Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS - Edição 90

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ENTREVISTA Diretor do filme Nunca Me Sonharam fala ao Projétil sobre os dilemas da educação no país p.09

PANORAMA REGIONAL

DUPLA FACE Reportagem Fotográfica revela contraste entre ensino em escolas públicas e privadas

A busca pela Ciência nas escolas públicas de MS; Educação Inclusiva como referência no Brasil

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PROJETIL

JORNAL LABORATÓRIO JORNALISMO UFMS

EDUCAÇÃO, DIREITO OU MÉRITO?

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#ano 23 - 2018.1 DISTRIBUIÇÃO GRATUITA


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editorial

Educar, verbo intransitivo Texto: Equipe Projétil Edição 90 | Foto: Lyanny Yrigoyen

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evar às ruas mais uma edição do jornal laboratório Projétil, um dos mais tradicionais veículos de comunicação de Mato Grosso do Sul, constitui, em mesmo grau, uma gratificante conquista e uma grande responsabilidade. Pudera! O jornal chega no primeiro semestre letivo de 2018 à sua edição número 90, em 29 anos ininterruptos de publicação. Neste período de quase três décadas, como não poderia ser diferente, o veículo passou por diversas mudanças gráficas e editoriais. Sem deixar de cumprir seu papel social com responsabilidade e senso crítico, abordando temáticas latentes e necessárias ao debate público. Afinal, o veículo – como atividade curricular de uma Universidade Pública – é financiado pela própria sociedade. O tema desta edição – a Educação – faz jus à responsabilidade. O desejo é de que o jornal possa ser lido e aproveitado por alunos e professores, uma forma de retorno à sociedade que o financia. A edição contou com um longo exercício preparatório. Primeiro, um debate interno a partir do documentário Nunca Me Sonharam, dirigido por Cacau Rhoden, sobre as escolas públicas. O cineasta, aliás, estampa a seção Aspas, com uma entrevista exclusiva. Na sequência, ocorreu um importante trabalho de imersão realizado na Escola Estadual Manoel Bonifácio Nunes da Cunha, que proporcionou subsídios para os temas e a linguagem desta edição. Não por acaso, a equipe da Escola Estadual foi convidada a ocupar a seção Extramuros, voltada à opinião da comunidade externa. A responsabilidade aumenta ao aceitar-se atender a demanda de estudantes e professores do Curso de Jornalismo da UFMS de reformular gráfica e edi-

torialmente o Projétil. Editorialmente, adotou-se um sistema de trabalho estruturado tanto em equipes de reportagem quanto em equipes transversais, simulando o organograma de uma redação jornalística. A alteração gerou uma nova sistemática de produção que apresentou como resultado mais efetivo a capacidade da turma de 36 estudantes de trabalhar em equipe. Fruto de um espaço de experimentação, o jornal passou a valorizar ainda mais a alteridade como lema, colocando em pauta não somente a diversidade de fontes e perspectivas, mas também a valorização de diferentes gêneros e formatos jornalísticos. Esta edição abre terreno para reportagens em texto e fotografia, artigos analíticos, crônicas, entrevista e uma narrativa baseada em dados e infográficos. Do ponto de vista gráfico, o redesenho do Projétil seguiu não apenas um anseio dos estudantes, mas uma atenção às mudanças constantes acarretadas pelas novas tecnologias. Iniciou-se uma discussão sobre os pontos positivos e negativos do antigo jornal, e a partir de um estudo de referências, análise do conteúdo e discussão aprofundada sobre os elementos e disposições mais relevantes ao novo formato, propôs-se um projeto gráfico elaborado coletivamente. Um projeto amplificado, com espaços de respiro e hierarquia clara, capaz de valorizar a informação imagética e textual, e manter a identidade de forma dinâmica. Chega-se, assim, com a cara e o fôlego renovados, ao final de mais uma edição. Uma verdadeira sensação de dever cumprido! Boa leitura!

Turma de Jornalismo 2019, responsável pela edição

EXPEDIENTE Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - 2018.1. Produzido por acadêmicas e acadêmicos do 5º semestre de Jornalismo sob orientação dos professores Marcos Paulo da Silva (Jornal Laboratório II) e Rafaella Lopes Pereira Peres (Tópicos Especiais em Jornalismo II e Planejamento Visual). Editoria Executiva: Jean Celso, Jhayne Lima, João Lucas, Mylena Fraiha e Rafaela Flôr. Editoria de Arte: Gabriela Mary, Leticia Marquine, Monique Faria, Renata Barros, Thalia Zortéa e Thalya Godoy. Editoria de Imagem: Ethieny Karen, Julisandy Ferreira e Lyanny Yrigoyen. Editoria de Opinião: Dândara Sabrina Genelhú, Jéssica Vitória, Marco Antônio Cruz, Pâmela Machado e Tábata Rauschholb. Ilustração: Accacio Mota, Maria Angélica Chiang (capa), Mayckon Oliveira, Natalia Hirata, Raposo Gomes e Selma Tereza, sob orientação da Professora Constança Lucas (Artes Visuais). Reportagem: Amanda Franco, Ana Rigueti, Ana Karla Flores, Caio Teruel, Danielle Matos, Fernanda Venditte, Guilherme Brasil, Julia Renó, Lethycia Anjos, Luciano Pinheiro, Lu Souza, Mara Cristina Machado, Mariana Alvernaz, Monique Faria, Thiago Rezende, Thiago Spila e Vitória Oliveira. Correspondência - Jornal Laboratório Projétil - Curso de Jornalismo - Faculdade de Artes, Letras e Comunicação (FAALC) - Cidade Universitária, s/n, CEP 79.070-900 - Campo Grande, MS. Fone: (67) 3345.7607 - e-mail: jorn.faalc@ufms.br (Jornalismo UFMS).

As matérias veiculadas não representam, necessariamente, a opinião da UFMS ou de seus dirigentes, nem da totalidade da turma.


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opinião

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Futuro a leilão Texto: Tábata Rauschkolb | Ilustração: Raposo Gomes

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Proposta de Emenda à Constituição 55, conhecida como PEC dos Gastos, foi aprovada pelo Congresso Brasileiro em dezembro de 2016. As votações ocorreram em tempo recorde nas casas legislativas, marcadas por discursos fatalistas e um processo de pouco ou nenhum debate sobre as consequências para as gerações futuras. A proposta estabelece o regime fiscal em voga no país e afirma que as “despesas” do Estado não podem ultrapassar o valor gasto no ano anterior, salvo a correção inflacionária. A medida coloca o ano de 2017 como período base e se prolonga por mais 20 anos. Entre as justificativas para aprovação destacam-se o descontrole das contas públicas, a inflação eminente e a disseminação da ideia do “conserto de um país largado ao caos”. O linguista norte-americano Noam Chomsky afirma que o caminho mais curto para a destruição de uma instituição é simples: extraia seus fundos. O argumento de Chomsky beira ao óbvio, mas carrega uma conhecida fórmula da política neoliberal presente em diferentes partes do mundo: o sucateamento de serviços públicos. Se consumada a perspectiva do crítico, a melhor forma de fazê-lo entrou em ação no Brasil com a aprovação da PEC 55. A Constituição Brasileira de 1988 é conhecida como “constituição cidadã”. A alcunha vem do caráter protetivo que carrega pelos direitos sociais, como a ênfase em que a Educação é um direito social assegurado a todos os cidadãos. Como direito, a Educação é responsabilidade do Estado,

que deve garantir o acesso e a qualidade na formação dos indivíduos. Um país que ainda trava batalhas para conseguir alcançar o mínimo necessário em infraestrutura, quando aprova uma medida que congela seu orçamento público por 20 anos, abre mão do futuro, abdicando da autonomia de seu povo. A equação para entender a ideia é elementar. A Educação simplesmente não acontece. Todavia, se atualmente não é possível, por opção econômica, como poderá ser mantida ou implantada com o crescimento da população? A PEC estabelece a limitação do orçamento, ou seja, significa que por mais que população brasileira cresça, a verba para financiá-las permanecerá congelada. A expectativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é de que até 2025 a população cresça em 10 milhões no país. Serão 10 milhões de pessoas que vão necessitar de Educação e devem ter seus direitos preservados. Será possível ensinar mais gente com cada vez menos? O Brasil já coleciona fracassos na Educação há muito tempo. O Plano Nacional da Educação (PNE), de 2014, estabelece metas para o ensino no país. Não obstante, das 20 metas para 2017, apenas seis tiveram sucesso, segundo o Observatório do PNE. Uma delas afirma que até 2016 o Brasil deveria matricular todas as crianças de 4 a 5 anos. Dados do IBGE de 2018 revelam que cerca de 10% destas não estão no ensino formal, o que representa meio milhão de crianças sem alfabetização adequada de acordo com os preceitos constitucionais.

