CrĂticas de 2009 e 2010
Embarque Imediato Em cartaz, a prova de que até mesmo os grandes nomes da dramaturgia podem cair em produções vergonhosas. Em meio à boa fase de reconhecimento do cinema latino-americano pelo circuito internacional e contrariando a promessa de renovação no mercado de audiovisual brasileiro, estreou em escala nacional a comédia romântica “Embarque Imediato”, primeiro longa metragem do diretor paulista Allan Fiterman, veterano na produção e fotografia de curtas. Apesar do gênero escolhido pelos distribuidores, a comédia está mais para uma chanchada mal sucedida do que para um romance engraçado. Na verdade, o filme oscila entre os dois tipos, carregando o que há de pior em cada um deles. Quando quer ser chanchada, consegue cumprir adequadamente o requisito da criação de personagens burlescos e de apelo sexual, mas a partir do momento em que as figuras interagem, lhes falta a mesma pompa e exagero dos filmes dos anos 70. Quando se apega ao caráter romântico, a produção é igualmente falha, e duplamente sem graça, por colocar em tela um casal que não funciona e um rol de coadjuvantes que se fossem retirados da trama não alterariam em nada o seu produto final. Fiterman poderia ter focado a adaptação do roteiro para a tela no romance injustificado do casal de protagonistas. Com um pouco de esforço, teria conseguido embasar um script fajuto e, talvez, minorar as falhas que saltam à vista do espectador. Seu maior defeito, porém, foi descentralizar a estória e espalhar personagens autônomos, sem nenhum elo visível, ou com relações frágeis e desnecessárias, pelo filme. Ao final da exibição, perguntar qual a relevância de uma dezena de papéis é inevitável. Quando observamos “Embarque Imediato” como um trabalho de estréia, o que parece é que o diretor quis fazer algo maior do que podia abarcar, e sua ambição pela construção de um épico da comédia nacional definitivamente não funcionou. A trama principal gira em torno de Wagner (Jonathan Haagensen), o funcionário insatisfeito de um aeroporto que não vai descansar até se mudar para Nova Iorque. Seu último plano de fuga foi descortinado por Justina (Marília Pêra), a supervisora dos empregados, que vai fazer qualquer coisa para ser perdoada por Wagner. As tramas secundárias garantem espaço para Fulano (José Wilker), um fotógrafo de modelos tamanho GG que faz as vezes de namorado de Justina, Amparo (a espanhola Marta Nietro), outra funcionária do aeroporto, e incontáveis sem-nomes que superlotam a produção. Um elenco respeitável, vale destacar, mas com uma participação tão vergonhosa quando se pode supor. O papel de José Wilker é classificado como coadjuvante, mas sua irrelevância é tamanha que sua ausência não mudaria em nada o desenrolar da produção. O personagem é sem graça, o núcleo a que pertence é forçado, e os outros papéis que participam de suas sequências são inúteis. A protagonista Marília Pêra, dama do teatro nacional, parece ter levado dos palcos para a tela a forma “exagerada” de interpretar, e esbanja caras distorcidas, expressões caricatas e grunhidos indecifráveis. Só pela leitura de suas características no roteiro, o papel de Justina já poderia figurar entre os personagens mais grotescos do humor
nacional, mas a atuação de Pêra eleva sua falta de equilíbrio a níveis quase intoleráveis. Quanto aos aspectos técnicos, não há muito o que se falar sobre “Embarque Imediato”. Desconsiderando a opção do diretor por uma edição cosmopolita, talvez para realçar o caráter global da produção, fazendo uso de imagens sobrepostas na mesma sequência e dividindo a tela pra dar visibilidade simultânea aos personagens, seus 90 minutos são transcorridos sem inovações gráficas e novidades cênicas. A trilha sonora do filme, em meio à sucessão de deslizes, consegue ser agradável por mesclar ritmos latinos, canções italianas românticas e clássicos da música americana das décadas de 50 e 60. A produção também faz referência ao filme “Gilda”, de 1946, com Rita Hayworth no papel principal, e fonte de inspiração da personagem de Marília Pêra. Descrever “Embarque Imediato” como o maior pecado da cinematografia brasileira é exagero. É menos odioso considerá-lo como o resultado da ambição de um diretor principiante por fazer algo grandioso demais para seus padrões de estréia. Afinal, estrear com um épico, como fez o americano Orson Welles, com seu “Cidadão Kane”, em 1941, não é tão fácil como parece ser. Ao diretor, mais prudência em sua próxima empreitada.
400 Contra 1 – A História do Comando Vermelho O excesso de situações que não permite a construção de uma linha narrativa é uma boa estratégia para a elaboração de filmes originais. Aqui, é o traço comprometedor de um longa que poderia ser melhor. O curtametralista Caco Souza é um profissional de visão abrangente e execução não tão eficiente assim. Com o intuito de realizar, em seu primeiro longa, um trabalho multifacetado, o diretor não teme ao incluir em sua trama temas diametralmente distintos. O crime organizado, a tensão política dos anos de ditadura e a falência do sistema prisional, bons representantes do cinema de cunho social, convivem, neste “400 Contra 1”, ao lado de amores impossíveis e um forte apelo turístico. Tantas vertentes poderiam funcionar, mas a pouca experiência de Caco no comando de grandes projetos impediu a uniformidade do filme. Temas semelhantes já haviam sido abordados em dois de seus curtas mais recentes. “Senhora Liberdade”, documentário de 2004, abre espaço para o testemunho de William da Silva Lima, fundador do Comando Vermelho e também retratado em “400 Conta 1”. “Resistir”, de 2007, analisa outro contexto-base para seu longa, a relação entre presos políticos e presos comuns, encarcerados num mesmo ambiente. Optando por trabalhar com temáticas aproximadas, é natural esperar que sua primeira incursão por trabalhos de maior porte dê continuidade à abordagem de velhos conhecidos seus. Para quem se dispõe a conhecer um pouco mais da vida do diretor, porém, é fácil constatar que seu curta de maior sucesso, “Zagati”, vencedor de prêmios nacionais e parte da seleção oficial de Sundance, em 2002, consegue ser muito mais eficiente, embora fuja do tema tão recorrente no trabalho de Caco. Em “400 Contra 1” somos apresentados, de forma cronologicamente não linear, ao histórico de formação do Comando Vermelho. Partindo do início dos anos 70, com as guerrilhas urbanas derrotadas e um Brasil amedrontado pela repressão do governo Médici, um grupo de assaltantes e criminosos comuns divide espaço, no “Caldeirão do Inferno”, presídio de Ilha Grande (RJ), com presos políticos. Indignados com as regalias concedidas aos “pequenos burgueses” colegas de cela, o grupo dirigido por William da Silva coloca em prática uma série de planos insurgentes, guiados pela tríade Paz, Justiça e Liberdade. Nos anos 80, o presidente João Figueiredo marcaria o fim do regime militar no país. Durante o difícil período de transição, marcado por uma crise econômica que fez a inflação disparar, a população e a imprensa carioca dividiam suas atenções entre os atentados terroristas, atribuídos aos militares não conformados, e a onda de assaltos a bancos, boa parte deles realizados pela gangue de William. Entre a execução de planos magistrais e fugas arriscadas, o articulista do CV encontra tempo para saciar sua paixão por Tereza, que mais tarde faria parte do grupo, e para fortificar as bases sob as quais na década de 90 se ergueria a maior organização criminosa do Rio de Janeiro. A narrativa, de tão dilatada e complexa, poderia ser dividida em pelo menos três filmes diferentes. Assim com em “Austrália”, o criticado filme de Baz Luhrmann, “400 Contra 1” se perde entre tantos pontos de destaque, onde nada parece secundário e tudo
força espaço numa trama saturada de informações. Com um recurso de variações temporais, para garantir importância para fatos que de tão distantes jamais seriam abordados por um filme de duas horas, a montagem de Marcio Canella é de auxílio fundamental. Seus letreiros tentam localizar o público no excesso de ocasiões e momentos que formam a trama. Apesar de bem trabalhada, sua edição pode confundir o público mais desatento. O que também pode incomodar os mais tradicionalistas, principalmente pelo já citado excesso de elementos, são os recursos de câmera da primeira metade do longa. Apostando na habitual tremedeira, utilizada exaustivamente pelas sequências de mais ação em filmes recentes, “400 Contra 1” não impõe limites para o uso indiscriminado de tal recurso. Sequências de conversas e momentos tranquilos entre os personagens também são captadas dessa maneira. A partir da segunda metade, sem nenhuma explicação perceptível, o trabalho da câmera se torna mais seguro e estático. Daniel de Oliveira, escolhido para dar vida ao fundador do CV, não parece muito confortável com o papel que lhe foi designado. Seu jeito de bom moço destoa da rudeza revolucionária do personagem dos anos 70. A partir da década seguinte, os trejeitos do ator são bem aproveitados na composição de um personagem que se encaixa melhor ao seu tipo. O ladrão de bancos, elegante e trajando roupas de bom corte, é melhor representado pelo tipo físico de Daniel. Daniela Escobar e Branca Messina são os grandes destaques entre as interpretações do longa. Seguras de seus personagens, a namorada e a advogada de William, respectivamente, as atrizes oferecem atuações contidas na maior parte da trama, embora também demonstrem toda a carga dramática dos momentos exigidos pela narrativa. Caco Souza faz um bom filme, sobretudo por seu valor histórico e técnico, mas falha por querer transformar seu longa num laboratório de situações opostas. Suas técnicas de filmagem, ângulos, trilha sonora e recursos narrativos lembram as característica do cinema de Tarantino. O excesso de pólos talvez seja um ensaio de aproximação com “Pulp Fiction”, notavelmente mais exitoso em sua tentativa. Tarantino sabe quando dosar seus exageros. Caco prefere não ter limites, infelizmente.
A Epidemia Os zumbis estão de volta ao cinema num filme que segue a linha dos clássicos do gênero. Se peca pela falta de inovação, “A Epidemia” ganha pontos pelas sequências eletrizantes e sustos bem distribuídos e posicionados na trama. Zumbis são sempre divertidos. Essa é uma premissa infalível para qualquer gênero de cinema ou época de produção. Seja enquanto rasgam um pescoço a dentadas, nos filmes de horror, ou quando aparecem com um naco de braço pendurado entre os dentes, nas comédias escrachadas, os mortos-vivos ganharam variações técnicas, físicas e intelectuais e tornaram-se garantia de um bom público. Partindo de George A. Romero, maior expoente do tipo, os zumbis ganharam popularidade e caíram no gosto comum. Seu “A Noite dos Mortos-Vivos”, de 1961, entrou para a seleta lista de filmes trash cultuados pelo público, e suas características ainda influenciam produções recentes. Prova disso é “A Epidemia”, refilmagem do clássico “O Exército do Extermínio”, quarto filme de Romero. Com roteiro semelhante ao original e exibindo um caráter técnico um tanto antiquado, essa nova versão é fiel ao seu antecessor e, justamente por isso, igualmente divertida. A história acompanha a fuga de quatro moradores de uma cidade do interior dos Estados Unidos. O xerife do local (Timothy Olyphant), sua esposa (Radha Mitchell), um policial (Joe Anderson) e uma adolescente (Danielle Panabaker) tentam escapar de um vírus espalhado pelo sistema de abastecimento de água da cidade. Ao mesmo tempo, precisam fugir dos seus vizinhos, transmutados em zumbis sádicos após a ingestão da água, e de um exército policial enviado pelo Governo para deter a proliferação do vírus para além dos limites da cidade. O roteiro é enxuto, sem espaço para ramificações e narrativas paralelas. Vez por outra algum novo personagem ainda não infectado acompanha o grupo do xerife, mas sua participação é sempre limitada a poucos minutos de duração. E se a trama gira em torno de uma história simples e exaustivamente utilizada por outras produções, o que resta ao diretor Breck Eisner é apostar em cenas bem elaboradas de tortura e litros de sangue que escorrem como água. E sob esse aspecto a direção de Eisner é certeira. Mais conhecido pelo prejuízo milionário de “Sahara”, filme-aventura de 2005, estrelado por Matthew McConaughey e Penélope Cruz, Eisner se mostra agora menos ambicioso e assume um orçamento de U$ 20 milhões (“Sahara” custou, entre produção e distribuição, mais de U$ 200 milhões). O resultado e positivo, embora um tanto antiquado, e “A Epidemia” deve agradar aos fãs do cinema de horror. As opções de enquadramento e ângulos de câmera remetem ao filme de Romero, com suas sequências tremidas e imagens explícitas dos momentos de morte. Eisner soube conciliar o tradicionalismo técnico do que já foi testado pelo mestre com a atualidade do estilo que consagrou filmes como os da franquia “Jogos Mortais” e “O Albergue”. Por utilizar o que há de melhor nas duas épocas, o hibridismo técnico de Eisner funciona e garante dinamismo durante toda a projeção.
