A volúpia do cangaço - 80 anos da morte do bando de Lampião e Maria Bonita

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A volúpia do cangaço

VIDA&ARTE ESPECIAL FORTALEZA - CE, SÁBADO, 28 DE JULHO DE 2018

80 anos da morte do bando de Lampião e Maria Bonita

CRÔNICA Quase cangaceira SOCORRO ACIOLI* socorroacioli@gmail.com ESCREVE AOS SÁBADOS

Quem me contou foi minha avó. No dia 13 de junho de 1927, Lampião e seu bando invadiram a cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Divididos em quatro grupos, o rastro da desgraça era fato conhecido. Já se sabia dos ataques em Santa Cruz da Baixa Verde, Mirandiba, Cabrobró, Ouricuri, Parnamirim, o cangaço de cidade em cidade espalhando pânico. Corriam as notícias dos soldados mortos, das marcas dos canos de pistola deixados nas portas, da amizade de Lampião com o Padre Cícero e até do casamento da prima que ele tentou impedir na hora da festa. Nos arredores de Caraúbas as famílias ficaram três dias e três noites escondidas no meio do mato, no alto das árvores, e a única coisa que havia para comer era melancia. Foi assim que escaparam. O prefeito Rodolfo Fernandes, descendente dos portugueses Fernandes Pimenta, da região do Douro, conseguiu derrotar o bando, que foi forçado a fugir. Na fuga, sequestraram a idosa Maria Rocha e o senhor Antonio Gurgel, pedindo 80 contos de réis pelo resgate. Quando essa notícia chegou às famílias que

se escondiam nos matos, comendo melancia, sem tomar banho, mal dormindo, uma mocinha de doze anos chamada Sebastiana pediu ao pai que deixasse ela ir atrás do bando para se oferecer em troca da idosa. Era ela, a minha avó. Eles ainda estavam perto, pararam um tempo em Milagres, no Ceará, ela os alcançaria. Era bonita, morena de olhos verde musgo, usava ruge, sabia arrumar o cabelo com grampos e compor ondas sobre a testa com os cachos. Já podia ler e escrever, tinha decorado poemas e recitava na escola. Queria oferecer-se como cangaceira, era certo que aceitariam e deixaram a coitada da dona Maria Rocha em paz. O pai de Sebastiana, meu bisavô Antonio Pimenta, não permitiu que tamanha loucura acontecesse. Conhecendo a filha muito bem, redobrou a vigilância, mas ela tentou fugir mesmo assim, sem sucesso. O perigo do cangaço passou. Lampião ainda rondaria pelo mundo por mais alguns anos, até ser morto em 1938, onze anos depois do acontecido. Minha avó me contou essa história a vida inteira, desde que descobriu que eu adorava

escutar suas memórias do sertão. Eu ouvi várias vezes, perguntei todos os detalhes. Depois confirmei as informações: as datas, o sequestro, a rota de Lampião. Estive em Caraúbas e vi as plantações de melancia, aquela mágica de uma fruta enorme brotando do chão, enovelada por galhos tão finos e frágeis, um paradoxo da natureza. Em 1930, enquanto Lampião casava com Maria Bonita, minha avó casava com um filho de italiano que também tinha como sina andar pelo mundo. Um caminhoneiro de olhos azuis, que no segundo encontro carregou a moça na boleia do caminhão. Formou uma família, não entrou pro cangaço, mas aprendeu a atirar de rifle e sempre foi valente, forte, corajosa, sempre a menina de doze anos disposta a salvar a vida de alguém. Mas e se ela tivesse fugido? E se tivesse sido a Sebastiana Bonita, a rainha do cangaço, a mulher do Virgulino? Ela passou a vida pensando nisso. Eu, que continuo a vida que veio dela, também não consigo esquecer. Guardei no meu corpo a coragem, os olhos claros, a valentia e a vontade desgovernada de andar pelo mundo.