O Plano previa um aumento gradual no investimento em Educação, chegando a 7% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2019. Somente em 2018, de acordo com a Lei Orçamentária, entretanto, a redução no investimento foi de 32% por conta da PEC. Atualmente, o Brasil investe 4,9% do PIB em Educação, o que está distante da meta básica. Isso sem contar a meta para 2024, que é de 10% do PIB para educação. O resultado não será nenhuma surpresa. Países que aderiram a políticas austeras semelhantes às estabelecidas no Brasil, como a PEC 55, tiveram que rever suas estratégias em pouco tempo. É o caso da Grécia, que após a aprovação de duras medidas de austeridade acumulou altos índices de desemprego e subempregos, chegou a atingir 2,5 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza e mais de 55% da população ativa desempregada em 2015. Um país que encara a Educação como despesa que pode ser futilmente remanejada, não se mostra uma nação comprometida com seu povo, seu futuro e sua base fundadora, a Constituição. Pensar políticas públicas é muito mais do que decidir como e onde deve-se alocar os recursos financeiros. Trata-se de um compromisso de longo prazo, uma promessa feita às gerações futuras. A Educação não se constitui uma simples rubrica passível de cortes, constitui-se um direito social e deveria ser tratado como tal.

tabatacendy@gmail.com


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Foi por escolha? Cerca de 1,5 milhão de jovens entre 15 e 17 anos não frequentam a escola no Brasil; Mato Grosso do Sul apresenta estatísticas alarmantes de evasão Texto: Amanda Franco | Ana Karla Flores | Caio Teruel | Lethycia Anjos

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om olhos atentos ao entra e sai de pessoas e ouvidos aguçados para responder prontamente às perguntas rotineiras de “quanto é” ou se “tem de outra cor”, Thalys Albertino não sossega um minuto. Em meio ao calor abafado e ao trânsito de pessoas que não cessa, o jovem de 19 anos realiza sua função de vendedor por longas dez horas, das 8h às 18h, em um box no Camelódromo de Campo Grande (MS). Avistado de longe, o rosto jovem e os cabelos loiros até os ombros chamam li-

teralmente quem passa em frente à loja, atraídos por caixinhas de som, luminárias e outros produtos Made in China. O vendedor cumpre sua função rotineira como um bom funcionário há mais de um ano, logo que abandonou os estudos, aos 18. A experiência no dia-a-dia no mundo do trabalho informal – “levando a vida”, como ele mesmo diz – permite que adquira seus bens de consumo. Thalys é um dentre os milhares de jovens brasileiros que não terminaram o Ensino Médio. No início, o traba-

lho se deu por necessidade financeira. “Precisava ajudar minha mãe em casa, que sozinha não estava dando conta”, relembra. Tentou, até onde conseguiu, conciliar estudo e trabalho. As dificuldades, porém, eram inerentes, a começar pela necessidade do transporte público. “Quando não me atrasava para o trabalho, me atrasava para as aulas”, conta. Quando viu que não conseguiria casar os estudos com sua função no camelódromo, decidiu finalmente parar com a escola.

- Mas minha irmã voltou pra casa, até dá pra conciliar os dois agora. - E você não foi atrás de conciliar, né? - Não. Agora só ano que vem. – E ri, com um sorriso de quem, talvez, até volte a estudar. Romper com a comodidade é agora o seu desafio. Thalys é exemplo de uma parcela considerável dos jovens que, por algum motivo, não terminou os estudos. As razões para casos como esses são das mais diversas possíveis. Dificuldades financeiras na família, falta de atrativi-


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Dados do Censo da Educação Básica de 2017, divulgados pelo Ministério da Educação (MEC) em janeiro de 2018, mostram que o país possui 48,6 milhões de alunos matriculados da Educação Infantil ao Ensino Médio em 184,1 mil escolas, sendo 83% delas públicas. Como nos outros ciclos, as matrículas do Ensino Médio – etapa considerada um dos maiores obstáculos da educação brasileira – tiveram queda em 2017: foram registradas 7.930.384 matrículas, o que representa uma regressão de 2,5% em relação às matrículas de 2016. O quadro, no entanto, não remete necessariamente a um contexto de evasão. O censo revela que a queda é motivada por dois fatores: a melhora no fluxo escolar, com taxas de aprovação mais positivas, e – exclusivamente no caso do Ensino Fundamental – a redução do número de crianças no país. Ainda assim, o que se esperava era um movimento de inclusão devido ao fato de cerca de 1,5 milhão de brasileiros de 15 a 17 anos não frequentarem a escola, número que representa 15% do total de jovens dessa faixa etária.

O cenário atual

De início, as faltas são eventuais, por vezes em decorrência da estrutura social e econômica do jovem, que precisa auxiliar a família, seja em casa ou no trabalho. Depois, frequentar a escola passa a não ser mais parte da rotina. Essa situação é vivida por alunos que fazem da evasão uma realidade comum nas escolas do Brasil. Os números a respeito desse fenômeno revelam um cenário preocupante quanto aos jovens entre 15 e 17 anos que pararam de estudar.

Outro levantamento, realizado pelo Instituto Ayrton Senna e pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), revela resultados também alarmantes: 2,8 milhões de jovens, entre 15 e 17 anos, não se matricularam no começo do ano letivo de 2018. Isso significa que, do total de 10 milhões de jovens, 27% não estão na escola. O professor Antônio do Nascimento Osório, doutor em Educação e docente da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), explica que, do ponto de vista histórico, uma grande característica do Ensino Médio no Brasil é o fato de tradicionalmente ter sido foco de reformas educacionais em sucessivos governos. Na primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, datada de 1961, o então Ensino Primário era composto por quatro anos e o Ensino Médio por dois ciclos, sendo quatro anos de Ginásio e três de Colegial. Após o golpe militar de 1964, o Ensino Fundamental passou a ser chamado de Primeiro Grau – com duração de oito anos – e o antigo Ensino Médio passou a ter duração de três. Além disso, o regime de exceção instituiu a obrigatoriedade da profis-

sionalização em função do discurso do “milagre brasileiro”. Osório ressalta que a educação vive uma situação difícil, pois o Ensino Médio sempre foi um “câmbio” na sociedade brasileira. “Primeiro, por conta de que as pessoas não estão preparadas para fazê-lo e há muito conhecimento fragilizado no Ensino Fundamental. Segundo, por conta de que hoje a sociedade brasileira está muito mais pobre, então os jovens têm que se inserir no mercado de trabalho”, explica. Liliam Caldeira, doutora em Políticas Públicas de Educação de Jovens Adultos (EJA) e professora da UFMS, explica que, no país, a obrigatoriedade de escolarização no nível da educação básica é determinada pela faixa etária de 4 a 17 anos, incluindo o período que compreende o ensino médio, quando não há alterações na idade e série. A professora complementa que historicamente as reformas pelas quais o ensino médio passou não tem assegurado que a exclusão do jovem seja esclarecida. “Isso se deve ao fato de que as questões mais amplas de desigualdade social contribuem decisivamente para essa realidade de desengano no que Gabriela Mary

dade com os estudos, ausência de boas escolas, ou seja, causas não faltam para compor cenários assim. Em outro box, é possível ver mais um modelo dessa situação: Laura, também de 19 anos. Exercendo a mesma profissão que Thalys, ela ganha o dia com a venda de roupas e malas. A moça negra, de fala mansa e arrastada, a princípio conversa sentada e com desconfiança. Diz que sua motivação para largar os estudos foi outra: a autonomia. Queria parar de depender dos pais, ter seu próprio dinheiro e iniciar no mundo do trabalho. Dito e feito. Aos 15 anos, mal iniciara o Ensino Médio e já encerrara o caminho. Com o apoio da mãe, a decisão foi aceita rapidamente. “Como não gosto mesmo de estudar, ela falou: ou eu trabalhava ou estudava. Então, segui trabalhando”, explica a vendedora. Diferentemente de Thalys, Laura fechou a porta para o ensino formal há um tempo considerável. “A última escola que eu estudei? Pera aí...faz tanto tempo”, tenta lembrar da instituição de ensino por onde passou. Com uma irmã graduada em Educação Física e outro na reta final do Ensino Médio, sua decisão se tornara livre de qualquer pressão externa. Não há necessidade, em seu caso, de ajudar a família ou outra justificativa semelhante. - Você pretende voltar a estudar, Laura? - Sim. - Quando? - Quando me der na telha.

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Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) e Fundação Abrinq


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tange o Ensino Médio no Brasil e seus sujeitos educandos em idade para tal”, diz. No panorama brasileiro, Mato Grosso do Sul liderava em 2015 o ranking nacional de evasão escolar. Conforme a última edição do estudo “Cenário da Infância e da Adolescência no Brasil”, da Fundação Abrinq, o estado é o que possui o maior número de jovens de 15 a 17 anos fora da escola. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) e mostram que 22% dos jovens nessa faixa etária não estudam, um total de 26.952 adolescentes. A taxa de abandono do Ensino Médio em Mato Grosso do Sul foi de 8,1% em 2016. Já em Campo Grande, a taxa foi de 9,4%, com 2,8% a mais que a média nacional, de 6,6%. O levantamento feito pela ONG Todos pela Educação, também com base nos resultados da Pnad, revela que 65,5% dos jovens com 16 anos concluíram o ensino médio em 2015 no Estado e que apenas 50,5% dos estudantes voltaram à escola para concluir os estudos.

Um caso

Matheus Dias, 18, interrompeu os estudos em maio. Estava no segundo ano do Ensino Médio quando decidiu ter o próprio dinheiro e não depender mais dos pais. Agora, o jovem ganha dinheiro na tapeçaria do avô durante o dia e, no período noturno, entrega pizzas pela cidade de Campo Grande. O rapaz ilustra a realidade de muitos jovens brasileiros. Ele passa o dia inteiro fora de casa. Quando mal termina o primeiro turno de trabalho, já ingressa em outro. “Minha rotina é de casa para o serviço, do serviço para casa e para o serviço de novo. O salário que recebo é para mim mesmo, minha família não atrapalhou em nada os meus estudos”, narra. Não foi a primeira vez que ele abandonou os estudos. Em 2015, não conseguiu conciliar a escola com o serviço e as tarefas de casa. As notas baixas o obrigaram a repetir o ano escolar.

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educação

Para o futuro, o rapaz vislumbra adentrar no programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA) a fim de terminar o ensino formal e, assim, poder arrumar um emprego melhor. “Não sinto falta dos estudos, pois nunca gostei e até agora não me prejudicou em nada”, afirma.

“Os jovens que abandonam os estudos são aqueles que enfrentam condições muito adversas para estudar, sujeitos a condições precárias de vida” diz Liliam Caldeira

Causas

Os exemplos de Thalys, Laura e Matheus não são isolados. Ao analisar os dados é visível a dificuldade das escolas públicas de continuarem a motivar e atrair os jovens. Pesquisadores apontam que a baixa qualidade do ensino e da estrutura escolar, a falta de interesse e a ansiedade em entrar no mercado de trabalho são alguns dos motivos que levam o aluno a desistir de frequentar a escola. Conceitualmente, a evasão escolar é o abandono injustificável da sala de aula. Não é considerado evasão se o adolescente não vai à escola por motivos de doença ou falta de vagas na instituição. Esse abandono nem sempre é por escolha, mas por falta de oportunidade, explicita a professora Lilian Caldeira. “Os jovens que abandonam os estudos são aqueles que enfrentam condições muito adversas para estudar, sujeitos a condições precárias de vida, submetidos a uma busca por renda”, aponta a pedagoga. O Conselho Tutelar é o órgão responsável por zelar pelos direitos da criança e do adolescente em instância municipal e estadual. Quando um aluno abandona os estudos, a escola deve notificar o Conselho, que passa a monitorar e auxiliar o adolescente e sua família.

