"A direita de repente saiu do armário"

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SEGUNDA-FEIRA

PÁGINAS AZUIS

FORTALEZA - CEARÁ - 23 DE JULHO DE 2018

ERIC NEPOMUCENO

“A DIREITA DE REPENTE SAIU DO ARMÁRIO” O POVO - O senhor veio aqui a Fortaleza para… Eric Nepomuceno - Senhor tá no céu, para quem acredita nele.

CARLOS MAZZA

JÁDER SANTANA

EVILÁZIO BEZERRA

JORNALISTA

JORNALISTA

FOTÓGRAFO

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Apaixonado pela América Latina, o jornalista e escritor Eric Nepomuceno observa com atenção e desconfiança o decurso da ruína da esquerda no continente. Cauteloso, resiste à tentação de traçar paralelos, afirmando que o cenário da Argentina de Mauricio Macri, do Chile de Sebastián Piñera e do Uruguai de Tabaré Vázquez - países onde os presidentes foram legitimamente eleitos não pode ser comparado ao Brasil de Michel Temer - “que não se elegeria nem vereador em Tietê, sua cidade natal”. Nepomuceno esteve em Fortaleza em abril, poucos dias depois da prisão do expresidente Lula, que completou 100 dias no último dia 16. Na cidade, participou da V Jornada Universitária em Defesa da Reforma

Agrária, na Universidade Federal do Ceará (UFC), onde falou sobre seu premiado O Massacre: Eldorado dos Carajás, de 2008, livroreportagem que investiga o assassinato de 19 sem-terra no sul do Pará em 1996. Na entrevista a seguir, concedida na sede do O POVO logo após sua participação no programa Debates do Povo (rádio O POVO/CBN), Nepomuceno comenta a série de ações que levaram à prisão de Lula - citando nomes e adjetivos sem medo de represálias -, reflete sobre a fixação da classe média brasileira com a questão da segurança e traça previsões pouco otimistas para o quadro político que se desenhará no País em ano de eleições presidenciais. Assumindose “realista”, conclui que o Brasil não pode ter perdido a memória que nunca teve.

O POVO - Opa, peço desculpas. Você veio a Fortaleza para celebrar os dez anos de lançamento do livro O Massacre: Eldorado dos Carajás. Foi um crime cujos mandantes ficaram impunes. Este ano, por outro lado, tivemos o Lula, que em menos de um ano teve condenação e prisão. Há alguma relação? Essa agilidade mostra que o Brasil mudou? Eric Nepomuceno - Eu acho que a comparação não cabe, se você me perdoar. O massacre de Eldorado dos Carajás teve os que agiram e os responsáveis. O responsável se disse Almir Gabriel, que era o governador do Pará na época, e Paulo Setti Câmara, que era o secretário da Segurança. Os dois deram ordem para que o comando militar desimpedisse a estrada do jeito que fosse. Então há provas, foi filmado et cetera, e a grande impunidade é que o governador e o secretário não foram sequer ouvi-

dos. A questão do Lula é outra coisa, é parte de um golpe cujo objetivo não era afastar Dilma Rousseff, mas eliminar o Lula e impedir que ele voltasse a ser presidente. Aí vem um juiz provinciano, messiânico, arbitrário, desequilibrado, chamado Sérgio Moro, e eu sei exatamente o peso de cada palavra que estou dizendo. Não há uma prova, é um juízo acusador, baseado em um bando de fundamentalistas, aqueles meninos fanáticos de Curitiba, para condenar em base de convicção. Isso é um absurdo, o Brasil está vivendo uma etapa de golpe, de estado de exceção. Não dá para comparar. Então se fala em combater a impunidade com Lula preso? Ora, no campo brasileiro a violência continua impune. No ano passado massacraram dez. Perseguição a quilombolas, indígenas, é feita não só com impunidade, como também, agora, no regime do Michel Temer, há impulso do Estado, um Estado ilegítimo.

O POVO - O MST continua ativo. Ainda há risco de novos massacres e violências do tipo? Eric Nepomuceno - Enquanto não houver uma reforma agrária nesse País. O MST


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Eric Nepomuceno - Não há política de segurança, e você não vai resolver o problema da violência enquanto você não fizer duas coisas. Um: legalizar o uso de drogas, porque, ao proibir a droga, você cria toda uma estrutura de corrupção, que vai da Polícia ao Judiciário e aos políticos. Dois: Enquanto você tiver 2% do Brasil ganhando mais que 58%, não adianta. Se meu filho tiver fome, minha mulher estiver doente, ou eu vou traficar, ou vou roubar.