C O N F I R A E STA E O U T R A S C O LU N A S E M W W W. O P OVO. C O M . B R / C O LU N A S

Série online traça percursos de Lampião e sua relação com o Ceará ÉRICO FIRMO

ericofirmo@opovo.com.br

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s caminhos de Lampião descrevem uma geografia própria dos sertões. Virgolino Ferreira da Silva nunca pisou em uma capital. Jamais chegou ao litoral. Sonhou até, entre a bravata e a audácia - em ser governador de um novo estado. Um estado sertanejo, formado por porções de Bahia, Sergipe, Pernambuco e Alagoas. As rotas de Lampião estão marcadas em mapa interativo que integra série especial do O POVO Online sobre os 80 anos de sua morte. São 84 locais nos quais transcorreram momentos cruciais de sua trajetória, do nascimento à morte, os grandes combates, vitórias sensacionais e derrotas que o forçaram a fuga desesperada. Os esconderijos descobertos, o lugar onde conheceu Maria Bonita, o encontro com padre Cícero Romão Batista. O Ceará merece olhar particular. No mapa, a ocupação destoa da que se vê nos ou-

tros estados nos quais Virgolino esteve. Devido a conjunção de fatores que envolve omissão cúmplice de políticos, conivência da polícia e apoio decidido de ampla rede de colaboradores - de vaqueiros a grandes fazendeiros, passando pelo clero - o fato é que o território cearense sempre foi refúgio para ele. Parte por quase nunca ter sido incomodado pela polícia cearense, muito pela devoção ao padre Cícero, Lampião preservava o Ceará e dizia isso textualmente. Só passou a ser incomodado de fato depois do ataque fracassado à vizinha Mossoró, que gerou reações dos cearenses. O fato de o Estado deixar de ser território relativamente livre para ele o obrigou à mudança. Sob intensa perseguição nos estados ao norte do São Francisco, cruzou o rio em direção à Bahia e Sergipe. Iniciou nova fase em sua vida e na história da violência no sertão. O especial online mostra ainda as estratégias de combate de Lampião. Quais eram os segredos de seu sucesso - uma espécie de guerrilha sertaneja, embora esvaziada de componen-

te político. Mostra quem foi o homem que comandou a operação que levou a sua morte. Longe de ser um de seus maiores perseguidores, não era exemplo de coragem e tinha sobre si suspeitas de colaborar com os cangaceiros. Um pouco de acaso e a pressão das circunstâncias deram a ele o status de homem que comandou a morte do “rei dos cangaceiros” - e, em pouco tempo, do próprio cangaço.

Há ainda linha do tempo que demarca os principais momentos da vida de Lampião, em mais de 100 datas. Em ordem cronológica ou pela geografia, é possível percorrer os caminhos e conhecer a vida de um dos criminosos mais terríveis do mundo ocidental, conforme definiu o New York Times. VEJA EM http://bit.ly/2AhC5aK

BENJAMIN ABRAHÃO

EXPEDIENTE Presidente Luciana Dummar | Diretor-Geral de jornalismo Arlen Medina Néri | Diretora-Executiva da Redação Ana Naddaf | Diretor-Adjunto da Redação Erick Guimarães | Edição Jáder Santana | Coordenação e edição no O POVO Online Érico Firmo | Projeto Gráfico Gil Dicelli | Edição de Arte Cristiane Frota, Gil Dicelli, Jéssica Bezerra, Sara Fael e Valdir Muniz | Ilustrações Valdir Muniz | Fotografia O POVO.Doc | Tratamento de Imagens Robson Pires


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VIDA&ARTE ESPECIAL

INÉDITO

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80 anos da morte do bando de Lampião e Maria Bonita

Se não fosse essas caboca Não tinha graça o sertão Não brigava os cangaceiro Não havia Lampião ADRIANA NEGREIROS ESPECIAL PARA O POVO

vidaearte@opovo.com.br

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Maria Bonita: Sexo,, violência e mulheres no cangaço O texto publicado nesta página é um trecho inédito do livro Maria Bonita: Sexo, violência e mulheres no cangaço, escrito pela jornalista Adriana Negreiros e que a editora Companhia das Letras vai lançar em todo o Brasil no próximo dia 31 de agosto. Jornalista desde 1996, Adriana já passou pelas redações das revistas Veja, Playboy e Claudia.