O Artigo 53 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) assegura à toda criança e a todo adolescente o direito ao acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência. O adolescente que não frequenta a escola entra em violação dos próprios direitos. “Todo direito corresponde a um dever. Ele tem o direito a ter acesso à escola, que deve ser garantido, mas também tem o dever de comparecer à escola”, explica a conselheira tutelar e advogada Cassandra Szuberski. A distância é um dos fatores que dificultam a permanência do aluno na escola. A família se sente insegura em mandar o filho sem acompanhamento para o local e há casos em que não é disponibilizado ao adolescente o passe de ônibus gratuito. Szuberski relata que acompanha casos em que o adolescente não tem condições de chegar até ao local dos estudos. “Infelizmente nenhuma capital consegue garantir uma escola próxima ao aluno. Se não há escola nas proximidades da residência, então tem que garantir o acesso a esse local”, defende. Em 2017, o país passou por uma reforma na educação. Aprovada pela Comissão de Educação do Governo Federal e pelo Congresso Nacional, a Nova Base Nacional Comum Curricular normatiza os estudos essenciais que todos os alunos devem desenvolver. De acordo com pesquisadores, no entanto, o documento teve modificações que podem desestimular o estudante, como a carga horária que deverá ter, em média, no mínimo sete horas-aula por dia. “A nova base foi meio complicada, porque não foi discutida com os alunos, nem com os professores. Essa reforma tem um problema grave, ela aumenta a grade significativamente”, afirma o professor Antônio Osório. O motivo principal para o afastamento da sala de aula é o trabalho. O jovem procura pela auto profissionalização para ajudar a própria família, caso de Thalys, ou para ter uma independência financeira, como Laura e Matheus, citados anteriormente. A partir do momento em que a carga horária do tra-

balho choca com os horários de aula, o adolescente tende a escolher aquele que o beneficia de imediato, ou seja, o que tem remuneração. “O adolescente que sai da escola para trabalhar, no geral, é assediado pra isso. E tem a família que faz isso, a pessoa que faz reciclagem é comum chamar o adolescente para catar latinha, catar garrafa. Isso não pode”, explica Cassandra. O trabalho não é proibido, porém aquele que impede a continuidade dos estudos e expõe o adolescente a doenças ou danos físicos e morais são ilegais. “Se identificamos essas denúncias, passamos a monitorar. Capinar um terreno não é um trabalho para um adolescente. É isso que a gente combate, a prática equivocada, para não dizer abusiva e ilegal, do trabalho infanto-juvenil”, detalha a conselheira. Outros potenciais causadores dessa situação é a baixa qualidade do ensino nas escolas públicas e a falta de melhorias estruturais e tecnológicas. A qualidade da escola influencia o aluno a dedicar seu tempo ou não à educação. Em geral, as escolas públicas brasileiras não têm investido em novas tecnologias, mecanismos que podem ajudar a prender a atenção dos alunos e permitir o acompanhamento do progresso dos estudantes. O excesso de conteúdo, com listas intermináveis de temas, e o sistema de palestras, no qual os alunos apenas ouvem o professor, podem desestimular os adolescentes, além de não explicitar aos jovens a importância de terminar o ensino formal.

Consequências

A evasão escolar se constitui um problema que cresce gradativamente no Brasil, afetando principalmente a rede pública de ensino. O maior índice de evasão escolar está relacionado às necessidades dos jovens trabalharem para ajudar na renda da família, fazendo com que aumente cada vez mais o número de adolescentes que deixam as salas de aula. Um estudo realizado pelo IBGE mostra que cerca de 1,3 milhão de jovens entre 15 e 17


O alto índice de evasão acarreta consequências, como o aumento na desigualdade social, a precariedade de empregos, [...] que refletem no desenvolvimento do país

Segundo o IBGE, foi a primeira vez na história que o número de empregados informais superou o conjunto de trabalhadores com carteira assinada. Outro agravante é que maioria desta população não possui as condições exigidas pelo mercado para migrar do setor informal para o formal, condições estas estabelecidas principalmente de acordo com a escolaridade e também

com outras variáveis como idade, sexo, experiência profissional, capital cultural e nível de escolaridade dos pais. Para a professora Lilian Caldeira, os efeitos da educação brasileira atual reverberam de maneira estrutural na vida dos jovens, atingindo seu desenvolvimento em diversas fases. “A juventude no Brasil segue excluída de bens materiais e imateriais como consequência da exclusão escolar. Dentre os efeitos dessa exclusão, esse jovem passa a ter acesso somente a formas mais precárias de trabalho, deixando de construir carreiras, desenvolvendo de modo mais pleno suas potencialidades”, ressalta. O professor Antônio Osório explica que a precariedade no ensino e o baixo incentivo aos estudos estão diretamente ligados a problemas sociais, a exemplo do aumento da prostituição de jovens no estado. De acordo com um levantamento feito em maio de 2018 pela Polícia Rodoviária Federal, Mato Grosso do Sul é o terceiro estado do país com maior número de pontos suspeitos de exploração e prostituição infantil em rodovias federais. Nos últimos anos, os diferentes níveis de governo investiram na educação em busca de novos métodos de ensino para combater o alto índice de evasão. Em 2017, a Secretaria Estadual de Educação de Mato Grosso do Sul implementou em 12 escolas da rede pública o programa de ensino em tempo integral, conhecido como Escola de Autoria. Nesse novo modelo, além das disciplinas da Base Nacional Comum Curricular, os estudantes podem optar por atividades extras que incluem disciplinas eletivas, estudos orientados e práticas experimentais em laboratórios para aproximar a teoria da prática, além do chamado “Projeto de Vida”. Dentre essas disciplinas, o projeto de vida surge como um meio de mudar a perspectiva dos estudantes, fomentar o protagonismo e auxiliá-los a planejam seu futuro. Por meio de orientação semanal, realizada pelos professores, os alunos são levados a refletir, durante os três anos de ensino médio, sobre os seus sonhos,

suas ambições e aquilo que desejam para as suas vidas. Outra estratégia governamental são as escolas de ensino médio integrado à educação profissional. No estado, 13 escolas da rede pública oferecem essa modalidade de ensino. Pesquisas mostram, porém, que essas iniciativas ainda não atingem a população mais pobre. Um estudo feito em quatro estados brasileiros pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educação e Cultura (Cenpec) mostra que a oferta diversificada de escolas de ensino médio, como as escolas de tempo integral e as de ensino profissionalizante, podem aumen-

tar a desigualdade de desempenho escolar entre os jovens. Isso se dá em razão de os jovens de baixa renda acabarem por ingressar em escolas públicas que estão em situação precária, onde falta incentivo e estrutura, enquanto jovens com melhores condições financeiras, que não precisam trabalhar, são estimulados e têm maior esrutura e aproveitamento escolar.

amandafrnco1@gmail.com ana.gimenes010@gmail.com caioteruel05@gmail.com lethycia.anjoss@gmail.com

O ensino médio não prepara os jovens para a vida, afirma ex-Ministro Mylena Fraiha

deixaram a escola sem concluir os estudos, dos quais 52% não concluíram sequer o ensino fundamental. Entre aqueles que concluíram o ensino médio na idade correta, a média de renda familiar per capita é R$ 885. Esse alto índice de evasão acarreta diversas consequências, como o aumento na desigualdade social, a precariedade de empregos, a baixa produtividade e a baixa competitividade que se refletem no desenvolvimento do país. A pesquisa do Instituto Ayrton Senna e do Insper revela que os prejuízos econômicos ligados à evasão escolar já somam R$ 35 bilhões por ano aos cofres públicos. Quando um aluno abandona a escola, o valor do custo sobe, pois o mesmo, fora do ambiente escolar, se torna suscetível a problemas como saúde e violência. Os meios de inserção no mercado de trabalho exigem uma qualificação profissional adequada, o que obriga a grande parcela da sociedade que não concluiu o ensino básico a recorrer ao trabalho informal – casos Thalys e Laura. Esse também é um fator determinante no aumento da taxa de desemprego no país. Em dezembro de 2017, o número de trabalhadores formais era de 92,1 milhões de brasileiros e os trabalhadores informais somavam 37,1% do total.

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educação

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“Temos um ensino médio que não ensina necessariamente o que as pessoas vão precisar na vida depois, que não prepara as pessoas como seres humanos”. A opinião é do filósofo Renato Janine Ribeiro, ex-Ministro da Educação, e ajuda a compreender os altos índices de evasão no Brasil. Em entrevista exclusiva concedida ao jornal laboratório Projétil a respeito dos dados do Censo Escolar do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), divulgados em 2017, Janine ressalta o aprofundamento desnecessário em alguns conteúdos escolares, circunstância que pode criar la-

cunas no desenvolvimento dos alunos. “Aos dezoito anos, quando mais ou menos se termina o ensino médio, você pode assumir compromissos sérios e as pessoas nunca tiveram uma aula sobre contratos, responsabilidades, sobre como compreender o mundo contemporâneo, isso é um problema”, argumenta. O ex-Ministro conclui que, embora mostra-se necessária uma reforma educacional no país, as medidas tomadas pelo atual Governo, como a implementação da Nova Base Nacional Comum Curricular, não são capazes de sanar todos os problemas históricos do ensino médio.


