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FORTALEZA - CEARÁ - 23 DE OUTUBRO DE 2018
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JÁDER SANTANA
jader.santana@opovo.com.br
As agressões à jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo, nos últimos dias estão longe de ser a exceção. É ela a autora da reportagem que denunciou o envolvimento de empresários brasileiros na compra de pacotes milionários de disparo em massa de mensagens contra Fernando Haddad (PT) pelo WhatsApp. Patrícia vem sendo vítima de ofensas, ameaças e assédio em seus perfis de Twitter, Facebook e Instagram. Desde o início do ano, dentro do contexto eleitoral, pelo menos 141 casos de agressão física ou virtual contra jornalistas foram registrados no Brasil. 58 jornalistas foram assassinados em todo o mundo em 2018. O número já é maior que o balanço final de 2017, quando 55 profissionais foram vitimados. Os dados são da organização internacional Repórteres Sem Fronteira (RSF), que desde 2002 mantém um barômetro de violações contra a liberdade de imprensa. “O balanço de 2018 vai ser bem pior. Cada vez mais jornalistas são mortos no mundo. Essa é a tendência”, afirmou Emmanuel Colombié, diretor do RSF na América Latina em entrevista ao O POVO. No Brasil, três jornalistas já foram mortos este ano, todos radialistas de cidades do interior da Bahia, Pará e Goiás. Outro ponto de equivalência: os três denunciavam em seus programas casos de corrupção envolvendo políticos da região. “Os agressores chegam nas rádios e matam os radialistas. As conexões entre crime organizado e política num nível local geram esse tipo de ataque”, explica Colombié, chamando atenção para os riscos a que se expõem os profissionais que atuam longe dos grandes centros urbanos. E se o perfil dos profissionais assassinados se repete, também há semelhanças entre os agressores. Segundo levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), políticos, seus parentes e assessores aparecem em segundo lugar na lista dos autores de violência, atrás apenas dos policiais militares e guardas municipais. Em 2017, foram registrados 99 casos de agressão contra jornalistas brasileiros - entre violência física, ameaças, detenções e atentados. O único profissional da área assassinado no ano passado era cearense, o blogueiro Luís Gustavo da Silva, executado com cerca de dez tiros no município de Aquiraz. O salto nas estatísticas de 2018 pode ser explicado pelo clima de instabilidade política que o País vive. “Os ânimos estão mais acirrados do que nas eleições anteriores, e existem visões segundo as quais a mídia é parte do problema. Como os jornalistas são, digamos, a linha de frente material da palavra mídia, acabam se transformando em alvo da insatisfação”,
| JORNALISMO | 141 ataques a jornalistas foram registrados até agora no contexto das eleições. Especialistas discutem as razões e as consequências
explica Mariana Atoji, gerente -executiva da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), entidade que levantou os dados referentes ao número de agressões no contexto eleitoral. Segundo Mariana, o número de 141 agressões pode ser ainda maior. Os casos levantados são, em sua grande maioria, das regiões Sul e Sudeste, o que seria justificado pela subnotificação das agressões em outras áreas do País. “Nossa equipe é bastante enxuta e, por mais esforço que se faça na busca, muitos casos ficam de fora. Mas certamente a situação afeta comunicadores em todo o Brasil”, explica ela, tratando os ataques como “uma forma ampliada, distorcida e massiva do discurso de crítica que não raro aparece em falas de políticos incomodados com a atuação da imprensa na fiscalização do poder”. Vítima de exposição indevida no Facebook e no WhatsApp em maio deste ano, o jornalista e professor doutor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) Eugênio Bucci explica as agressões “pelo fato de que a imprensa incomoda o poder - seja o poder político, seja o poder das igrejas, seja o poder econômico, seja o poder das organizações criminosas”. Bucci aparece na lista da Abraji de vítimas de agressão ao lado de outros profissionais de peso, como Dorrit Harazim (O Globo), Eliane Brum (El País), Miriam Leitão (GloboNews) e Rosental Calmon (Knight Center). “Só quem diz que o jornalismo é um elemento problemático para as garantias democráticas são os velhos ‘coronés’, os oligarcas, os caudilhos, os mafiosos, os usurpadores. A imprensa sofre cercos e intimidações, ou sofre atentados, justamente porque cumpre o seu papel democrático. O ataque contra jornalistas advém do medo que os poderosos têm de que seus negócios ilícitos sejam revelados”, argumenta Bucci. A presidenta da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Maria José Braga, atribui o aumento nos casos de agressão “à crise institucional e de valores que a sociedade brasileira está vivendo”. Cita a campanha informal que defende a violência como forma de resposta às contrariedades políticas e amplia sua crítica para o próprio fazer
jornalístico. “Muitas vezes, a imprensa tem abandonado seu papel de reportar fatos e esclarecer a sociedade para assumir o papel dos partidos políticos, deformando a produção de notícias”, argumenta, desenhando a linha entre causa e consequência: “são esses mesmos partidos que estão se sentindo à vontade para serem violentos”. Consenso entre os especialistas ouvidos pelo O POVO é a opinião de que a melhor estratégia para os jornalistas e para as empresas de jornalismo nesse cenário de crise, desrespeito e descrédito é investir nos princípios fundamentais da profissão. “Para reforçar sua credibilidade, o jornalismo pode e deve cumprir sua missão de fiscalizar o poder, com independência, compromisso com a verificação objetiva dos fatos, compromisso por se corrigir quando erra, com independência e pluralidade”, argumento Eugênio Bucci.