transformação de Maria Gomes de Oliveira, a Maria de Déa, em estrela nacional começou no dia 29 de dezembro de 1936. Naquela terça-feira, os leitores de O Povo, de Fortaleza, viram, pela primeira vez, a imagem da mulher que largara o marido para viver com o fora da lei mais procurado do Brasil. “Lampião, sua mulher e seus sequazes filmados em pleno sertão”, informava a manchete do jornal, acompanhada de duas fotos. No primeiro retrato, o responsável pela façanha, Benjamin Abrahão (com a logomarca da Aba Film em destaque no estojo de couro que trazia a tiracolo), dá a mão para Lampião, como se firmasse um acordo. A atitude é testemunhada por sete aprumados cangaceiros. Em primeiro plano, Maria de Déa, com seu ar impetuoso, o cenho ligeiramente franzido e, como não escaparia aos olhares mais atentos, o vistoso par de pernas grossas. No segundo retrato, Maria aparece ao centro, ladeada pelo marido e pelo fotógrafo, com o olhar fixo na objetiva e a mesma vestimenta da primeira imagem: chapéu de feltro escuro, vestido claro de mangas compridas com delicada estamparia e sandálias de couro enfeitadas com ilhoses. Cobrindo pés e pernas, uma meia de tecido grosso. Nas fotografias, a jovem ostenta, ainda, uma profusão de colares e anéis. Embora trouxesse novidades em termos visuais, a reportagem de O Povo oferecia um texto praticamente copiado da edição do domingo, dia 27, do jornal Diário de Pernambuco. A gazeta do Recife havia dado um furo na concorrência com o relato do encontro entre o cinegrafista e o chefe dos cangaceiros, mas não oferecera imagens atualizadas de Lampião — a que circulava nas redações era de dez anos antes, quando estivera em Juazeiro —, tampouco revelava a feição de sua misteriosa companheira. Nas fotos do Diário, apareciam apenas cinco cangaceiros: Moça, que fora expulsa do bando; Inacinha, que se encontrava presa; Gato, àquela altura já morto; e Juriti e Marreca. Nenhum deles era grande motivo de curiosidade pública.

A ausência de imagens do Rei e da Rainha do Cangaço se tornava ainda mais incômoda à medida que a matéria avançava, com o registro das impressões de Benjamin sobre o casal, atiçando ainda mais o desejo de ver a fotografia dos dois. “A mulher do chefe não trabalha nem sábado, nem domingo, nem segunda-feira. Foi uma promessa”, disse a respeito de Maria, confirmando a crescente fama de mimada da cangaceira, característica que tanto contrariava Dadá. A respeito do líder do bando, o fotógrafo deixaria escapar sua admiração. “Lampião é homem de poucas palavras. Quase não fala. Caboclo sabido e de uma discrição sem par”, definiria, acrescentando não ter conseguido, apesar de enorme esforço, arrancar alguma declaração bombástica de Virgulino. “O capitão é ignorante, mas inteligência não lhe falta.” Depois da deixa do Diário, não era de se admirar que a edição do O Povo com as fotos do casal esgotasse em questão de horas, “não obstante havermos duplicado a tiragem do jornal”, como informaria a publicação. Adriana Negreiros é jornalista freelancer e foi editora das revistas Playboy e Claudia. Maria Bonita: Sexo, violência e mulheres no cangaço é seu primeiro livro.

IMAGEM DA MUSA Na capa da edição de 29 de dezembro de 1936, O POVO foi pioneiro na imprensa nacional ao trazer uma fotografia de Maria Bonita - ao lado de Lampião e seu bando sob a manchete “Uma das mais importantes reportagens fotográficas dos últimos tempos”.


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JÁDER SANTANA

jader.santana@opovo.com.br

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ampião sabia que estava sendo visto e gostava disso. Quando seu espólio pessoal foi resgatado naquela madrugada de 28 de julho de 1938, momentos depois da morte do bando pelas forças volantes do tenente João Bezerra, encontraram em seu bornal um exemplar do livro que levava seu nome, de autoria do escritor e médico sergipano Ranulfo Prata. Às margens das páginas, anotações do próprio Lampião sobre o texto que se propunha a narrar suas aventuras. Outro escritor, Leonardo Mota, cearense de Pedra Branca, escreveu em 1930 que Lampião parecia “possuir a volúpia da espetaculosidade”. Espetaculosamente, viveria mais oito anos aprimoran-