O POVO - Mas existem hoje vários candidatos, como o Rodrigo Maia ou o Temer, que dizem que esses problemas são herdados das gestões petistas. Eric Nepomuceno - Eu aposto um jantar ali no mercado do Mucuripe que nem Temer, nem Rodrigo Maia, nem Henrique Meirelles sequer serão candidatos a presidente. E o discurso deles, que foi tudo herdado da Dilma, etc, etc, não pega mais. Por mais que Mervais Pereiras da vida, os porta-vozes dos grandes conglomerados de comunicação, se esforcem para distorcer a realidade, não engana. A inflação caiu, claro que caiu. Porque ninguém consome. A economia tá crescendo. Para quem? Para mim? Eu não sou o povo brasileiro. Eu sou branco, nasci na classe média, estudei em escola particular, na infância só tive fome quando a empregada não trazia o almoço. Eu não sou o povo brasileiro, tenho plena consciência disso. E para o povo brasileiro, não só não melhorou nada como piora a cada dia. É tudo muito confuso, há um dado do Brasil de hoje que me assombra. Na época do golpe de 1964 eu era garoto, tinha 15 anos, e eu lembro de uma sensação geral de medo. Medo do comunismo, medo de não sei o quê. E do outro lado, o medo de um golpe, medo disso. Agora não há medo, há ódio, coisa que nunca teve. A direita, apesar de nunca ter existido direita no Brasil, de repente saiu do armário. E é fácil comprovar que, quando al-

O POVO - Sobre essas mudanças que você diz que têm que acontecer, acredita que as eleições de 2018 têm chance de promovê-las? Eric Nepomuceno - A eleição já foi fraudada, né? Quando você, em um processo completamente arbitrário, sem base, feito com a omissão cúmplice das instâncias superiores de Justiça, o que inclui o STF, tenta impedir um candidato, seja qual for, de disputar sem uma única e miserável prova, a fraude já aconteceu. Você não precisa fazer uma fraude técnica, de contagem de votos. Eu não sei o que vai acontecer. Aliás, hoje, não sei nem se vai ter eleição. Por quê? Costumo usar uma metáfora: eu roubei uma Mercedes Benz, um carro fabuloso. Aí de repente furou um pneu e eu não tenho um estepe, então do que me adianta um Mercedes Benz? É o que aconteceu com os golpistas. Eles deram o golpe, tiraram a Dilma. O indecente senador Antonio Anastasia, que relatou o processo do impeachment, acusou a Dilma de cinco irregularidades. O Tribunal de Contas da União retirou três delas. O delicadíssimo Anastasia, quando era governador de Minas Gerais, alguns anos antes, cometeu 58 irregularidades, atos iguais aos que ele acusava a Dilma. É uma farsa total. Agora, a Dilma importava menos, o que importava era fazer o que o Temer está fazendo, que é destruir o patrimônio nacional, cortar verba pública de educação e saúde, mentir, proteger os quadrilheiros, todos. Só que, de repente, eles ficaram sem o estepe. O Aecinho (Neves, senador do PSDB de Minas Gerais) foi desmascarado, o José Serra se eclipsou para escapar do foco, porque se colocarem o foco da investigação em cima dele, ele está perdido. O Temer é o Temer, não se elege nem vereador em Tietê, que é a cidade dele. Então acabou. O que vai acontecer é que eu não tenho a menor ideia.

O POVO - Há uma frase do Gabriel Garcia Marquez, autor que o senhor traduziu, que diz que a vida não é o que se vive, mas o que se recorda e o que se recorda para contar. Qual o perigo de que fique na memória nacional uma narrativa falsa de tudo o que está acontecendo? Eric Nepomuceno - A história é sempre escrita, em uma primeira versão, pelos vencedores. Mas aí alguém sempre vai buscar a voz dos vencidos. Por exemplo, o Eduardo Galeano. Desta vez, os vencedores são ocultos, a gente não vê. Quem a gente vê? Michel Temer e companhia? Eles não vão escrever nada, não tem perigo. Só que o mundo mudou, os meios de comunicação mudaram. Você tem instrumentos hoje, para o bem e para o mal, e a farsa é tão gritante que até esta classe média, desmemoriada, começa a desconfiar que alguma coisa está

 Debate ERIC NEPOMUCENO participou do programa Debates do Povo, na rádio O POVO/CBN, no dia 18 de abril. Conduzido pelo jornalista Plínio Bortolotti, o programa pode ser assistido na íntegra pelo endereço goo.gl/x5HFCN

Premiação O LIVRO-REPORTAGEM O Massacre - Eldorado dos Carajás: Uma história de impunidade , publicado por Nepomuceno em 2008, recebeu o Prêmio Jabuti naquele ano. Lançado pela editora Planeta, investiga o caso do assassinato de 19 sem-terra no Sul do Pará, no dia 17 de abril de 1996.