A trilha sonora, com a representativa música folk de Johnny Cash em seus minutos iniciais, e os acordes inquietantes elaborados para as sequências de tensão, dão o tom certo para a pacata cidade caipira vítima da barbárie de seus próprios moradores. A música também embala as fugas e o desespero dos personagens, carentes de uma boa interpretação por parte de alguns atores. O protagonista Timothy Olyphant não consegue escapar do amadorismo que permeia algumas atuações do cinema de horror. Embora seu personagem, o xerife da cidade, desperte simpatia imediata no público, sua interpretação não consegue atingir o equilíbrio exigido pela narrativa. Então, o que vemos é um excesso de expressões exageradas e caras retorcidas, que destoam até mesmo do clima naturalmente descomedido da produção. O destaque vai para o trabalho seguro de Radha Mitchell e Joe Anderson. Os dois mostraram versatilidade para assumir papéis importantes em gêneros opostos. Ela já havia conseguido oferecer ao público atuações convincentes na comédia dramática “Melinda e Melinda” e no horror “Terror em Silent Hill”. Anderson, menos conhecido do grande público, participou de “Across de Universe” e do recente “Amélia”, e agora comprova seu talento num gênero diferente. “A Epidemia” não é eficiente na tentativa de criação de um clima pesado e constantemente assustador, característica de filmes como “Atividade Paranormal”. Talvez essa não seja sua ambição. Como um bom filme de zumbis, seu mérito está na caracterização dos mortos-vivos, nas sequências de fuga e nos inúmeros sustos bem espalhados por toda a narrativa. Vale a pena ser visto.
Amor à Distância Elenco afiado e edição arrojada garantem agilidade e bom humor à melhor comédia romântica do ano. Drew Barrymore e Justin Long transbordam química. Não importa se parte de uma estratégia de marketing da New Line Cinema, o fato é que nas telonas o casal funciona tão bem quanto na vida real. “Amor à Distância” é a prova disso. Em meio ao excesso de comédias românticas descartáveis lançadas todos os anos, é sempre agradável se surpreender com os atributos de alguns produtos que fogem à regra e exibem uma qualidade indiscutível. Partindo da direção firme e de uma edição original, com a ajuda de um casal protagonista que não poderia dar errado e um competente elenco de apoio, “Amor à Distância” tem o mérito de conseguir divertir sem soar como afronta ao intelecto do público. Adicione à lista de êxitos um roteiro de situações bem construídas, humor ágil e uma trilha sonora que te faz tamborilar com os dedos na perna. Com tais qualidades, nem um argumento meia-boca é capaz de comprometer o desempenho do filme. A história do casal que se conhece às vésperas de uma iminente separação é de uso comum pelas produções do gênero. Tentativas de namoro à distância também existem aos montes. O grande problema é que a maioria delas se perde na disposição dos elementos comédia/romance na narrativa: se nas cenas iniciais os primeiros encontros do casal transbordam bom humor, o segundo ato é marcado por um melodrama barato, na tentativa de garantir mais sentimento à dor da separação e à emoção do reencontro. Felizmente “Amor à Distância” soube compensar o amadorismo de seu argumento com um roteiro bem elaborado. No texto de Geoff LaTulippe não existe espaço para a construção de um romance sem humor ou vice-versa. Tudo é trabalhado para que em nenhum momento o público esqueça que está diante de uma comédia romântica. Em outros filmes, a indefinição de um gênero predominante pode comprometer o resultado final da produção, mas aqui esse equilíbrio é responsável por seu êxito. E nas mãos da diretora Nanette Burstein o script assume uma forma leve, despretensiosa e minimalista, coroada com uma edição e montagem arrojada e de bom gosto. O convencionalismo dos movimentos bem dosados de câmera casa bem com recursos menos usuais, como a divisão da tela em dois espaços e a representação em forma de pop-up do display dos celulares, durante a troca de mensagens entre o casal. Em meio ao rol de êxitos, Barrymore e Long são os grandes trunfos do filme. É inegável a sintonia que se desenvolve entre os dois em qualquer tipo de sequência. Seja enquanto gritam uma lista impublicável de xingamentos, enquanto fazem vocêsabe-o-quê na mesa da cozinha ou quando tomam as decisões mais importantes da relação, o casal parece tão à vontade que é difícil perceber que estamos diante de uma ficção. O elenco de apoio, cujos núcleos específicos dariam bons outros filmes, também merece destaque. Os melhores amigos do personagem de Long, vividos pelos atores
Charlie Day e Jason Sudeikis (mais conhecido por seu trabalho no tradicional “Saturday Night Live”) garantem boas risadas com diálogos surreais e situações constrangedoras. A excelente Christina Applegate, da série “Samantha Who?”, está impagável como a irmã da protagonista, e sua teoria sobre o poder da “esfregação” é hilária. Para embalar o competente trabalho do time de atores a trilha sonora não podia ser diferente. As músicas do The Cure, The Pretenders e Weezer encaixam bem com a proposta do roteiro e a jovialidade das atuações. Agora é esperar pelo lançamento do CD com as canções. Com tantos pontos positivos, é impossível não se envolver pela atmosfera hilariante de “Amor à Distância”, o típico filme que eleva a classificação do gênero comédia romântica para alguns pontos acima do habitual. Se não gostar do que viu, ao menos duas constatações valerão o preço do ingresso: cultivar seu bigode pode ter resultados surpreendentes e uma “esfregação” pode não ser muito bem-vinda na mesa de jantar.
Aparecida – O Milagre Certo e errado, bom e mau, céu e inferno: o maniqueísmo no cinema brasileiro. Abordar temáticas religiosas no cinema é sempre arriscado. O natural distanciamento da religião é traço de uma juventude que prefere gastar o tempo livre com filmes de grandes estúdios. Aqueles que seguem os ditames de outras crenças também passam longe. O que resta ao diretor é procurar fisgar o público específico de fiéis daquela religião que se propôs a retratar. E se vai falar para camadas inteiras de religiosos em nível consideravelmente praticante, fugir do didatismo é quase impossível. A cineasta Tizuka Yamasaki não teve medo de tornar explícita sua opção pelo didatismo religioso em seu novo trabalho, “Aparecida – O Milagre”. Em meio ao lançamento de filmes e livros que divulgam a doutrina espírita e alcançam grande êxito comercial, os católicos brasileiros podem encerrar o ano com uma mensagem de fé e resignação bem ao gosto do que é ensinado pela igreja. Se a direção não estivesse nas mãos de uma personalidade conhecida no mercado audiovisual brasileiro, qualquer um apostaria que seria resultado do projeto pessoal de algum padre superstar em voga na mídia. A trama se aproveita do drama familiar vivido por Marcos (Vinicius Franco) para divulgar os benefícios de uma vida ligada a fé. Quando criança, o protagonista gastava seu tempo entre as ladeiras da cidade de Aparecida, considerada o santuário da fé no estado de São Paulo. Filho de devotos de Nossa Senhora Aparecida, Marcos assistiu, durante toda a sua infância, ao papel de destaque que a imagem sacra recebia em sua casa e na vida de seus pais. A reviravolta em sua existência acontece após a morte do pai (Rodrigo Veronese), que despencou das alturas enquanto trabalhava na construção da Basílica Nova. Com um salto de 30 anos, e após rejeitar qualquer traço da cultura católica, conhecemos o novo Marcos (Murilo Rosa), um empresário bem sucedido que não precisa do auxílio divino para administrar suas posses e sua vida. O conflito da vez fica a cargo de Lucas (Rodrigo Faro), o filho rebelde que prefere o mundo do teatro ao mundo dos negócios. A discordância é motivo para brigas frequentes, e em uma delas o jovem foge de casa e sofre um acidente quase fatal. Desenganado pelos médicos e rejeitando qualquer demonstração de fé, Marcos inicia uma jornada espiritual em que todas as suas crenças esquecidas serão reavivadas. É evidente o tratamento maniqueísta que o filme concede aos personagens em suas diferentes concepções de catolicismo. Enquanto criança, embora sem dinheiro para uma chuteira de futebol, o protagonista encontrava força na fé dos pais e compartilhava um ambiente de alegrias constantes e paisagens bucólicas. O Marcos empresário e cético não consegue desenvolver relações duradouras, destruiu o seio familiar e ganhou o vício do alcoolismo. Ao público é apresentado, sem disfarces, o que Deus dá e o que Deus tira. A preocupação dos roteiristas (Carlos Gregório, Paulo Halm, Pedro Antonio e Marco Schiavon) em didatizar o conteúdo é tamanha que tudo parece funcionar de modo acessório para o real propósito do filme. Afinal, para quem importa a trilha sonora, direção de arte e fotografia quando a mensagem divina está em projeção?
Pressionada pela força descomunal de uma crença milenar, nem Tizuka nem sua equipe puderam cuidar de aspectos importantes do filme. Se comparado aos lançamentos do ano com temática religiosa, “Aparecida” ganha posição de destaque pela falta de qualidade técnica e visual. As falhas de edição e os cortes precipitados entre as cenas permeiam toda a duração do filme, assim como a trilha sonora infantil e pouco eficiente. A composição dos quadros parece artificial e pouco trabalhada, de modo a não roubar a atenção do público para assuntos de importância “secundária”. O time de atores parece desconfortável – talvez constrangido - com a qualidade do trabalho. Murilo Rosa, Jonatas Faro, Rodrigo Veronese, Leona Cavalli Maria Fernanda Cândido e Leopoldo Pacheco, não alcançam uma atuação convincente e parecem pouco expressivos durante todo o filme. A atriz Bete Mendes, como a mãe do protagonista, e o ator que viveu Marcos quando criança são os destaques da trama, com interpretações mais encorpadas e naturais. A final do filme, o que nos resta é o convencimento de que o pior tipo de cinema é aquele explicitamente doutrinário. A pobreza dos argumentos, as tentativas de imposição de valores, o maniqueísmo das situações e o desleixo com a parte técnica são motivos para fazer de “Aparecida” um filme que deve ser esquecido. O “milagre”, neste caso, é permanecer no cinema até o final de sua exibição.
