Jamilla Barroso - Síndrome de Down

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Foto: Bertrand Linet


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Síndrome de Down


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Muito se falou até aqui a respeito dos portadores da síndrome de Down, que já representam mais de 14% da população do Planeta. Avanços aconteceram e, hoje, eles começam a integrar, muito timidamente, espaços na sociedade e a ser mais bem aceitos e compreendidos por seus familiares. No entanto, o preconceito ainda é grande.

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Eles vivem num mundo peculiar, e isso, não por simples escolha. É certo que o trabalho com essas crianças precisa ser especial em todos os setores da vida: na saúde, na educação, no comportamento, no estilo de vida. As famílias dessas crianças se deparam, a cada passo, com enormes dificuldades e, na maioria das vezes, precisam de suporte financeiro e emocional para cuidar de um membro que se apresente com a síndrome.

Sensibilizo-me bastante com esses casos, e cheguei à conclusão de que algo poderia ser feito, de muito bom, para elas. Comecei a estudar o comportamento, o controle motor, a respiração, a mastigação, como elas se alimentam, como é o processo digestivo, a articulação da palavra. Essa correlação com a forPassei, então, a analisar o ma- ma peculiar dos portadores da ciço facial, a calota craniana, a forma síndrome acarreta uma porção clássica do rosto, o posicionamento considerável no maciço facial, que do músculo da língua dentro da cavi- vem modificar a função perfeita da dade oral, o posicionamento do osso co-relação entre caixa craniana/ mandibular na cavidade glenoide, a maciço facial, conjugação do osso forma anatômica dos ossos da maxi- da mandíbula e sua interação com la, as suturas, a conformação óssea do a cavidade glenoide. palato e os ossos próprios do nariz.

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O maciço facial dos portadores da síndrome de Down é impulsionado para dentro da calota craniana, dando a sensação de afundamento da face. A sutura da pirâmide nasal com o osso frontal também segue esse padrão, acompanhado pelo osso malar e ossos próprios do nariz, diminuindo, assim, o espaço da cavidade oral. Os ossos parietais e occipitais não apresentam a convexidade tradicional da calota craniana. Chego à conclusão de que esse modelo anatômico, tão peculiar aos portadores da síndrome de Down, é um dos responsáveis diretos pelo aprisionamento da massa cerebral. Concluo, com meus conhecimentos de cirurgiã-dentista, que acredito, terão uma contribuição valiosa para que os pesquisadores e neurologistas possam avançar dentro dos meandros dessa área.

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Essa conformação óssea, creio, provoca desordens na morfologia da massa encefálica. É sabido que as vilosidades do cérebro dos portadores dessa síndrome são mais lisas, sugerindo que o aprisionamento propicie essa situação, danificando importantes áreas da função cerebral. Alio essa tese ao comportamento desses pacientes. Toda a função motora deles é alterada e a fala comprometida. Eles possuem dificuldade para deglutir, a cabeça do côndilo é modificada, a cavidade glenoide mais retilínea, dificultando o abrigo do côndilo. O andar dos portadores dessa síndrome também é modificado. Precisamos pensar na cadeia que é a máquina do nosso corpo e na sua sincronia. Nosso cérebro é a caixa de máquina central de tudo, e emite o comando de nossas atitudes e ações. Sabemos que muito há para se descobrir; não podemos desprezar determinados conceitos. Dentro dessas observações, introduzi a técnica que venho desenvolvendo há três décadas, em prática. Levando em consideração que a massa muscular posicionada corretamente conduz o osso mandibular à posição ideal, e esse osso, nos portadores da síndrome de Down, trabalha de forma incorreta e que a posição desse depende do posicionamento das peças dentárias, comecei então a analisar o caso clínico desses pacientes. É um projeto muito arrojado. 299


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Dei início aos exames de Raios X.

No exame da articulação, observa-se o posicionamento dos côndilos, sua anatomia e a aparente fragilidade da cabeça do côndilo e do ramo da mandíbula.

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A Radiografia Panorâmica

Observar a falta de proporção no tamanho dos arcos em relação às proporções faciais.

O aspecto radiográfico das peças dentárias é de normalidade no que tange à sua morfologia e implantação, levando-se em consideração a saúde geral dessa paciente e tudo que envolve seus hábitos, seu estilo de vida, a dieta e, principalmente, a função do sistema estomatognático.

Os portadores da síndrome de Down não conseguem mastigar, triturar os alimentos. A função das peças dentárias é equivocada. Os ligamentos não atuam corretamente, e isso causa transtornos nas estruturas periodontais. Logo, o prognóstico após a correção dessa função é bom. O acompanhamento deve ser severo pela periodontia.

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Observar a incompatibilidade nas proporções dimencionais entre maxilar superior e inferior

Modelos de estudo

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Montagem provisória

Conclusão do caso

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Expansão da maxila, trabalhando o direcionamento da força nas mesas dos dentes posteriores (Houve um cuidado máximo com o eixo das raizes, para que a força não fosse desviada)

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A cavidade oral, entre tantas funções que desempenha, é responsável pelo início da digestão, muitas vezes tida como sua principal função. Tudo é muito importante na engrenagem humana. O interior da cavidade oral é uma caixa que faz a acústica dos sons que emitimos; a qualidade do som depende dessa caixa, que por sua vez abriga a língua. Observar a forma do palato, o tamanho do arco – pequeno para a proporção da língua, impedindo a qualidade de articulação da palavra.