Coluna O BLOG Nocaute (nocaute.blog.br), do jornalista e escritor Fernando Morais, publica frequentemente textos de Nepomuceno.

guém, pela razão que for, sai do armário, sai com um furor de recuperar o tempo perdido, o tempo em que se ocultou, não se assumiu. Isso é a direita brasileira hoje, uma fúria e um furor. Não sei o que vai acontecer, não tento ser pessimista, mas sou realista. Então estou muito indignado com tudo isso, mas também estou impotente. Cada um tem as armas que tem, minha arma é a palavra, então vou resistir com ela.

O POVO - Você deve ter visto que o livro A verdade vencerá, publicado pela Boitempo, com artigos sobre o julgamento do Lula, inclusive um artigo seu, entrou em várias listas de mais vendidos. Você acha que o Lula vai sobreviver como ideologia? Eric Nepomuceno - A única ideologia pessoal que eu respeito e admiro é a cristã. Não sou católico, eu sou completamente ateu. Agora, reconheço que ali há uma ideologia escrita por várias mãos. E eu não acredito no Lula como ideologia, mas sim como um líder político e popular com uma capacidade de intuição incrível. E que sempre despertou o desprezo e o ódio do preconceito da classe média brasileira, que inclusive ganhou muito com ele: os bancos nunca lucraram tanto, assim como o empresariado. O Brasil é um país desconexo, bipolar, descompensado. O que que vai prevalecer, não sei. Eu nem sabia que esse livro estava nessas listas. O que importa nele? O que eu escrevi? O que o Luis Fernando Veríssimo escreveu? Não. O que importa é uma entrevista com o Lula, que é uma entrevista magistral, em que ele abre o jogo. Eu não sou petista, nunca fui, não sou filiado a nenhum partido. Não sou nem sócio do Fluminense, que é para eu não ser orgânico em nada. Mas eu tenho uma relação pessoal com o Lula. Ele disse na entrevista o que eu ouvi ele dizer em almoço de apenas quatro pessoas. E então acho que é muito importante para se conhecer o verdadeiro pensamento do Lula, não interpretado por algum gênio da academia, mas por ele mesmo. E eu não sou otimista com o Lula, ele não vai sair tão cedo da cadeia. Não vai. Pela covardia da Corte Suprema brasileira, que o deixou nas mãos de um fanático de província, que é parte do golpe, dos interesses externos, e que está agindo à vontade.

O POVO - Esse mesmo furor chegará aos outros alvos da Lava Jato? Eric Nepomuceno: Você vê o Aécio Neves, que é uma galinha morta. Ele não tem mais a mais remota importância hoje em dia. Então é uma falácia, é um engodo, e é preciso estar atento a isso, a essa história de “a Justiça é igual para todos”. Não, não é. O cafajeste provinciano foi flagrado, filmado com uma mala de dinheiro. É um velho conhecido da corrupção e outros vícios que convém disfarçar. E ele não tem a mais remota importância. Minha tia Maria do Carmo, se estivesse viva, teria mais importância para os tucanos. Então é uma farsa, não tem uma prova contra o Lula, contra o Aécio tem um caminhão. O Eduardo Cunha só foi afastado pelo STF depois de abrir o processo contra a Dilma. Porque ali ele não era mais útil. E cadê o José Serra?

O POVO - Como a esquerda poderia agir para evitar que esse ódio continue delimitando a pauta política? Eric Nepomuceno - Não sei.

licóptero que trazia o Lula do aeroporto para a sede da polícia em Curitiba foram disparados rojões? E havia policiais lá dentro. Não há como, há uma descompensação. Não há como você impedir o ódio. Talvez tomando medidas de precaução que não estão sendo e nem vão ser tomadas. Porque é um País que perdeu o controle. Nós temos hoje um vazio de poder absoluto, você tem uma descompensação entre as instituições da Justiça. Você tem uma Polícia Federal que, em nome de uma autonomia, atua sem limites, com uma arbitrariedade total. E você tem uma Corte Suprema omissa. Então você me pergunta o que fazer? Não sei, talvez se mudar para Tegucigalpa. Evidente que a esquerda deveria se unir, eu defendo isso. Agora, quem sou eu? Na minha geração a gente falava que a esquerda só se une na cadeia, agora nem isso. Cada um é preso de um lado, e não se resolve nada.

