18 REPORTAGEM Cidades
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SEGUNDA-FEIRA
FORTALEZA - CEARÁ - 4 DE FEVEREIRO DE 2019
EDIÇÃO: FÁTIMA SUDÁRIO E JULIANA MATOS BRITO | COTIDIANO@OPOVO.COM.BR | 85 3255 6248
| NOVA NORMALIDADE | Com a retração da onda de violência, Fortaleza tenta voltar ao seu cotidiano, ainda que, vez ou outra, ataques atravessem os dias. Buscar estratégias para dispersar o medo coletivo é fundamental
Resgate da rotina após onda de ataques JÁDER SANTANA jader.santana@opovo.com.br
A Banquinha da Irmã Maria, na Praça da Estação há quase 20 anos, foi incendiada na madrugada do último dia 7, colocando o Centro na lista dos bairros afetados pela onda de violência que vem varrendo Fortaleza e o Ceará desde o início do mês. O fogo devorou a estrutura de metal, queimou fogão e salgadeira, fez derreter dobradiças e janelas de vidro. No início da semana passada, a vendedora voltou ao trabalho, depois de uma onerosa reforma que sugou suas economias. Irmã Maria é símbolo da Fortaleza que tenta retomar a rotina. Um mês de ataques e 466 pessoas presas por participação nos atos criminosos até a última sexta-feira. Concentrada, sobretudo, em bairros da periferia de Fortaleza, e com ações que escorrem para cidades do Interior, a onda de ataques interferiu diretamente na rotina de pessoas que dependiam do transporte público para se locomover, causou apagões de energia, prejudicou a coleta de lixo e espalhou um clima de medo coletivo reforçado pelo compartilhamento de boatos e informações exageradas. No Centro da Cidade, comerciantes entrevistados pelo O POVO estimam que a queda do movimento nos dias mais violentos foi de 30% a
40%. Para Irmã Maria, a perda foi maior, visto que a banquinha da Praça da Estação era sua única fonte de renda. “Tá pesando no orçamento, porque estou sem trabalhar. Eu tinha só uma reservinha. Tudo o que tinha apurado, estou gastando agora. Tô pedindo fiado, pegando emprestado”, conta ela, que gastou cerca de R$ 4 mil com a restauração da banca, local onde há duas décadas vende coco, café, bolos e salgados para os que esperam pelos coletivos. Irmã Maria, que mora próximo à Avenida Domingos Olímpio, diz que apesar da redução dos ataques o clima no Centro ainda é de desconfiança. A vendedora Vânia Zanovisck, dona de um carrinho de picolé, concorda com a colega e diz que, ela própria, deixou de trabalhar durante vários dias. “Em 15 anos vendendo aqui, é a primeira vez que vejo as pessoas com tanto medo e o movimento tão fraco”, lamenta. A falta de ônibus na primeira semana de ataques obrigou trabalhadores e frequentadores da região do Centro a buscarem formas alternativas de locomoção, implicado gastos que, muitas vezes, não eram previstos. “Nos dias em que faltou ônibus, tinha muita gente pegando táxi, porque não tinha como voltar pra casa. O Centro esvaziou, as lojas fecharam. Agora tá começando a voltar ao normal”, contou o taxista José Alcides Almeida, que tem ponto fixo nas proximidades da Praça da Estação desde 2017.
Até o fechamento desta edição, 36 coletivos haviam sido incendiados em Fortaleza e Região Metropolitana desde o início de janeiro. O presidente do Sindiônibus, Dimas Barreira, disse a O POVO que, apesar da manutenção dos esquemas de segurança policial e de vigilância, e dos desvios estratégicos em áreas mais perigosas, os ônibus já circulam normalmente e em todos os horários. “Meu palpite é que a tempestade está no fim e a paz se aproxima. Fortaleza já vive um clima suportável de segurança e normalidade. Apenas é preciso, ainda, paciência e precaução, pois, com menor intensidade, esta ameaça deve perdurar algum tempo, e atos violentos espaçados ainda podem ocorrer. É sintoma de final de disputa não negociada: o perdedor não se resigna”, comentou. Em entrevista a O POVO, o presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas de Fortaleza, Assis Cavalcante, também confirmou que os comerciantes do Centro vêm sentindo a retração nos ataques e as consequências do retorno à normalidade das rotas de coletivos. “65% das pessoas que vão ao Centro usam ônibus, seja para trabalho, seja para fazer compras. No momento que não têm ônibus, as pessoas ficam impossibilitadas de vir. Tivemos diminuição nas vendas, mas aos poucos estamos voltando ao normal. A população já está saindo de casa. As pessoas continuam consumindo, o Estado precisa recolher os impostos, os funcionários precisam receber seus salários. A vida tem que continuar”, comentou.
