36

Comunidade erguida sobre o túnel Augusto Lucena, em Recife


79 Ocupando vazios

Nesta

situação,

forneceu

um

auxílio

200,00)

que,

no

o

Estado

moradia entanto,

(R$ era

social, mas para minorar o déficit habitacional do país. Segundo

Gilson

Paranhos37,

insuficiente, sendo incompatível com os

para resolver o problema de habitação

valores dos aluguéis regulares da

do Brasil não é necessária a produção

cidade.

de nenhuma unidade habitacional, e

Entre os instrumentos criados

instrumentos como o aluguel legal38

para atendimento imediato à demanda

contribuiriam para solucionar entre 70%

por moradia, há os que buscam

e 80% desta demanda, trazendo a

amenizar os valores estipulados para

população para ocupar os vazios

imóveis já disponíveis, não somente

urbanos centrais.

para assistir casos de vulnerabilidade

37

Gilson Paranhos é presidente da Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal (Codhab-DF), sua fala se deu durante uma palestra realizada no IAB.PB no dia 18 de

outubro de 2018 sobre assistência técnica e atuação profissional. 38 O instrumento compõe o programa Habita Brasília.


80 Ocupando vazios

Figura 40 – Quem cuida da cidade? Rua Padre Antônio Pereira Fonte: Arquivo pessoal, 2018.


81 Ocupando vazios

Assistência Técnica para Habitação

mas deve tratar também da integração

de Interesse Social – ATHIS

da comunidade às discussões e ao

A Lei Federal de Assistência

desenvolvimento

Técnica para Habitação de Interesse

regularização

Social – ATHIS (Lei 11.888/2008) foi

2014)

instituída como importante instrumento

do

plano

fundiária.

de

(BARROS,

A mesma deve ser pensada

para contribuir com o atendimento a

como

demanda habitacional, a destacar a

efetivação de políticas públicas e

demanda qualitativa - em conformidade

incentivos para promover a qualidade

com artigo nº 6 da Constituição Federal.

do ambiente construído e devemos

Art. 1o Esta Lei assegura o direito das famílias de baixa renda à assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social, como parte integrante do direito social à moradia previsto no art. 6o da Constituição Federal, e consoante o especificado na alínea r do inciso V do caput do art. 4o da Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001, que regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. (BRASIL, 2008)

relacioná-la às mais diversas situações

Entre os objetivos expostos pela Lei, está a formalização do processo de edificação, reforma ou ampliação da habitação perante o poder público municipal e outros órgãos públicos e propiciar e qualificar a ocupação do sítio urbano em consonância com a legislação

urbanística

e

ambiental

(BRASIL, 2008). A Lei da ATHIS é assegurada às famílias de baixa renda, e não deve se restringir à elaboração de projetos e promoção de melhorias habitacionais,

importante

aliada

para

a

as quais se dispõe. Entre os requisitos para a ATHIS estão: ter renda de até 3 (três salários mínimos), ser proprietário de um único imóvel em todo o território nacional e nele residir e que o imóvel esteja situado em área regulada ou passível de regularização. Neste último ponto, é indispensável

pensar

sobre

a

implementação, através dos planos diretores

de

cada

cidade

ou

da

legislação municipal, a demarcação das ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social (artigo 18, § 2º) como instrumento estratégico para conferir a regularização de áreas de interesse social e para frear a especulação imobiliária. Ela não é específica e tampouco taxativa quanto a regularização de imóveis ocupados, ficando passível de se discutir sua aplicação para o atendimento desses.


82 Ocupando vazios

Devendo priorizar, segundo o § 2º do Art. 3º, as iniciativas implantadas

Edifício Wilton Paes de Almeida em São Paulo.

(I) sob regime de mutirão e (II) em

De acordo com o Mapa de Uso e

zonas habitacionais declaradas por lei

Ocupação do Solo da Cidade de João

como de interesse social (BRASIL,

Pessoa, a área do centro antigo da

2008). Nesta situação, ela poderia ser

cidade, a qual é aqui, objeto de estudo,

pensada como um recurso paliativo

está enquadrada, em sua maior parte,

para interromper situações de risco, por

como Zona comercial e de serviços,

exemplo, promovendo melhorias para

consolidando

que

desta área.

sejam

evitadas

maiores

proporções de problemas até mesmo desastres como o ocorrido com o

Figura 41 - Mapa de Uso e Ocupação do solo da cidade de João Pessoa PMJP | Editado pela autora, 2019

a

configuração

atual


83 Ocupando vazios

As

geralmente

define seus interesses? A participação

empregadas em áreas a destinarem as

popular poderia trazer respostas e

provisões de novas moradias, e são,

experiências

portanto,

apresentam

construção

características compatíveis com os

equilibrada.

ideais

ZEIS

são

áreas

de

que

expansão

desassociado, qualidades

da

adensamento

de

uma

política

a mais

O zoneamento da região implica

de

normativas a serem aplicadas de

ao

acordo

Quanto

áreas

de

para

cidade,

geralmente,

urbanas.

valiosas

os

interesses

e

o

forte

planejamento da cidade, apesar disto,

dinamismo comercial, com potencial

muitas vezes são flexibilizadas áreas

urbano e disponibilidade de imóveis os

para construções que não acordam

quais já foram neles empregados

com o zoneamento. É o exemplo da

diversos recursos, públicos ou de

atual polêmica da ordem de despejo de

particulares,

centenas de famílias da Vila Nassau,

relacionados

de

com

ainda

a

memória da cidade?

no Porto do Capim que, apesar de

A ocasião da revisão do Plano

serem uma Comunidade tradicional e

Diretor da cidade sugere a discussão

ribeirinha que ali residem há cerca de

das intenções para o uso do solo de

70 anos, foram notificadas em março

João

do corrente ano a deixarem suas casas

Pessoa.

Como

pensar

a

fundamentação de políticas para uma

dentro

área

moradias

e

quem

de

48h

em

um

para

assumirem

empreendimento

habitacional no Saturnino de Brito, sob o argumento de ocuparem uma Área de Preservação Permanente (APP), ora, este novo empreendimento construído Zona

foi

sobre

uma

Especial

de

Preservação 2 (ZEP2).

Figura 42 - Fazemos parte dessa história. Manifestação contra despejo da Vila Nassau Fonte: Luana Lacerda, 2019 | Editado pela autora, 2019.


84 Ocupando vazios

A Vila Nassau é atualmente acompanhada

pelo

Movimento

de

Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD), que se fez presente durante as manifestações contra o despejo da Comunidade. Ademais, sua situação é passível de regularização39, pois

figuram

como

comunidade

tradicional ribeirinha há mais de 5 gerações, ocupando terrenos marginais do Rio Sanhauá, tenho assim direitos de uso desta terra. Um segundo argumento mistifica os imóveis tombados como inviáveis para adequação como habitação social, argumento

este,

desmontado

por

pesquisas realizadas pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB e pelo projeto da Villa Sanhauá, vizinha à comunidade, adequação

exemplo para

a

desta tipologia

habitacional.