O POVO - Você declarou recentemente que era preferível morrer do que perder a memória. O que se faz quando um país inteiro perde a memória? Qual a solução? Eric Nepomuceno - Você me desculpe, mas o Brasil não perdeu a memória. Para você perder alguma coisa, você precisa ter tido ela. E o Brasil nunca teve memória. Eu sou um escritor de muito pouca imaginação e pouca memória, e eu, até por circunstâncias pessoais, o dia que eu perceber que ela está indo embora, eu prefiro ir antes. Porque não dá. Agora, o País, vou te repetir, foi anestesiado. Só que a anestesia tem tempo, e neste momento a anestesia contra o Lula, contra o PT, está passando o efeito. Até porque o efeito de Temer e sua equipe é tão forte que você precisaria de uma dose tripla de anestesia. E só deram uma anestesia dupla. O efeito tá passando, aí é complicado não ver a podridão. Vai cair a ficha, porque é no bolso, é na mesa. É quando falta comida, quando teu filho fica doente. Quando você não tem uma perspectiva sobre nada, é preciso ter muito claro isso. A gente tende a avaliar um panorama geral baseado na nossa classe social. Por isso repito: eu não sou o povo. Para mim mudou pouca coisa, se tenho menos trabalho aqui tenho outros lá fora. Agora, existem milhões de brasileiros que nunca sonharam com o que a gente perdeu. Em termos materiais, de bem estar mínimo.

América Latina

O POVO - A palavra de ordem da classe média hoje é segurança. Seja a segurança ligada à violência, seja a ligada à econômica. É a ideia que baseia essa intervenção no Rio de Janeiro. Qual é o grande problema desse discurso? O que ele está comprometendo?

errada. E depois há um dado muito concreto, e aí não tem discussão, que é que o Lula tirou da zona de pobreza e de miséria 44 milhões de brasileiros. Tirou o Brasil do mapa da fome. 44 milhões quer dizer uma Argentina inteira, doze Uruguais. O Temer, em um ano, devolveu para o que os acadêmicos elegantes chamam de pobreza extrema, 1,5 milhão de brasileiros. Uma Porto Alegre, uma Curitiba inteira. Então é inconteste: essa narrativa, essa história, vai ser contada.

Lula

Segurança

é acusado de violência? Às vezes, sim, eles ultrapassam limites. Agora, ninguém menciona uma violência secular envolvida nisso. 1% dos proprietários de terra nesse País tem 60% das terras cultivadas do Brasil. A violência é essa, agora basta o MST ocupar uma fazenda, ficar lá dez dias, queimar meia dúzia de pneus em uma estrada, que são vândalos, terroristas. Lembra: 1% dos proprietários detém 60% das terras. Qual é a violência? Se eu estou torturando o seu filho, e você me dá uma cacetada na cabeça, o violento é você?

O POVO - Estamos assistindo a uma ascensão da direita não só no Brasil, mas em todo o mundo. Analisando os casos da América Latina, pode-se dizer que é uma ascensão que se dá pelos mesmos motivos que no Brasil?

Eric Nepomuceno - Eu li há um tempo um artigo de um camarada que fez uma minuciosa análise de como você vai minando governos populares, não precisam nem ser progressistas. E é muito impressionante, porque aconteceu primeiro aquele golpe no Paraguai, que ali foi um teste, depois foi ali em Honduras, que é um país que não tem a menor importância para os grandes interesses, mas deu certo. E aí pensaram: vamos atacar. Eu não traço paralelo nenhum entre o que está acontecendo no Uruguai, no Chile, no Paraguai, na Argentina, no Equador, na Colômbia e o Brasil, porque o Macri (Maurício, presidente da Argentina, de viés liberal) é um bandoleiro, mas foi eleito. O Piñera (Sebastián, presidente do Chile) é um horror, mas foi eleito. Tabaré Vázquez (presidente do Uruguai) é um traidor, mas foi eleito. E aqui, não. Então não dá, eu me recuso. Agora, se fosse para falar em termos abstratos, é uma crise da esquerda de forma geral. O Brasil sumiu do mapa. Até o Macri, que tem uma estatura política e moral de uma formiga, virou uma liderança da América do Sul. Como diz o meu avô, dias piores virão.

O POVO - Dá para responder ódio com ódio? Eric Nepomuceno: Não, ódio com ódio não leva a lugar nenhum. Leva a uma carnificina. A pergunta é outra: por que a polícia militar do governo do Beto Richa permitiu que fizesse o que se fez? Essa é a pergunta. Porque disparar bala de borracha, bomba de gás, contra velhinhas, enquanto contra o he-

O POVO - Então, você não está otimista? Eric Nepomuceno - Não, eu sou realista. Meu avô, quando eu era adolescente, falava: “meu filho, calma, dias piores virão”. Eu achava um horror, ele desprezando minha dor. Mas ele estava absolutamente certo.


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