A culpa não é da chuva

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ANO XCII - EDIÇÃO Nº 30.607 FORTALEZA - CE / R$ 3,00

QUARTA-FEIRA

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91 ANOS

MATEUS DANTAS

REPORTAGEM

O que está por trás das inundações em Fortaleza e os motivos da chuva não ser a culpada RIO COCÓ cruza Fortaleza com casas em suas margens

PÁGINAS 4 E 5

CEARÁ E UNIÃO

Esquema de fraude fiscal sonega R$ 520 milhões LUDOVIC MARIN / AFP

ALEX GOMES/ESPECIAL PARA O POVO

NOTRE-DAME UM DIA APÓS O DESASTRE

AÇÃO CONTRA ESMOLAS PARA CRIANÇAS

Presidente Emmanuel Macron afirma que serão necessários cinco anos para a reconstrução da Catedral destruída parcialmente pelo fogo

Campanha da Prefeitura promove desestímulo à doação de esmolas à crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social

MUNDO, PÁGINA 16

FAROL, PÁGINA 3

MERCADO ASSINANTE: (85) 3254 1010 / 98918 5274 WHATSAPP VENDA DE ASSINATURA: (85) 98982 1070 E-COMMERCE ASSINATURA: assineopovo.com.br E-MAIL: mercadoassinante@opovo.com.br

ESPORTES

POLÍTICA

CIDADES

ECONOMIA

Federação confirma uso do VAR no Clássico-Rei decisivo de domingo

Inquérito sobre fake news abre crise no Judiciário e pressiona STF

Ceará anuncia R$ 150 milhões para recuperação de rodovias

Conta de luz residencial fica 7,39% mais cara no Estado

PÁGINA 22

PÁGINA 6; EDITORIAL, PÁGINA 20

PÁGINA 17; NEILA FONTENELE, PÁGINA 13

PÁGINA 14

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EDIÇÃO DE HOJE Edição fechada às 23h45 60 páginas

ISSN 1517-6819

Grupo chegou a movimentar R$ 5,5 bilhões utilizando, a partir do Ceará, 24 empresas, sendo 18 delas fantasmas. Elas emitiam notas fiscais falsas para geração de crédito de ICMS. Operação Aluminum prendeu 12 pessoas CIDADES, PÁGINA 19


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FORTALEZA - CEARÁ - 17 DE ABRIL DE 2019

EDIÇÃO: FÁTIMA SUDÁRIO | FATIMA@OPOVO.COM.BR | GIL DICELLI | GIL@OPOVO.COM.BR | 85 3255 6101

AS VEIAS ABERTAS DE FORTALEZA | PLANEJAMENTO URBANO | Especulação imobiliária, mau uso do solo, excesso de canalizações e acúmulo de lixo contribuem para enchentes e comprometem os recursos hídricos dos rios que cruzam Fortaleza

JÁDER SANTANA jader.santana@opovo.com.br

Uma moradora do Lagamar abordou nossa equipe de reportagem e perguntou se estávamos ali por conta dos alagamentos. Pedindo para não ser identificada, contou que sua casa havia desabado há exatamente um ano, em abril de 2018. As rachaduras nas paredes já eram profundas, a água invadia os cômodos a cada inverno, “mas a gente nunca acha que vai acontecer com a gente”. Quando a estrutura

começou a ruir, teve tempo para salvar alguns móveis. Hoje mora de favor no primeiro andar de uma casa que também está alagada, às margens do canal por onde corre o rio Cocó. Desde a Serra de Aratanha, em Pacatuba, o Rio Cocó avança por 50 quilômetros até desaguar entre as praias do Caça e Pesca e Sabiaguaba, invadindo o Atlântico. Passa por Maracanaú e Itaitinga antes de chegar a Fortaleza, onde é contingenciado pelas barragens inauguradas em junho de 2017, resultado de projeto do Governo Estadual que investiu R$ 105 milhões - também destinados às desapropriações do entorno. Nos meses de chuva forte, dezenas de moradores do Conjunto Palmeiras e bairros vizinhos,