As Crônicas de Nárnia: A Viagem do Peregrino da Alvorada O terceiro livro da saga criada por C. S. Lewis assume nesta adaptação uma maturidade que às vezes não funciona. A presença de elementos cristãos, porém, está mais perceptível do que nunca. Adaptar para a linguagem audiovisual um clássico da literatura fantástica composto por sete livros de grande volume é uma tarefa delicada. Traçar um paralelo convincente entre dois mundos opostos e complementares, com suas devidas peculiaridades e personagens míticos, exige um apuro técnico e de narrativa que não é facilmente obtido. Após as duas tentativas discutivelmente bem-sucedidas do neozelandês Andrew Adamson, o inglês Michael Apted assumiu a direção da história. A qualidade do resultado parece igualmente questionável. Para narrar o capítulo em que Lúcia e Edmundo voltam ao território de Nárnia, o diretor apostou no uso de características que marcaram os êxitos e fracassos do seu antecessor. Em “As Crônicas de Nárnia: A Viagem do Peregrino da Alvorada”, o trabalho de Apted parece funcionar como uma continuidade do que foi iniciado por Adamson. A história acompanha os esforços do Príncipe Caspian para reunir as espadas encantadas de sete lordes. Com a ajuda do rato Ripchip, dos dois irmãos protagonistas e de um primo mimado da família, Caspian deve navegar por ilhas misteriosas à procura da solução para o mistério dos lordes. O enredo, aparentemente simples, exige para o seu desenvolvimento um tempo maior do que as duas horas do filme. A impressão que fica é a de que tudo acontece de modo acelerado, sem o tempo necessário para que as relações entre os personagens e os ambientes sejam bem trabalhadas. A construção de conflitos isolados, que parecem capítulos independentes no tempo e espaço, com um elo frágil de ligação com a narrativa principal, colabora para causar a impressão de que o roteiro adaptado pela equipe de Christopher Markus e Stephen McFeely não foi eficiente. Andrew Adamson, nos dois primeiros capítulos da série, recebeu insinuações de que seu trabalho carregava algumas das características épicas da trilogia “O Senhor dos Anéis”. O novo diretor não conseguiu fugir do legado deixado pela adaptação da obra de Tolkien, e “A Viagem do Peregrino da Alvorada” continua exibindo semelhanças indiscutíveis com os filmes de Peter Jackson. O modo como Apted dirige as sequências de batalhas e os detalhes das lutas entre os personagens lembram, de forma minimalista, o que foi explorado na trilogia de Jackson. A fotografia do italiano Dante Spinotti, a caracterização dos personagens e a trilha sonora que acompanha os momentos de tensão também são semelhantes ao que presenciamos em “O Senhor dos Anéis”. O problema é que em “As Crônicas de Nárnia” alguns desses fatores parecem exagerados se comparados à simplicidade do que assistimos. O time de atores surpreende com um trabalho notavelmente mais maduro e encorpado. Ben Barnes, no papel de Caspian, e os já crescidos Georgie Henley e Skandar Keynes, como Lúcia e Edmundo, demonstram uma sintonia raramente vista
em filmes do gênero. O recém-integrado à equipe, Will Poulter, no papel do irritante Eustáquio, também merece ser reconhecido por seus esforços. Para um personagem que deve assumir o papel de protagonista no próximo filme da série, Poulter parece confortável em sua posição. Em relação ao desenvolvimento das características individuais dos personagens, o trabalho da equipe de roteiristas é igualmente insuficiente. Enquanto Edmundo continua enfrentando as tentações da feiticeira branca (Tilda Swinton), Lúcia encara os conflitos típicos da faixa etária em que está se inserindo. Se realmente tinha por objetivo acentuar os traços de maturidade em sua trama, abordar os conflitos pessoais dos protagonistas seria fundamental. A obra de C. S. Lewis soube inserir entre batalhas e personagens fantásticos o processo de amadurecimento de seus personagens. Susana, a irmã mais velha, é acusada pelo autor de deixar a fantasia do mundo de Nárnia após assumir interesses estéticos. Apesar de ser acusado de sexismo pelo destino que escolheu para a personagem, Lewis conseguiu demonstrar um grau elevado de profundidade subjetiva para a história paralela de Susana. Falta profundidade aos dramas humanos do filme. Neste episódio da saga também houve uma sensível perda de qualidade nos efeitos especiais. Em algumas sequências a finalização da arte parece amadora e causa incômodo ao ser comparada ao trabalho dos filmes anteriores. Algumas sequências particulares demonstram apurado senso estético e ajudam a elevar a qualidade final de “A Viagem do Peregrino da Alvorada”. O portal de entrada para o mundo de Nárnia é original e as cenas em que ocorrem a travessia e o retorno ao mundo humano são visualmente espetaculares. Em outra sequência, os protagonistas navegam sobre um mar de flores brancas que, ao ser filmado à distância, parece feito de estrelas. Amparados sobre uma forte carga onírica, esses dois momentos específicos são o que existe de melhor no filme. A presença de elementos que remetem aos traços cristãos da obra de C. S. Lewis deve ser tomada como mais um ponto a favor do filme. A inserção de mensagens bem posicionadas entre os detalhes da trama e a rejeição por qualquer tentativa de didatismo religioso são méritos que precisam ser citados. O filme de Michael Apted aborda a temática de modo intimista, e a cena em que tais características aparecem de maneira mais explícita é totalmente bem aproveitada. Com um balanço final entre erros e acertos, a verdade é que este novo episódio de “As Crônicas de Nárnia” termina com um saldo positivo. O retrocesso de algumas características é visível, mas a melhoria em pontos fundamentais para a evolução da história também está lá. Se a equipe envolvida na realização do filme decidir superar suas falhas, o próximo capítulo da saga, “The Silver Chair”, promete ser um grande êxito.
As Melhores Coisas do Mundo As dúvidas e os anseios adolescentes nunca foram tão bem representados pela dramaturgia nacional. O novo filme da premiada cineasta Laís Bodanzky, “As Melhores Coisas do Mundo”, reúne nomes conhecidos da boa safra de novos atores da dramaturgia brasileira para contar a história de um adolescente paulista de classe média que enfrenta os conflitos típicos da idade, em meio ao burburinho de uma tradicional vida escolar. Amparada por um elenco de protagonistas escolhidos entre os próprios alunos de uma instituição de ensino, Bodanzky fez um filme leve, sem grandes pretensões, mas que satisfaz o público espectador justamente por não teatralizar a representação de uma geração que não precisa ser distorcida para parecer exagerada. “As Melhores Coisas do Mundo” é um filme jovem, para jovens, e seu ritmo ágil pode incomodar quem espera por um drama sóbrio e maduro. O filme acompanha um mês da vida de Mano (Francisco Miguez), adolescente que representa o substrato de todas as angústias e problemas da idade. Ele divide seu tempo e suas reflexões entre aulas de guitarra, tentativas de conquistar uma garota, desabafos de sua melhor amiga e o divórcio dos pais. Um tanto perdido entre responsabilidades que não podem ser adiadas, Mano é bombardeado por conselhos e recomendações dos adultos, que de certa forma acabam tomando o papel de antagonistas da história. Cerca de 2.500 pessoas, entre protagonistas e figurantes, participaram das filmagens de “As Melhores Coisas do Mundo”. Quase todo o elenco jovem do filme foi selecionado pela diretora entre os estudantes comuns dos colégios de São Paulo, que também receberam a oportunidade de ler, criticar e sugerir alterações no roteiro do longa. A estratégia funcionou, e apesar de ser baseado na série de livros “Mano”, dos escritores Gilberto Dimenstein e Heloisa Pietro, o roteiro é marcado por situações que só uma mente adolescente poderia prever. Apesar de iniciantes os novos atores surpreendem, e conseguem atuações que, de tão espontâneas, beiram o cinema documental. Estão mais a vontade do que os já conhecidos Fiuk, irmão do protagonista, e Paulinho Vilhena, o professor de guitarra. O elenco ainda conta com os sempre excelentes Caio Blat, no papel de um dos professores do colégio, e Denise Fraga e Zé Carlos Machado, os pais de Mano. O uso de características mais comuns ao cinema documental, como a presença de não atores e roteiro feito em colaboração com os personagens, aliadas ao fato de que boa parte da história acontece nos corredores de um colégio real, aproximam “As Melhores Coisas do Mundo” de outra produção recente, “Entre os Muros da Escola”, que em 2008 venceu a Palma de Ouro, em Cannes. O filme de Bodanzky também possui inegável qualidade estética. Embora seja convencional em sua direção, ela não perde a oportunidade de brincar com a câmera e exibe técnicas interessantes que permitem congelar o tempo ao redor do protagonista.
As músicas que fazem parte da trilha sonora do filme acompanham a temática juvenil, e acabam fazendo parte da lista de motivos que certamente não devem agradar ao público mais sóbrio. O mesmo acontece com a edição, um pouco ágil demais para a geração pré-MTV. “As Melhores Coisas do Mundo” pode parecer a adaptação cinematográfica de um seriado adolescente de baixa qualidade, mas para quem viveu aquela crítica fase de dúvidas eternas e questões insolúveis, sair indiferente dos cinemas é quase impossível. Com um relato plausível, sem espaço para dramas baratos e situações improváveis, Bodanzky fez um filme que, se não é a perfeita representação do jovem brasileiro, é tudo aquilo o que ele não tem coragem de mostrar.
Chico Xavier A vida do principal difusor do espiritismo no Brasil é o argumento para um filme esteticamente original e de qualidade inegável. No ano do centenário de nascimento do médium mineiro Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier, o mercado de audiovisual brasileiro se rende a força da doutrina espírita e oferece ao público uma série de produções fundamentadas na religião. Até o final do ano, cinco filmes que chegarão aos cinemas nacionais terão como mote a vida e a obra do médium, e pelo menos duas telenovelas terão forte apelo espírita em sua trama. Nenhuma das produções parece ter mais força junto ao público do que o filme “Chico Xavier”, do diretor Daniel Filho. “Chico Xavier” acompanha a vida do médium desde a sua infância interiorana, na cidade mineira de Pedro Leopoldo, até o auge do seu reconhecimento público. Pelas mãos certeiras de Daniel Filho, somos apresentados ao drama familiar vivido pelo garoto Chico, órfão de mãe desde cedo e criado num ambiente hostil, representado pela sua madrasta. Conhecemos o Chico estudante, que já causava estranhamento por escrever redações prolixas e bem elaboradas para um garoto de 11 anos, e percebemos que desde cedo o mineiro lutou contra incrédulos que associavam a mediunidade ás artimanhas das trevas. Três atores dividem a tarefa de representar Chico ao longo de sua vida e carreira. O garoto Matheus Costa vive o médium entre os anos de 1918 – 1922, provavelmente a fase mais conturbada de sua trajetória, marcada pela dúvida sobre o seu dom e por uma vida familiar insegura. O excelente Ângelo Antônio dá vida ao período de gradativa aceitação da mediunidade (1931 – 1959), e mostra ao espectador as primeiras sessões de psicografia de Chico. O ator exagera um pouco na representação de um Chico que vivia em eterna paz e ausência de conflitos, mas não chega a comprometer seu trabalho. Também é a fase onde a polêmica sobre a veracidade das cartas e textos psicografados abre espaço e se torna uma constante na vida do médium. É desse período uma das cenas mais emocionantes do filme, a que exibe a impotência de Chico diante da morte do irmão. Embora três atores dividam a cena para representar o médium, o principal foco do filme gira em torno de Nelson Xavier, que com uma interpretação segura e bem dosada para evitar excessos cênicos representa Chico entre os anos de 1969 – 1975. O ator cumpre bem o seu papel e garante leveza e naturalidade ao personagem. A semelhança entre ator e personagem é assombrosa, e Nelson imprime em sua atuação todos os trejeitos e maneirismos tão particulares ao mestre espírita. É impossível imaginar alguma outra opção do diretor para a representação de Chico na sua fase madura. Poucos atores oferecem ao público uma interpretação pouco satisfatória e não convincente, e o elenco de estrelas globais, presença constante entre os protagonistas do filme, é convincente. Merecem destaque os atores Tony Ramos, Christiane Torloni, Cássia Kiss e Rosi Campos. Mesmo assim, a atuação dos citados atores não atinge
ápices dramáticos, e cada um deles parece inserido dentro de uma trama de novela da Rede Globo. Sobre os aspectos técnicos, “Chico Xavier” pode ser considerado um primor artístico, se levados em consideração critérios como ousadia de enquadramentos, fotografia e trilha sonora. Os responsáveis por cada setor de criação garantiram um filme original e agradável aos sentidos, e qualquer traço de amadorismo foi deixado de lado. As locações, a ambientação de início de século e o figurino dos atores também merecem destaque. O trabalho triplo para representar as distintas fases da vida do médium superou qualquer expectativa sobre as limitações do cinema nacional. “Chico Xavier” deve agradar todo um público que busca auxílio espiritual nas obras do médium, mas não deixa de ser interessante para quaisquer outros grupos religiosos e para a audiência em geral. Vale a pena conhecer um pouco mais sobre a vida de uma das figuras mais importantes e carismáticas do século passado.