FOTOS: MATEUS DANTAS
Em 15 anos vendendo aqui, é a primeira vez que vejo as pessoas com tanto medo e o movimento tão fraco” Irmã Maria, comerciante
IRMÃ MARIA RETORNA ao trabalho após sua banca de vendas, na Praça da Estação, ser incendiada
WEBDOC No dia 4 de janeiro deste ano, uma sexta-feira, o Ceará viveu um dia de terror. Mais de 40 ataques criminosos foram registrados. Passados 30 dias da data emblemática, O POVO lança hoje o webdoc “A onda de ataques no Ceará”. www. opovo.com.br/ videos
Reportagem
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Segunda-feira
Fortaleza - CeARÁ - 4 de fevereiro de 2019
Medo. Exclusão social
Outros bairros. Periferia e área nobre
A violência simbólica Com ocupação dos hotéis em 95% na semana da virada do ano, Fortaleza manteve turismo pulsante durante todo o mês de janeiro. Na avenida Beira Mar e na Praia de Iracema, dois dos espaços com maior concentração de turistas na Cidade, as notícias de violência parecem não ter afetado a rotina dos visitantes. É o caso do chileno Sebastián Diez, que chegou à Capital há pouco mais de uma semana, assustado com a situação que vinha acompanhando pela internet, e encontrou hospitalidade e segurança pelos espaços que visitou. “Antes de chegar, vi que estavam explodindo pontes e queimando ônibus. Entendi que tinha a ver com as reformas impostas pelo Bolsonaro e também com o problema com o narcotráfico. Fiquei com medo, por tudo o que escutei. Mas não imaginava que Fortaleza era tão grande, e acabei achando tudo bem tranquilo. As pessoas são amáveis, me sinto seguro. Ouvi uma explosão, fui à varanda, mas não vi nada. Mudei minha impressão”, conta ele, que está hospedado no Meireles. Quem também caminhava pelas calçadas do bairro no dia da visita do O POVO era a diarista Helena Santos, que sai do Siqueira duas vezes por semana trabalhar em residências da região. “Sofri muito com a falta de ônibus. Deixei de vir trabalhar, porque táxi saía muito caro, muitos motoristas subiram o preço. Por lá, a gente estava com medo, mas por sorte eu não vi nada. Mesmo assim,
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A sensação coletiva
estamos assustados, porque tem o deslocamento pela cidade. Mas aqui na Beira Mar tudo parece muito tranquilo”. Os problemas da locomoção interrompida acabaram atingindo toda a cidade. A falta de ônibus comprometeu, inclusive, o funcionamento de equipamentos que passam ilesos pela onda de violência, como o Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ). Uma fonte ligada ao local contou que o horário de funcionamento do Centro foi reduzido: antes, permanecia aberto até as 21 horas; agora, as portas são fechadas às 17 horas. “Fazemos isso como prevenção. Mesmo com os ônibus já normalizados, as pessoas têm medo de sair tarde e ficarem presas na volta pra casa, no caso de acontecer alguma coisa”, revelou. Na Barra do Ceará, um dos bairros mais atingidos pelos ataques das últimas semanas, até os moradores que não presenciaram atos de violência se sentem acuados. Também pedindo sigilo, um morador conversou com O POVO sobre a situação. “A gente percebe o reflexo disso tudo nos jovens. Eles ficam bem agitados, inquietos, naquele estágio pré-guerra. E tem uma parada hierárquica: vem uma voz de comando e eles executam. E aí tá rolando muito o problema das ruas escuras, com as luzes quebradas, o toque de recolher, os comércios fechados. Isso acaba gerando incômodo e revolta entre os moradores que não participam do tráfico”, explica. Segundo nossa fonte, a GDE,
facção que domina o bairro, procura “gente nova” para sua formação. “É uma galera que foi instrumentalizada pelo PCC. A galera que tá à frente é muito novinha. E os jovens falam abertamente que são faccionados, porque é um elemento identitário, quase uma insígnia. Por isso eles conseguem ter uma penetração tão grande com os jovens, porque dão uma bandeira pra esses meninos”, conta. Mas ao medo coletivo e à ação das facções aparecem pequenas resistências. “É um lance muito massa essa questão da solidariedade, como a periferia tem esse processo de cooperação entranhado. É o menino que tem uma moto e sai deixando os vizinhos no terminal, é o porteiro que espera a faxineira pra irem juntos pra casa. Eu percebo que a galera tá cansada de ser subjugada, de ser controlada. Há um cansaço e uma revolta principalmente entre as pessoas que não optaram pela vida do crime. As pessoas aprovam a polícia nas ruas. O que a gente mais vê é o desejo de atravessar tudo isso”, resume.