do essa volúpia, a ponto de se fazer filmar e fotografar em 35mm. Em uma dessas ocasiões, negociou com a Bayer do Brasil o uso de sua imagem: um comercial da Cafiaspirina, remédio para dor de cabeça, mostrava o cangaceiro distribuindo o medicamento para seu bando em frente a um cartaz com os dizeres “Se é Bayer, é bom”. Na reunião dos 24 quadros por segundo, Lampião se tornou garoto propaganda da farmacêutica alemã. “Era o maior marqueteiro de si mesmo”, afirma em entrevista a O POVO o historiador Frederico Pernambucano de Mello, ex-superintendente do Instituto de Documentação da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e autor de diversos livros sobre o cangaço, entre eles Estrelas de couro: a estética do cangaço e Guerreiros do Sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. “Lampião era um homem que ultrapassava os limites do sertão e que tinha ligações com o universo urbano e com o litoral”, explica.

Fotografada por Benjamin Abrahão, uma das imagens mais famosas do cangaço mostra Maria Bonita sentada, acariciando os cães Ligeiro e Guarany, e Lampião ao seu lado, em pé, exibindo a revista Noite Ilustrada, que vinha encartada com o jornal carioca A Noite. Na capa do periódico, voltada para a câmera de Abrahão, a atriz norte-americana Ann Evers em trajes de banho. “Eles viviam como nômades, mas não eram ocultos e nem faziam questão de se esconder. Muito pelo contrário, queriam se mostrar. Tinha muito a ver com uma vaidade de querer viver uma vida melhor”, justifica em entrevista a O POVO Ângelo Osmiro Barreto, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço e autor de livros e artigos sobre o tema. Se Abrahão foi responsável pelo registro imagético do cangaço, a rápida circulação dessas capturas só foi possível pelo interesse quase obsessivo da imprensa brasileira por qualquer coisa que tives-

se ligação com o bando de Lampião. Jornais e revistas de todo o País pareciam sedentos por novidade sobre Virgolino, e até o New York Times noticiou os avanços do bando em diferentes ocasiões durante a década de 1930. O líder cangaceiro reunia em sua figura as contradições que matizavam o Nordeste - disputas por terras, violência no campo, diferenças raciais - e que acentuavam a impossibilidade da unidade nacional. Embora criticasse a atuação violenta do bando, a imprensa não escondia seu fascínio pelo líder, que era retratado como um vulto de corpo fechado. E Lampião fazia questão de colaborar com repórteres e fotógrafos enviados pelos veículos, utilizando o que estivesse à disposição para a construção de seu próprio mito. “Era um vaidoso. Desde que recebeu a patente de capitão honorário das forças legais por ordem de Padre Cícero, passou a utilizar o título até a morte. Nunca o dispensou.

O CEARENSE LEONARDO MOTA ESCREVEU EM 1930 QUE LAMPIÃO PARECIA “POSSUIR A VOLÚPIA DA ESPETACULOSIDADE”

BENJAMIN ABRAHÃO


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A vingança vinganç g ç estética estétic do cangaço cangaç

Se transformou no capitão Virgolino Ferreira da Silva, vulgo Lampião”, aponta Pernambucano de Mello. “Saber que seu nome e seus feitos apareciam no jornal certamente era um estímulo. Ele foi o primeiro bandido nacional a ser midiatizado, digamos assim, com fotos e histórias circulando na imprensa. E tinha muito gosto em ver essas matérias. A produção da imagem, com o chapéu, as roupas, as armas, parece ter sido cuidadosamente trabalhada”, acrescenta em entrevista a O POVO a historiadora Isabel Lustosa, autora de De olho em Lampião: violência e esperteza. O apuro das vestes do bando impressionava a imprensa e também ajudava a atrair novos membros para o grupo, em geral jovens pobres e iludidos pelos homens de anéis nos dedos e armas nas cartucheiras. Lampião desenhava e executava suas peças: rabiscava os moldes em um papel pardo e depois os cobria com tecido em sua máquina Singer. A