Maria José Braga tem a mesma convicção. “A primeira coisa é chamar os jornalistas à responsabilidade de fazer jornalismo, reportar e contextualizar fatos. É preciso que os profissionais tenham autonomia intelectual, assim vão reconquistar o público e a credibilidade. O jornalismo é cada vez mais necessário, precisamos entender isso e valorizar essa atividade que é essencial para a democracia”.
REPORTAGEM
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uerem Imprensa
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América Latina
País mais perigoso para jornalista, México também enfrentou fake news
O Brasil ocupa a posição 102 na Classificação Mundial de Liberdade de Imprensa, análise qualitativa e quantitativa elaborada pela organização internacional Repórteres Sem Fronteira (RSF). Está em colocação pior que a de países que vivem intensa crise política, como Nicarágua (90) e Kosovo (78), e de nações africanas que ocupam posição de destaque entre os mais pobres do mundo, como Burkina Faso (41) e Malawi (64). No cenário latino-americano, o Brasil aparece à frente de nações como Paraguai (107), Bolívia (110), Honduras (141) e outros países nos quais a liberdade de imprensa vem sendo historicamente desrespeitada, como Venezuela (143), México (147) e Cuba (172). Por outro lado, está muito atrás de Argentina (52), Chile (38), Uruguai (20) e Costa Rica (10). A classificação do RSF leva em conta critérios como pluralismo e independência dos meios de comunicação, qualidade do marco legal e segurança dos jornalistas. País mais perigoso do mundo para o exercício da profissão, o México é a nação recordista no número de jornalistas assassinados - foram 11 em 2017 e seis até agora, em 2018. A maior parte desses profissionais se dedicava à investigação
de temas relacionados ao crime organizado (tráfico de armas e drogas) e à corrupção na máquina pública. É o caso de Miroslava Breach e Javier Valdez, cujos assassinatos geraram comoção internacional no ano passado. Em julho último, a população mexicana foi às urnas para votar nas eleições presidenciais. O candidato de esquerda, Andrés Manuel López Obrador, foi eleito com 53% dos votos. Assim como vem sendo observado no Brasil, o período da campanha eleitoral mexicana registrou acréscimo no registro de casos de violência contra jornalistas: foram 185 agressões nos primeiros sete meses do ano. “Foi um contexto particularmente violento contra a imprensa”, afirma em entrevista ao O POVO Leopoldo Maldonado, advogado especializado em direitos humanos e diretor do escritório para o México e América Central da Article 19, organização internacional que defende a liberdade de expressão e o direito à informação. “Vamos superar os casos do ano passado. Registramos um incremento anual de 5% a 20% em casos de agressão. Na maioria das vezes, os agressores são dos próprios partidos políticos, ou seus militantes, ou ainda funcionários públicos”, explica. Maldonado afirma que, assim como no Brasil, também há uma sensação de descrédito em relação à imprensa mexicana. “Historicamente, nas últimas décadas, houve uma profunda
desconfiança da sociedade contra a imprensa, pela sua proximidade com o partido hegemônico e pelas publicidades governamentais. As empresas promoviam um jornalismo mais próximo do poder que da cidadania. Então, quando jornalistas independentes investigam essa corrupção, aparecem os perseguidores, as ameaças”, contextualiza. Outra semelhança em relação ao nosso cenário foi a proliferação das fake news e o surgimento de agências de checagem de dados. “Uma publicação digital independente, chamada Animal Político, estabeleceu um esquema de verificação de informação, e muita gente recorria a essa plataforma. Mas quando eles checavam declarações dos candidatos, a audiência se polarizava muito. Direita e esquerda diziam que as checagens