466 pessoas foram presas por participação nos atos criminosos até sexta-feira
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65%
ônibus foram incendiados em 2019
das pessoas que vão ao Centro usam ônibus
APÓS um mês do início dos ataques, a Cidade tenta voltar à normalidade
“Aqui, a gente não viu nada, nem polícia e nem bandido, está tudo tranquilo. Mas tem esse medo generalizado, todo mundo comentando. Estamos toda hora olhando as notícias, tentando ficar a par da situação”, contou ao O POVO a vendedora Adriana Campos, que trabalha em uma loja de material de pesca na rua Conde d’Eu, no Centro. Duas quadras depois, na mesma rua, Marcos Antônio, caixa em um estacionamento, também disse que não havia presenciado atos de violência, mas que “o pessoal anda comentando que está com medo”. Segundo Marcos, o movimento no estabelecimento teve redução de 30% em relação aos dias de normalidade. Um dos mais importantes filósofos do século XX, o britânico Bertrand Russell, prêmio Nobel de literatura em 1950, escreveu em seus ensaios que o “medo coletivo estimula o instinto de rebanho e tende a produzir ferocidade contra aqueles que não são considerados como membros do rebanho”. Trazendo para a Fortaleza de 2019 o silogismo de Russell, é possível analisar as relações de exclusão social que se impõem e o processo de invisibilização - e posterior reconhecimento “criminoso” - a que as classes menos favorecidas são submetidas. “Na psicologia, a gente vê o medo da violência como operador político e também atuando diretamente na forma como as pessoas se constituem”, explica o mestre em psicologia Luis Fernando Benicio, pesquisador
do Grupo de Pesquisas e Intervenções Sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação (Viese) da UFC. “O medo tem feito pessoas ficarem acuadas, não circularem nos seus bairros”, acrescenta, chamando atenção para o fato de que esse problema já existe há muito mais tempo nas periferias. “Quem tem ficado refém da dinâmica de violência na cidade é a periferia. Dentro de um perímetro, se criam várias zonas, e as pessoas não circulam por determinados lugares, não acessam direitos básicos. Os moradores não ultrapassam essa linha, e tudo isso vai produzindo formas de viver, uma naturalização e banalização da violência”, explica. O estabelecimento dessa dinâmica paralela acaba criando, em quem vê de fora, referências negativas, “como se a onda de violência fosse produzida apenas em um certo território”. O boom da violência percebido nas últimas semanas gerou, segundo Luis Fernando, uma espécie de deslocamento dos lugares: “Primeiro pelo regime de invisibilidade, porque pra muita gente, até para o poder público, essas ameaças não existiam”. Nesse cenário de eclosão, tornou-se possível perceber que o pesquisador chama de polifonia de vozes. “A ameaça não vem de um único núcleo. Podem ser várias vozes dentro das organizações. A sociedade de alguma forma entendeu que os integrantes desses grupos podem estar em bairros privilegiados”.
Estratégias. Ação social
Para voltar à normalidade Sobre formas de voltar à normalidade e as estratégias para desviciar a percepção, o pesquisador Luis Fernando Benicio chama atenção para o constante processo de constituição a que o homem está submetido - com mudanças que não se operam da noite para o dia. Nessa constituição, tudo influi: a dinâmica da política, a geografia, a forma como a cidade é desenhada, os referenciais do que é saudável, os direitos que são postos. Se a todo momento estamos em um momento de constituição, logo pode-se entender que tudo isso pode ser revertido, esse status quo, essa banalização da violência, esse medo exacerbado do outro”. O especialista cita como exemplo de banalização e fortalecimento de estereótipos a proposta dos programas policiais nos canais de televisão. “Às vezes é tudo tão naturalizado que a própria comunidade acaba legitimando e acreditando naquela violência. Precisamos discutir com a comunidade, de forma participativa, não só a desconstrução desse estigma, mas também o enfrentamento à violência”, explica. Também cabe à parcela da população que vive deslocada da periferia, conforme avalia Luis Fernando, a tarefa de desconstruir arquétipos. “Um primeiro deslocamento pra quem não está nesses lugares é dialogar. Temos a referência da violência, mas não dialogamos com a vida que pulsa ali. Não prestamos atenção na juventude que se organiza por meio da arte, da
poesia, dos esportes. E isso tem tudo a ver. A forma como organizamos a cidade é baseada no desencontro com essas pessoas. São os condomínios ao invés dos espaços de convivência. O que sobra é uma segregação espacial que não nos deixa ver aquelas pessoas com outros olhos”. Em relação à segurança pública, Luis Fernando busca, na psicologia social, critérios que podem guiar a transformação no modo de lidar com a violência: “Se entendemos que é uma questão de enfrentamento a partir de armas, viaturas, mais presídios, mais encarcerados, temos uma resposta mínima”. Também critica o discurso “tradicional e neoliberal” de que o indivíduo, quando quer, consegue mudar de vida: “É uma falácia. Você não consegue caminhar quando precisa dar conta de questões elementares de sobrevivência”. Uma melhor saída, segundo ele, seria construir uma aproximação mais interessada. “A política pública não aprende que é preciso, primeiro, escutar os moradores, saber como eles têm lidado com tudo isso. É ver o diálogo enquanto investimento político. A gente tem percebido, nos últimos anos, redução de investimento em várias áreas e a não continuidade de projetos importantes. As facções garantem ao jovem determinado lugar social que o mercado de trabalho não garante. A prevenção vem antes, com direitos. Esse conjunto de pistas pode nos ajudar a pensar novos caminho”, conclui.