Antes de Sabota escrever "Um Bom Lugar" A gente já dançava o "Shimmy Shimmy Ya" Chico avisara "a roda não vai parar" E quem se julga a nata cuidado pra não quaiar

Mariô - Criolo, 2011

39

Para os núcleos urbanos informais que ocupam Áreas de Preservação Permanente, não identificadas como áreas de risco, a regularização fundiária é admitida por meio da

aprovação do projeto de regularização fundiária, na forma da lei específica de regularização fundiárias urbana.


85 Ocupando vazios

Figura 43 - Novo conjunto Habitacional Saturnino de Brito Fonte: Arquivo Pessoal, 22/03/2019.


86 Ocupando vazios

Figura 44 – Palhaçada. Bonecos criados através do reaproveitamento de materiais | Largo de São Frei Pedro Gonçalves Fonte: Arquivo pessoal, 16/12/2018.


87 Ocupando vazios

CAPÍTULO 3 | PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 3.1. Definição do tema

3.2. Pesquisa bibliográfica

O estudo iniciou com um aporte

Para o embasamento teórico,

voltado para a requalificação de bens

foram

imóveis

bibliográficos

de

valor

cultural

-

com

feitos em

levantamentos livros,

trabalhos

adequação para tipologia habitacional -

acadêmicos, arquivos, bases de dados,

com a premissa de atender aos

publicações e debates40 com os temas

interesses de movimentos sociais e

relacionados,

buscando

moradores informais do prédio objeto

aspectos

área

de estudo, entregando o produto do

defendidos por teóricos e estudiosos do

projeto de intervenção e restauro de um

tema.

da

de

conhecer abordagem

imóvel. O decorrer da pesquisa, no entanto, apresentou as complexidades

3.3. Estudos de caso

de se entender o que é viver em uma ocupação e abriu caminhos para a

Os estudos de caso buscaram

discussão mais aprofundada sobre o

centrar e relacionar o tema com

tema, intencionando a expansão deste

realidades incluídas na área estudada,

conhecimento através de vivências em

buscando exemplificar as dificuldades e

ocupações,

possibilidades

para

integrar

projetos

encontradas

no

futuros, passando assim a assimilar o

cenário de abordagem, além de discutir

tema de direito à cidade.

os

instrumentos

e

programas

relacionados à assistência e provisão

40

Seminário Paraibano de Política Urbana (SPPU) que ocorreu durante os dias 19 e 20 de novembro de 2018.


88 Ocupando vazios

habitacional, ao desenvolvimento da

analisada - dentro do tempo estipulado

função social da propriedade.

pelo

cronograma

de

atividades42

desenvolvido. No entanto, por se tratar 3.4. Pesquisa de campo

de uma área menor, também envolveria uma amostragem menor de situações

Com orientação do Movimento

de ocupação, o que levou a retomada

das Trabalhadoras e Trabalhadores por

do recorte inicial. Sendo assim, embora

Direitos - MTD e pesquisas realizadas

não seja precisa a identificação em

na etapa bibliográfica, foram traçadas

totalidade43

rotas de visita para localização e

delimitação, o estudo contribuiu na

registro dos imóveis com experiências41

indicação e reconhecimento dessas

de

invisibilidades, além de, através de uma

ocupação

tombamento

da do

poligonal IPHAEP,

de para

amostragem

das

de

ocupações

ocupações

desta

deste

construção do mapa de ocupações

recorte, descreveu e ilustrou estas

apresentado no volume deste trabalho.

experiências com registros fotográficos

A escolha do recorte de estudo

e conversas informais (registradas por

foi orientada por esta poligonal, uma

meio de anotações ou aparelho celular)

vez

com

que

apresenta

grande

residentes

e

usuários

da

concentração de imóveis de valor

localidade que se propuseram a trocar

cultural - protegidos por este órgão –

informações.

em estado de abandono, embora as

A pesquisa de campo, portanto,

visitas de campo tenham acontecido

se orientou em duas etapas: (1) uma

também em outros assentamentos

pelo acompanhamento de atividades

devido ao envolvimento com o MTD.

do MTD, onde foram feitas as visitas a

Durante

da

imóveis e terrenos ocupados, dentro e

pesquisa foi pensada a limitação do

fora do perímetro da área estuda, na

recorte para percorrer a poligonal de

intenção de conhecer sua atuação e a

preservação do IPHAN, uma vez que

diversidade

esta se figura como uma área menor

assistidos pelo Movimento, (2) e uma

que a de proteção estadual, tornando

segunda que percorre a poligonal de

assim mais viável para ser percorrida e

preservação

termo “experiências de ocupação” foi adotado para envolver situações atuais e passadas desta ocorrência.

42

41

o

andamento

de

assentamentos

estadual

para

o

Ver apêndice 01. Devido à extensão do recorte e imprecisão de algumas suspeitas de ocupações. 43


89 Ocupando vazios

mapeamento existentes,

das suspeitas

ocupações imóveis

em texto, fotos e esquemas ilustrativos

ocupados e imóveis que já passaram

para apreensão do seu conteúdo. Os

por esta experiência44. Nesta etapa,

esquemas foram concebidos através

foram encontradas dificuldades de

dos programas Illustrator e Photoshop.

registro de alguns imóveis, uma vez

O mapa entregue como produto deste,

que a presença de terceiros poderia

foi produzido através dos programas

representar

Autocad e Illustrator. Seguem ainda,

uma

de

orientados pela estrutura do trabalho -

ameaça

ou

constrangimento para os moradores

fichas46

dos imóveis, o que também refletiu na

imóveis levantados, com numerações

reciprocidade da situação.

relacionadas

Ainda,

muitos

imóveis

contendo

a

às

situação

dos

respectivas

que

localizações no mapa. Por questões

levantaram suspeitas de ocupação, e

éticas e políticas, os nomes de todos os

que, no entanto, não puderam ser

moradores

confirmadas, foram desconsiderados

como os de seus apoiadores, foram

no somatório da análise devido a

omitidos.

das

Ocupações,

assim

existência de muitos cortiços45 na cidade que podem ser facilmente

3.6. Produção de vídeo ilustrativo

confundidos, mas que, no entanto, não são considerados ocupações.

Com a intenção de aproximar as vivências e experiências levantadas

3.5. Análise e sistematização dos

durante

o

trabalho,

os

registros

dados coletados

imagéticos foram interpretados para a elaboração de um vídeo ilustrativo,

Em posse do material coletado e

buscando

completar,

assim,

a

experiências percorridas, os dados

intensidade de percorrer os imóveis

foram analisados e conformados -

estudados.

44

diferentes movimentos sociais e moradores da região. 45 Habitação(ões) coletiva(s) muito pobre(s). 46 Apêndice 04.