Como Treinar o seu Dragão Com mais uma animação fundamentada no respeito ao diferente, a Dreamworks lança um filme que promete agradar todos os públicos e dar continuidade ao sucesso de suas produções anteriores. Entre os cinco maiores êxitos de bilheteria da Dreamworks estão os três filmes da franquia Shrek, e dois deles ocupam os primeiros lugares da lista, com arrecadação de mais de US$919 milhões (Shrek 2), e US$798 (Shrek Terceiro). As máximas de que não se deve julgar pelas aparências, e de que o diferente pode ser interessante e agradável, parecem funcionar bem quando o principal público alvo ainda não ultrapassou a barreira dos 15 anos. Com a mesma proposta, “Como Treinar o seu Dragão” aborda o tema de maneira mais madura, e parece garantir seu lugar como novo êxito da empresa. Com roteiro livremente adaptado da série homônima de livros infanto-juvenis da escritora inglesa Cressida Cowell, “Como Treinar o seu Dragão” narra a história de Soluço, um garoto viking que decide lutar contra as tradições do seu povoado e não aceita participar da matança de dragões. Deixando de lado as exigências do pai, o líder guerreiro da comunidade, Soluço consegue desenvolver uma estranha amizade com o mais temido dragão de que já se ouviu falar, o Fúria da Noite, contrariando todas as expectativas de uma geração inteira de vikings guerreiros. Através da relação entre o garoto e o dragão, ficamos sabendo que os monstros alados são, na verdade, seres dóceis, controlados por uma força assustadoramente maior, e que só atacam humanos quando se sentem ameaçados. Mais uma vez a Dreamworks aposta na premissa de que o diferente merece ser respeitado e conhecido, e que por trás de um focinho carrancudo cuspidor fogo, pode existir um ser carente, e necessitado. O ponto forte do filme é a estranha relação proibida entre Soluço e o seu dragão de estimação. Partindo de um primeiro encontro assustador, passando pela fase de desconfiança e receios, até o momento do primeiro contato físico, somos apresentados a sequências emocionantes, belamente desenhadas, e embaladas por uma trilha sonora agradável. A visão do espectador é colocada em ângulos originais, e boa parte do filme parece ter saído de uma anterior versão cinematográfica, feita com atores de verdade e uso de câmeras e equipamentos reais. Toda a parte visual é bem trabalhada, e as texturas, cores e detalhes dos cenários foram minuciosamente bem cuidados. A riqueza de detalhes da cidade viking impressiona, e os ambientes externos parecem reais. As sequências de voo dos dragões, com seus planos de visão quase infinitos, são de encher os olhos, e estão no mesmo nível de perfeição estética que as rochas flutuantes, vistas em “Avatar”. Muitos detalhes do cenário, pelo requinte e apuro técnico demonstrados pela equipe de criação, podem ser colocados ao lado do que há de melhor na produção milionária de James Cameron. Se o trabalho técnico relativo aos ambientes merece ser destacado, o mesmo não pode ser dito da equipe responsável pela criação dos personagens. Embora Soluço, o protagonista, seja um ótimo exemplar do esmero artístico da produção, todos os
demais vikings parecem saídos de mãos primárias, e são pobres de detalhes. Em sequências de guerra, boa parte dos guerreiros são tão parecidos que se torna difícil diferenciá-los entre uma massa uniforme. “Como Treinar seu Dragão” ainda incomoda por outro fator, o tempo de duração. 92 minutos de projeção não são suficientes para desenvolver satisfatoriamente a história quase épica de um garoto que luta contra o costume mais forte de uma civilização, luta para conquistar a confiança do dragão mais temido, para corresponder às expectativas do pai, e para conquistar a garota que ama. Dobrar o tempo de duração, ou deixar parte das aventuras para uma sequência posterior, seriam boas opções para garantir segurança ao enredo do filme. Por se tratar de um filme direcionado ao público infanto-juvenil, porém, qualquer alteração pode se tornar inviável. É cedo para dizer se a nova produção da Dreamworks vai superar o sucesso representado por Shrek e iniciar uma nova franquia exitosa. Mesmo assim, não há dúvidas de que “Como Treinar seu Dragão” é capaz de tanto.
De Pernas pro Ar Entre erros e acertos, o maior mérito do filme é tentar romper o tabu que existe na abordagem da sexualidade. Ingrid Guimarães assumiu um papel de peso: sua primeira protagonista no cinema é uma mulher de, no mínino, três fases. A atriz precisou representar a empresária bem sucedida e workaholic por natureza, a mulher desempregada e cheia de complexos, e a figura feminista da modernidade, que levanta a bandeira da liberação sexual enquanto administra seu Sex Shop. Não é exagero dizer que Guimarães cumpriu com êxito suas atribuições e tornou-se o que há de melhor em “De Pernas pro Ar”. O novo trabalho do cineasta carioca Roberto Santucci se distancia do gênero dramático de seus últimos filmes – opção arriscada, já que “Alucinados” e “Bellini e a Esfinge” receberam críticas e prêmios de grande peso – e assume as características usuais da comédia besteirol americana. Como um filme feito para rir, “De Pernas pro Ar” é competente e divertido, embora sua eficiência termine na primeira cena dramática. Além de quebrar o ritmo de um roteiro recheado de tiradas cômicas, os momentos de drama não são bem aproveitados pelos personagens, que já ganharam feições de humor irreparáveis. A protagonista é executiva do setor de marketing em uma grande empresa de brinquedos. No encalço de uma promoção iminente, deixando de lado marido e filho, a personagem comete uma gafe no dia de uma reunião definitiva para sua carreira e é demitida. Sem emprego, sem marido, e hostilizada por uma vizinha de trajes mínimos, Alice descobre a oportunidade ideal para alavancar sua carreira. Em parceria com Marcela (Maria Paula), dona de um Sex Shop decadente, Alice elabora um plano de vendas online para produtos eróticos. O que começou como uma loja de bairro ganha ares de grande corporação e a protagonista se vê inserida na mesma rotina de trabalho que comprometeu seu casamento. Uma ex-executiva de vida sexual abalada pela falta de tempo e uma loja inteira de produtos eróticos dos mais diversos tipos, tamanhos e formatos, são a combinação exata para uma infinidade de tiradas caricatas bem representadas por Guimarães. Mesmo em situações constrangedoras e excessivamente forçadas para fazer rir, a atriz consegue amenizar o clima artificial da piada e se sobressair entre as falhas. Maria Paula, Bruno Garcia e o elenco de coadjuvantes também cumprem seus papeis de modo convincente, embora não consigam escapar ilesos dos momentos críticos da narrativa. Não parece justo tratar Guimarães como uma atriz de capacidade interpretativa superior aos demais atores. Seu êxito em “De Pernas pro Ar” talvez seja explicado pela empatia instantânea que é criada entre sua personagem e o público, o que não acontece com os demais tipos. Mais do que isso, é inegável o carisma da atriz em qualquer de seus papeis. Não existem novidades para se falar sobre os quesitos técnicos. Fotografia, direção de arte e trilha sonora não são fatores determinantes para a direção de Santucci e o roteiro de Marcelo Saback e Paulo Cursino. A plasticidade da iluminação, os recursos de câmera lenta e plano detalhe do rosto dos personagens, aliados a música burlesca, fazem
“De Pernas pro Ar” parecer o projeto ampliado de algum programa piloto exibido nos finais de ano na Rede Globo de Televisão. Também parece retirada de uma minissérie global o tratamento cômico dado a temática feminista que permeia a trama. Longe de ser um fator negativo para o roteiro, a comicidade conduz toda a mensagem de libertação sexual, respeito às diferenças e quebra de tabus. Temas delicados soam de modo natural com o auxílio do bom humor da narrativa, e certamente a parcela conservadora de público terá uma boa oportunidade para repensar seus valores. A busca pelo prazer feminino é o mote que guia todas as outras questões, e apesar do humor presente no filme, em nenhum momento o assunto é abordado de maneira inconsequente ou desrespeitosa. Nosso país não está diante da nova obra-prima do humor nacional, e é evidente que esse não era o objetivo de Santucci. “De Pernas pro Ar” é um filme pequeno, imperceptível ao lado da enxurrada de lançamentos que recebemos todas as semanas dos grandes estúdios. O carisma de sua protagonista e o tratamento despretensioso dado aos assuntos mais delicados são êxitos que valem o ingresso.
Esquadrão Classe A Acredite se quiser, mas tiros, perseguições, carros velozes, poeira e músculos são os principais argumentos de um filme imperdível. Filmes de ação costumam estar no topo da lista dos parodiados, abertamente criticados e facilmente esquecidos. O excesso de tiros e perseguições, o roteiro cheio de furos e os habituais astros do gênero (Sylvester Stallone, Arnold Schwarzenegger, Van Damme e Steven Seagal) parecem motivos suficientes para que o resultado final do produto ocupe um lugar inferior na relação “custo-benefício” de alguns. Quando um diretor pouco conhecido e um elenco de estrelas do peso de Liam Neeson, Bradley Cooper, Jessica Biel e Patrick Wilson deixam de lado o medo do ridículo e assumem os exageros típicos do gênero, acabam realizando, em tempos modernos, uma síntese de tudo o que o cinema de ação representou. Acontece que “Esquadrão Classe A” é muito mais divertido do que qualquer antecessor. Sem medo de parecer grotesco, o diretor Joe Carnahan, do igualmente divertido “A Última Cartada”, apostou seu orçamento numa refilmagem do seriado homônimo da década de 80, que no Brasil era exibido pelo SBT. Também responsável pelo roteiro, Carnahan não deixou de lado nenhuma das características intrínsecas aos personagens e ao formato da narrativa. No filme, quatro ex-veteranos da Guerra do Vietnã se reúnem para impedir o transporte de placas de impressão da moeda americana. Perseguindo organizações criminosas em terras do ex-ditador Saddam Hussein, o grupo precisa deter o transporte do material que seria usado para falsificação de dólares, recuperar a patente e reconhecimento perdidos após uma operação falha e desvendar um esquema de corrupção que envolve grandes nomes da polícia norte-americana. A personalidade dos membros do Esquadrão segue a fórmula de sucesso do seriado, e as peculiaridades de cada um deles foram bem desenhadas. O Coronel John “Hannibal” Smith, líder e mentor da equipe, ganha vida por meio de um Liam Neeson em excelente forma. Bradley Cooper é Templeton “Cara de Pau” Smith, dono de uma lábia que consegue reverter as piores situações. Quinton Jackson vive o brutamontes Bosco “BA” Barracus, agora com algumas novas fobias. Sharlto Copley completa a equipe como o insano H.M. Murdock, responsável pelas sequências mais cômicas do longa. Jéssica Biel, sensual como poucas personagens da ficção conseguiram se mostrar, prova que a beleza está longe de ser seu único atributo, e garante mais importância à sua personagem, a controversa general do exército americano Charisa Sosa. O elenco de protagonistas ainda leva o nome de Patrick Wilson, como Lynch, que vai transitar entre vários segredos. Se o time de estrelas assumiu os exageros que saltam aos olhos do espectador, a direção de Carnahan também não abandonou os excessos. A típica apresentação de protagonistas, com closes estáticos e letreiros com nome, sobrenome e apelido, estão presentes no início do filme. Planos que se mesclam numa velocidade vertiginosa e sequências de ação que acabam desorientando quem assiste também estão lá.