geralmente jovens entre 15 e 25 anos, marcam encontros na barragem. Os mais corajosos se exibem em saltos arriscados, arrancam gritos dos outros. Tomam cachaça, comem biscoito, fumam maconha. O rio é para o lazer. Na outra margem, policiais militares fazem a ronda e assistem aos pulos. Previnem os assaltos que vez por outra acontecem na região. No último 24 de fevereiro, as águas que abastecem e divertem invadiram as ruas do bairro. As chuvas pesadas da noite anterior já haviam cessado, mas os dois afluentes do Cocó que cruzam o Conjunto Palmeiras transbordaram. “A gente estava na rua, organizando um abaixo-assinado pela limpeza desses afluentes, e de repente a água começou a

subir”, relembra Pool, articulador social e um dos coordenadores do movimento Círculos Populares. “As pessoas começaram a aparecer chorando, pedindo ajuda pra levantar os móveis. Teve casa que alagou até a altura das janelas”, completa. Da barragem no Conjunto Palmeiras ao encontro com o mar, há uma constante que perpassa quase todos os bairros que são cortados pelo Cocó: as moradias irregulares. São casas e barracos erguidos informalmente à beira do rio, geralmente com sistema precário de esgotos que desemboca diretamente no leito. Quando o volume de águas sobe, essas casas são as primeiras atingidas. O Rio Maranguapinho, que cruza bairros como Bom Jardim e Genibaú,

apresenta o mesmo quadro. Não à toa, estão entre as regiões mais afetadas por alagamentos em períodos chuvosos. “A criação dessas áreas de risco tem a ver com a completa mercantilização do solo urbano. A cidade é regida pela especulação imobiliária, Fortaleza tem um dos metros quadrados mais caros do Nordeste. O que resta, para as pessoas que não têm condições, são essas áreas”, explica o geógrafo Jeovah Meireles, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC). Segundo o especialista, os alagamentos registrados na Capital “são derivados de conexões que estão sempre voltadas a essa postura de gestão urbana de não consolidar trechos livres da especulação”.


REPORTAGEM

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FORTALEZA - CEARÁ - 17 DE ABRIL DE 2019

Pool resgata a história do Conjunto Palmeiras para reforçar o argumento de Jeovah. “Esses bairros são, historicamente, de trabalhadores precarizados. Vieram das primeiras remoções, na década de 1960, quando tiraram essas pessoas do litoral e jogaram pra aquelas regiões. As pessoas precisaram se organizar pra ter água encanada, iluminação pública, tudo na base da luta. São comunidades que têm uma relação muito forte com o rio e a floresta”, explica. Jeovah acompanhou nossa equipe durante visita ao Conjunto Palmeiras. Enquanto percorríamos o bairro, apontava ruas que provavelmente foram construídas sobre afluentes do rio - são aqueles trechos localizados no ponto de encontro entre aclives e declives. “Isso tudo era área úmida, provavelmente uma lagoa que agora está totalmente ocupada. Quase não se vê vegetação, é só calçada e calçada”, analisa. A água das precipitações, após atingir o solo, corre de três maneiras - por evaporação e evapotranspiração, com a ação do sol e das árvores; por infiltração, absorvida pelo solo; e superficialmente, escorrendo pelo solo e direção aos rios e canais. Nos centros urbanos, com a capacidade de infiltração quase totalmente comprometida por asfaltos impermeáveis, resta a evaporação, mais lenta que o

volume coletado, e o escoamento superficial, seriamente comprometido pelo sistema de drenagem insuficiente. Pool reforça a análise de Jeovah em relação ao Conjunto Palmeiras: “A maioria dos afluentes está canalizada. Outros estão cheios de mato e lixo”. Segundo ele, não há nenhum projeto de sensibilização e educação ambiental nas comunidades. Além disso, há uma espécie de “validação” das moradias irregulares - “são casas que estão em área de risco, mas que precisam pagar contas de água e energia”, completa. Embora pareça circunscrito às áreas da periferia, os problemas de esgoto e saneamento básico estão distribuídos por grande parte da Capital e de sua