indumentária do bando, comparada em algumas ocasiões à dos samurais e cavaleiros medievais, ainda marcava a diferença entre aquele e os demais grupos de cangaceiros ou policiais. Alguns do símbolos ostentados pelo bando funcionavam também como uma espécie de conforto místico, uma blindagem contra a má sorte. “Todos armados de mosquetões, usando trajes bizarramente adornados, entram cantando suas canções de guerra, como se estivessem em plena e diabólica folia carnavalesca”, publicou o Diário de Notícias, de Salvador, em 1929, sobre o bando de cangaceiros. “A despeito de ser um criminoso muito violento e sem escrúpulos humanitários, era um homem que tinha um requinte muito grande e um senso estético à flor da pele”, explica Pernambucano de Mello. O historiador chama atenção para as peculiaridades do chapéu que Lampião usava quando foi assassinado em 1938: “De

couro de veado com estrelas de couro brancas e pretas estampadas nas abas dianteiras e traseiras, mais 70 peças de ouro costuradas e uma testeira de couro com cinco moedas de ouro com quatro centímetro de diâmetro. As moedas eram de ouro vermelho, do Brasil colonial, de 22 quilates”. Por razões funcionais, estéticas e místicas, Lampião e seu grupo desenvolveram um visual particular que acabava por derrotar, também no nível simbólico, as autoridades oficiais de polícia. Tanto é assim que, em 1938, a violência do ato da decapitação do bando e o exagerado cuidado na composição da fotografia das cabeças separadas foram lidos como uma espécie de vingança metafórica: naquela cenografia da morte, o corpo, que reunia todas as riquezas daquele homem, foi deixado sem sepultura. Mas as sucessivas camadas de revanche tiveram um último vencedor. O chapéu em meia-lua e decorado com

uma estrela, ponto de concentração alegórica do glamour, da vaidade e da valentia do cangaço, tornou-se símbolo do Nordeste. “Transmite a ideia de um homem valente, de coragem, que luta contra as intempéries, que vivia uma vida difícil, nômade, sem teto. Isso chamou atenção, ficou na memória de nossa gente, que acabou se reconhecendo nessa figura”, explica Osmiro Barreto. Pernambucano de Mello, que se prepara para lançar um novo livro sobre o tema, também associa mitologia e identidade. “Eu diria que Lampião e o cangaço, indissoluvelmente ligados, respondem pela formação da mais importante mitologia popular brasileira, que é uma mitologia baseada no épico e que foi objeto da ocupação das mais ilustres cabeças do país, como José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Jorge Amado”, explica ele, dando a entender que, oito décadas passadas, Lampião permanece mais vivo do que nunca.

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BENJAMIN ABRAHÃO

ANA MARY C. CAVALCANTE anamary@opovo.com.br

o interior de um Brasil bruto, lá onde a cultura do domínio e da obediência ainda era intocada, as mulheres sertanejas - mais longe no espaço e no tempo do que as outras - cumpriam a sina primária de serem mulheres: nasciam para casar e ter filhos, sem direito à vontade e à história próprias. Ao cruzar os sertões nordestinos, indo já para a década de 1930, o cangaço significou uma arriscada rota de fuga para 60, 70 mulheres (o registro histórico é inexato). Maria, de Lampião, foi por amor; Sila, de Zé Sereno, por ameaça; Dadá, de Corisco, por natureza; Adília, de Canário, por transgressão... “Meu pai num deixava eu me pintar, num deixava dançar. Adepois que eu saí (de casa), eu dançava, penteava o meu cabelo do jeito que eu queria”, retrata a sergipana Maria Adília de Jesus sobre 1936, o ano em que se tornou

companheira de Canário, no documentário Feminino Cangaço (2016; disponível no YouTube). Para um dos realizadores do documentário, Manoel Neto, historiador e diretor do Centro de Estudos Euclydes da Cunha (Universidade do Estado da Bahia), a entrada da mulher no cangaço “rompe com preceitos historicamente enraizados”. “Donas de mato” e não “de casa”, como se diziam, elas não estavam no bando para cozinhar; os cangaceiros sempre fizeram isso. Nem combatiam; apenas Dadá lutou, e quando Corisco ficou inutilizado em confronto com a polícia (1939). Também não era pelo sexo, que para essa necessidade serviam os prostíbulos ou a força. Talvez, valorizam estudiosos, tenha sido o caso de afeição ou a (des)graça da paixão, que ninguém está a salvo dos sentimentos na vida. “Elas foram para ser companheiras deles”, amplia Manoel Neto. “O papel delas era cuidar deles. E eles tinham o maior cuidado com elas”, dialoga a jornalista Wanessa Campos, autora do blog Mulheres do Cangaço. Entre o ódio e o amor, está