eram mentirosas. E essas informações falsas circulavam por WhatsApp, verdadeiras campanhas de desinformação perfeitamente estruturadas”, explica. Enquanto observa a evolução das campanhas políticas brasileiras com apreensão, Maldonado propõe estratégias para a retomada da importância da imprensa tradicional, seja no México, seja no Brasil. “Enquanto existam jornalistas e empresas que se construam como quarto poder, e não como contrapoder, a distância com a sociedade vai continuar se acentuando. Precisamos assumir nossa função social, somos um serviço público. Nessa época de saturação de informações e dados, o jornalismo tem um papel fundamental de ordenar e dar forma a tudo isso”, conclui. (Jáder Santana)
MULTIMÍDIA
102
é a posição do Brasil na Classificação Mundial de Liberdade de Imprensa, atrás de países que vivem intensa crise política, como Nicarágua (90) e Kosovo (78)
141 casos de ataques a jornalistas foram registrados no Brasil em 2018, dos quais 62 agressões físicas e 79 virtuais
Leia em WWW.OPOVO.COM.BR 1. A lista completa das agressões contra jornalistas no Brasil no período da campanha eleitoral em 2018 2. As propostas dos candidatos à Presidência da República, Fernando Haddad (PT) e Jair Bolsonaro (PSL) para uma imprensa livre e independente
LEIA AMANHÃ
Entrevista com Emmanuel Colombié, diretor do Repórteres Sem Fronteiras na América Latina, sobre os ataques à liberdade de imprensa no contexto das crises políticas
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| ENTREVISTA | Emmanuel Colombié, diretor do Repórteres Sem Fronteiras na América Latina, discute a relação entre crise política e o aumento no número de casos de jornalistas agredidos e assassinados
“Cada vez mais jornalistas são mortos no mundo” informações difundidas. As notícias falsas são 4 ou 5 vezes mais compartilhadas que as verdadeiras. É uma velocidade incrível. Temos uma iniciativa no Repórteres sem Fronteira, em construção, que encara o problema ao revés. Junto com agências de conteúdo, agências de propaganda, editores e legisladores, estamos criando um programa que, ao invés de castigar os produtores de notícias falsas, quer recompensar os jornalistas que respeitam um processo padrão de produção da informação - ético, profissional e deontológico. Serão recompensas diversas, como uma melhor colocação nos motores de pesquisa, ou ser favorecido por anunciantes. As fake news são cada vez mais preocupantes.
ACERVO PESSOAL
JÁDER SANTANA
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Três jornalistas foram assassinados no Brasil em 2018. De acordo com barômetro da organização Repórteres Sem Fronteira (RSF), 57 jornalistas foram assassinados em todo o mundo no mesmo período. O número já ultrapassou o balanço final de 2017, quando 55 profissionais da imprensa foram vitimados. “Essa é a tendência”, avalia o jornalista francês Emmanuel Colombié, diretor da RSF na América Latina. Em entrevista ao O POVO, Colombié analisa o aumento dos casos de agressão em países que passam por crise política acentuada e comenta o cenário Brasileiro, em que 141 jornalistas foram agredidos física ou virtualmente - dentro do contexto eleitoral. Também fala da crise de credibilidade vivida pelos veículos tradicionais de mídia e propõe estratégias de combate às notícias falsas. O POVO - A plataforma de acompanhamento dos casos de agressão contra jornalistas e a liberdade de imprensa do Repórteres Sem Fronteira cita a ausência, no Brasil, de um mecanismo nacional que proteja os jornalistas que se encontram em perigo. Também cita o clima de impunidade, alimentado por uma “corrupção onipresente”, que dificultaria ainda mais o trabalho desses profissionais. Como você analisa esse quadro? O que isso tem a ver com o momento de instabilidade política que vivemos?
OP - É um cenário que se repete na América Latina?