A indicação dos imóveis que já passaram pela experiência de ocupação tem como base registros feitos através de trabalhos e matérias publicados, além de relatos de militantes de


90 Ocupando vazios Figura 45 – Moção contra despejo da Ocupação Tijolinho Vermelho Fonte: Coletivo Construção, 2013.


91 Ocupando vazios

CAPÍTULO 4 | NOSSO LUTO É VERBO! A

pesquisa

incluiu

acompanhamento de Movimento

de

Trabalhadores

por

o

ocupações para conhecer sobre a

militantes do

atuação do Movimento, bem como

Trabalhadoras Direitos

e

(MTD),

absorver as experiências relatadas pelos militantes e moradores.

onde foram vivenciadas visitas às

Figura 47 - Policiais armados despejam famílias do Acampamento Novo Pindaré, no Maranhão. Fonte: MST, 2018 | Editado pela autora, 2019.


92 Ocupando vazios

4.1. O Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos - MTD O

Movimento

dos

(das)

concretas com a construção do Projeto

Trabalhadores (as) Desempregados

Popular para o

(as) – MTD nasceu no ano de 2000,

Brasil, 2016, p.3).

rasil” (MT /M T

como ferramenta de organização para

O movimento social tem a luta

a classe trabalhadora dos centros

por moradia como apenas um dos seus

urbanos, que sofriam com o aumento

eixos de atuação e estruturação nas

do desemprego, a falta de moradia e

periferias

urbanas,

demais

também:

saúde,

direitos

sociais

básicos

envolvendo alimentação,

negados. (MTD/MOTU Brasil, 2016)

educação, segurança, transporte, etc.

Posteriormente foi atribuído o nome de

Possuem, atualmente, cerca de 2000

Movimento

famílias entre os assentamentos e

de

Trabalhadoras

e

Trabalhadores por Direitos.

ocupações

“A intenção era constituir força social, em médias e grandes cidades, para

resolver

os

problemas

econômicos e combinar as conquistas

do

MTD

Paraíba,

distribuídos na região. O MTD/MOTU é um Movimento Popular Urbano, de caráter nacional e de massa, formado por Trabalhadoras e Trabalhadores, com caráter feminista, sem distinção de religião, sexo, cor da pele, orientação sexual. Seu objetivo é reunir e organizar a classe trabalhadora, a partir do território de moradia, nas periferias das grandes e médias cidades e fazer a luta por trabalho e direitos: econômicos, políticos, sociais e culturais. Define-se como organização classista, democrática e autônoma frente aos partidos, ao Estado e ao governo rumo da sociedade sem exploração sem opressão e sem dominação. (MTD/MOTU Brasil, 2016, p.3)

Figura 48 - Logotipo do MTD Fonte: MTD/PB, 2019.


93 Ocupando vazios

Nos unimos pela privação de direitos Nos unimos para resistir Ocupamos, somos despejados, construímos as barricadas diárias Fazemos dos bairros as células de um corpo Defendemos a natureza da palavra território Levantamos as nossas bandeiras Levantamos as nossas vozes

Nos unimos pela vontade de existir Pelo desejo do teto, pelo sonho do lar Construímos utopias coletivas Fazemos a guerra justa, perdemos muitas batalhas Ganhamos calos nas mãos, dores, fadiga Conquistamos sem silencio, vivemos o ruído Dos carros, dos tiros, dos gritos de ordem

Nos unimos pelo trabalho, pelo vicio, pelo cansaço Vivemos a poesia, refundamos as rebeldias, Almejamos nos unir pela alegria, fazer carnaval todo dia Colorimos as cidades, pintamos as universidades, fazemos Da vida mais que o preto e o branco, revivemos as fantasias Derrubamos os muros, ocupamos vazios, edificamos barracos Vencemos o medo, sejamos o novo

Nos unimos pela identidade e pela solidariedade Somos a classe que produz, o povo do saber junto O gosto do alimento dividido, do florescer de mãos dadas, Das casas cheias de samba, do mundo a ser transformado, da nova mulher e do novo homem. Nos enxergamos na dor do outro, no riso, no sangue, na pele, de quem não descansa.

Estamos onde vivem os esquecidos, avisamos aos que desmandam, a memória é toda nossa, a fé é toda minha, de que lembrados seremos um dia, pela força do nosso punho fechado, pelas ferramentas do nosso trabalho dobrado, pelo muro derrubado.

À NOSSA BANDEIRA, QUE SEJA ENTÃO, UM SONHO DE LIBERDADE, HASTEADA EM CADA CANTO, DE CADA VIVA CIDADE! (MTD/MOTU Brasil)


94 Ocupando vazios

A ideia de dignidade remete também a um cenário que pode integrar às demandas por moradia outras demandas; uma moradia que permita acesso a outros bens e serviços essenciais, como emprego, transporte, saúde e educação. A noção de dignidade, portanto, amplia o sentido de moradia, uma vez que, muitas vezes, a conquista da casa não encerra o sentido da reivindicação. (PATERNIANI, 2016, p. 36)

Os dizeres do MTD reflete seu papel de caráter urbano e social, de atuação nacional. “Entre as iniciativas adotadas estavam o cadastramento dos

desempregados,

fazer

lutas

pontuais e o esforço de organização de núcleos de base nas periferias, onde se pudesse discutir o desemprego e suas consequências”. (MT /M T

rasil,

2016, p.3). São atores distintos do governo, de representação e participação na política

pública.

O

movimento

se

articula através de parcerias, e busca fortalecer

as

relações

entre

as

comunidades, difundindo os direitos instituídos,

promovendo

cursos,

organizando debates, etc. “

bjetivo

do MTD, era colocar o desempregado como sujeito coletivo e demonstrar que os problemas do Povo não é culpa dos indivíduos” (MT /M T

rasil, 2016,

p.3). Dessa forma, junto ao povo, o Movimento

disputa

programas

e

políticas públicas para que famílias de baixa

renda

tenham

acesso

a

condições dignas de moradia, entre os demais bens e serviços que se somam entre os direitos e necessidades sociais essenciais.

47

Programa do Governo da Paraíba que distribui, através de um cartão magnético, crédito mensal de R$25,00 para a compra de

Sobre as políticas de finanças e auto

sustentação,

para

assegurar

infraestrutura mínima e para cobrir as despesas relacionadas à alimentação, reuniões,

viagens,

secretaria,

bem

como demais despesas relacionadas ao processo, o MTD se sustenta através de contribuição direta de cada participante, através da criação de empreendimentos rentáveis, através da solidariedade de pessoas e entidades, e até mesmo por acesso a fundos públicos para projetos sociais e pelas associações criadas pelo Movimento (MTD/MOTU Brasil, 2016). O Movimento busca segurança alimentar, ajudando a difundir políticas que garantam que as famílias tenham condição

de

comer,

adquirir

mantimentos, como o Cartão Próalimento47 que, assim como o bolsa família, funciona como complemento de renda, ora, por muitos, tão criticado

alimentos não perecíveis em estabelecimentos cadastrados.