O posicionamento e o tamanho dos dentes impedem que o trabalho da língua seja associado à saída e à entrada do ar e, assim, promova os sons de maneira correta e agradável. A cavidade desse paciente possui pouquíssima altura; observar espaço promovido pelos arcos. A extensão dos arcos não é compatível com o tamanho da língua.

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Já que a cavidade oral, na sua intimidade, é pequena, esses pacientes apresentam pouco controle da língua, e essa, vez por outra, fica caída para fora da cavidade, como se fosse um sinal de cansaço. Todos esses sintomas sugerem a intervenção da Odontologia, atuando severamente na fisiologia funcional. Chego à conclusão de que só esse protocolo, que na verdade é um conjunto de ações, pode tirar o portador da síndrome de Down dessa situação. Apenas o dentista tem como recuperar, após o nascimento, esse pa- Após essa análise, podemos concluir que a ciente. Tudo gira em torno de muita comple- respiração também fica muito comprometida, forçando uma respiração bucal, causando os xidade, mas o sucesso da ação é certo. males do nariz, ouvidos e garganta. Os portaO portador da síndrome de Down é dores dessa síndrome encontram mais conforto um ser singular, especial na plenitude da es- mantendo-se com a boca aberta. sência humana. É urgente que pais, educadores e segmentos de saúde voltem-se para os portadores dessa síndrome, que representam mais de 14% da população mundial, com um foco diferente do que até aqui ocorreu. Como podemos ignorar um número tão grande de pessoas e simplesmente enquadrá-las como excepcionais, adjetivando assim no sentido da inferioridade? Esses pacientes possuem uma sensibilidade própria – e digo superior, já que são seres puros, íntegros e isentos de censura. O universo do portador dessa síndrome distancia-se dos demais por nosso comportamento com relação a ele; por isso, cabem reflexões pessoais e mudanças para que haja uma integração. Dessa forma, a troca será rica e gratificante.

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A capacidade desses seres e a performance das atitudes comportamentais apresentam variantes que diferem do nosso universo. Quando a totalidade dessa compreensão acontecer, muitas mudanças vão emergir nos dois universos que o homem insiste em evidenciar. O portador da síndrome de Down vivencia, no seu cotidiano, a discriminação desde sua chegada ao seio familiar. A conscientização precisa acontecer em toda a amplitude social e ir caminhando até as escolas, para que essas crianças percebam-se iguais, integrem-se na sociedade. Partindo desse ponto, iremos mesclando mais um rico componente da criação divina.

Sabemos que um cromossomo é diferenciado do que classificamos normalidade; no entanto, minha experiência aponta para magníficos resultados físicos e comportamentais. Pude viver a dificuldade e o sofrimento que o portador dessa síndrome carrega – sua consciência corporal é completa. As respostas obtidas com a evolução do trabalho não diferem em nada de casos convencionais já resolvidos por mim durante essas três décadas de pesquisas, quando busco a integração da máquina orgânica ao sistema estomatognático e sensorial. 307


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Foi emocionante ouvir: ”Agora respiro melhor; posso mastigar; estou me sentindo muito bem.” A auto-estima brotou tão rapidamente, a atitude corporal mudou, a máquina incorporou-se a esse novo padrão. Constato que esses pacientes gritam por ajuda. Sinto-me gratificada por ter conseguido perceber que nós podemos tirá-los de uma condição que os torna diferentes, já que eles representam uma minoria. A consciência corporal é magnificamente plena. Eles se debatem como peixes fora d’água para respirar, falar ou comer. O intelecto é variante como o de toda a espécie humana; assim as variantes do sofrimento acontecem. Também a alegria, a tristeza, os desapontamentos e decepções culminam com a vontade e o desejo da compreensão e da aceitação. Eles explodem de amor, e a alma guarda um grito de socorro, enquanto o mundo que os cerca ignora-os, não os compreende, pura e simplesmente, discrimina-os. A história da humanidade está envolvida por questionamentos científicos, morais, políticos e éticos. A disputa constante entre o bem e o mal, o certo e o errado. Como pano de fundo, a exclusão. Os portadores da síndrome de Down estão inseridos nesse contexto. Eles silenciam, percebem, sentem-se desprotegidos e impotentes diante de conceitos cristalizados por comportamentos da maioria que os cerca.

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Constatei, claramente, com os cuidados que pude dispensar à transformação física, a face muito próxima da maioria dos demais, a facilidade na comunicação – já que a articulação da palavra torna-se pouco clara por uma situação mecânica –, que é possível a correção óssea pela movimentação da Articulação Temporomandibular.

A cada dia mai ela irá se integrar. Assim, seu cotidiano será muito próximo dos demais, e os profissionais da área de saúde, em conjunto, poderão mudar a vida desses pacientes. Muita coisa pode ser feita. Guardo ainda um projeto para iniciar o trabalho com esses pacientes quando bebês, para que o desenvolvimento craniofacial ocorra fora da vida intra-uterina.

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Não podemos brincar de Deus, mas é possível trabalhar ortopedicamente dentro da cavidade oral dessas crianças. Dessa forma, elas irão desenvolver as atitudes mais banais praticadas por nós, ditos “normais”, que para um bebê com síndrome de Down torna-se uma ação de muito sacrifício (tais como a deglutição, a respiração,

entre outras); e seu sofrimento será infinitamente menor. Com a divulgação desse trabalho, confio na mudança do olhar para os portadores da síndrome de Down. Acredito seriamente na tomada de consciência da função do ato de mastigar, ocluir os dentes, falar e respirar. Podemos fazer isso. Para esses seres, será a mudança em suas vidas e na daqueles que os cercam.

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