o caso da pernambucana Sérgia da Silva (Dadá), raptada e violentada por Corisco dos 13 para os 14 anos. Ela foi fiel ao cangaceiro até 1940; de sua parte, Corisco lhe ensinou a ler e a escrever, abranda a memória histórica. “A vida da mulher do cangaço, primeiramente, respeito ao marido, pra se sair bem. A segunda, como eu vivia, era dirigir tudo. Eles cozinhavam, na hora da comida, eu ia dividir. Se precisavam de uma camisa, eu endireitava”, espelha Dadá, em Feminino Cangaço. Adornadas e perfumadas para viver na caatinga, elas se fizeram companheiras em uma vida de morrer, matar ou sofrer, de “dormir no molhado, andar no espim, tomando tiro”, como ecoa Dadá. De comer xiquexique para amansar a fome, de tomar banho se tinha rio no caminho, de beber “juazeiro, pereiro, ani, macela”, como bebeu Adília para abortar e “o menino teve que nascer”. De parir debaixo de umbuzeiro, enquanto fugiam da volante, de dar os filhos para que vingassem sem saber quem eram. “Não existia esse negócio de separação. E não podia sair do

mato mais, que ninguém queria ser presa. E acostumei respeitando ele, até quando cheguei em São Paulo, em 81, foi quando ele morreu”, une a sergipana Ilda Ribeiro de Souza, a Sila, de Zé Sereno, em entrevista a Jô Soares ao lançar a biografia Memória de Guerra e Paz. Também não existia traição, que era extirpada com as próprias mãos. A baiana Lídia Pereira de Souza, que foi fiel a si mesma, teve o mais belo rosto do cangaço desfigurado a pauladas por Zé Baiano. “Havia os códigos de honra enraizados, que vinham desde o período colonial”, costura Manoel Neto. Longe de tudo, o cangaço caminhava em direção ao passado; as mulheres continuavam dos homens, trocaram uma lei desigual por outra da mesma autoria. Se foram felizes do jeito que foram, as fotografias e os filmes de Benjamim Abrahão mostram também algum riso. O muito é silêncio. A certeza que reverbera é a das coragens que só o feminino possui. As 60, 70 mulheres que entraram para o cangaço também entraram fortes para a História de um Brasil bruto.


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ININO INI NI

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MARIA, DE LAMPIÃO, FOI POR AMOR; SILA, DE ZÉ SERENO, POR AMEAÇA; DADÁ, DE CORISCO, POR NATUREZA; ADÍLIA, DE CANÁRIO, POR TRANSGRESSÃO...

, a dona O maior risco que Lampião, o Rei do Cangaço, vingativo e temido até em pensamento, correu foi quando ficou frente a frente com Maria Gomes de Oliveira, uma baiana alva, baixinha, de nariz arrebitado e pernas inesquecíveis, que tinha sido mulher de Zé de Nenémsapateiro aos 15 anos e, naquele 1928, com 18, voltava a ser dona de si. Desde que lhe pediu que bordasse as iniciais CVF em 15 lenços de seda, quando de passagem pela fazenda de Zé Felipe e dona Déa, o Capitão ficou sob a mira da filha deles. O Rei dissera que não tinha vontade de se casar (em entrevista de 1929, do O Serrinhense, da Bahia, reproduzida no O POVO). “A mulher era descartada dentro do cangaço. Todos os cangaceiros anteriores a Lampião, como Antonio Silvino, Sinhô Pereira não tiveram mulheres sob seus comandos”, lembra o escritor João de Sousa Lima, autor do livro Mulheres Cangaceiras (2017). “Quem rompe com isso, e por uma paixão, é Lampião”, assinala o historiador Manoel Neto. “Sinhô Pereira chegou a dizer que Lampião seria invencível enquanto não tivesse mulheres em seu bando. O que houve de concreto foi que Lampião se apaixonou”, completa João Lima. Maria foi o desdizer, a dona de uma história sobre o feminino em meio a 30, 50, 80 homens. “Ela não era uma pessoa simples. Tinha força sobre Lampião, era ciumenta e valentona”, restaura a jornalista Wanessa Campos que, durante três anos, buscou a vida de Maria para escrever o livro A Dona de Lampião (2011). “Era braba, brigava muito com ele e ele não dava uma palavra”, ouviu de cangaceiros, familiares. “Era uma mulher destemida, além de seu tempo. O que me chamou a atenção foi a coragem dela, a ousadia e a vaidade... Ela decidiu ir, arrumou as trouxas e foi. Lampião era rico, famoso, valente. Tudo o que o (ex-)marido não era”, conclui a pesquisadora. O bando rejeitou, silenciosamente, Maria, apurou a jornalista. “Mas ela era comunicativa, brincalhona e conseguiu interagir com o grupo”, contrapõe. Então, Dona Maria Bonita – Dona, como o bando lhe tratava, e Bonita, o modo de dizer do imaginário - foi a primeira dama daquele reinado à margem, seguindo o cangaceiro-capitão, por vontade do amor (concordam pesquisado-