A edição ágil ajuda a sedimentar a confusão visual do espectador, e nesse ponto o exagero acaba se tornando incômodo. Tanta agilidade, tantas informações, tantos excessos confundem a narrativa e exigem atenção redobrada. A trilha sonora parece saída dos filmes da franquia “Indiana Jones”, e segue a clássica linha de embalar as sequências de ação, com notas elevadas e que não deixam o ritmo cair nem mesmo quando a confusão parece resolvida. Mais um ponto positivo no saldo final de “Esquadrão Classe A”. Tudo o que você abominava nos filmes de ação está presente neste lançamento. Todas as características que consagraram esse gênero como predominantemente masculino também estão lá. E é justamente por abusar de tais características, sem medo de represálias e de ser acusado de um saudosismo desnecessário, que ele é tão divertido. “Esquadrão Classe A” é o típico filme de Sessão da Tarde? Sim, e com orgulho.
Flor do Deserto Trajetória pessoal serve como argumento para retratar o drama das mulheres somalis, vítimas da circuncisão precoce. “Flor do deserto”, relato cru e impactante da vida da ex-modelo somali Waris Dirie, é um filme que, mesmo abrindo mão de uma qualidade técnica superior, consegue emocionar o público como poucas produções vistas atualmente. A história da garota filha de pais nômades, circuncidada aos 3 anos, que fugiu de casa aos 13, após ser vendida para casamento com um comerciante sexagenário, é forte o suficiente para tornar meramente acessória qualquer outra exigência prática. Aqui, a linearidade narrativa (cujo roteiro foi inspirado na autobiografia homônima de Waris) e o trabalho arrasador da atriz Liya Kebede, são pontos-chave e principais argumentos para uma sugestão: assista-o. Se optar por fazê-lo, prepare-se para duas horas de representação chocante de uma realidade que não parece tão ferina até ser vista ao vivo ou, ao menos, numa tela de cinema. A autobiografia de Waris (equivalente em somali para ‘flor do deserto’) tornou-se, ainda em seu ano de lançamento, 1998, best-seller mundial. Desde então, com sua luta massiva e ininterrupta pela proibição da circuncisão no mundo, a ex-nômade foi nomeada Embaixadora Itinerante da ONU contra a Mutilação Feminina, figura central de um documentário da BBC sobre o tema e, agora, personagem principal de um longa-metragem. Não é difícil entender porque a história de Waris desperta tanto fascínio em quem tem a oportunidade de ler seus livros ou assistir ao filme baseado em sua história. Tais materiais traçam um relato exato da conturbada fuga de uma garota que, de tão magra, nem parecia ter forças para se sustentar, e mesmo assim se lançou na travessia de um deserto da região, até a capital Mogadíscio, de onde segue de avião até Londres. O mote dos livros, do filme, e do engajado discurso de Waris não é, porém, sua trajetória pessoal. Todos os aparentes produtos da história de vida da somali são apenas o plano de fundo de um esforço – dela, em seus livros e depoimentos, e da direção, no filme – para que a realidade de garotas circuncidadas, num país cuja independência política só foi conseguida no início dos anos 60, e que ainda carrega índices de desenvolvimento social entre os mais baixos do mundo (expectativa de vida: 48,2 anos; mortalidade infantil: 116,3/mil nascimentos), seja conhecida. Como a própria personagem faz questão de destacar em um dos melhores diálogos do longa, a exploração da imagem de uma ex-nômade transformada em famosa modelo cansou. O que importa, para ela, é a divulgação de um traço cultural que continua causando irreversíveis danos físicos e psicológicos às mulheres somalis. Escolhida para dar vida à Waris, a atriz e também modelo Liya Kebede consegue conferir um realismo impressionante à personagem. Sua origem etíope e sua ascensão ao posto de uma das modelos mais bem pagas do mundo, tendo estrelado campanhas da Yves Saint-Laurent, Victoria’s Secret, Dolce & Gabanna, Louis Vuitton, Carolina Herrera, entre outras, podem ter garantido uma identificação quase
instantânea entre atriz e personagem. O resultado é assustador. Além disso, e ainda deixando de lado a semelhança física entre as duas mulheres, a atuação de Kebede impressiona justamente por ser dotada daquilo que poucas atrizes conseguem dispor com verdadeira eficácia: uma notável carga dramática em uma atuação sem grandes rasgos e picos emocionais. Não parece justo citar os defeitos técnicos de um filme cujo apelo social grita mais alto que qualquer outro fator, mas deixá-los de lado seria igualmente irresponsável. Se “Flor do Deserto” acertou no principal, alguns desvios e derrapadas também estão presentes. Alguns recursos de edição são exagerados, assim como algumas sequências do roteiro, o que se torna desnecessário devido ao apurado senso dramático da narrativa. Ao mesmo tempo, a originalidade de alguns ângulos, de alguns planos do deserto africano e de enquadramentos curiosos, também são marcas do filme. Preste atenção na sequência de imagens que precede a aparição dos créditos finais. Sob todos os aspectos, positivos e negativos, o saldo final de “Flor do Deserto” é interessante. Não é um filme indicado para quem prefere analisar o conjunto da técnica. Também não é um filme sobre uma ex-nômade que conseguiu vencer na vida e tornou-se uma modelo bem sucedida. Aqui, antes de tudo, os costumes de um povo são colocados em confronto direto com os danos que podem causar. E se a circuncisão pode ser considerada como mais um traço da crueldade humana, Waris Dirie é a prova de que perder as esperanças na humanidade não é a melhor saída. (Deixando de lado as falhas técnicas e desde que se leve em conta somente o alcance de seu aparente objetivo principal, “Flor do Deserto” merece 10 estrelas)
Gente Grande Novo filme da produtora de Adam Sandler revive o humor banal de seus longas anteriores. O resultado é um apanhado de todas as características que marcaram o sucesso de público e o fracasso de crítica de seus antecessores. Repetição. Essa é a palavra que resume o novo filme dos inseparáveis Dennis Dugan e Adam Sandler. Recolhendo o substrato de piadas e situações de seus trabalhos antigos, os dois transformaram “Gente Grande” em mais um produto de humor barato, apelo dramático amador e desfecho previsível. O que resta ao público é se apoiar no carisma de Sandler para ter a chance de esquecer as falhas do que está vendo e se deixar levar por um roteiro que poderia dar certo. Em “Gente Grande” acompanhamos a reunião informal de cinco amigos e suas respectivas famílias. Lenny (Adam Sandler), Eric (Kevin James), Kurt (Chris Rock), Marcus (David Spade) e Rob (Rob Schneider), estudaram juntos e entregaram ao seu mitológico treinador o troféu de primeiro lugar do campeonato de basquete da cidade. 30 anos depois, sensibilizados pelo velório do ex-técnico, os amigos decidem alugar uma casa de campo e reviver os anos de glória da equipe. Se o argumento principal decepciona, as tramas paralelas conseguem elevar a qualidade do roteiro de Sandler e Fred Wolf. As famílias dos protagonistas guardam peculiaridades interessantes, e as sequências em que aparecem garantem boas risadas. No papel da esposa de Lenny, Salma Hayek vive uma empresária do mundo da moda, mais preocupada com o andamento de seu desfile em Milão e com o videogame de seus filhos. O rol de personagens curiosos avança ainda com um garoto crescido que não abandonou o leite materno, crianças mimadas, filhas que traem o lamentável tipo genético do pai, uma sogra metida e uma esposa centenária. São eles que sustentam a trama cheia de falhas e compensam a falta de humor das situações vividas pelos protagonistas. Para o público brasileiro e para culturas mais distantes do centro irradiador norteamericano, o excesso de referências e links propostos pelos personagens pode comprometer algumas piadas. Para aqueles que assimilam as alusões, uma constatação: seu humor não funciona. As demais tiradas de humor seguem o padrão fílmico de Sandler, com tombos, piadas infantis e alguma escatologia. Não há mais do que isso, e a equipe envolvida na realização do longa não parece muito interessada em ultrapassar a fronteira de qualidade que marca as comédias do gênero. Desde o roteiro, passando pela construção das situações cômicas, pela direção e pela atuação do elenco, nada passa do limiar da falta de originalidade. Dennis Dugan imita o convencionalismo da direção de seus filmes anteriores, como “O Paizão”, “Eu os Declaro Marido e... Larry” e “Zohan: um Agente Bom de Corte”. Todos os aspectos técnicos abraçam o que já foi testado pela parceria entre o diretor e a produtora Happy Madison, de Sandler.
A trilha sonora é marcada pelos grandes nomes do rock. Se em “Click” Adam Sandler demonstrava seu bom humor ao som de Peter Frampton, The Strokes e The Cranberries, em “Gente Grande” ouvimos boas músicas de Aerosmith, AC/DC e Paul McCartney. Nada mais apropriado para embalar o reencontro de trintões ensandecidos. Nesse retorno proposital aos fundamentos da comédia pastelão, o humor óbvio e sem graça dos cinco amigos se encaixa bem. Para quem riu dos filmes anteriores de Sandler e para quem gosta de ver as mesmas piadas disfarçadas em situações diferentes, “Gente Grande” é a comédia do ano. Aqueles que estão cansados de tombos e declarações de amor perdidas entre escatologias desnecessárias, devem fugir dos cinemas.