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Crônica

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A fórmula dos degraus Texto: Pâmela Machado | Ilustração: Natalia Hirata

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stude meu filho, estude, pois o estudo é a única coisa que não podem tirar de ti - repetia minha mãe como mantra enquanto eu guardava, dia após dia, meu caderno na mochila rumo à escola. Estava em meu último ano do Ensino Médio e o caminho pelas ruas tortas e sem asfalto não era tão complicado frente aos outros obstáculos do cotidiano. A escola ficava a algumas quadras de casa, em um bairro simples e despido de estruturas básicas. Na aula, eu procurava enganar o cansaço, tentando encontrar meios de decorar fórmulas e adivinhar um tema para a redação dos vestibulares de fim de ano, talvez a ponte para o sonho de minha mãe. Depois da aula, alguns colegas, geralmente oriundos da parte mais elegante e estruturada do bairro, completavam a rotina em um cursinho. Eu, a exemplo de outros colegas, engolia a frustração e tocava para o trabalho. Somos em quatro lá em casa: eu, minha mãe e dois irmãos mais novos, doze e oito anos. Desde jovem, aprendi que não era preciso muitas lições de matemática para concluir que o salário de Dona Rita, minha mãe, não se fazia suficiente para cobrir todos os gastos. Ao término da aula, então, corria para casa, levava meus irmãos para a escola e ia direto para o serviço depois de mal engolir a comida. Horas depois, ao final do expediente, voltava ao mundo de estudos. Ali estava eu, na tentativa de oferecer um futuro melhor para a família, responsabilidade que considerava minha.

Em setembro, como num piscar de olhos, chegara o vestibular. Confesso que não sabia boa parte das questões. A cada pergunta, uma surpresa diferente. Pudera, eram conteúdos pouco trabalhados na sala de aula. E não era culpa dos professores. Hoje entendo isso, na época não. Quando a aula ficava interessante, logo acabava. Na equação, somava-se ainda meu sono com a falta de concentração pelo cansaço. Resultado: estava feito o estrago. Um tempo após a frustração da prova, passei a estudar outras formas de ingressar em uma universidade. Uma das opções, a que se mostrava a melhor, pagaria 100% de meu curso. Bastava eu esperar a nota do exame e me candidatar. Também não poderia reprovar, mas isso a gente tenta se esforçar na correria. Janeiro chegara, hora de sair o resultado. José Rafael dos Santos, 460, 500, 510, 440. A sequência parecia boa. Fui então pesquisar quais notas precisaria para conseguir a tal bolsa. “Como assim? Quem oferece bolsa para essa nota? 600 o mínimo?” – esmurrei a tela do simples computador comprado de segunda mão enquanto meus irmãos tentavam entender o porquê da revolta. Chegar ao topo de um edifício pelas escadas é mais difícil quando outros seguem de elevador. Perdi meu emprego, um estágio que parecia ideal para iniciar uma faculdade, mas não consegui. Minhas notas não foram suficientes para uma bolsa, muito menos para o que as universidades federais exigem. E mais, já viram o valor das mensalidades de

uma universidade privada? Mesmo se não estivesse desempregado, uma mensalidade é mais do que a compra do mês aqui de casa. Faz uma semana que, ao distribuir currículos pelo centro da cidade, fui parado para uma pesquisa. Perguntaram-me o porquê não comecei um curso superior. Deu um frio na barriga, um mal-estar por cair na real que meu sonho estava distante. Nunca vira aquele pessoal antes, mas fui sincero: “Dinheiro, foi por falta de condições financeiras que não entrei numa faculdade” – respondi de forma seca, sem pensar em outra explicação, essa já era dolorida o suficiente. Hoje pela manhã abri um site de notícias e uma chamada me prendeu a atenção. Li em voz alta: “70% dos estudantes que terminaram o Ensino Médio não conseguem ingressar no Ensino Superior em razão de suas rendas”. Nunca fui tão representado, fazia parte daquela porcentagem. Por vezes, ainda ouço entristecido: “Não estuda quem não quer”. Quem repete o desbotado chavão, porém, não imagina o quanto se gasta em uma universidade. Há material didá, comida e transporte, além das famosas mensalidades. Ao fim, recai-se no velho sistema meritocrático, onde quem não tem grana no bolso precisa se virar como pode para ter um diploma na estante. Infelizmente, dessa vez Dona Rita não foi certeira. – É mãe, até o estudo conseguiram tirar de mim. paladislau@hotmail.com


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Reprodução do filme Nunca Me Sonharam

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Educação em tela Diretor do premiado documentário Nunca me sonharam, sobre o ensino público no Brasil, cineasta Cacau Rhoden fala sobre os desafios atuais da escola; “As pessoas que realmente fazem educação não são ouvidas”, lamenta Texto: Jhayne Lima | João Lucas | Mylena Fraiha Edição: Jean Celso | Rafaela Flôr

A educação não se encerra nos quatro muros de uma escola, a educação é uma coisa absolutamente complexa e uma questão da sociedade”. A afirmação do cineasta Cacau Rhoden, diretor do documentário Nunca Me Sonharam (90 min), lançado nacionalmente em 2017, reflete o engajamento do artista sobre o tema. Fruto de 300 horas de gravação, a produção foi exibida duas vezes na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em New York, e venceu o prêmio de melhor documentário na 10ª edição do Los Angeles Brazilian Film Festival. O filme traça um panorama das escolas públicas do Brasil sob diferentes perspectivas, sobretudo pelos olhos e pelas vozes dos próprios estudantes. Após percorrer as cinco regiões do país, o longa-metragem apresenta depoimentos de jovens, professores, diretores de escolas e especialistas sobre o valor da educação.

Além disso, com sensibilidade, revela os sonhos, os desafios cotidianos, as angústias e as motivações das diversas “juventudes brasileiras”. Hoje com 44 anos, o diretor curitibano iniciou sua carreira no cinema aos 15, após uma “experiência hipnotizante” - como costuma relatar - ao assistir ao filme Sonhos, do cineasta japonês Akira Kurosawa. Os 28 anos de carreira foram alternados em produções televisivas, publicitárias e cinematográficas. Dirigiu os curtas-metragens A Cega (1994), Infinitamente Maio (2001), Meninos de Areia (2005), Gotas (2005) e Who? Walls and Bridges (2015). Sua primeira experiência com longa-metragens veio com Tarja Branca - A Revolução que Faltava (2014), realizado pela produtora Maria Farinha Filmes, que lhe rendeu o prêmio de melhor documentário no Festival de Toronto, no Canadá.


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Projétil. Qual é sua relação com a educação? De que forma ela é importante na sua vida? Cacau Rhoden. A relação que eu tinha com a educação era a da minha história na escola, que, na verdade, foi desastrosa. Sempre odiei a escola, profundamente. O tema educação no cinema veio muito por acaso. Eu nunca havia feito documentário, meu histórico todo era de ficção e a Maria Farinha Filmes, que é a produtora onde atuo, no primeiro trabalho convidou-me para fazer o documentário Tarja Branca. Esse filme exigiu muita investigação a respeito do espírito lúdico do ser humano. Propus a eles que já fôssemos filmando a pesquisa justamente porque não sabíamos os caminhos narrativos que iríamos adotar, tampouco o conteúdo. Pensando que a educação não se encerra nos quatro muros de uma escola, a educação é uma coisa absolutamente complexa e é uma questão da sociedade. A educação acontece na família, na escola, entre amigos, na nossa relação com a cultura e com a arte. A educação está acontecendo agora nesta conversa. Fiquei muito, não só curioso, mas instigado a falar mais sobre o assunto, pois acho que o tema não está na pauta do cotidiano brasileiro. Falamos de inúmeros assuntos, mas a educação é tratada de uma maneira quase marginal. Acredito que a educação que temos no nosso país é absolutamente obsoleta, não só obsoleta, mas uma educação que realmente não sonha muito com uma sociedade mais saudável e menos desigual. Por isso que o filme se chama Nunca me sonharam. P. Você falou que a sua experiência com a educação foi um pouco desastrosa. Duran-

Bruno Decc

Com a pretensão de desvelar a realidade da educação brasileira, esta edição do Jornal Laboratório Projétil dialoga ao longo de suas páginas com o universo trabalhado pelo documentário Nunca Me Sonharam, longa-metragem utilizado para fomentar o debate no período preparatório desta edição. Mesmo atarefado e imerso na produção de seu novo documentário, Rhoden encontrou um tempo para trocar impressões sobre a escola pública brasileira em entrevista exclusiva. Neste diálogo, o cineasta compartilha um pouco da sua jornada e coloca em xeque a eficácia da atual estrutura da escola pública brasileira.

te a produção do documentário, você se identificou com alguma questão, alguma realidade vivida na sua adolescência? C. Eu só estudei em escola pública. Não estou falando que a escola foi um desastre completo, pois isso é generalizar demais. A escola, ao mesmo tempo, foi muito maravilhosa. Hoje, pensando no potencial que uma educação transformadora tem, vejo que eu poderia ter tido uma experiência na escola muito mais rica. Muito mais atraente, mais instigante, mais lúdica, mais mágica, mais transformadora. São inúmeros adjetivos que eu poderia colocar, pois isso é possível. Sei que isso é possível segundo as experiências que tenho vivido nos últimos tempos. Em comparação à época em que estudei, apesar de serem outros tempos, a imagem que mais me identifico é a de que a escola é chata. Dá-se aula de uma maneira que não existe tesão e não tem nada que dê mais tesão do que o conhecimento. Então, em minha opinião, isso é muito contraditório, pois sempre fui um menino enlouquecido pelos livros, enlouqueci-

do por cultura, mas a escola não dialogava comigo nesse aspecto. Tive uma formação quase autodidata, fui procurar no cinema e aprender com mestres da área. Fui assistente de direção durante muitos anos, trabalhei com a maioria dos grandes diretores do Brasil para que eu tivesse algum tipo de formação. Eu não tinha o menor tesão de ir para a escola, pois os professores não estavam animados e tinham que seguir um currículo muito engessado. Ninguém queria saber o que eu pensava, o que eu queria, a troca não era mútua. Penso que talvez tenhamos evoluído bastante em alguns aspectos nos últimos anos, mas não acho que seja em grande escala, considero que são experiências isoladas. P. Para você, como diretor de cinema, qual a importância do formato audiovisual na transmissão de uma mensagem que trata sobre educação? C. O audiovisual é uma ferramenta muito poderosa para a educação. Primeiro pelo alcance, segundo pela questão lúdica e absolutamente

O cineasta Cacau Rhoden busca levantar questões em seus filmes, não somente respondê-las


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expressiva. É a nossa arte mais jovem, a sétima arte. Ela une em si todas as expressões artísticas: música, artes visuais, dança, movimento. Há expressão, há poesia. Eu não diria que exista uma arte completa, mas acho que o cinema é uma arte muito abrangente nesse sentido. E isso, por natureza, já está absolutamente conectado com a educação. O filme “Nunca me sonharam” foi um mergulho maravilhoso. Saí diferente desse filme. Eu era um ser humano antes e sou outro ser humano depois, sobretudo por entender o país, as diversidades culturais e esse plano secular de desmonte da educação que temos no Brasil. Precisamos entender também o caráter público da educação, pois, como um todo, independente da forma como é financiada, ela tem um caráter público que é justamente o de formar cidadãos, pessoas com empatia, que saibam trabalhar em equipe e que possam cooperar de maneira positiva na nossa sociedade.