região metropolitana. De acordo com os últimos dados do Ranking de Saneamento Básico, relatório elaborado anualmente pelo Instituto Trata Brasil, apenas 49,68% das residências de Fortaleza têm atendimento total de esgoto. “Em outras cidades do Interior, esse índice pode cair para 5%. Todo o restante cai direto nas bacias dos rios que chegam a Fortaleza”, explica Jeovah. Além dos baixos índices de saneamento, grandes volumes de fossas estouradas são responsáveis por lançar nos rios substâncias estranhas aos sistemas hídricos, como potássio, nitrato, alumínio e fósforo. As plantas que assimilam esses materiais acabam proliferando descontroladamente, gerando problemas de dominância no ecossistema. Os peixes morrem sem oxigênio, os aguapés aparecem, assim como o capinzal nas margens. “Isso tudo forma um agregado de matéria orgânica que é bastante úmido, mas totalmente contaminado. A consequência é a extinção da lagoa”, explica Jeovah. Esse cenário pode ser visto com clareza no trecho do Rio Cocó que corta o Lagamar. Entupido de detritos, esgotos, lixo e material orgânico, corre a uma velocidade quase imperceptível. “A água tá parada, tu tá vendo? Tá tudo entupido”, aponta Vicente Pereira, que vende peixes em casa e está preocupado com as rachaduras na parede.

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TRAJETO MOLHADO

Seu vizinho, João Santos, precisou colocar a geladeira em cima de tijolos - os esgotos da casa transbordaram e inundaram todos os ambientes. Nas ruas do bairro, a água se aproxima do joelho. Em uma das esquinas, moradores se juntaram para quebrar o asfalto e aumentar a vazão das bocas de lobo. Em outra travessa, um senhor morreu de leptospirose. Reclamam da sujeira acumulada no rio, mas assumem sua parcela de culpa no problema. Quando finalmente consegue cruzar as passarelas do Lagamar e volta a correr com um mínimo de velocidade, o Cocó já está praticamente morto. Chega ao mar sem nada da exuberância da barragem onde saltavam os moradores.

Na manhã seguinte a uma noite de grandes precipitações no início de abril, O POVO visitou pontos críticos e de alagamento frequente em Fortaleza. Aceitou nosso convite para integrar a equipe, gentilmente, o professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC) Jeovah Meireles. Graduado em Geologia pela UFC, Jeovah é mestre em geociências pela Universidade Federal do Pernambuco (UFPE), onde realizou mapeamento geomorfológico do quaternário costeiro de Icapuí, e doutor em Geografia Física pela Universidad de Barcelona, na Espanha. Além de nos acompanhar em nosso trajeto, Jeovah colaborou fornecendo imagens de satélite que ajudaram a compreender a dimensão das áreas úmidas suprimidas - fundamentais para a elaboração deste infográfico.

LEIA AMANHÃ Na edição de amanhã, a segunda parte da reportagem acompanha o fluxo submerso do Riacho Pajeú, ecossistema fundamental para a história de Fortaleza, e traz especialistas que discutem o problema da drenagem nas grandes cidades. Órgãos municipais e estaduais comentam situação dos recursos hídricos e destrincham projetos de recuperação das áreas.


Ano XCIi - Edição nº 30.608 FORTALEZA - CE / R$ 3,00

Quinta-feira

18/4/19

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91 anos

MPCE investiga consórcios de saúde no Interior EXCLUSIVO Procuradoria investiga 21 entidades que fazem a gestão de Policlínicas e Centros de Especialidades Odontológicas. Secretaria da Saúde e Tribunal de Contas têm dez dias para fornecer informações sobre eventuais irregularidades nos consórcios POLÍTICA, PÁGINA 11

Mateus Dantas

POLÍTICA

Centrão vence mais uma e votação da reforma é adiada

PÁGINA 8

GUIA VIDA&ARTE ECONOMIA

REPORTAGEM

A culpa não é da chuva: A canalização do RIACHO Pajeú e as enchentes EM FORTALEZA

Festas, espetáculos, programação infantil; confira onde aproveitar a Semana Santa

Feriadão de Páscoa movimentará R$ 211,3 milhões no Ceará

Programação inclui encenações da Paixão de Cristo e shows espalhados por Fortaleza

1.445 profissionais de segurança atuarão por diariamente nos dias de feriado no Estado