O Amor Acontece Quando o cinema se transforma em um manual comportamento, força de vontade e adequação moral.
previsível
de
bom
Texto simples, exemplos banais, recomendações óbvias, apelo emocional e um pouco de divulgação na mídia: junte tudo e consiga um público fiel, com lágrimas que saltam aos olhos e promessas de “agora vou mudar”. A receita para um livro de auto-ajuda de sucesso foi copiada, indiscriminadamente, pelo diretor estreante Brandon Camp em seu “O Amor Acontece”, o exemplo mais claro da face apaziguadora e conselheira do cinema. Burke Ryan (Aaron Eckhart) é um escritor viúvo, guru da auto-ajuda, que viaja pelos Estados Unidos autografando sua obra e ministrando workshops sobre como superar a perda de entes queridos. Burke está no auge, e é disputado por inúmeras grandes empresas que querem comercializar produtos com o seu nome. Ao conhecer a florista Eloise (Jennifer Aniston), percebe que não está tão seguro da sua recuperação, e que nunca conseguiu processar a morte da esposa. Se a intenção do roteirista era caricaturizar o mercado de auto-ajuda, e tecer uma crítica sutil à fragilidade dos conselhos e recomendações que transbordam de tais obras, sua falha foi sofrível. O filme inteiro funciona como um grande manual para a felicidade, e cada uma de suas sequências é pontuada por sugestões e exemplos polidos de superação, sempre amparados pelo politicamente correto. “Politicamente correto”, aliás, é o adjetivo de ordem em “O Amor Acontece”. Os personagens são exemplos de integridade e retidão, as emoções são contidas, não há apelo sexual, nem vícios, nem ao menos um xingamento popular, e tudo conspira para a felicidade e bem estar geral. É um prontuário de auto-ajuda dentro de um filme de auto-ajuda que, para o público que não está tão desesperado por auxílio, soa enfadonho e desnecessário. Burke e Eloise são confiantes e otimistas, típicos exemplos do bom cidadão americano que honraria qualquer família. A segurança de cada um deles, porém, é relativa e condicionada a dois fatores de seus empregos. Enquanto o escritor sobrevive amparado na busca pela felicidade de seu público leitor, a florista vive inserida dentro do mundo perfeito e inabalável dos cartões de amor que acompanham seus arranjos florais. A necessidade de outras vidas para sustentar os personagens seria um argumento interessante para embasar o filme, mas em “O Amor Acontece”, tais fatores são coadjuvantes. Aaron Eckhart, com sua interpretação convincente, faz bem o papel do viúvo lançado ao sucesso. Sua atuação contida, já percebida em “Obrigado por Fumar” e “Erin Brockovich, Uma Mulher de Talento”, não é suficiente para colocá-lo na lista dos grandes atores de sua geração, mas consegue posicioná-lo no confortável patamar de intérpretes não descartáveis. O mesmo não pode ser dito de Jennifer Aniston, atriz especialista em comédias românticas e produções que tentam fugir, inutilmente, da classificação “água com açúcar”, caso de “O Amor Acontece”. Aniston não inova nunca, e os recursos cênicos
e interpretativos que usa são os mesmo que já havia usado em boa parte de seus filmes anteriores. O que ainda surpreende e chama atenção em meio ao óbvio que permeia o filme é o trabalho realizado pela equipe de direção de arte e fotografia, aspectos geralmente colocados em segundo plano nas produções do gênero. Alguns enquadramentos e movimentos de câmera são interessantes, e a equipe não se contentou em filmar de modo convencional. A trilha sonora se esforça para fugir do previsível, mas o tradicional rock de garagem e a irritante cena do casal assistindo ao concerto do seu grupo musical favorito estão presentes no filme. “O Amor Acontece” se perde em meio à crítica que faz ao mercado da auto-ajuda, e acaba se tornando mais um exemplar descartável do ramo, com suas lições de moral fajutas e conselhos do senso comum. Para quem não suporta tal vertente da literatura, vale avisar que sua transposição pra o cinema é triplamente irritante.
O Amor Pede Passagem Quando o único traço de originalidade de um filme é a sua trilha sonora, vale a pena questionar se o diretor realmente está na carreira certa . São raras as comédias românticas que conseguem fugir do óbvio que o gênero parece exigir e atingir um estágio superior de qualidade, com roteiros imprevisíveis e situações inusitadas. Tal situação causa tamanho estranhamento, que o público e a própria crítica especializada passam a tratar o filme como uma comédia alternativa. “O Amor Pede Passagem” não nega sua espécie, e não faz um mínimo esforço para modificar sua situação. O filme acompanha o empenho de Mike (Steve Zahn), cuja única ocupação é ser filho de dono de hotel de beira de estrada, para conquistar a executiva e ativista social Sue Claussen (Jennifer Aniston), que se hospedou por acaso no estabelecimento do rapaz. O gancho da trama é a eterna turbulência amorosa da vida de Sue, recém saída de um namoro duradouro com um ex-punk e atual milionário, e a limitada capacidade intelectual de Mike, suficiente para torná-lo um estrategista inconseqüente e infantil. Enquanto Sue viaja a trabalho por todas as regiões do país, Mike junta seus trocados, empenha suas bugigangas, e persegue a garota, onde quer que ela esteja, sem se amparar em nenhuma promessa de recompensa ou devoção amorosa. Escrito e dirigido pelo estreante Stephen Belber, “O Amor Pede Passagem” é mais um exemplar do típico filme água com açúcar que se apóia na fama de sua protagonista. As situações são irreais, as relações dos personagens e os argumentos que norteiam suas decisões são irritantemente forçados, e qualquer traço de originalidade foi deixado de lado pelo diretor. Não há, em 90 minutos de projeção, uma só sequência que fuja do inesperado, assim como também não há nenhuma cena realmente engraçada, ou indiscutivelmente romântica, para honrar o gênero em que foi classificado. A personalidade maçante dos personagens e a limitação artística dos atores reforçam a ideia de que falta química para o casal. Sue é uma caricatura bizarra do politicamente correto e Aniston não faz nenhum esforço para superar sua confortável posição de estrela de comédias românticas, onde está eternamente encravada, sem dar sinais de que pretende, algum dia, se superar. Em outro extremo, a capacidade intelectual de Mike estagnou na pré-escola, e todos os seus atos são injustificados. Steve Zahn, do alto de suas restrições, ainda conseguiu fazer um bom trabalho, e sua interpretação, embora convencional, é a melhor de todo o elenco. Se o roteiro e a interpretação dos atores são convencionais, a parte técnica, no que diz respeito á fotografia e edição, também não oferece nenhuma novidade. O filme parece saído das mãos inexperientes de um estudante medíocre, recém-formado em algum curso superior de Cinema. O ponto alto de qualidade do filme é a sua trilha sonora agradável e surpreendentemente original para uma produção insossa. “O Amor Pede Passagem” deixou de lado as bandas de garagem norte-americanas, com suas letras de amor
adolescente, e optou por canções amenas, de representantes e influenciados do folkrock dos anos 60 e 70. Estão lá músicas que vão desde os jurássicos do Three Dog Night, até a sonoridade retrô do contemporâneo Jason Collett. Para aqueles que realmente não se importam em rever no cinema as mesmas cenas de dezenas de outras produções semelhantes, “O Amor Pede Passagem” é tolerável. Às pessoas que esperam por um pouco de originalidade, recomendo que procurem urgentemente pela trilha sonora do filme. E só.
O Fim da Escuridão Relações pouco desenvolvidas e uma direção falha transformam o filme no mais vivo exemplo de um roteiro que poderia ter dado certo. “O Fim da Escuridão”, novo longa do diretor Martin Campbell, possui um argumento interessante e potencialmente polêmico: a produção de armas nucleares dentro do território norte-americano e o envolvimento das mais altas figuras públicas. Inserir um drama familiar na narrativa seria uma opção inteligente do roteirista, e desde que bem realizado, o filme seria facilmente colocado na lista de melhores suspenses da década. O que assistimos, porém, é uma má adaptação para a tela, e um resultado final que provavelmente não passará de uma conformada exibição nas tardes da TV aberta. O filme acompanha o processo investigativo do detetive policial Thomas Craven (Mel Gibson), na tentativa de descobrir os motivos que levaram ao assassinato de sua filha Emma (Bojana Novakovic), ativista social e estagiária de uma poderosa empresa de pesquisas científicas. Inicialmente confiante de que o verdadeiro alvo dos disparos seria ele próprio, o detetive desvenda uma rede de corrupção que envolve pessoas mais poderosas do que ele poderia supor. O roteiro de “O Fim da Escuridão” mescla duas temáticas diferentes, e abre espaço para a questão política e os dramas familiares. São duas vertentes comuns ao cinema, e a junção de seus elementos geralmente produz bons resultados. Foi assim com “Erin Brockovich – Uma Mulher de Talento”, com Julia Roberts dividindo seu tempo entre a investigação do uso de substâncias ilícitas por parte de uma grande corporação e a educação de seus três filhos sem pai. Ao contrário do filme de Steven Soderbergh, que rendeu o Oscar de melhor atriz à Roberts em 2000, “O Fim da Escuridão” não consegue construir uma inclusão satisfatória entre os dois pólos, e as relações familiares acabam caindo no elementar. Os laços afetivos que unem pai e filha são pouco desenvolvidos, e o luto de Gibson pela morte da garota é quase inexistente. Percebendo que a frágil representação familiar não seria suficiente para emocionar o espectador, o filme apela para recordações que aparecem entre os momentos de tensão, e cede espaço para vozes inexplicáveis e espectros surreais. O plano B definitivamente não funciona. A direção de Campbell é incipiente, e o neozelandês parece um pouco perdido ao filmar um roteiro sem perseguições quilométricas e cenas de ação mirabolantes, como havia feito em “007 – Cassino Royale” e “A Máscara do Zorro”. Alguns planos beiram o amadorismo, e nada muito original está presente no longa. Nas sequências mais dinâmicas seu trabalho pode ser visto de maneira mais autoral, e os ápices das cenas de ação são interessantes. Na maioria das cenas, a trilha sonora do filme parece mais adequada às aventuras épicas da franquia Indiana Jones do que ao suspense político desenvolvido por Campbell. A música não acompanha a discrição que uma investigação exige, e sempre foge da idéia de mero acompanhamento sonoro, tornado-se um elemento extravagante.
Mel Gibson, ator habituado aos trabalhos que exigem atuações dramáticas e dinâmicas, já demonstra claros sinais de cansaço, e sua interpretação não exibe o mesmo viço demonstrado em “O Patriota” e “Mad Max”. Nas cenas de maior carga dramática, o astro é um tanto inexpressivo, o que acaba comprometendo ainda mais a construção da relação pai e filha. Para os que assistiram “O Fim da Escuridão”, apostar que o futuro de Gibson está atrás das câmeras é uma opção clara. Tantos defeitos não são suficientes para colocar o filme no rol dos piores lançamentos do início do ano, mas tampouco conseguem colocá-lo na lista dos memoráveis. Uma construção mais elaborada das relações interpessoais e uma direção original seriam suficientes para classificá-lo como um entretenimento relevante.
O Lobisomem Filme acerta ao construir um lobo mais ‘humano’, mas escorrega ao apressar a revelação dos segredos. Seguindo a corrente de filmes fantásticos que chegaram, e que ainda vão chegar aos cinemas brasileiros no início deste ano, está em cartaz “O Lobisomem”, o ousado remake do diretor Joe Johnston para o clássico que assustou platéias do mundo inteiro em meados de 1941. Ao lado de vampiros castos, criaturas de coloração azulada e jovens ladrões de raios, o lobisomem de Johnston pode ser encaixado no rol dos seres fantásticos dos últimos lançamentos do cinema, mas o tratamento que o diretor conferiu ao filme garante à trama uma maturidade não presente nas outras produções do gênero. A carga emocional que permeia a narrativa consegue colocar o canino raivoso num patamar superior aos seus colegas míticos, e a intensidade de suas sensações foi bem trabalhada nesta adaptação. A história é a mesma da produção original. Na Inglaterra Vitoriana, o ator de teatro Lawrence Talbot (Benicio Del Toro) retorna a cidade em que nasceu para tentar solucionar o mistério que ronda a morte do seu irmão. Ao reencontrar seu pai (Anthony Hopkins), percebe que suas vidas estão diretamente ligadas às circunstâncias do crime, e que seu irmão pode ter sido apenas uma das vítimas de uma verdade que não tarda a ser revelada. O que garante destaque e diferencia o personagem do que seria previamente imaginado pelo público é a relação familiar desenvolvida na trama. Todos os acontecimentos carregam um peso que ultrapassa gerações, e nada pode ser explicado antes que laços sejam restabelecidos e verdades domésticas sejam reveladas. Todo o terror anunciado pelos trailers divulgados se transforma em drama cotidiano, absolutamente comum aos mortais que não sofrem alterações ao luar. A opção do roteirista Andy Walker, de “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça”, por contextualizar a licantropia junto ao seio familiar foi sábia, garantindo embasamento e excluindo uma possível superficialidade da trama. Sua falha reside no lapso temporal existente entre o início e o final da produção, que torna as ações e relações um tanto descompensadas, ou ainda injustificadas. A agilidade na descoberta dos fatos e na apresentação ao público de tudo o que ainda estava escondido é exagerada e incômoda. Emily Blunt, ao lado de Del Toro e Hopkins, formam o elenco de estrelas de “O Lobisomem”, com interpretações seguras, embora um tanto contidas, como se estivessem guardando o melhor para um segundo ato que não existe. Hugo Weaving, no papel do detetive que investiga as mortes, é o ator que merece destaque, por oferecer uma atuação mais vivaz e bem definida. O maior mérito de “O Lobisomem” reside no que diz respeito ao trabalho dos envolvidos na produção e direção de arte. O vilarejo em que se desenvolve a narrativa foi perfeitamente trabalhado, e as sequências de perseguição realizadas entre as árvores da floresta assustadoramente monocromática revelam um empenho dos
profissionais de arte que merece ser citado. O clima sombrio foi construído de forma equilibrada: não parece falso, mas também não alcança os exageros estéticos de Tim Burton. A fotografia cinzenta também é responsável pelo equilíbrio estético do filme, e ajuda na construção dos dramas vividos pelos personagens. Ela parece reafirmar o sentimento de solidão e desamparo que cada um vivencia, colocando cada pessoa em uma posição de possível vítima do monstro. “O Lobisomem” é falho no ponto em que deveria ter acertado. Ter incluído um drama familiar em uma narrativa fantasiosa foi uma escolha inteligente do roteirista, que conseguiu humanizar o personagem e oferecer uma explicação plausível para seus atos. Agilizar tal explicação e atropelar as revelações em prol da construção dos sentimentos do personagem, porém, não foi uma opção sensata. Para aqueles que prezam pelo equilíbrio entre fantasia e realidade, e que esperam por conforto estético e uma pitada de originalidade, o filme é uma boa pedida.