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EMMANUEL COLOMBIÉ, diretor do Repórteres Sem Fronteiras
Humanos passou a incluir comunicadores e ambientalistas no escopo do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. Vocês estão acompanhando a evolução desse programa?
Emmanuel Colombié - Estamos preparando um comunicado sobre isso, sobre a ameaça que pode significar a eleição de Bolsonaro para o País. No Brasil, como no México, existe um clima de trabalho complicado para jornalistas que vão investigar temas que têm a ver com política, corrupção e crime organizado. De maneira quase sistemática, aqueles jornalistas - que geralmente são independentes, ou blogueiros que trabalham em zonas longe dos centros urbanos, profissionais que divulgam informações que podem incomodar poderes econômicos, políticos, religiosos - vão estar em uma situação de vulnerabilidade. Vão receber ameaças, online ou verbais. Ou podem ser assassinados.
Emmanuel Colombié - Estamos ajudando na identificação dos casos de jornalistas ameaçados e definindo padrões de situações de risco, perfil das vítimas, dos agressores. Agora, os jornalistas ameaçados também podem contar com entidades públicas para medidas de proteção, de apoio e ajuda. Isso é muito positivo, é fruto de um trabalho de muitos anos, de pressões da sociedade civil, do Repórteres Sem Fronteira e outras organizações. Foi um passo importante. Mostra que o governo brasileiro, por meio dos ministérios, sabe que há um problema real de vulnerabilidade. Mas não significa que está tudo resolvido.
OP - Recentemente o Ministério dos Direitos
OP - O aumento no número de casos de
SOBRE A SÉRIE O POVO publicou ontem reportagem em três partes sobre o cenário de incremento nos registros de agressão contra jornalistas em contexto eleitoral no Brasil. A partir de levantamento da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), especialistas discutiram o papel da imprensa nesse momento de crise e investigamos as propostas dos candidatos à presidência relacionadas à garantia da liberdade de expressão. Também trouxemos uma análise do quadro de violência na América Latina.
ABRAJI Jornalistas vítimas de agressão física ou virtual no exercício da profissão podem denunciar o caso à Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) pelo telefone (11) 3159 0344 ou pelo e-mail abraji@abraji.org.br
agressão está ligado a essa crise de credibilidade da imprensa? Tem a ver, em última instância, com essa cenário de proliferação das notícias falsas? Emmanuel Colombié - É um tema complexo, a desinformação, a propagação das fake news. O desenvolvimento da internet e das redes sociais é uma grande vantagem para a liberdade de expressão em geral, para a liberação das vozes, para os jornalistas sem recursos para trabalhar. Mas há uma contrapartida, infelizmente. Há a interferência de grupos de interesse político e econômico. É tão fácil ameaçar um jornalista no Twitter e no Facebook. É tão fácil propagar notícias falsas, porque até agora não existe regulação suficiente para proteger a circulação das notícias verdadeiras. Isso cria uma abundância de elementos que atrapalham a liberdade de informação. Dentro desse contexto, temos jornalistas que agora fazem fact-checking, conferindo as
Emmanuel Colombié - A situação não é muito melhor na maioria dos países do continente. O México é ainda mais complicado, mais violento. Jornalistas mexicanos são assassinados quase todos os meses. O país tem uma história culturalmente violenta. E há países em crise, como Venezuela e Nicarágua, onde trabalhar como jornalista independente e fazer cobranças está quase impossível. Os governos desses países estão desenvolvendo sistemas de censura estatal que tentam silenciar vozes críticas. Na Venezuela há ainda o tema da escassez do papel, porque o governo tem o monopólio da distribuição. Na Nicarágua, jornalistas que vão cobrir manifestações são atacados, agredidos sistematicamente pela polícia. Na Venezuela, muitos jornalistas internacionais são diretamente expulsos quando chegam ao aeroporto. Em Cuba, pior país da América Latina para a liberdade de imprensa, não tem assassinato, mas não tem imprensa privada, é proibida pela constituição. Pessoas que tentam fazer jornalismo independente, os blogueiros, são expulsos, ameaçados. OP - E os bons exemplos no continente? Emmanuel Colombié - Há países com uma certificação melhor. A Costa Rica tem um marco legal muito bem feito, bons níveis de liberdade de expressão. É um bom modelo. No Chile, apesar dos problemas dos jornalistas investigativos, que são perseguidos pela justiça, também há um marco legal favorável. No Uruguai, há um pluralismo interessante.