95 Ocupando vazios

(Militante 1 do MTD. Conversa informal

plenárias mensais, o conhecimento

realizada em 19/12/2018).

para

Julgam,

inclusive,

que

o

melhorar

convivência

as

em

relações

de

condomínio,

por

programa do Bolsa Família leva as

exemplo, para que sejam estabelecidas

mulheres a querer ter mais filhos para

regras entre os moradores. Ações

receber

o

como estas são importantes para o

benefício por cada criança é no valor de

funcionamento e para a adaptação das

R$ 35,00 mensais - enquanto que, na

famílias que passam a residir em

verdade,

apartamentos (Militante 1 do MTD.

um

benefício

muitas

maior

delas

-

mostram

interesse em “ligar” para evitar uma

Conversa

nova

19/12/2018).

gravidez,

no

entanto,

tem

dificultado o acesso a essa cirurgia

informal

realizada

em

criadas

comissões

de

São

(Militante 1 do MTD. Conversa informal

ouvidoria para que as comunidades,

realizada em 19/12/2018).

através

de

possam

apontar

O Programa Bolsa Família (PBF), criado no Brasil em 2003, é um dos maiores programas de transferência direta de renda do mundo. Os benefícios são específicos para famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza com crianças, jovens até 17 anos, gestantes e lactantes. (SILVA et al. 2018)

Segundo

dados

levantados

seus

representantes,

os

problemas

e

debater soluções junto aos militantes do MTD. Desta forma, também criam uma ponte de informações entre ambos – comunidade e o Movimento. “ em ocupações

sempre dão

as

nossas

continuidade,

tem

através da Pesquisa Nacional por

despejo, aí a gente tem que tá lá, tá

Amostra

(Pnad),

negociando”48. Sobre os despejos já

realizada pelo IBGE entre 2003 e 2013,

realizados dentre as ocupações do

houve uma redução de 10,7% no

MTD, militantes49 relataram os poucos

número famílias com filhos de até 14

casos em que parte das famílias

anos, essa redução foi ainda maior

despejadas

(15,7%) em relação às famílias inscritas

programas

no programa do bolsa família (BRASIL,

Programa Minha Casa Minha Vida

2015).

(PMCMV). O

de

MTD

Domicílios

também

busca

atendidas

habitacionais,

como

por o

Em grande parte dos casos de

compartilhar, através de cursos e

despejo,

48

49

Militante 2 do MTD durante conversa informal realizada em 19/12/2018.

foram

as

famílias

recebem

da

Conversa informal realizada em 19/12/2018.


96 Ocupando vazios

prefeitura um auxílio aluguel no valor de R$ 200,00 por mês, durante 6 meses, podendo ser renovado, embora isso quase nunca ocorra. (Militante 2 do MTD, Conversa informal realizada em 19/12/2018) Não dá pra pessoa pagar um aluguel com R$ 200,00, sem contar quando eles atrasam o pagamento, quando vêm pagar um mês já se passaram 3 ou 4, de atraso. Aí o pessoal bota pra fora, vão pra outro canto, aí o jeito que tem é ocupar de novo, outro espaço, né? Porque não tem solução. (Militante 2 do MTD, Conversa informal realizada em 19/12/2018)

Os militantes relataram ainda

às vezes, têm que ser expulsas porque mataram o seu marido por conta do tráfico, aí o outro não quer que você fique. (..) Até mesmo quem já recebeu doação de casa e tá nesses apartamentos, que tá sendo um caso sério, a história de colocar o nosso povo pra morar em apartamentos, apartamentos muito pequenos, e as pessoas que catam reciclagem, que cozinham, muitas vezes, na lenha, que criavam uma galinha, que cria um cachorro, aí ficam sem condições de nada, e aí muitas vezes acabam tendo que deixar o seu prédio por falta mesmo de... aí tem que pagar água, luz, energia, o que ela produzia antes não consegue manter, é muito difícil. (Militante 2 do MTD, Conversa informal realizada em 19/12/2018)

que o aumento do desemprego tem

Quando as famílias desistem

levado um maior número de famílias a

dos imóveis de conjuntos habitacionais,

procurarem os movimentos sociais, por

elas o perdem, junto ao direito de

perderem as condições de manter o

receber novamente o benefício. Nesta

aluguel dos imóveis que residiam até

situação, a prefeitura recolhe e repassa

então.

o imóvel para outra pessoa sem São cenas muito tristes que a gente encontra por aí, a gente encontra 12 pessoas dentro de uma casa, um barraco, que dá 4 [pessoas]. Uma cena de tristeza mesmo, a gente tem uma situação de uma [moradora de uma] ocupação nossa que foi embora e a gente nem soube, que tava devendo uma cesta básica daqueles carros que passam. Então ela comprou uma cesta básica, como ela não tinha como pagar, o caba chegou ameaçando e ela foi simbora e a gente não sabe nem pra onde ela sumiu. Se ela tivesse falado com a gente a gente ia fazer um esforço. Então assim, é muita situação difícil, é muita situação complicada, né? Pessoas que estão lá também e,

50

Conjunto habitacional popular localizado no Colinas do Sul.

permitir que o movimento social faça qualquer indicação. (Militante 2 do MTD, Conversa informal realizada em 19/12/2018) “Às vezes é o tráfico que manda embora” (Militante 1 do MTD). Esse é um dos grandes motivos de desistência dos imóveis do Vista Alegre50, conjunto Habitacional do PMCMV, para onde foram as famílias que ocupavam o


97 Ocupando vazios

O pessoal tem medo, né? Porque a pessoa que é de bem não vai se misturar num negócio desse, então, muita gente, né? Lá no Vista Alegre, muita gente deixou lá. A gente viu lá, na ocupação da gente, a menina dizendo que morava lá e que saiu de lá [...] falou que fechou o dela lá e tá numa ocupação porque não consegue morar no Vista Alegre porque tá com a violência muito grande.

Tijolinho Vermelho e inúmeras outras de áreas e situações distintas. Com poucos critérios de seleção para os novos empreendimentos, sobre as

conexões

sociais

dos

novos

moradores, indivíduos sem nenhuma relação

de

convivência

são

condicionados ao mesmo condomínio,

(...)

ignorando o fato de que existem

Eu acho que não tem condições de construir esses apartamentos pra pessoas de baixa renda morar não, porque baixa renda é baixa renda, vive de reciclagem, vive pela lavagem de roupa, vive de criar uma galinha, de vender uma galinha, de vender ovos. Aí você tem tudo isso ao seu redor e de repente você tá lá no terceiro andar com quatro meninos, seis meninos num apartamento de dois quartos, é muito complicado, as vezes você mora numa comunidade, numa ocupação, você já conseguiu se estabilizar, já tem sua casa grande, né? Cada filho seu tem seu quarto, tem suas coisas; aí você vai pra um espaço que é 1/3 [do tamanho] de onde morava. É muito difícil, muito quente pro nosso clima aqui. (Militante 2 do MTD, Conversa informal realizada em 19/12/2018)

domínios de facções diferentes que inoportunamente conviveriam juntos. Foi o pessoal do Tijolinho Vermelho, foi o pessoal da Ilha do Bispo, foi o pessoal do Bairro das Indústrias, foi o pessoal do Grotão, foi o pessoal do Colinas, foi o pessoal da Capadócia, que já é uma área determinada de tráfico dentro do Colinas, então, quando se juntou todo mundo, Grotão que tem uma rixa entre eles que não pode entrar no Colinas, né? Teve uma época que cada pessoa que passava o pé na ladeira do Colinas, descendo pro Grotão, levava uma surra [...] (Militante 2 do MTD, Conversa informal realizada em 19/12/2018)