PÁGINAS 1, 2, 3, 7 e 8

PÁGINA 13; CIDADES, PÁGINAS 15 E 17

FABIO LIMA

PÁGINAS 6 E 7

CHOCOLATES serão entregues à crianças atendidas pelo Iprede

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POP VEÍCULOS

Instituto Povo do Mar arrecada ovos de Páscoa para doação

O que você precisa saber para andar de moto em segurança

PÁGINA 3

PÁGINAS 1 a 3

EDIÇÃO DE HOJE Edição fechada às 23h20 54 páginas

ISSN 1517-6819

RIACHO PAJEÚ corre pelo subterrâneo de Fortaleza. Quando chove, vias como a Heráclito Graça ficam alagadas

FAROL


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FORTALEZA - CEARÁ - 18 DE ABRIL DE 2019

MATEUS DANTAS

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| A CULPA NÃO É DA CHUVA | Curso d’água fundamental para a história de Fortaleza, riacho Pajeú foi renegado pela Cidade e hoje corre por seu subterrâneo. Quando chove, ele vem à tona com força e alaga trechos da Heráclito Graça, por exemplo

O TRISTE DESTINO DO

SENA TUPINIQUIM JÁDER SANTANA jader.santana@opovo.com.br

O fluxo de água que ajudou a desenhar Fortaleza corre hoje pelo subsolo da cidade, em galerias e canais que parecem rir do significado original de seu nome - Pajeú vem do tupi e significa “rio curandeiro”. Nascendo no quarteirão da Silvia Paulet com a Bárbara de Alencar, o riacho Pajeú segue pela Heráclito Graça, respira na Praça da CDL, no Parque das Crianças e no Paço Municipal antes de desaguar no Poço da Draga. O rio das curas está hoje infestado de esgotos e lixo. O Pajeú aparece no primeiro documento cartográfico de Fortaleza, rabiscado em 1726 por Manuel Francês, capitão-mor da Capitania do Ceará Grande. O mapa, que hoje integra o Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, mostra o fio d’água passando ao lado do Forte Schoonenborch, construído por um capitão holandês em 1649 - o mesmo que mais tarde seria rebatizado como Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção (1812) e transformado na 10ª Região Militar (1958). Naquele início do século XVIII, a população da Vila de Nossa Senhora da Assunção pouco passava dos 500 moradores. Mas a história do Pajeú data de muito antes - estima-se que o riacho tenha pelo menos 7 mil anos. Desde a ocupação Holandesa, abastecia casas e comércios. Também garantia a subsistência da pequena aldeia indígena que havia se estabelecido naquele lugar, saída das margens do Rio Ceará. Eram os índios da Aldeota - o bairro que nasceu daquele olho d’água. Na segunda década do século XX, teve início o processo de “urbanização” do Pajeú, pela antiga Diretoria de Obras Públicas. As obras foram retomadas com novo ímpeto em 1980 - quando 3.360 metros do riacho foram canalizados (a extensão total é de 4.714 metros). “Era um rio belíssimo. Pequeno, estreito, cheio de pequenos riachos. Tudo isso foi asfaltado, fechado. Mataram um clima: o vento entrava pelo canal, gerava uma brisa na região. Hoje não é um riacho, mas um canal, um bueiro

engessado. O que resta são as consequências de uma inobservância de critérios ambientais. Ficou caótica a drenagem daquela região”, avalia o geógrafo Jeovah Meireles, da Universidade Federal do Ceará (UFC), justificando as inundações frequentes registradas em trechos da Heráclito Graça. “Você pode tirar o riacho, mas os aspectos topográficos são mantidos. Eles são como a impressão digital do estuário do Pajeú, só que agora não existe nada que amenize uma precipitação pluviométrica”, completa. Em outras palavras, todos os elementos e componentes morfológicos que controlariam a drenagem da região - solo, vegetação, margens, planície de inundação, lagoas - foram extintos. “Toda precipitação pluviométrica procura a gravidade. Antes, a vegetação diminuia a velocidade da água correndo, o solo absorvia parte dessa água. E, quando o riacho pegava chuvas mais fortes, extrapolava para as áreas de inundação. Agora, nada disso acontece, está tudo canalizado. Agora, a vazão é tão grande que