Op passado condena e o tempo redime

res), dos 19 anos até a morte no massacre de 1938. Pariu quatro vezes no cangaço; Expedita Ferreira Nunes, a única mulher, criada por um vaqueiro e a esposa até a guarda de um tio, ainda está viva. E Maria abriu caminho para Dadá, a dona de Corisco, para Durvalina Gomes de Sá (Durvinha), a dona de Moreno, e para todas as outras que, na opinião de Manoel Neto, se tornaram indispensáveis para uma versão tão transgressora quanto afetiva desta história: “Você não pode mais dissociar o cangaço da mulher”.

A jornalista Wanessa Campos, que anda pelo rastro documentado (no papel e na oralidade) do cangaço há mais de 20 anos, diz que as mulheres dos cangaceiros levavam a casa no corpo. Carga mais pesada, que levam até depois da morte, é o passado. Como se tivessem sido sempre “prostitutas, mulheres selvagens, sem princípios”, relaciona o historiador Manoel Neto. As mulheres do cangaço se ressentiam “que tivessem tido uma imagem que não correspondia à verdade... Era como se tivessem nascido cangaceiras, como se não tivessem sido nada antes (sertanejas, de família)”, narra Manoel. Na verdade, defende Wanessa Campos, o que aquelas mulheres dos anos 20/30 queriam era a liberdade que ainda se quer. No cangaço, “eram donas de si, com o marido por trás” e foram marcadas para sofrer

as dores mais de uma vez, da fome ao desprezo. Eram ditas como bichos, registra Billy Jaynes Chandler no livro Lampião – o Rei dos Cangaceiros (1980): “Era Lampião quem fazia os partos, pois, na sua mocidade, fora vaqueiro e adquiria conhecimentos especiais para ajudar os animais na hora da dar cria”. Para os especialistas, somente o tempo, com as novas gerações e as pesquisas revelando os silêncios, pode redimir um passado tão cruel. “Só se aprofundando mais nesses caminhos, que são longos e cheios de mistérios”, aponta o escritor João de Souza Lima. Mistérios e contradições da extensão do que é humano: “Quem vivia no mato não era monstro, não. Era uma pessoa”, mostrou-se Ilda Ribeiro de Souza (Sila, de Zé Sereno), em entrevista ao programa Jô Soares Onze e Meia.


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80 anos da morte do bando de Lampião e Maria Bonita

MARCELO DÍDIMO ESPECIAL PARA O POVO

vidaearte@opovo.com.br

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BENJAMIN ABRAHÃO

cangaço é um gênero cinematográfico tipicamente brasileiro, cuja temática foi consagrada no cinema nacional por clássicos, como O Cangaceiro (Lima Barreto, 1953) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964). Os primórdios dos filmes de cangaço remontam às décadas de 1920 e 1930, quando o movimento histórico ainda existia e Lampião vagava pelo sertão nordestino, povoando o imaginário popular com suas aventuras, para o bem ou para o mal. As imagens captadas por Benjamin Abrahão em 1936 compõem o filme mais importante desse período e um dos mais significativos para o gênero, sendo um documento-chave para a compreensão antropológica do cangaço, além de um registro histórico no cinema brasileiro. O filme é bastante conhecido do grande público. O que a maior parte das pessoas desconhece é que Lampião foi protagonista de outros filmes antes do lendário encontro com Benjamin Abrahão. De autoria e procedência desconhecida, Lampião: o Banditismo no Nordeste é