Essa situação, portanto, deveria ser repensada e considerada para as novas

de

imóveis,

organizadas junto aos movimentos

permanência, ou não, das famílias, é

sociais, são precedidas por estudos de

um indicativo do sucesso desse tipo de

situação e viabilidade da construção.

empreendimento. Desistir de imóvel

São analisadas as dívidas dos imóveis

próprio e do direito futuro de obtê-lo

(com a União, de IPTU, condomínio,

através do mesmo benefício aponta

trabalhistas), contabilizados os anos e

uma enorme deficiência do programa

os danos do abandono.

com

pouca

habitacionais.

ocupação

A

que,

provisões

A

ou

nenhuma

As

dívidas

trabalhistas

se

alternativa, finda no retorno de famílias

relacionam aos imóveis quando, por

a ocupações.

exemplo, estes podem ser penhorados devido a não quitação dos pagamentos


98 Ocupando vazios

de funcionários, pela falência de um comércio ou demais motivos.

e imóveis assistidos pelo MTD, no

Sendo assim, são analisados os imóveis

passíveis

entanto, nota-se a comum solicitação

serem

do Movimento após a ocupação ter

formalizados como HIS. A intenção é

ocorrido de forma espontânea, pela

de a ocupação se consolide com a

necessidade de assistência jurídica e

obtenção da posse do imóvel aos

social para a manutenção e efetivação

moradores, ou mesmo que estes

da ocupação, inexistindo assim os

adquiram

estudos preliminares da situação do

imóveis

de

Percorrendo os assentamentos

em

novos

empreendimentos habitacionais.

imóvel ou do terreno ocupado. Eu vou fazer uma embolada, Um samba, um maracatu Tudo bem envenenado Bom pra mim e bom pra tu Pra gente sair da lama e enfrentar os urubus

A cidade – Chico Science, 1994

urbano. Então, vamos dizer, você monta um projeto e esse projeto tem que ter uma equipe técnica. (Militante 1 do MTD. Conversa informal realizada em 19/12/2018)

Com relação aos assentamentos no campo, os movimentos sociais também buscam se organizar com equipes

multidisciplinares

assistência

técnica

(AT),

de

Com

relação

às

ocupações

com

urbanas, em destaque as de imóveis, a

agrônomos, zootecnistas, assistentes

equipe de assistência técnica precisa

sociais, psicólogos, cientistas sociais,

contar

etc.

advogados, engenheiros e arquitetos e [...] As pessoas no campo, se elas não têm uma assistência técnica, não adianta você jogar recurso na mão, é perda de dinheiro. Você tem que orientar tecnicamente, você tem que ter profissionais para que o projeto ele aconteça, né? Então, qual é a grande novidade? É a gente criar uma proposta de assistência técnica para o meio

ainda

urbanistas

com

para

profissionais

regularizar

as

condições de uso desses espaços. Construir uma cartilha para orientação da população sobre a AT é uma das propostas do MTD.


99 Ocupando vazios

Figura 49 - Quem mora lรก? - Imรณvel ocupado na Rua das Trincheiras Fonte: Arquivo pessoal, 22/03/2019.


100 Ocupando vazios

.2. Quem mora lá?51

As ocupações espontâneas são, de

maneira

geral,

inicialmente

despretensiosas, no sentido de atingir visibilidade do poder público, portanto, não é comum ter acompanhamento e registros sobre como e quando passou a acontecer. A conversa informal com moradores locais é o que então aproxima dos contos e fatos de suas existências. Ocupações espontâneas Ocupações organizadas

Poligonal IPHAN

Figura 50 - Mapa esquemático. Ocupações espontâneas e organizadas Fonte: Arquivo pessoal, 2019.

Poligonal IPHAEP

51

Nome do documentário que retrata a luta de famílias do MTST em Pernambuco.


101 Ocupando vazios

Diante das vivências percorridas

representativas do número de famílias

durante este trabalho, este mesmo

envolvidas

motivo - inicialmente despretensioso -

imóveis.

também mostrou uma relação mais

Ao

na

final

apropriação

do

destes

volume

deste

forte e direta entre os moradores e os

trabalho52 vê-se o mapa que demarca

espaços ocupados espontaneamente.

estas ocupações respeitando os limites

Esta

relação

carrega

uma

dos lotes, e sua legenda indica as

formação de pertencimento com o lugar

ocupações

com

poligonal de proteção do IPHAEP,

inúmeras

constantes

que

alimentam esta empatia.

exemplos

das

e

inativas

da

entendendo como ativas as ocupações

As ocupações aqui escolhidas como

ativas

que se manifestam no tempo presente

experiências

e inativas aquelas que já passaram por

apreendidas nesta construção são,

esta experiência e que, no entanto, não

portanto,

mais se conformam deste modo.

ocupações

de

natureza

espontânea, relatando a disposição de

Durante os levantamentos foi

permanência dos moradores. Para

constatado que, coincidentemente (ou

além deste motivo, as três ocupações

não), os imóveis que abrigaram antigas

aqui analisadas encontram-se inseridas

manifestações

ou

(espontâneas

margeantes

na

poligonal

de

de ou

ocupação organizadas)

preservação do IPHAN, indagando

encontram-se atualmente ociosos - de

controvérsias ainda maiores.

forma integral ou parcial - o que indaga

O

de

o verdadeiro interesse dos despejos

ocupações ilustrado neste capítulo tem

ocorridos. Ainda, os que apresentam

sua legenda para a distinção das

esta característica parcial, foram assim

ocupações

como

considerados por manterem atividades

espontâneas ou organizadas, fazendo

em alguns de seus ambientes, mesmo

alusão a intensidade dessa experiência

que

através

consistindo em qualificações do imóvel.

52

mapa

de

esquemático

identificadas

círculos

Ver apêndice 03.

em

escalas

estas

sejam

irregulares,

não


102 Ocupando vazios

4.2.1. A Comunidade do Papelão

A Comunidade do Papelão se

superior a 200 pessoas em que, muitas

conforma entre a Av. Gouveia Nóbrega,

delas, trabalham com a reciclagem de

a Rua Elpídio Alves da Cruz e a Ladeira

materiais - entre eles o papelão - motivo

de São Francisco, no Varadouro. O

este que dá nome a comunidade.

pequeno lote comporta um número Figura 51 - Mapa de localização da Comunidade do Papelão Fonte: Google Maps | Editado pela autora, 2018.

Entre

o

assentamento

de

barracos de estruturas precárias, a

anterior), além de cerca de outros três remanescentes de imóveis.

comunidade também ocupa parte de

O prédio ocupado abrigou a Loja

um imóvel de dois pavimentos, na

de

esquina entre a Ladeira de São

(Sociedade Comercial Irmãs Claudinho

Francisco e a Av. Gouvêia Nóbrega

S/A), que deu nome à Praça da Socic,

(identificado em vermelho no mapa

Departamentos

da

SOCIC


103 Ocupando vazios

localizada em frente à comunidade. 53 A SOCIC é atualmente conhecida pelo seu nome fantasia: Armazém Paraíba.