Cenas do filme Nunca Me Sonharam (2017), de Cacau Rhoden

P. Quando você fez o documentário, tinha um objetivo específico? Durante a edição, como buscou selecionar todo o material apurado em suas viagens? C. O documentário é um organismo vivo. Com o “Nunca me sonharam” eu voltei para São Paulo com aproximadamente 300 horas de material. Isso significa que, se você desse play agora, ficaria 12 dias, 24 horas por dia, assistindo às imagens e ouvindo os depoimentos. Transformar isso em uma hora e meia remete a um poder de síntese muito grande. A crença em vê-lo como um organismo vivo se faz como se esbarrássemos com ele na esquina. É quase como se o filme se apresentasse e dissesse assim: “oi, eu sou o ‘Nunca Me Sonharam’ e agora você precisa só realizar esse filme”. Talvez seja poético demais, mas se eu não tivesse me utilizado de poesia e de romantismo no sentido da narrativa e da arte, o documentário não teria o impacto que teve. Não desmerecendo a realidade, até porque é ela que determina. A realidade é uma coisa muito poderosa, muito empírica, ela diz

para você quem ela é e como quer se apresentar. Daí você, como artista, ou se entrega àquele desejo abstrato ou vai querer manipular no sentido pejorativo aquilo tudo. E a verdade não vai ficar latente. Então, as escolhas foram muito difíceis, muita coisa boa ficou de fora. A escolha que fiz foi aquela que acredito ser o papel da arte: levantar questões e não respondê-las o tempo todo.

O audiovisual é uma ferramenta muito poderosa para a educação. Primeiro pelo alcance, segundo pela questão lúdica e absolutamente expressiva diz Cacau Rhoden

P. Nessas 300 horas, percebemos, até pela região dos personagens, que você teve que lidar com bastante pluralidade. Inclusive, no documentário, é dada bastante ênfase na expressão “juventudes brasileiras”, no plural. Você acredita que esse aspecto da diversidade é deixado de lado no Brasil? C. Acredito que as pessoas que realmente fazem educação não são ouvidas. Para mim, isso ficou muito claro viajando de Porto Alegre ao Piauí. Quem faz educação são as pessoas que estão lá à frente todo dia, os educadores, os estudantes, porque é uma guerra fazer educação neste país. Não acho que alguém tenha dado atenção para essa pluralidade. Estamos perdendo um recurso humano gigantesco ao não ouvir essas pluralidades todas. Os responsáveis por tomar as decisões são pessoas que querem encaixotar a educação em um modelo muito reducionista, muito padronizado. Não podemos padronizar um país com a escala do nosso. Temos uma riqueza imensa que estamos jogando fora. E essa riqueza é plural.

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P. O desempenho de estudantes brasileiros costuma ser medido pelos baixos índices em rankings educacionais — penúltima posição no ranking da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) — e pelos casos de evasão ou desobediência escolar. Durante a produção do documentário, por exemplo, você encontrou situações que contrariam essa visão? C. Encontrei muitas! O filme apresenta várias dessas experiências incríveis. A maioria delas tem algumas coisas em comum: paixão. Acho que isso é claro e o filme fala a respeito. Não podemos colocar a responsabilidade de resolver os problemas de educação do nosso país na conta dos diretores, dos coordenadores, do corpo docente de uma escola, que está com problemas de infraestrutura e recebe pouco recurso, que tem profissionais que são mal remunerados. Quero dizer que sem paixão por parte dos educadores, fica muito difícil encontrar exemplos tão bem sucedidos. Bom, primeiro se precisa de gente comprometida, pessoas engajadas. A responsabilidade começa pelos adultos. Não podemos colocar a responsabilidade em meninos que nunca foram estimulados. Há uma parte do filme que é ótima. O professor da periferia do Rio de Janeiro que leva os meninos para jogar futebol e mostra para eles que ganha o time que treina. Funciona como um metáfora para convidá-los a estudar. Estudar é um tesão, o conhecimento e a sabedoria são coisas fantásticas, abrem um universo imenso. O mundo deixa de ter fronteiras, torna-se gigantesco e ele passa a ser seu, isso que é maravilhoso. Então, numa escola chata, você soma esses fatores e se torna difícil de ter algo bem sucedido. O que você vai encontrar? Encontrará raiva, revolta, justamente pelas injustiças sociais que vivemos. Às vezes esse meninos são geniais. Uma das entrevistadas no documentário, inclusive, diz: “aquele menino que ninguém queria virou o chefe do tráfico e esse chefe é genial porque


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senão ele não seria chefe do tráfico”. Se esse menino tivesse outra oportunidade na vida, não tenha dúvidas de que escolheria uma oportunidade onde a vida fosse plena, onde a vida não fosse tão tolhida, tão violenta. É só ater a atenção às crianças, ninguém escolhe a violência, ninguém escolhe o preconceito, ninguém escolhe a dor. Escolhemos o prazer. Isso é do ser humano. Se déssemos essas oportunidades, os caras geniais do tráfico poderiam ser grandes líderes para nós em corporações, na ciência, nas escolas, nas universidades, no Senado, na Câmara. É desse tipo de pessoas que precisamos, pessoas inteligentes, comprometidas e com coração. Não há inteligência sem coração.

Estudar é um tesão, o conhecimento e a sabedoria são coisas fantásticas, abrem um universo imenso para você. O mundo deixa de ter fronteiras diz Cacau Rhoden

P. Seu filme anterior, “Tarja Branca”, fala um pouco sobre o poder de brincar, da diversão. Há casos de pessoas que procuraram esse lugar alegre na própria carreira depois de anos no mesmo emprego. Você acredita que a geração de hoje, do ensino médio e fundamental, está procurando esse lugar mais lúdico na hora de pensar o futuro e a profissão? C. Acredito que alguns sim, mas ainda é muito pouco, justamente por conta do modelo de educação que temos. Porque se você abrir a janela, olhar para os prédios dos seus vizinhos e falar “eu vou entrar nesse prédio agora, vou apertar o interfone de todos os apartamentos e fazer uma só pergunta para as pessoas: ‘para que serve a educação?’”. Certamente, vai ouvir: disci-

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plinar seres humanos, preparar para o mercado de trabalho, e que o ser humano bem sucedido é o que não tem como prioridade o prazer. O primeiro plano é o dinheiro. Dizem: “meu filho, você precisa escolher algo que te dê dinheiro, se caso queria fazer algo depois, já será adulto e terá dinheiro”. Isso é a coisa mais idiota que um pai pode fazer com um filho, a coisa mais idiota que educadores podem orientar aos seus alunos. O filme “Tarja Branca” deixa muito claro o quanto sua vida pode ser muito mais plena, inclusive do ponto de vista material. Tem uma história muito engraçada. Meu filho foi cursar Filosofia. Então, eu estava numa mesa de bar com amigos, tinham artistas, engenheiros, arquitetos. Falaram assim: “teu filho vai prestar vestibular para cursar o que?”. E respondi: “vai fazer Filosofia!”. As pessoas passaram a questionar como ele ganharia dinheiro. Eu só não tive nojo pelas pessoas, porque eram muito amadas. Mas isso nos faz ver o quanto está enraizado na nossa cultura que ser bem sucedido está absolutamente ligado ao dinheiro, mas é justamente o contrário. Vestibular é uma consequência. Se tiver uma educação de qualidade, integral, que te prepare enquanto ser humano, passar no vestibular será só um passo. Cursar universidade pública será um passo. Aliás, a educação deveria ser pública - toda a educação - como na maioria dos países desenvolvidos. Não estou falando dos Estados Unidos, que é exemplo para pouquíssima coisa. Refiro-me a países onde os direitos humanos são fortes como nos países nórdicos (Finlândia, Noruega, Suécia, Dinamarca), Ásia (Japão, Coréia do Sul), que fizeram uma grande transformação em educação. Claro que aos moldes deles, sem me atentar aos métodos pedagógicos, mas devíamos realmente olhar para a educação como a maior ferramenta de transformação de uma sociedade. Caso contrário, o que vamos ter? Uma sociedade triste, de pessoas frustradas.

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P. Ao fazer o documentário, você se surpreendeu com a forma como os jovens encaram emprego e futuro hoje? Talvez seja diferente de sua época de estudante ou do período de documentários mais antigos sobre o tema, como filme Opinião Pública (1967), do Arnaldo Jabor... C. São três gerações de filmes. Tem o Opinião Pública, do Arnaldo Jabor (1967) , depois tem o filme do João Jardim, Pro dia nascer feliz (2005), que é um documentário que também levanta essa questão dos jovens. Depois vem o Nunca Me Sonharam (2017). Há um grande intervalo de tempo entre estes filmes, mas muitas questões ainda se repetem. Por que essas questões se repetem? Porque nosso modelo de sociedade mudou muito pouco. Evoluímos um pouco mais em política social agora nos últimos anos, mas ainda estamos muito longe do que deveria ser suficiente para transformar essa parcela gigantesca de jovens no nosso país que tem uma preocupação imensa com o que será do futuro deles. Agora, não podemos confundir isso com dúvidas que são absolutamente intrínsecas desse momento da vida deles. Não podemos confundir isso com questões de personalidade, às vezes questões subjetivas. Foi ótimo vocês terem mencionado o filme “Opinião Pública”, pois eu nunca tinha pensado nisso. Essa conexão é muito rica. Acho que essa comunicação traz um retrato menos otimista. Por outro lado, temos que pensar o seguinte: não há nada mais reacionário do que o pessimismo. O pessimismo gera também muito um discurso chinfrim, um discurso babaca, onde dizem “ah, o Brasil nunca vai dar certo; brasileiro não adianta, não tem educação; o brasileiro é isso, é aquilo”, sabem? São sempre comentários negativos, de um pessimismo enorme de um povo que tem um potencial gigantesco. Basta viajar este país, conversar com as pessoas e entender os mecanismos da nossa sociedade. Temos um povo repleto de vida, mas que é massacrado profun-

damente. Atribui-se muito a culpa ao povo o fato desses modelos se repetirem. Não acredito que a culpa desses modelos se repetirem seja do povo. É uma questão da sociedade como um todo, incluindo o poder público. É uma ótima análise essa de juntar esse retratos todos, pois podemos ver que em muitas décadas nós evoluímos pouquíssimo.