Os Vampiros que se Mordam O bom desempenho dos atores na apropriação dos trejeitos dos personagens originais não salva o filme do excesso de falhas. Aqui, rir de si mesmo é a melhor solução. É costume ligar a TV ou folhear uma revista no consultório do dentista e dar de cara com uma matéria sobre os benefícios fisiológicos do ato de rir de si mesmo. Autoconhecimento, ato civilizatório, demonstração de maturidade e equilíbrio mental são alguns dos atributos designados aos que zombam de suas próprias falhas. Sob esse prisma, prepare-se para vivenciar sua maior experiência de autocrítica em “Os Vampiros que se Mordam”. Em menos de 100 minutos de projeção o espectador avalia sua capacidade de raciocínio na percepção de referências óbvias aos figurões da cultura pop, sua aptidão na arte de suportar o insuportável e, mais que tudo, sua habilidade de riso. Tudo é motivo para rir: o dinheiro gasto na compra do ingresso (que nesse caso parece uma fortuna irrecuperável), o tempo desperdiçado, a disposição de atores para a realização do longa e o uso de recursos técnicos exageradamente amadores. A imperativa dualidade de opções também chama a atenção: ou você se esforça para rir, ou corre o risco de sofrer um ataque agudo no miocárdio. Se insistir em tecer comentários sobre a qualidade da saga original é redundar o senso crítico comum, o mesmo não pode ser feito com a sua sátira. “Os Vampiros que se Mordam” precisa ser minuciosamente criticado, detalhadamente analisado, não por sua complexidade, mas pela sequência infinita de falhas e pontos fracos. E o problema começa pelo roteiro. A inspiração narrativa retirada da série Crepúsculo é involuntariamente guiada por um viés cômico, e incrementar tal humor com situações apelativas faz tudo parecer exagerado. O roteiro transborda casos de uso comum das produções do gênero, como as pancadas, quedas e objetos arremessados na cabeça dos outros. Acompanhando as cenas básicas da série original, o time de atores tenta oferecer ao público algum carisma que compense a qualidade do filme. E se suas atuações não são dignas de premiações ao redor do mundo, a apropriação dos trejeitos dos personagens demonstra um esforço que merece ser citado. Jenn Proske, no papel de Becca (Bella Swan), soube utilizar todas as manias que tornaram a atuação de Kristen Stewart memorável. Está lá a tradicional mordida de lábio, o modo de colocar o cabelo atrás da orelha, e as cenas em que a personagem esquece a boca aberta. O estranho é perceber que Proske parece menos exagerada com seus trejeitos do que a própria Stewart. Infelizmente a caracterização dos atores é o único fator que coloca o filme num patamar superior ao nulo. Sobre os demais aspectos, tudo o que pode ser dito não é suficiente para descrever seu fracasso. Além do roteiro, a direção também foi realizada pela dupla Jason Friedberg e Aaron Seltzer, veteranos em filmes do gênero (“Liga da Injustiça”, “Espartalhões”). Em “Vampiros que se Mordam” o amadorismo da direção é constrangedor. Tudo é filmado de modo didático, como se qualquer ousadia pudesse confundir o público. Até mesmo os habituais recursos de profundidade de
campo e as ações simultâneas de segundo plano foram deixados de lado. O público vê uma ação por vez, mesmo que ao lado dos personagens focalizados se desenvolva outra sequência importante. Efeitos especiais, recursos de edição e sonorização também demonstram uma falta de profissionalismo que, se não fossem propositais, jogariam o filme num ciclo imensurável de falhas. O que ainda consegue arrancar boas risadas é a trilha sonora elaborada especialmente para a produção. Com referência explícita ao pop country de Taylor Swift, a protagonista desenvolve canções cômicas sobre o martírio de adolescentes alternativas e solitárias. Em outras palavras, o potencial de “Vampiros que se Mordam” como um teste de autoconhecimento é limitado pelo número exagerado de falhas. Ao contrário do que dizem as revistas de consultório, é impossível rir de si próprio durante mais de uma hora quando a percepção do ridículo ultrapassa qualquer outro fator. Se você conseguir tal proeza, vai ter atingido o nível máximo de paciência e resignação. Boa Sorte.
REC 2 – Possuídos ¡Ya basta! Produção espanhola eleva os zumbis ao nível de transmissores das possessões demoníacas. E agora, Padre Quevedo? Zumbis são exagerados por natureza. Desde sua concepção – como mortos que voltaram à vida – até sua caracterização – de roupas rasgadas, machas de sangue, músculos super-contraídos e olhos dilatados – os zumbis não precisam de mais nada para meter medo. Quando somamos ao tipo outra característica que já tem força suficiente para um novo personagem denso, o resultado é tão inverossímil quanto o que pode ser visto neste “[Rec] 2”. A aguardada sequência de “[Rec]”, filme de 2007 que fez público no Brasil via download para ser oficialmente lançado no final do ano seguinte, ainda consegue arquitetar o clima claustrofóbico de seu anterior, mas o tom de tensão é desconstruído cena após cena. Na tentativa de descortinar os fatos sem explicação do primeiro filme, a trama se perde em meio ao didatismo do roteiro, atuações fracas, recursos de câmera exagerados e a mistura entre dois pólos sagrados e distintos do horror: os zumbis e os possuídos. “[Rec] 2” acompanha a entrada de uma equipe da força policial no prédio cenário do filme anterior, alguns minutos após sua famosa última cena. Na tentativa de solucionar o mistério que envolve o prédio e deter a proliferação do vírus para as ruas de Barcelona, a polícia tenta, sob os comandos de um padre pouco ortodoxo, capturar amostras de sangue daquela que seria a primeira infectada do lugar. E então entendemos que a agressividade dos mortos-vivos não é resultado de experimentos falhos, mas sim da possessão demoníaca de uma das moradoras do local. Elaborar justificativas para o modo pelo qual uma possessão foi transmitida biologicamente é uma tarefa ingrata que nem o didatismo do padre é capaz de resolver. Perdido entre esclarecimentos longos e soluções confusas, o religioso explica que somente uma amostra de sangue da primeira infectada pode servir para o preparo de um antídoto contra o poder do tinhoso. Quem não viu o primeiro “[Rec]” pode estranhar a velocidade das cenas iniciais desta sequência. Não como um ponto negativo contra o filme, mas o novo público certamente não participa do clima de tensão engenhosamente construído em seus primeiros minutos, claramente resultado do tom carregado que marca o desfecho do filme anterior. “[Rec] 2” está mais para a segunda parte de seu antecessor e, assim como a sequência lógica da trilogia “O Senhor dos Anéis”, exige um conhecimento prévio do filme de 2007. Para aqueles que já conhecem o trabalho de câmera do filme que inaugurou a série, este “[Rec 2]” parece inferior ao projeto inicial. A verdade é que, até para quem nunca teve a oportunidade de avaliar a perspicácia do primeiro filme, a nova versão borbulha de falhas técnicas que comprometem sua execução. A câmera cuidadosamente tremida agora está incontrolável. Pelas mãos de um cinegrafista levado pela polícia, ela insiste em vibrar até nos momentos de relativa tranqüilidade e se torna mais violenta nos picos de tensão. O resultado é a perda pelo excesso de um recurso com grande potencial e apuro para o horror.
Mesmo assim, alguns ângulos utilizados pelo cinegrafista, sobretudo nos momentos em que a câmera é lançada ao chão por algum zumbi raivoso, são memoráveis pela originalidade e por acentuar o clima de medo. Em uma das sequências, entre as melhores do filme, acompanhamos o ataque de um zumbi pelas sombras projetadas numa porta. Ponto positivo para a equipe dos diretores Jaume Balagueró e Paco Plaza. O time de atores merece uma análise à parte. Os policiais e o padre abusam das caras retorcidas e expressões grotescas, e em nenhum momento conseguem fugir do típico estereótipo de vítimas. O grupo de adolescentes que marca a segunda parte da trama também não escapa dos excessos. Somente a garota da equipe consegue ser mais convincente em sua atuação. Ainda assim, seu trabalho não se compara ao da protagonista do primeiro “[Rec]”, a premiada Manuela Velasco. Felizmente, “[Rec] 2” ainda soube fazer bom uso de um recurso de destaque do primeiro filme. A ausência de músicas, o silêncio, e a captação de ruídos acentuam a morbidez de algumas sequências e compensam outras falhas. Para quem espera por um filme que dê continuidade ao clima único criado pelo primeiro “[Rec]” há três anos, assistir ao desfecho e soluções apresentadas nesta sequência quase invalida os méritos alcançados pelo anterior. Mesmo assim, vale a pena conferir o risco que é associar dois mitos do cinema de horror. Então, considerem a opção de retirar a participação das trevas da formação de seus zumbis. Eles são bem mais divertidos sem ela.