Figura 52 - Fachada sudeste do imóvel ocupado pela comunidade do papelão Fonte: Arquivo pessoal, 16/12/2018

Olhos nos olhos sem dar sermão Nada na boca e no coração Seus amigos são um cachimbo e um cão Casa de papelão Olhos nos olhos, preste atenção Olha a ocupação Só ficou você, só restou você Uivo louco, sangue em choro Pra agradar opressão

Casa de Papelão – Criolo, 2014

53

Informação fornecida por um morador da região, durante conversa informal realizada no dia 10 de maio de 2019.


104 Ocupando vazios

A área foi ocupada de forma espontânea,

e

na

enquanto patrimônio, os moradores

poligonal de proteção do IPHAEP. Se

participam do processo de degradação

figurou entre as ruínas de outros

dos imóveis, ressaltando assim a

imóveis,

a

necessidade de assistência técnica,

ocupação, entre os seus 26 anos de

tanto para que não se percam os

existência, contribuído diretamente na

elementos de valor cultural, quanto

aceleração

para garantir habitabilidade destes

tendo,

está

inserida

Sem o reconhecimento do bem

provavelmente,

do

processo

de

arruinamento deles. Sem condições

imóveis às famílias que os ocupam.

para a manutenção dos espaços,

O espaço público que confere

elementos de valor cultural se perdem

um remanescente entre a Rua Frei Vital

em meio ao ressignificado conjunto que

e a Rua Elpídio Alves da Cruz, é

conforma a comunidade.

utilizado para o estacionamento das

Quem

a

carroças, das quais fazem uso os

degradação

moradores da comunidade, para o

destes imóveis? Quem o abandonou, o

recolhimento de material reciclável da

Estado ou seus ocupantes? O fato é

cidade. Esta situação caracteriza a

que continuar a negligenciá-los é

instância de que os instrumentos de

duplamente um atentado, contra os

trabalho, assim como animais, muitas

direitos humanos – pelo menosprezo às

vezes,

condições apropriadas para moradia

necessitam dispor de espaço.

responsabilidade

assume pela

de

grande

porte,

também

dos que ali habitam - e contra o patrimônio edificado.

Dias sim, dias não Eu vou sobrevivendo sem um arranhão Da caridade de quem me detesta A tua piscina tá cheia de ratos Tuas ideias não correspondem aos fatos Não, o tempo não para

O tempo não para – Cazuza, 1988


105 Ocupando vazios

Seu

Tiago54,

morador

[...] Infelizmente é assim. Porque é o seguinte, eu não tiro a razão [deles], porque, infelizmente, tem muita gente mal-intencionada, né? Que chega pra manipular, pra ganhar, levar vantagem. E eles sabem disso. Quem tá a frente que tem também o conhecimento sabe, por isso que ele perguntou isso a você. Na verdade, a pergunta, se você for colocar num português mais direito: o que você ganha vindo aqui? (Militante 1 do MTD, Conversa informal realizada em 19/12/2018)

da

Comunidade do Papelão, conta sobre a sua experiência em morar na área central antiga da Cidade, relacionando diretamente

às

oportunidades

de

trabalho para ele, já que a localidade movimenta

intensas

atividades

comerciais. Seu Tiago é cuidador de carros e também recolhe e vende

O controle de ganhos é um dos

material reciclável. Eu moro na Comunidade, tenho um barraco, é tudo simplesinho, posso mostrar para você. Moro com minha esposa e meus filhos. Aqui a gente trabalha com reciclagem. O bom de morar aqui [no Centro] é que tem mais o que fazer. Eu posso olhar os carros e também recolho meu material, tenho uma carroça, ela fica ali na praça. (Seu Tiago, morador da Comunidade do Papelão. Conversa informal realizada em 16/12/2018)

A conversa com Seu Tiago

fatores determinantes dos interesses do representante – ou líder – da comunidade, que tem estabelecido informalmente relações comerciais que provavelmente seriam desfeitas no caso da regularização do lugar. Esta situação torna-se delicada para a intervenção dos movimentos sociais que buscam atender o coletivo. O MTD articulou, durante a

aconteceu em espaço público, durante seu horário de trabalho pelas ruas do centro da cidade, no dia 16 de dezembro de 2018. A primeira visita realizada à área ocupada, junto ao MTD, aconteceu 2 (dois) dias após a

primeira visita, o cadastramento de pessoas interessadas em obter o benefício do Cartão pró-alimento, de distribuição em parceria com o Governo da Paraíba. Novas visitas aconteceram à

conversa com o morador Tiago, no entanto, a comunidade se mostrou rígida para debater ideias sobre a regularização do lugar, mesmo em vista a busca de soluções e melhorias e da assistência técnica (AT).

ocupação

onde

pouco

permitiram

nossa aproximação. No dia 27 de fevereiro de 2019, no entanto, Dona Sônia55, mãe de 8 filhos, moradora do prédio

abandonado

onde

está

a

Comunidade do Papelão, gentilmente

54

O nome foi alterado para não caracterizar o informante.

55

O nome foi alterado para não caracterizar o informante.


106 Ocupando vazios

nos apresentou seu apartamento e

notória a majoritária participação e

reuniu

interesse das mulheres na luta por

outras

moradoras

para

participarem da conversa sobre as

moradia

digna,

entre

propostas do Movimento Social, sendo

moradores de ocupações.

Figura 53 - 1ª reunião entre moradoras da Comunidade do Papelão e o MTD Fonte: Arquivo pessoal, 27/02/2019.

militantes

e


107 Ocupando vazios Figura 54 – Vão de entrada do prédio da Comunidade do Papelão Fonte: Arquivo pessoal, 27/02/2019

Há dois caminhos para o acesso

ao

prédio,

conforme

ilustrado no esquema da Figura 55, isso

porque

os

acessos

que

ligavam o imóvel diretamente a Av. Gouvêia Nóbrega foram fechados, segundo moradores, por questões de segurança da comunidade, no entanto, esse é um dos desejos de Dona Sônia, acessar seu imóvel diretamente da Avenida.

Figura 55 - Acessos e percursos ao prédio da Comunidade do Papelão Fonte: Google Maps | Editado pela autora, 2019


108 Ocupando vazios

Além dos acessos de porta, os

e sem janela, respectivamente. Na

vãos de janela também foram quase

segunda imagem, o quarto de Dona

que

vedados,

Margarida56, 57 anos, moradora do

intensificando problemas de conforto

segundo andar do prédio, que conta

térmico e insalubridade do local. Nem

que em dias de chuva precisa segurar

todos os apartamentos possuem todos

um guarda-chuva pela quantidade de

os cômodos com esta ligação para o

infiltrações

espaço externo.

apartamento.

completamente

As figuras 56 e 57 representam quartos de apartamentos distintos, com

existentes Para

em

seu

reduzir

esse

incômodo, ela estendeu lonas para conter temporariamente a água.