as bocas de lobo não dão conta, o sistema de drenagem não é suficiente”, explica. De acordo com a Secretaria Municipal da Infraestrutura (Seinf), desde 2015 foram realizadas inúmeras obras para melhorar o sistema de drenagem na Heráclito Graça e em suas adjacentes, o que incluiu a instalação de 59 bocas de lobo. No trecho entre as ruas Nogueira Acioly e J. da Penha foram construídos, segundo a entidade, 125 metros de ramais de drenagem. Jeovah também resgata aspectos culturais e simbólicos do Pajeú, além de todo o seu peso ambiental e histórico. “Era tudo sombreado, a gente brincava por lá, tinha pé de sapoti, cajá, azeitonas roxas. A gente ficava com os dentes corroídos de tanto chupar cajarana. Dava pra pegar peixe beta. E tinha uma mata arbórea, típica vegetação ciliar das margens. Era um símbolo fortíssimo de Fortaleza. Imagina se tudo tivesse sido cuidado”, relembra o geógrafo, chamando o riacho de “Sena tupiniquim”, referência ao rio que corta a capital francesa.

LEIA AMANHÃ

Na edição de amanhã, terceira e última parte da reportagem sobre as agressões aos recursos hídricos de Fortaleza e sua relação com os alagamentos. Vamos acompanhar os últimos quilômetros de extensão do Rio Cocó, antes de seu encontro com o mar. Na região do Dendê, moradores são deslocados para um novo residencial inaugurado pelo Governo do Estado às margens do rio.

“Preço a pagar”.

O problema da drenagem Fortaleza não é a única Capital brasileira a sofrer com alagamentos. Na verdade, o problema é quase inerente ao crescimento desordenado que marcou a história das grandes cidades do País. Nas últimas semanas, o Rio de Janeiro vem sofrendo enchentes de proporções assustadoras. O coordenador do curso de tecnologia em Saneamento Ambiental do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), Eduardo Cattony, alerta: “A realidade é essa. Com o desenvolvimento, vem um preço ambiental a se pagar”. A desordem ligada ao crescimento urbano precisa ser, segundo Cattony, questionada - “Até que ponto queremos esse tipo de desenvolvimento?” De acordo com ele, os governantes de estados e municípios no Brasil estariam habituados a prática de “mitigar os problemas,

e não de resolvê-los”. “Não tem uma drenagem que comporte todo esse asfalto e concreto. Ao invés de tratar o esgoto, instalando um sistema de drenagem mais eficaz - o que é muito mais caro e complexo - você simplesmente canaliza o córrego. Nem sempre o que é mais barato é ambientalmente correto”, explica. A situação é ainda pior nos bairros de periferia. “Saindo das ruas e vias principais, chegamos a bairros onde praticamente inexistem os sistemas de drenagem. Você anda nas ruas e não tem uma boca de lobo. Já temos tecnologia e profissionais adequados para melhorar isso, pra expandir esse sistema. Existem alternativas que envolvem desenvolvimento planejado, drenagem urbana bem feita e tratamento adequado de esgoto. O que falta é dinheiro e boa vontade”, conclui.

Atrás do prejuízo

As ações para mitigar os danos A reportagem de O POVO procurou órgãos municipais e estaduais durante o processo de elaboração para esta série de reportagens. A Secretaria das Cidades, pasta do governo estadual, falou sobre o Projeto Dendê (terceira parte da reportagem, que será publicada amanhã) e o Projeto Maranguapinho, que tem como área de intervenção as regiões cortadas pelo Rio Maranguapinho nos municípios de Fortaleza, Maranguape, Maracanaú e Caucaia, ao longo de 44,44 quilômetros. Com início efetivo em 2008, o projeto Maranguapinho tem o objetivo de delimitar e recuperar o rio e suas faixas de proteção, provendo o saneamento das moradias da região, a retirada e reassentamento de famílias em áreas de risco e o controle das cheias. Das diversas fases do projeto, a barragem foi concluída em 2012, entre os municípios de Maranguape e Maracanaú. O projeto de drenagem, que estava parado, deve ser “reiniciado nos próximos dias”. O projeto de urbanização das margens do rio, com vias paisagísticas e áreas de lazer, está 50,72% executado. As desapropriações, iniciadas com o lançamento do projeto, preveem o beneficiamento de 25 mil famílias e o reassentamento de 7.700. “Até o momento foram entregues 5.618 unidades habitacionais e pagas 4.739 indenizações de imóvel. Falta a entrega de 1.639 unidades habitacionais do Programa Minha Casa Minha Vida”, declarou a Secretaria em nota a O POVO. A previsão de conclusão de todas as ações é para dezembro de 2021.

A Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma), a Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis) e a Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (Habitafor), questionadas em separado, responderam em uma nota conjunta enviada à reportagem. “A Prefeitura, desde o início da gestão do prefeito Roberto Cláudio, apresenta ações estratégicas para a preservação ambiental”, começam, antes de citar aquela que seria a principal premissa de sua política ambiental: “integração do ambiente natural, ambiente construído e sociedade”. Em relação às ocupações irregulares em áreas protegidas, os órgãos afirmaram que realizam ações de educação ambiental no entorno dos principais recursos hídricos da cidade - “as ações alcançaram mais de 19 mil pessoas somente em 2018”. A Agefis, que atua mediante denúncia e busca ativa para identificar e inibir ocupações irregulares, realizou este ano duas operações de retirada. Em 2018, foram 47 ações e 411 remoções. Entre os planos para os próximos meses, a implantação do Programa Fortaleza Cidade Sustentável, a ser executado com empréstimo do Banco Mundial. Por meio desse projeto, será viabilizada, nos bairros da região Oeste que apresentam maior problema de não balneabilidade, a “ligação gratuita à rede pública de abastecimento de água e coleta de esgoto em domicílios de baixa renda, o que impactará positivamente nos recursos hídricos da Cidade”.


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QUINTA-FEIRA

FORTALEZA - CEARÁ - 18 DE ABRIL DE 2019

REPORTAGEM

7

FABIO LIMA

NA IMAGEM acima, trecho de respiro do riacho Pajeú canalizado na praça da CDL, na avenida Dom Manuel. Abaixo, a avenida Heráclito Graças alagada pela água que, em dias de chuva, deveria ser conduzida pelo riacho. Dos 4.714 metros de extensão, 3.360 correm pelo subterrâneo, causando as inundações


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SEXTA-FEIRA

FORTALEZA - CEARÁ - 19 DE ABRIL DE 2019

EDIÇÃO: FÁTIMA SUDÁRIO | FATIMAOPOVO.COM.BR | GIL DICELLI | GIL@OPOVO.COM.BR | 85 3255 6101

| PLANEJAMENTO URBANO | Moradores do Dendê são deslocados para novo residencial em projeto do Governo Estadual erguido às margens do Parque do Cocó

UMA NOVA CASA, A MESMA FLORESTA DIVULGAÇÃO

IMAGEM aérea mostra prédio em processo de construção

JÁDER SANTANA jader.santana@opovo.com.br

Nos últimos quilômetros de seu trajeto em direção ao mar, o Rio Cocó se aproxima da comunidade do Dendê, espalhada em uma ampla faixa por trás da Universidade de Fortaleza (Unifor) e do Fórum Clóvis Beviláqua, no bairro Edson Queiroz. As residências e barracos da área, a maioria erguida de maneira informal, abriga moradores que nasceram e se criaram em relação de quase dependência com parque e rio do Cocó. No ano passado, o Governo do Estado deslocou 600 dessas famílias para outra área. E essa outra área, suprema ironia, está às margens da Área de Proteção Permanente (APP). Batizado como Residencial Dona Yolanda Vidal Queiroz, o terreno tem 126.671,38m² e foi preparado com autorização da Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma). Imagens de satélite mostram o tamanho da área desmatada e elevada por meio de aterramento. Uma fonte que preferiu não se identificar, moradora da área, compartilhou conosco vídeos do momento em que as árvores eram derrubadas: “Uma das cenas mais tristes que já vi, pássaros desesperados, dando rasante”. Segundo a Sema, a supressão vegetal atingiu 177 árvores. A Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) autorizou o manejo da fauna - o que envolve a captura, coleta e transporte de animais nativos. Consultada por O POVO, a Secretaria das Cidades, órgão estadual responsável pelo Projeto Dendê, respondeu com nota enfática: “A obra tem todos os licenciamentos nos órgãos competentes e não houve invasão de APP”. Também citaram a compensação ambiental, o “compromisso de plantio de 1.899 árvores em