Parece piegas ou romântico esse discurso, mas vamos sonhar esse país, é o que nos resta porque o pessimismo é muito cafona diz Cacau Rhoden

P. Deixaria um recado final ao jovem que pegará esse jornal a respeito da educação? C. Meu recado é: o conhecimento é um tesão, vale a pena, transforma, derruba as fronteiras do mundo! É importante a resistência a tudo o que consideramos ruim para a sociedade, como o preconceito e a desigualdade social. Lutem, porque não é fácil e nem será fácil. Há muita gente que não quer uma sociedade melhor e a maioria dessas pessoas estão no poder. Por luta, não entenda simplesmente “levantar bandeiras”. Não sejamos ingênuos, vamos ouvir o outro, optar pelo debate ao invés do embate, porque é vital que se coloque em pauta os assuntos que são realmente relevantes, sobretudo que estejam ligados ao direito e ao bem-estar do ser humano. Parece piegas ou romântico este discurso, mas vamos sonhar este país. É o que nos resta, pois o pessimismo é muito cafona.

jhaynelimasccp@gmail.com myle.frahia@gmail.com projinson@gmail.com jeancelsosilva@gmail.com rafsa.flor@gmail.com


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OPINIÃO

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Duas gerações, a mesma dúvida Texto: Dândara Sabrina Genelhú | Ilustração: Accacio Mota

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á tinha seus 16 anos de idade e, para a maioria da turma, era até a mais atrasada. Segundafeira pela manhã, dia de sol, angustia e faxina da casa, período de reflexão sobre sua primeira vez. Foi com o cara certo? Estou grávida? Usamos a camisinha corretamente? Foi especial? E assim seguira até o almoço. Mãe e filha estavam sentadas, na cozinha, a compartilhar o único momento íntimo que possuíam na rotina corrida: o preparo do almoço. O estômago retorcia-se e as mãos suavam ao cortar os legumes enquanto preparava-se, muito insegura, para narrar sua passagem de garota à mulher. Um respiro forte sobressaiu-se após a queda brusca de uma lágrima, que interrompera aquela profusão de frases, agora sem sentido, sobre os planejamentos da comemoração de seu aniversário de 17 anos. Cebola faz-me chorar também – comentou sua mãe. Foi a gota d’água para que Clarice desabasse em choro. Com a voz trêmula e o rosto corado, enquanto um misto de nervoso e vergonha penetravam seus sentimentos, expôs à mãe sua primeira relação sexual. Mais calma, porém ainda tomada de incertezas, perguntou sobre como usar a pílula. Que pílula é essa? – pensara, confusa, a mãe. Seria algo para aborto? Algo acontecera e a filha estava doente? Antes de mais questionamentos, Clarice tratara de explicar: – Mãe? A pílula, como eu uso? Li na internet que é melhor usar para preve-

nir a gravidez, mas que muitas mulheres desenvolvem problemas de saúde. Qual medicamento devo usar? Sem reação, Joana, 39 anos e pouca experiência de vida, não sabia o que responder à filha. Dilacerada por dentro frente à falta de instruções para sanar as dúvidas daquela jovem mulher, o que julgava ser uma grave falha do papel de mãe, rebatera com novos questionamentos: – Mas na sua escola não conversaram com você, Clarice? Naquele dia que a equipe de saúde aplicou as vacinas, não falaram nada sobre isso? Mal imaginava Joana que sua filha – ao lado de milhões de outras e outros adolescentes brasileiros – vivem à margem de instruções sobre saúde sexual. Não há nada que garanta com eficiência a complexidade das dúvidas, seja na Lei das Diretrizes e Bases da Educação, aprovada em 1996, ou no Sistema Público de Saúde. O pouco que essas e esses jovens conhecem é a disponibilização gratuita de preservativos masculinos, sem mencionar os tabus e o desconhecimento sobre a camisinha feminina. O maior medo de Clarice – e a mais frequente consequência entre as jovens – é o da gravidez indesejada. Pudera! A Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) concluíra, em 2015, que Mato Grosso do Sul é o segundo maior estado com gravidez precoce em instituições públicas, perdendo apenas para Mato Grosso com 12,9% de incidentes.

– Eles não falam nada, mãe. Só sei que no posto de saúde tem camisinha, mas não é de preservativo que estou falando, é da pílula que minhas amigas tomam todos os dias – confrontara Clarice ao deixar a vergonha de lado, impaciente com os desvios da mãe. Com pesar e sentimento de falha materna, Joana resignara: – Não tenho como saber, minha filha, na minha época não se falava desse negócio de anticoncepcional. Nunca usei, ninguém nunca me contou. Também não vou mentir, foi Deus que não quis que tivesse mais filhos com seu pai, pois nem camisinha usávamos. Duas gerações sem conhecimento e orientação sobre um assunto comum entre os adolescentes: o sexo. No Brasil, a educação sexual não está incluída nas disciplinas básicas das escolas, tampouco na formação de profissionais que lidarão com jovens cidadãos. O chiado da panela de pressão trouxe de volta mãe e filha à realidade daquela manhã. Abraçadas, fundiram suas lágrimas no sabor amargo da mesma angústia. dandara.genelhu@gmail.com


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Julisandy Ferreira

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Formar-se mãe A falta de educação sexual no contexto escolar e familiar vulnerabiliza adolescentes para a gravidez; Mato Grosso do Sul é o décimo estado no ranking com mães até 19 anos Texto: Fernanda Venditte | Mara Machado

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adolescência é definida por Albertina Takiuti, em seu livro A Adolescente está Ligeiramente Grávida e Agora?, como “um período de mudanças bruscas, acionadas por uma especial sinergia de fatores biológicos, psíquicos, sociais e culturais”. Há ainda uma mudança que não atinge todas as adolescentes, mas que também é acionada por esses fatores, a maternidade. Segundo o último relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre o tema, o Brasil é o quarto país com

maior número de adolescentes grávidas. A cada mil meninas, de 15 a 19 anos, nascem 68,4 bebês, o que supera a média da América Latina (65,5) e Mundial (46). Os dados regionais são apontados no estudo “Estatísticas do Registro Civil”, realizado em 2013 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mato Grosso do Sul é 10º estado brasileiro no ranking de mães com até 19 anos, o que corresponde a 21,05%. Já na última década estudos destacavam a seriedade da questão. De acordo

com as pesquisas realizadas em 2007 pelo Programa de Pós-Graduação em Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a idade média dos parceiros das adolescentes grávidas corresponde a 20 anos e a diferença de idade para o companheiro é em média de quatro anos. Somente metade dos parceiros analisados eram adolescentes, além disso, esses meninos normalmente já estavam inseridos no mercado de trabalho e possuíam baixa escolaridade.

Maria é um exemplo desta condição, um retrato de gravidez na adolescência. “Na verdade, eu era bem moleca de rua, andava suja e tudo, daí minha tia e minha mãe falavam assim: ‘essa menina vai virar sapatão, ela só fica aí com os guris, jogando bola’. Ele era sobrinho de uma tia minha e ela falou assim ‘ah o Cleiton quer namorar a Maria’, mas na verdade elas que arrumaram um namorado pra mim”. Quando Maria começou a namorar Cleiton, ela tinha 13 anos, ele 23.


Novo lar

Maria escondeu o início de sua gestação da mãe e do namorado. As únicas que sabiam eram as primas, também mães adolescentes, que a ajudaram a comprovar a gravidez por meio de um teste de farmácia. “Eu pensava assim, se minha mãe souber ou ele souber vão me fazer casar, e eu não queria casar. Tinha mais medo de casar do que de ter o filho”. A sexualidade e as relações de gênero são questões amplas que muitas vezes acabam por limitar a vida das mulheres. O Brasil é o 4º país no mundo no índice de casamentos de crianças e adolescentes. Segundo estudo do Banco Mundial divulgado em 2017, mais de 554 mil meninas de 10 a 17 anos casaram em consequência, principalmente, da grande desigualdade de gênero. Elas acabam forçadas a se casar por causa de gravidez ou para as famílias controlarem a sexualidade e limitar comportamentos. Lauriene foi mãe aos 17 anos e se casou logo após o nascimento do filho Bryan. A maior parte do tempo ela ainda passa no hospital, junto de seu filho. Apenas às sextas-feiras volta à casa da sogra para lavar a roupa que usa durante a semana. Mesmo assim, a falta da família e de sua casa foi muito presente

durante toda a transição. “Eu me sentia estranha, me sentia com saudade, a cada meia hora eu ligava para eles, até me acostumar. Somente agora comecei a me acostumar, depois de bastante tempo”. O filho de Lauriene nasceu prematuro. Ela tem incompetência no colo do útero e seu corpo não suporta o peso de uma criança. No quinto mês de gestação, quando seu filho começou a ganhar peso, o útero foi se abrindo, dilatando. Lauriene ficou um mês internada no Hospital Universitário Maria Aparecida Pedrossian da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), mas seu corpo não aguentou segurar o bebê. Há três meses ela teve seu primeiro filho. “Me assustei e chorei muito, porque ele era muito novo, então tinha risco de não aguentar, de ele não sobreviver”. Ainda não há nenhuma previsão de alta para Bryan. Os médicos precisam monitorar a formação do cérebro e dos demais órgãos que não foram totalmente desenvolvidos no curto período da gestação. Recentemente, o bebê foi para a Unidade de Cuidado Intermediário Neonatal (UCIN), onde pode receber dia e noite o acompanhamento da mãe. “É só eu que durmo aqui, porque é mais a mãe, né? Acho que não consigo deixar ele e ir embora”. De acordo com Ana Maria Gomes, socióloga e professora da UFMS, em seu artigo “O Impacto da Gravidez na Escolaridade das Adolescentes”, publicado na Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da instituição, “à mulher é dado socialmente o encargo de ser a responsável pelo cuidado do lar e dos filhos. Por essa razão, mesmo quando o também jovem pai assume o filho, constituindo uma família e legitimando a transgressão aos valores estabelecidos, é sobre a mulher que recairá a maior responsabilidade e dedicação à criança”. São de responsabilidade da mulher, portanto, todas as questões que envolvem seu filho desde os aspectos biológicos até os psíquicos, sociais e culturais.