Figura 56 - Quarto em prédio da Comunidade do Papelão Fonte: Arquivo pessoal, 27/02/2019

56

O nome foi alterado para não caracterizar a informante.


109 Ocupando vazios

Figura 57 - Quarto de Dona Margarida Fonte: Arquivo pessoal, 27/02/2019


110 Ocupando vazios

Figura 58 - Solicitação de espaços para atividades distintas na Comunidade Fonte: Google Maps | Editado pela autora, 2019

Foram observados animais de

também

traz

perspectivas

grande porte, como cavalos, e a criação

tratamento

de aves, o que geralmente não são

necessitam para atender as demandas

previstos

da comunidade.

nas

habitacionais; necessidade

novas além

de

provisões

disso,

espaço

a

para

o

que

esses

do

espaços

Entende-se dessa forma que os conjuntos

habitacionais

estacionamento de carroças e para o

conferir

armazenamento de material reciclável,

incluindo opções térreas com áreas

recolhido na cidade.

adequadas para dispor animais e

Além dos animais citados, o grande número de animais domésticos

tipologias

precisam

diversificadas,

equipamentos de trabalho.


111 Ocupando vazios

O caso comentado sobre a Villa

priorizando

indivíduos

que

Sanhauá, no Capítulo 2, é um exemplo

mantenham relações com a área, e

de

e

envolvendo um processo completo de

para

sensibilização patrimonial para garantir

habitação no CHJP, devendo ser

a manutenção e conservação dos

repensado – inicialmente teve essa

imóveis, mantendo em sistema de

proposta – para atender também à

concessão e valores sociais de aluguel.

programa

adequação

do

de

recuperação patrimônio

população de menor poder aquisitivo,

Figura 59 - Ambiente interno ao prédio da Comunidade do Papelão Fonte: Arquivo pessoal, 01/04/2019.


112 Ocupando vazios

Figura 60 - Comunidade do Papelão. Ao fundo, Igreja de São Frei Pedro Gonçalves Fonte: Arquivo pessoal, 01/04/2019.


113 Ocupando vazios

4.2.2. Residência Walfotovideo

Sem condições de pagar aluguel

a um dos grandes cartões postais da

e buscando espaços que oferecessem

cidade de João Pessoa, na Rua Dom

proximidade com suas relações de

Ulrico: o Centro Cultural São Francisco.

trabalho, duas famílias ocuparam um

Local onde as famílias residentes

antigo imóvel de três pavimentos

conseguem

abandonado no centro. Lugar próximo

olhando e lavando carros.

pequenos

serviços,

Figura 61 - Imóvel ocupado no Centro Histórico de João Pessoa Fonte: Arquivo pessoal, 22/01/2019


114 Ocupando vazios

Figura 62 - Imóvel localizado próximo ao Centro Cultural São Francisco Fonte: Google Earth

Centro Cultural São Francisco

WALFOTOVÍDEO


115 Ocupando vazios

Moradores

anos

abandono, ambos os imóveis estão

residiram no local, contam como o

inseridos na poligonal de tombamento

imóvel teve ressignificado seu uso ao

do

longo dos tempos, experimentando as

encontra-se, atualmente, rodeada de

funções

possíveis desastres. Seu interior possui

de

que

residência

e

estúdio

IPHAN.

A

antiga

fotográfico, que aparentemente foi a

grande

sua última função antes de voltar a ser

inflamável e o prédio é eventualmente

residido por famílias. Embora tenha

utilizado para o consumo de drogas

sido ocupado de forma espontânea,

onde, seu manuseio, pode atear fogo

atualmente o MTD acompanha esta

no material, podendo afetar assim, não

ocupação.

somente

Um antigo morador do local relatou que precisou, junto à família esposa e filhos - procurar um novo local para

morar,

continuando próximo

à

mesmo a

atuar

Igreja

São

Francisco. Isto porque, com filhos pequenos, a propriedade apresentava riscos

à

saúde,

propiciando a proliferação de

doenças

que

eventualmente acometiam as crianças. Sem

condições

para

intervir em melhorias, a família

não

teve

alternativa a não ser se mudar. O

prédio

imediatamente

vizinho

funcionou sorveteria

como até

o

seu

quantidade

este,

mas

de

sorveteria

os

material

imóveis

próximos. Figura 63 - Imóvel com estrutura comprometida Fonte: Arquivo pessoal, 21/02/2019.


116 Ocupando vazios

A estrutura está comprometida,

ocorrem

no

período

de

chuvas,

com risco iminente de desabamento. O

restando um único cômodo para toda

lixo e a propagação de doenças são

família que reside neste pavimento.

visíveis em seu salão, as queixas a

Este motivo, inclusive, dificultou o

respeito de roedores e mosquitos do

registro deste espaço.

imóvel

ocupado

possivelmente

encontram aí a sua nascente. A

residência

As instalações são precárias e de

improviso,

muitos

vãos

foram

Walfotovideo,

fechados e há pouca circulação de ar

apesar de dispor de três pavimentos,

no pavimento térreo. Os acessórios

apenas possui o térreo e o primeiro

são, na sua maioria, doações e

andar ocupados, o segundo andar do

reaproveitamentos. A água é servida

prédio é utilizado apenas para a

em baldes para todos os afazeres da

secagem de roupas, e as duas famílias

casa, não havendo nenhum ponto de

se dividem entre os demais dois

fornecimento ativo.

pavimentos, uma para cada uma delas.

Diante de inúmeras dificuldades,

Um dos ambientes do primeiro

o relato do lugar ainda é positivo: “já

andar da casa está inutilizável devido

andei muito, muitos lugares, só agora

às grandes infiltrações que ocorreram e

temos uma casa”57.

Figura 64 - Sala do imóvel vizinho à residência Walfotovideo contém materiais inflamáveis Fonte: Arquivo pessoal, 21/02/2019

57

Exclamado pela moradora que nos recebeu na ocupação.


117 Ocupando vazios

Figura 66 - Sandálias na janela Fonte: Arquivo pessoal, 21/02/2019.

Figura 65 - Criança moradora da ocupação Fonte: Arquivo pessoal, 21/03/2019.


118 Ocupando vazios

A

visita

à

Ocupação

novo morador, que aparenta idade

Walfotovideo se deu em diferentes

superior aos 50 anos, acompanhou o

momentos. Em visita ocorrida no dia 01

minar de águas pluviais nas paredes,

de abril do corrente ano, foi registrado

entre

a acomodação de mais um morador,

também pelas escadas e muitas vezes

que teve rearranjado seu espaço sob

tiveram sua cama como um alvo do

as escadas, no pavimento térreo. A

gotejamento.

vários

cômodos,

escorriam

visita se deu em momento posterior ao de chuvas sequenciais na capital, e o Em meio a sede pelo abrigo vê-se o retrato da resistência de quem não bebe privilégios diante das críticas dos bem nutridos.

Figura 67 - Águas pluviais cascateiam através da escada da Ocupação Fonte: Arquivo Pessoal, 01/04/2019.