área a ser definida”. “Reprovo integralmente o processo de desmatamento, terraplanagem e compactação do solo do Residencial Yolanda Queiroz”, diz o biólogo Gabriel Aguiar, membro titular do conselho gestor do Parque Estadual do Cocó e membro do Comitê de Gestão Ambiental da Universidade Federal do Ceará (UFC). Gabriel, que pesquisa a região do Dendê desde 2017, classifica como absurda a escolha daquele lugar para a construção do residencial. “As entidades ambientais não foram ouvidas, o debate não foi tornado público. Agora que a habitação foi consolidada, cabe fazer um manejo integrado de tudo isso, considerando a satisfação da comunidade e o respeito ao meio ambiente”, explica. E quando o assunto é a satisfação da comunidade, as opiniões passam longe da unanimidade. O aposentado Euri Façanha, que convive com a comunidade do Dendê há pelo menos cinco anos, diz que há elogios e reclamações frequentes. “Muitos usavam a mata para caçar e pescar. Agora, estão sem comer. Não conseguem pagar água e luz. Ainda precisam fazer um caminho pro ônibus entrar. Alguns até abandonaram as casas novas, venderam por uma mincharia. Um rapaz abriu uma padaria, mas tem muita dificuldade, os caminhões de entrega nem querem entrar lá”, conta. Entre os moradores que ainda estão no Dendê e aguardam remoção para a nova casa - 600 famílias já foram removidas, outras 480 ainda serão -, as expectativas também não são totalmente positivas. “Tem gente apavorada, muitos não querem ir, têm medo. Na comunidade eles têm seu pezinho de limão, de mamão, pra vender e pra comer mesmo. No residencial não tem nada disso”, conta Façanha. A proximidade dos moradores com o entorno da floresta e a geração de dependência que se estabelece estão ligadas a uma série de prejuízos e benefícios para o meio. “A comunidade da região, sobretudo no

empreendimento, utiliza bastante a floresta e o rio, principalmente para lazer e pesca. Toda atividade humana vai, intrinsecamente, gerar algum impacto”, explica Gabriel. Enquanto algumas pessoas utilizam o espaço para “meditação, contemplação e um lazer respeitoso”, outros “degradam intencionalmente e praticam caça esportiva”. Vários moradores da área compartilharam com O POVO imagens que atestam a interferência do residencial no equilíbrio do entorno. Segundo um deles, durante as chuvas fortes do mês de março as águas do rio Cocó chegaram a aproximadamente 15 metros do tapume de metal colocado para marcar as dimensões do terreno.

Também denunciaram aterramentos de riachos e interferência na faixa de mangues. Façanha disse que, se na baixada do Dendê os moradores estavam habituados aos alagamentos, agora “eles não sabem o que fazer, estão sem orientação nenhuma”. Até agora, não foi registrado nenhum alagamento no residencial, com exceção de um espaço onde crianças costumavam jogar bola na área do mangue. Mesmo assim, moradores temem pelas precipitações de maior porte. Procurada por nossa equipe, a Secretaria das Cidades afirmou que o residencial está fora da poligonal do Parque do Cocó e que todos os cuidados ambientais foram tomados pela Sema.

RESUMO DA SÉRIE

Desde a última quarta-feira, 17, O POVO vem publicando uma série de reportagens especiais sobre a relação entre a situação de nossos recursos hídricos urbanos e os pontos de alagamento frequentes em Fortaleza. A primeira parte mapeou regiões de inundação frequente e explicou o que está por trás desse cenário. A segunda, destrinchou a história do riacho Pajeú, curso d’água fundamental para a história de Fortaleza e hoje quase totalmente canalizado e poluído. Encerrando a série, a reportagem de hoje visita os últimos quilômetros do Rio Cocó e apresenta um projeto de grande impacto que está sendo desenvolvido em seu entorno.

NÚMEROS 1.080 unidades habitacionais previstas 600 entregues 480 em fase de conclusão (previsão para julho de 2019) R$ 108.202.556,12 (Orçamento geral) União R$ 73.344.796,64 Estado R$ 34.857.759,48


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