Robin Hood Ridley Scott dá um novo enfoque, mais irreal e muito mais divertido, à lenda do herói inglês. O diretor Ridley Scott, do alto de suas sete décadas de existência, cinco delas dedicadas ao cinema, já deu inúmeras provas de que grandes filmes começam com grandes histórias. Desde “Alien, o Oitavo Passageiro”, de 1979, passando por “Blade Runner – O Caçador de Andróides”, até chegar àquele que foi reconhecidamente seu maior êxito, “Gladiador”, de 2000, o cineasta não se faz de rogado ao assumir a tarefa de filmar roteiros épicos. Sua última aventura, “Robin Hood”, inaugurou a 63ª edição do Festival de Cannes e chegou aos cinemas comerciais no dia seguinte, com a promessa de salas de cinema lotadas e uma divulgação massiva na imprensa especializada. Ao lado de sua direção arrojada está um roteirista premiado e um time de atores competentes, que transmitem a sensação de que a lenda do ladrão inglês nunca foi tão bem adaptada. O americano Brian Helgeland, vencedor do Oscar pelo roteiro adaptado de “Los Angeles – Cidade Proibida” , em 1998, recebeu de Scott a tarefa de melhorar a história do herói. Para o diretor, o filme deveria fugir da mesmice das adaptações anteriores, e deixar de lado a fama do ladrão que “rouba dos ricos para dar aos pobres”. Com o script em mãos, Scott deu vida aos acontecimentos que culminaram na criação do mito Robin Hood, e a fama de benfeitor e justiceiro foi deixada para a sequência final, numa espécie de epílogo. Se a opção do cineasta e o trabalho do roteirista causam certo estranhamento no início da exibição do filme, logo percebemos que a narrativa tornou-se mais realista e divertida. O elenco de estrelas entra em cena e garante que a qualidade do longa vai continuar com nível elevado. Russel Crowe, como protagonista, apesar de aparentar certo cansaço e pouca habilidade com o manejo do arco e flecha, consegue cumprir bem seu papel de herói virtuoso, e está, perceptivelmente, em perfeita sintonia com as ordens de Scott. Cate Blanchett vive Lady Marion, viúva de um dos membros do exército inglês, e como já era de se esperar, rouba a cena em todas as sequências da personagem. Sua atuação segura garante dinamismo ao papel que originalmente não receberia muito destaque na trama. Se a personalidade e a importância de Lady Marion foram discretamente mascaradas para dar destaque ao potencial de Blanchett, Robin Hood passou por um processo de purificação que não convence o espectador e não combina com o ritmo ágil da produção. O ladrão é retratado como um homem cheio de virtudes e livre de qualquer falha ou desvio de caráter. A elevação de personagens a níveis que beiram o sublime, em detrimento da retratação de seus traços lascivos, é um recurso que, quase sempre, prejudica a qualidade final do produto. Com Robin Hood não é diferente. Também incomoda a tentativa de tiranizar o exército francês e projetar as incontáveis qualidades dos guerreiros ingleses. O grupo inglês exibe técnicas cruéis, armamentos curiosos e espalha tanto sangue quanto os inimigos franceses. Seus guerreiros,
porém, são retratados como justos e movidos por uma causa maior, enquanto os inimigos são trapaceiros, vis e sem escrúpulos. Apesar dos exageros na caracterização dos personagens, a agilidade do filme não permite que tais observações atrapalhem a narrativa, e Scott sabe como ninguém conduzir uma história sangrenta. As sequências de batalhas são belamente filmadas, e os planos profundos, com milhares de guerreiros, cavalos e barcos de guerra, impressionam. Todas as características técnicas de “Robin Hood” podem ser encontradas em “Gladiador”, e o que diferencia as duas produções é a falta de carga dramática e preferência pela velocidade do novo filme. Aqui, não há tempo para emoções de corações destruídos. A importância de “Robin Hood” provavelmente não vai tomar o posto ocupado por “Gladiador” na filmografia de Scott, mas serviu para reafirmar a capacidade de realizar um bom filme, mesmo com uma história amplamente conhecida e trabalho técnico retirado de uma produção anterior, sem traços notáveis de inovação.
Sex and the City 2 Poucas vezes o cinema acertou ao apostar em dinheiro, luxo, moda e frivolidades de forma tão explícita. Levada a sério, a estratégia de mostrar o que você quer comprar, mas não pode ter, é o ponto forte de um filme divertido. Quatro mulheres bem sucedidas, ricas, influentes e que fazem o que querem. Nenhum exemplar máximo dos padrões femininos de beleza, e algumas até com um pé na “melhor idade”. Charmosas, elegantes, e com um guarda-roupa que faria inveja a qualquer mortal. Donas de casa, mães responsáveis e esposas dedicadas, com uma pitada de não-convencionalismo e glamour na hora de preparar o bacon com ovos do café da manhã. Carrie, Charlotte, Miranda e Samantha estão de volta, com um “Sex and the City” mais divertido e exagerado que o original. Se o sucesso do seriado, que durou seis temporadas (1998-2004), e continua sendo transmitido pela TV paga no Brasil, e do primeiro filme, com 100 milhões de dólares arrecadados nos 10 primeiros dias de exibição, é explicado pela projeção que a classe feminina faria nas quatro amigas, não se sabe. O importante é que elas continuam ditando tendências e colocando a mulher no patamar de igualdade de gêneros que sempre mereceu. Desde que ela esteja usando um vestido Chanel e sapatos Manolo Blahnik, claro. Neste segundo filme, as amigas viajam para a pretensiosa Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, após uma série de pequenos problemas familiares. Filhos descontrolados, maridos preguiçosos e chefes de emprego autoritários são argumentos suficientes para que Samantha, a única sem problemas aparentes, convença o grupo a visitar o “novo oriente médio”. Do outro lado do mundo, entre quilômetros de desertos, sobra tempo e espaço para roupas extravagantes, afirmação feminista, aventuras sexuais e contabilidades afetivas. O veterano Michael Patrick King, diretor, roteirista e produtor em “Sex and the City 2”, continua cumprindo bem a sua tarefa de colocar as quatro amigas em situações constrangedoras e propícias para demonstrações supérfluas de riqueza e pouca modéstia. Não que isso seja um traço negativo. Pelo contrário, é do exagero e esbanjamento que o filme retira sua principal vertente humorística. E nisso ele é certeiro, faz chorar de rir até os assumidamente anti-consumistas. A direção é tão plástica quanto no primeiro filme e no seriado, e tudo aqui é convencional, um pouco artificial demais. A fotografia também aposta no “testado e aprovado”, e o visual clean das sequências faz toda a história parecer saída de um comercial sofisticado de sabonete. Muito brilho, iluminação estourada e cores vibrantes dão o tom do filme. Felizmente, qualquer outra opção técnica fugiria demais do que estamos habituados a esperar, e a escolha foi adequada para acompanhar o ritmo da narrativa e a personalidade igualmente plástica das personagens. Entre tantos excessos técnicos não sobra espaço para uma observação minuciosa do trabalho das quatro protagonistas, e qualquer falha de interpretação é facilmente mascarada pelo acessório extravagante que elas insistem em chamar de chapéu. Mesmo assim, Sarah Jessica Parker, Kristin Davis, Cynthia Nixon e Kim Cattrall oferecem ao público a mesma atuação que imortalizou cada personagem na memória
deste início de século. E se a fórmula recebeu aprovação unânime, não há muito que se contestar. Se bem lembrasse a equação exata de sucesso do seriado, Patrick King teria deixado de lado a irritante pretensão feminista de algumas sequências. As protagonistas exalam a libertação feminina em cada um de seus gestos, e inserir diálogos de reafirmação dessa verdade foi uma decisão constrangedora. A veia humanamente responsável não combina com as personagens, e qualquer tentativa de colocar conselhos e teorias de igualdade de gêneros na boca das atrizes teve o resultado oposto. As considerações sobre a identidade da mulher não se encaixam quando o mote de um filme é, de certa forma, a celebração do fútil. Como um filme de comédia, “Sex and the City 2” merece ser visto. É impossível não chorar de rir de algumas cenas originalmente bem construídas. Quem espera pelo humor um tanto “erudito” de cineastas como Woody Allen, a viagem das quatro amigas pode parecer irritante. Mas para aqueles que gostam de rir do que provavelmente fariam se esbanjassem dinheiro em Nova York, não existe outro filme mais adequado.
Sherlock Holmes O diretor Guy Ritchie inovou na adaptação para o cinema dos personagens da obra do britânico Conan Doyle e fez um filme divertido, que se tornou o maior êxito da sua carreira e arrecadou US$ 24,9 milhões no primeiro dia de sua exibição nos EUA. Aqueles que esperavam por uma representação perfeita do tradicional detetive inglês imortalizado no final do século XIX pela literatura do escritor Arthur Conan Doyle em 60 estórias mundialmente famosas, vão se assustar ao assistir ao novo blockbuster em cartaz nos cinemas brasileiros. “Sherlock Holmes”, do cineasta Guy Ritchie, rompeu com o convencionalismo que rondava o personagem, desconstruiu traços da sua personalidade e acabou criando um novo mito, com força suficiente para suplantar as características do original. Em sua nova adaptação para o cinema, o detetive Holmes (Robert Downey Jr.) e seu inseparável parceiro Dr. Watson (Jude Law), tentam descortinar a trama macabra arquitetada por Blackwood (Mark Strong), um abastado aristocrata que se enveredou pelos caminhos da magia negra e quer assumir o controle do governo inglês. Desvendando mistérios insolúveis para a maioria dos humanos, Holmes mergulha em um episódio que envolve muito mais do que vilões insatisfeitos e rituais fúnebres, e percebe que algumas pistas e descobertas escondem outras verdades, bem diversas das originalmente apresentadas. Para os fãs de filmes de investigação, e para aqueles habituados aos infalíveis métodos dedutivos de Holmes, todo o processo de análise e averiguação dos fatos pelo detetive é minuciosamente apresentado. Através de narrações esporádicas e inseridas perfeitamente entre as sequências, o personagem guia o olhar do espectador para pistas imperceptíveis, e constrói todo o fio lógico que conduz ao ápice da trama. É impossível não bancar o detetive e tentar estabelecer ligações entre os fatos, mesmo sabendo que enquanto somos apresentados a uma nova descoberta, a mente de Holmes já o conduziu até uma nova verdade. A arrogância erudita e o orgulho irritante do personagem de Conan Doyle foram parcialmente deixados de lado e deram lugar ao infalível charme inglês. Holmes exala testosterona e, vez por outra, banca o Don Juan e investe na duvidosa Irene (Rachel McAdams). Seu bom humor vacilante também não foi deixado de lado, mas as piadas ácidas e incompreensíveis foram substituídas por brincadeiras mais populares. Completando de forma pouco usual os traços de sua personalidade, mas não perdendo em momento algum o equilíbrio do personagem, Guy Ritchie criou um Sherlock Holmes que também é exímio lutador de artes marciais, e aprimorou o detetive criado por Doyle, que se esforçava para realizar corretamente os movimentos em seus treinos de boxe, e que agora treina golpes certeiros em uma rinha de descamisados. Seu vigor físico deve agradar o público que espera por sequências de luta e perseguições, e que não se contenta com o uso indiscriminado de racionalismos, lógicas e observações. Apesar da mudança, os socos e pontapés desferidos por Holmes são calculados e previamente planejados, assim como manda o
convencionalismo detetivesco, e o que invalida qualquer crítica que aponte a produção como reduto de pancadaria injustificada. Toda a parte técnica que envolve as cenas de luta e investigação é fabulosamente bem produzida, assim como os planos que acompanham a rotina de uma Londres embaçada e monocromática, que não deixam a trama cair no convencional. Tudo foi planejado para garantir um ar teatral, quase circense, ao filme, que ainda conta com uma direção de arte de encher os olhos e uma trilha sonora agradável. Robert Downey Jr. cumpre bem o seu papel, e garante naturalidade às variações na personalidade do personagem. Jude Law também está ótimo no papel de Dr. Watson, apesar de ter merecido mais destaque na trama, e foi responsável por notáveis mudanças nas características do médico, que agora também age como um Don Juan em potencial. Além dele, todo o elenco de coadjuvantes desempenha bem suas atribuições, com destaque para Rachel McAdams. “Sherlock Holmes” não é uma obra prima, e provavelmente não quer ser tratada como tal. Sua eficácia ao transpor da literatura para o cinema um personagem consagrado por suas características tão peculiares e indissociáveis, conseguindo operar mudanças de forma satisfatória, porém, é notável, e merece todo o nosso reconhecimento.