A psicóloga Anecy Almeida, também docente da UFMS, comenta que essas diferenças se dão já na infância, quando ambos os sexos são introduzidos à sexualidade. Segundo a pesquisadora, os meninos passam por provas de virilidade durante toda a vida e desde muito cedo são obrigados a respeitar comportamentos pré-estabelecidos. “Na adolescência ele sofre uma verdadeira coerção dos homens que o rodeiam para que tenha uma relação heterossexual. Inclusive, correndo o risco de o pai ser questionado de o menino ser gay ou não, se o filho dele não estiver tendo vida ativa sexual com uma garota”. Quando Cleiton soube da gravidez de Maria, procurou a família dela para reafirmar suas intenções e reivindicar seu papel de pai, o que durou poucos

dias. Miguel já tem sete anos, mas há seis não vê o pai. Por opção de Maria, eles não continuaram o relacionamento e, logo depois que Miguel nasceu, Cleiton a abandonou com o bebê para formar outra família, sem nem ao menos se preocupar em prestar uma assistência financeira aos dois. Anecy Almeida afirma que geralmente os adolescentes que se relacionam há muito tempo antes da gestação acabam por assumir moradia conjunta. Um fator determinante para que isso ocorra é a tendência dos pais da gestante em expulsá-la de casa. “Uma das consequências da gravidez, é a garota ir para uma moradia conjunta com o pai e a mãe do adolescente, e ser assediada sexualmente pelo pai do garoto”, relata a psicóloga. Mara Machado

Todos os dias na saída da escola, Maria se escondia, desviava o caminho, mudava a rota. A fuga era uma mistura de medo e vergonha. “Quando o carro dele estava parado, eu e minhas amigas dávamos a volta na quadra ou eu passava direto e fingia que não o conhecia, mas não adiantou”. Aos poucos o rapaz começou a frequentar a casa da garota e fugir não era mais uma boa opção, já que o relacionamento tinha o consentimento da mãe. “Depois de um certo tempo eu tive que... [silêncio]. Ele ficava em casa e minha mãe ficava lá, às vezes até brigava comigo, comecei a namorar”. De repente, o acesso à casa se tornou o acesso ao corpo de Maria. Em sua primeira relação sexual, aos 14 anos, ela foi mãe de seu primeiro filho.

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Ana e Isabela recebem alta, após um mês e meio internadas no Hospital Universitário Maria Aparecida Pedrossian


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Menina-mãe

A quantidade de gestações na adolescência é reflexo das dificuldades desses adolescentes no início de sua vida sexual. A socióloga Ana Maria Gomes explica a diferença na sexualidade entre os gêneros, fator importante para que essas dificuldades perdurem e sejam ainda mais impactantes na vida da mulher. “O gênero feminino constrói também sua sexualidade diferentemente do gênero masculino, sendo a mulher submetida a uma carga maior de preconceitos e proibições por parte da sociedade”, esclarece em seu estudo. Segundo a psicóloga Anecy Almeida, embora a mulher seja socialmente educada para ser mãe, se ela atingir a maternidade na adolescência ou solteira passa a ser punida pela própria sociedade que a preparou para esse papel. “Enquanto não nasce o filho para atenuar essa violência, ela sofre muita pressão, muita cobrança, um tratamento vexatório, humilhante”. Tal contradição social é problematizada pela pesquisadora, que alerta para a erotização das roupas e das danças femininas e para o conceito da heteroestima, que é a estima baseada em uma figura masculina. Além da heteroestima, a opinião masculina pode afetar a prevenção no momento da relação sexual. Um estudo divulgado em 2017 pela Federação Internacional de Planejamento Familiar mostrou que o Brasil tem uma das legislações mais avançadas no assunto. O acesso das mulheres a contraceptivos, porém, é influenciado por correntes religiosas e grupos conservadores. Além disso, em comparação com outros países da América Latina, o Brasil é último quando o assunto é a introdução do tema no currículo educacional. Em sua pesquisa desenvolvida na UFMS, Anecy observou que frequentemente as meninas engravidam em sua primeira relação sexual. De acordo com a psicóloga, os meninos, por meio de argumentos de gênero, convencem as meninas a ter a primeira relação sexual sem

mulher

utilizar o preservativo masculino. Na maioria das vezes, as meninas desconhecem os métodos contraceptivos e demais informações sobre sexualidade e gravidez.

“Enquanto não nasce o filho para atenuar essa violência, ela sofre muita pressão, muita cobrança, um tratamento vexatório, humilhante” diz Anecy Almeida A socióloga Ana Maria Gomes argumenta que a escola e a família devem ser locais de socialização primária e onde a educação sexual deve ser feita, o que não ocorre. Ambas as instâncias, movidas pelo preconceito, consideram a sexualidade um tabu. Os pais são incapazes de transmitir informação pela falta de orientação sexual e a escola trata o corpo enquanto anatomia e não relaciona a abordagem à sexualidade. Contracepção, gravidez, aborto e doenças sexualmente transmissíveis (DST) são assuntos excluídos do universo do adolescente. Outra razão que pode contribuir para o alto índice de gestações na adolescência é a vulnerabilidade social da menina e da família. Segundo o relatório anual Situação da População Mundial, publicado em 2017 pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), agência da Organização das Nações Unidas (ONU), a gravidez precoce ocorre geralmente em populações vulneráveis. Esse dado está intimamente relacionado com o acesso à orientação sexual, aos métodos de prevenção e ao cuidado com o próprio corpo.

Gestando a mãe

O âmbito escolar também é modificado. Segundo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 76% das adolescentes que engravidam abandonam a escola. A pesquisa, realizada em 2015 pelo Ministério da Educação

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(MEC) em parceria com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e o movimento Todos Pela Educação, indica que a taxa de abandono escolar em Mato Grosso do Sul chega a 8,9%, e em Campo Grande é de 10%. Maria resolveu sair da casa de seus pais aos 16 anos, pois a gravidez era motivo de muita vergonha, inclusive dos próprios pais. Quando Miguel completou cinco meses ela começou a trabalhar no período noturno de quarta a domingo. O filho passou a ficar com alguns familiares que se disponibilizavam a ajudá-la. “Essa é a parte mais difícil, deixá-lo. Era tão pequenininho, eu ligava toda hora”. Em alguns meses, Maria conseguiu dinheiro suficiente para alugar uma casa e cuidar de si mesma e de seu filho. “Quando eu saí de casa tinha um colchão, um ventilador e um filho”. Foi pelo mesmo motivo que Maria resolveu parar de estudar. O medo do julgamento dos colegas e a vergonha da situação que se encontrava a fizeram abandonar os estudos. A psicóloga Anecy Almeida afirma que há uma evasão escolar maior entre as meninas. Além disso, elas são privadas dos eventos próprios da adolescência, como praticar esportes, dançar, ter uma vida social, convívio com amigas e passeios, restringindo a vida ao espaço doméstico. Já os meninos têm mais liberdade de ir a bares e festas. Maria explica que, depois da gestação, dificilmente conseguia sair, a não ser que fossem programas que incluíssem o bebê. Ana foi mãe aos 13 anos. Logo no início da gestação abandonou a escola, também por medo das críticas e vergonha dos colegas e amigos. Desde o início teve dificuldade em aceitar-se como mãe. Tentou suicídio, pensou em abortar. Foram sete meses em depressão, até que Isabela nasceu com 31 semanas e cinco dias. Recentemente, Ana foi chamada pelo Conselho Tutelar e o juiz determinou que ela precisa voltar a estudar ainda neste ano, logo depois

das férias, para finalizar o ensino fundamental. O pai da bebê também parou os estudos, mas não tem previsão para voltar à escola. O fator emocional, além de ser determinante durante e depois da gestação, também pode ser um pretexto para o descuido em relação à prevenção. De acordo com a obstetra Josiane Canali, na adolescência se tem a falsa impressão de onipotência, o que dá aos adolescentes a aprovação para a relação sexual sem preservativo, o não uso do anticoncepcional e a alta porcentagem de gravidez. Essa fragilidade emocional independe do sexo. O sentimento de vulnerabilidade emocional por parte das adolescentes mostra-se presente também na hora do parto. A obstetra explica que, na maioria das vezes, as meninas recorrem à figura da mãe. “Eu fiquei com mais medo ainda porque minha mãe não ficou lá, fiquei sozinha. Ela deixou umas flores por volta das oito horas da noite e só apareceu no outro dia já de tarde, fui para a sala de parto sozinha e tinha só quinze anos”. “Quando minha barriga crescia, era aquela emoção toda, principalmente quando ela chutava. Pra mim era gostoso, emocionante” diz Ana

Ana também precisou da mãe. A menina não sabia que estava tendo contrações, só sentia muita vontade de ir ao banheiro. “Na quinta vez, minha bolsa estourou, estava sentada no vaso e minha mãe falou ‘Ana levanta’, assim que levantei e deitei na cama fiz umas duas forças e ela nasceu”. A mãe de Ana foi quem fez seu parto. O médico só chegou depois para cortar o cordão umbilical. “Não queria que minha mãe me deixasse, fiquei com medo”.