um documentário realizado em 1927 e citado no livro Dicionário de Filmes Brasileiros (Curta e Média-Metragem), de Antônio Leão da Silva Neto, como o primeiro filme a retratar Lampião e seu bando de cangaceiros no cinema. Segundo a Revista Selecta (04/01/1928): “Lampião e seus asseclas apareciam na tela com estranha e apavorante indumentária de profissionais do crime. Um horror! Esta fita, infelizmente real, foi filmada no próprio sertão brasileiro, onde não há garantias de vida, porque os governos inescrupulosos chegam ao absurdo de associar-se aos bandidos, para se armar contra o adversário político. Essa é a triste verdade”. Em 1930, Guilherme Gáudio realizou Lampião, a Fera do Nordeste, uma ficção com cenas documentais. O filme relata o episódio da chacina do Rio do Peixe, na Bahia, “mostrando um Lampião monstruoso e sanguinário que matava até criancinha, lançando ao ar e aparando com seu punhal” (DIAS, 1984: 27). Na época de lançamento do filme, a revista Cinearte (16/04/1930) publicou o seguinte comentário: “Tudo filmado com a pior fotografia do mundo, sem noção alguma de arte e sem realidade. A interpretação é pavorosa! Tudo horrível! Como filme Lampião é mais prejudicial à Bahia que o próprio bandoleiro”. Infelizmente, os filmes não resistiram ao tempo, e não foram encontradas mais referências ou qualquer outro tipo de fonte que confirme a veracidade da existência dessas obras, o que impossibilita uma análise mais detalhada e a chance de situá-los como filmes do gênero cangaço (um gênero cinematográfico não nasce do nada, geralmente é concebido por uma fase de experimentação, que pode ser representativa ou não). No entanto, é possível entender que o cangaço começou a fazer parte do cinema nacional a partir desses filmes, apesar das críticas incisivas, pois deram a sua contribuição – para o bem ou para o mal – à concepção do gênero, que imortalizou a figura de Lampião no cenário cinematográfico brasileiro.

OS PRIMÓRDIOS DOS FILMES DE CANGAÇO REMONTAM ÀS DÉCADAS DE 1920 E 1930, QUANDO LAMPIÃO AINDA VAGAVA PELO SERTÃO NORDESTINO

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CINEMA NEM p , a fera da sétima arte

Marcelo Dídimo é professor do Curso de Cinema e Audiovisual e do Programa de PósGraduação em Comunicação da UFC e autor do livro O Cangaço no Cinema Brasileiro

FOTOS REPRODUÇÃO

Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964)

Corisco & Dadá (1996)

A Luneta do Tempo (2016)

Clássico do cinema brasileiro dirigido por Glauber Rocha, a obra é um dos marcos do movimento do Cinema Novo. O filme foi produzido e lançado em meio a um turbulento momento político do País que culminou na ditadura militar. Na trama, acompanhamos um vaqueiro que, explorado pelo coronelismo, acaba entrando no mundo do banditismo do sertão. Elementos como religiosidade, matadores de aluguel e outras questões sociais compõem o longa, protagonizado por Geraldo Del Rey, Yoná Magalhães, Othon Bastos e Maurício do Valle.

Dirigido pelo cearense Rosemberg Cariry, o longa foi rodado na região do Cariri. Ele conta a história real dos personagens-título, o cangaceiro Corisco (Chico Diaz) e Dadá (Dira Paes), filha de um desafeto dele e sequestrada em represália, ainda na adolescência, aos 12 anos. Com o passar do tempo, a menina vai se integrando à rotina e às ações do bando de cangaceiros, que vai percorrendo o sertão nordestino para se livrar das perseguições policiais.

Com direção do cantor e compositor pernambucano Alceu Valença, o filme é protagonizado justamente por Lampião (Irandhir Santos) e Maria Bonita (Hermila Guedes). O longa foge da cinebiografia convencional e traça uma visão poética e pessoal do sertão, tendo foco narrativo nas disputas do cangaceiro e seu bando contra as forças de repressão policial da época. Com diálogos rimados e música composta também por Alceu, o projeto demorou mais de uma década para ser concretizado.


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