119 Ocupando vazios

Figura 68 - Fachada atual do prédio da Superintendência da antiga Alfândega Fonte: Arquivo pessoal, 22/03/2019.

4.2.3. Prédio da Superintendência da Antiga Alfândega

O prédio localizado na Rua Visconde

fase

das

obras

de

restauração do prédio, popularmente

Varadouro, integra o complexo da

conhecido como o “Prédio Amarelo”.

antiga Alfândega.

Este, seria destinado a abrigar o Centro

a

Inhaúma,

primeira

bairro

Com

de

a

homologação

do

tombamento do CHJP pelo IPHAN em 2008, o órgão destinou R$ 450 mil para

de Cultura Popular Porto o Capim. (IPHAN, 2008)


120 Ocupando vazios

Figura 69 - Início das obras de restauração do prédio da Superintendência da antiga Alfândega Fonte: Arquivo IPHAEP, 2009 | Editado pela autora, 2019.

O imóvel, antes da restauração, estava catalogado em situação de

sofrera com o desabamento de parte da sua estrutura.

risco, e de propriedade da União. Nesta ocasião, o prédio estava ocupado irregularmente por duas marcenarias que precisaram ser removidas do local para dar início às obras. (IPHAN, 2009) A segunda fase das obras previa cerca de R$ 300 mil destinados aos equipamentos para o prédio que, já havia

passado,

inclusive,

por

um

incêndio no início do século passado (IPHAN, 2009) e, neste século, também

Figura 70 – Imóvel desabado em partes Fonte: Arquivo IPHAEP, 2008 | Editado pela autora, 2019


121 Ocupando vazios

Embora tenha sido recuperado,

intitulado Cajueiro, criado, fruto da

sua reforma não foi concluída, voltando

intervenção

invisível

também

a figurar o abandono do bem – pelo

sangra”, foi constatada a ocupação do

poder público -, tendo, porém, sido

prédio da antiga Superintendência da

ressignificado por moradores do Porto

Alfândega, no Porto do Capim, em um

do Capim58.

uso adaptado das grandes salas da

Não se limitando à função de

construção para quadras de esportes,

moradia, esta ocupação apresenta uma

de modo a atender à esta comunidade.

das

diversas

formas

de

usos

solicitados, indicando uma demanda de atividades

associadas

ao

uso

habitacional da proximidade. Em um manifesto elaborado pelo Escritório Modelo de Arquitetura e Urbanismo (EMAU) de Recife – PE,

58

Comunidade localizada às margens do Rio Sanhauá, no Varadouro, bairro do centro antigo de João Pessoa.

Figura 71 - Prédio da Superintendência da Antiga Alfândega abriga atividades esportivas Fonte: Manifesto impresso do Coletivo Cajueiro, 2016 | Editado pela autora, 2018


122 Ocupando vazios

Figura 72 - Salão do prédio da Antiga Superintendência da Alfândega Fonte: Arquivo pessoal, 22/03/2019.

Ocupações para fins distintos dos habitacionais não são legítimas do

preferencialmente,

Esta

consolidação por usucapião. Apesar

desvincular

disso,

ocupações

atividades

a

fins

sociais.

ponto de vista constitucional para a

representam

atender

experiência o

busca

entendimento

de

exclusivamente do uso

solicitadas em espaços antes ociosos,

habitacional,

sem uso ou função, que o declarado

manifestações na sua diversidade e

abandono

correlacionando

delibera

desapropriação

para

a

sua

que

possa,

entendendo

sua

demandas da cidade.

existência

suas

às


123 Ocupando vazios

Através do grafite, indivíduos buscam expressar e construir relações com

o

espaço,

marcando

suas

identidades oprimidas na cidade.

A arte existe para que a realidade não nos destrua.

Friedrich Nietzsche


124 Ocupando vazios

Figura 73 - Grafites no Prédio da Superintendência da Antiga Alfândega Fonte: Arquivo pessoal, 22/03/2019.


125 Ocupando vazios

CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho está envolvido em

desprendendo

novos

recursos,

uma temática cada vez mais ostensiva

públicos e privados, enquanto são

em grandes cidades do Brasil, diante

negligenciadas as demandas indicadas

de um cenário que tem intensificado as

pelas

ameaças de criminalização e repressão

desigualdades de acesso aos recursos

às lutas e resistências por direitos.

fundamentais

As experiências aqui destacadas apresentam

uma

visão

da

ocupações,

e

ressaltando

as

constituídos,

e

refletindo a constância da propriedade privada acima da dignidade humana.

complexidade legal e social para lidar

A ocorrência de ocupações é

com a condição de ocupação de imóvel

indicativa do desequilíbrio das políticas

tombado, dando visibilidade a estas

públicas

manifestações

e

indispensável o reconhecimento desta

ressignificação, com a reunião de

situação para compor as revisões de

registros que subsidiam discussões

programas de combate ao déficit

sobre a forma como é historicamente

habitacional,

tratado

forma, medidas que busquem maior

de

o

apropriação

déficit

habitacional

praticadas,

sendo

antecipando,

quantitativo e qualitativo da cidade de

eficiência

João

modo,

associando a efetivação da função

aproximando esta realidade com a

social da propriedade a recuperação de

pesquisa acadêmica.

bens imóveis e a consolidação do

Pessoa,

deste

Os imóveis em descumprimento da sua função social refletem lacunas

do

que

é

dessa

praticado,

direito à moradia. Conhecendo

os

despejos

urbanas edificadas donde, embora

ocorridos, na área objeto de estudo

empregados recursos diversos na sua

deste trabalho, foi possível verificar o

construção, são mantidos estagnados

retorno à ociosidade de todos os

pela sua falta de uso e manutenção,

imóveis identificados, que abrigaram

invariavelmente

sua

manifestações

são

demonstrando interesses higienistas à

movimentadas políticas que promovem

frente das responsabilidades com a

deterioração;

em

levando

à

contraponto,

expansões desnecessárias da cidade,

de

ocupação,


126 Ocupando vazios

propriedade, com o patrimônio e com

possíveis desastres e a dispersão de

estes últimos moradores.

doenças.

Embora ocorrência

de

aspira-se

a

ocupações,

não

Defende-se aqui que o discurso

essa

da conservação pode e deve ser

existência exige medidas paliativas

combinado

para ausentar os riscos provenientes

contendo

do uso inadequado das estruturas,

descaracterização natural e incentivada

entendendo como fundamental ações

de

de

arquitetônica

intervenção,

para

ordenar,

ao

aos a

interesses

sociais,

deterioração

conjuntos e

de

e

relevância

assegurando

a

menos minimamente, os sistemas de

dignidade de moradia, consolidada em

serviços básicos - como o fornecimento

suas origens às famílias que se

regular de energia elétrica, hidráulico e

encontram

coleta sanitária, evitando solicitações

sociedade excludente.

às

margens

de

irregulares e prevenindo, deste modo,

Figura 74 - Aqui tem gente! Menina moradora da Villa Nassau produzindo cartaz para a manifestação contra o despejo da sua comunidade. Fonte: Luana Lacerda, 2019.

uma


127 Ocupando vazios

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