Troca de papéis

De acordo com a OMS, a gravidez na juventude e na adolescência é uma das


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mulher

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principais causas de mortalidade materna na América Latina. Fazem parte dessa estatística as complicações médicas e as gestações que tiveram complicação por serem interrompidas de maneira voluntária. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, em 2015, 500 mil gestações foram descontinuadas. A obstetra Josiane Canali explica que existem grandes desafios no pré-natal dessas adolescentes, em parte causados pela falta de informação sexual. “É muito difícil de elas entenderem a necessidade do cuidado, a maioria tem certa resistência em fazer o pré-natal, têm resistência em utilizar o medicamento”. Ana, por exemplo, fez apenas duas consultas no pré-natal, prejudicada pela depressão que enfrentou durante a gestação. A menina conta que a falta de apoio do pai foi o que desencadeou o processo. A adolescente descreve que quando o pai soube da gestação, teve um momento

de desespero. Passou a puxar seus cabelos e a direcionar xingamentos a ela e à mãe. “Minha relação com os dois mudou em uma semana, eu dava benção e eles não me abençoavam, eu conversava com eles e mal me respondiam, assim foram me isolando”. Os pais de Ana chegaram inclusive a expulsá-la de casa, ação que depois se reverteu com o arrependimento da mãe. Entretanto, a relação com o pai continuou complicada. A falta de apoio do pai era notada por Ana principalmente durante as dores que sentia na gestação. Segundo Josiane Canali, logo no início da gestação o corpo tem uma dosagem hormonal diferente, o que provoca dor na mama, enjoo, dor de cabeça e náuseas. Posteriormente surgem as alterações físicas. “Cresce uma barriga pra frente e a coluna tem que mudar de lugar e de angulação para a mulher continuar se equilibrando. Ela muda o centro de gravidade, abre os pés, por isso a gestante tem

que andar de pernas abertas, pois fica com a base mais alargada”, esclarece a obstetra. As mudanças não foram só no corpo de Ana. Aos poucos, com a ajuda da mãe, a adolescente conseguiu superar a rejeição do pai e aceitar Isabela. “Quando minha barriga crescia, era aquela emoção toda, principalmente quando ela chutava. Pra mim era gostoso, emocionante”. Ana faz questão de dizer o quão é maravilhoso ser mãe, ainda com todas as dificuldades que passa e passou no processo. Conhecer o amor de mãe tem sido especial para ela. Assim como Ana, Maria também descobriu aos poucos a experiência da maternidade. “A primeira vez em que fiquei emocionada foi quando escutei o coraçãozinho. Parece que eu nem acreditava que tinha outro coração batendo em mim”. Aos 21 anos, Maria foi mãe novamente. Miguel agora tem a companhia do irmãozi-

nho Benjamin. Os dois meninos dividem o colo da mãe e os brinquedos espalhados pelo chão. A maternidade parece moldar não só o corpo da mãe, como suas expectativas, seus desejos, suas prioridades. São muitas as alterações físicas, psicológicas e sociais, surge uma nova identidade, uma mudança do papel de filha para o papel de mãe. Com o passar do tempo, Ana e Maria se identificaram com a nova posição. “Saio com ela contente, sorrindo para cima e pra baixo”, destaca Ana. Seus planos agora são em dupla. A parede do quarto e a vida estão cheios de Isabela. *Foi utilizado apenas o primeiro nome das fontes para preservar a identidade delas!

ferhanei@hotmail.com maracrismachado@hotmail.com

Métodos contraceptivos disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS)

Como usar: O homem deve colocar o preservativo antes da penetração, com o pênis ereto Risco de gravidez: De 3% a 7%

Dispositivo intrauterino com cobre (DIU T Cu) Como usar: Deve ser inserido pela ginecologista no útero da mulher. Tem duração de 10 anos Risco de gravidez: Menos de 1%

Preservativo feminino Como usar: A mulher deve introduzir na vagina, antes da penetração. Pode ser colocado até 8 horas antes da relação Risco de gravidez: De 3% a 7%

Diafragma

Pílula combinada Como usar: Deve ser tomada todos os dias, no mesmo horário, conforme a indicação da cartela Risco de gravidez: 0,3%

Minipílula

Anticoncepcional injetável mensal e trimestral Como usar: São aplicados pelo médico por via intramuscular mensalmente ou trimestralmente Risco de gravidez: 0,3%

LEGENDA Previne também doenças sexualmente transmissíveis

Como usar: A mulher deve colocá-lo na vagina antes da relação sexual e retirá-lo depois de 6 horas Risco de gravidez: De 5% a 8%

Como usar: Deve ser tomada todos os dias, no mesmo horário, conforme a indicação da cartela Risco de gravidez: 8%

Não deve ser utilizada por menores de 16 anos Não previne doenças sexualmente transmissíveis

Monique Faria e Renata Barros

Preservativo masculino


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crÔnica

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A fábula da meritocracia brasileira Texto: Jéssica Vitória | Ilustração: Mayckon Oliveira Mota

T

empos atrás, a tartaruga e a lebre resolveram apostar uma corrida para decidir qual seria a mais rápida. Escolheram, assim, a raposa como juiz para decidir o trajeto e o ponto de chegada. A tartaruga, com seus passos lentos, estava determinada. Não causara surpresa, no entanto, a disparada da lebre ao ponto de, na certeza da vitória, sentir-se confortável para tirar uma soneca. Ledo engano! Passo após passo, a tartaruga ganhara vantagem, ultrapassara a sonolenta lebre e vencera a corrida. Escrita por Esopo no século VI a.C. e posteriormente adaptada por La Fontaine no século XVII, a história da tartaruga e da lebre é uma das fábulas mais conhecidas desse gênero literário. As fábulas, por natureza, visam sedimentar no leitor uma moral. A reflexão, neste caso, gira em torno da importância do esforço pessoal, da persistência e de como tudo isso mostra-se determinante para uma vitória. No mundo real, entretanto, não é tão simples acreditar em epopeias como a da determinada tartaruga. Sobram lebres na meritocracia, sistema que beneficia alguém ou um grupo baseado somente no esforço e no mérito pessoal. A fábula do sistema meritocrático ignora o contexto no qual os indivíduos estão inseridos. Na metáfora em questão, a raposa pode ser o Estado, instância responsável por ditar as “regras do jogo” e determinar os caminhos para se chegar ao objetivo almejado. O discurso da meritocracia, porém, ignora os obstáculos sem preocupar em prover condições justas.

No Brasil, dificilmente as tartarugas, por mais disciplinados que sejam seus passos, conseguem diminuir os oportunos quilômetros de distância em que se posicionam as lebres. Conforme os dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) referentes ao ano de 2017, apenas 1% da população brasileira detêm 36 vezes a renda da metade da população mais pobre. Esse desequilíbrio não se manifesta somente no âmbito econômico, já que abarca também o acesso à educação, instância que exerce uma influência importante, capaz de determinar desde o ingresso ao ensino básico à capacitação profissional. Dados de 2015 demonstram que negros e pardos representam 54% da população brasileira, mas somente 12,8% chegam ao ensino superior. Em vista disso, não é surpresa que o 1% da população mais rica seja composta majoritariamente por brancos. Justificar essa desproporção como falta de esforço e persistência individual certamente é ignorar as desvantagens da desigualdade. Na fábula brasileira, as lebres muitas vezes demonstram dificuldades para entender os reveses que as tartarugas manifestadas pelas circunstâncias históricas de renda, questões étnicas, geográficas e de gênero – enfrentam. Afinal, as lebres também argumentam ter seus desafios. Todavia, acreditar que o êxito é alcançado degrau após degrau é ignorar que muitos brasileiros sequer podem vislumbrar a escada. O discurso meritocrático se sustenta quase exclusivamente no argumento no qual o sucesso é uma

questão de empenho próprio. Logo, se 12,8% de um grupo chegou ao ensino superior, o restante também irá chegar com um pouco mais de persistência. Na “fabulosa” meritocracia à brasileira, a lebre detém três séculos de vantagem na corrida. A raposa até determinara o percurso rumo à vitória, mas se esquecera de colocar em condições justas o ponto de partida para a tartaruga. Sob o peso dos estigmas históricos, são poucos os que conseguem cruzar a linha de chegada rumo ao ensino superior, à capacitação profissional e à condição financeira estável. A meritocracia pode ser confortável, como uma sala de aula climatizada, com cadeiras ergonômicas, materiais novos e de qualidade, mas tem um preço alto que muitos não podem pagar. Milhões de jovens dividem os estudos com o trabalho e, muitas vezes, são levados por necessidade à segunda opção. Outros nunca tiveram a educação formal - ainda que pública - como um horizonte. Quando destituído de condições justas, portanto, o mérito constitui-se um valor de elite que possui frutos doces para alguns, mas raízes amargas para aqueles que não fazem parte da porcentagem historicamente mais privilegiada em termos de renda e de acesso a bens materiais e simbólicos. A estes, mais do que nunca se mostra preciso a sapiência da tartaruga e a resistência de seu duro casco.

jessica.vitoria.fernandes@gmail.com


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silhuetas

Estrutura (i)limitada Em Campo Grande existem 463 escolas, sendo 287 públicas e 176 particulares. Para apresentar a realidade e o contraste entre métodos e estruturas, foram selecionadas nesta reportagem fotográfica quatro instituições de ensino dentre as melhores posicionadas no ranking nacional do ENEM 2016 Fotos e Editoração: Ethieny Karen | Julisandy Ferreira | Lyanny Yrigoyen

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Q

uanto um sistema pode limitar um sonho? Analisar a educação pela ótica dos rankings, parece interessante, em partes, esperançoso, porém contraditório ao que se chama de realidade. O sistema educacional no Brasil tem dado importância aos resultados de aprovação no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Isso arquitetou uma competição de marketing pelo título de referência educacional, sobretudo nas escolas particulares. Um exemplo que pode ser observado é a quantidade de provas, trabalhos e carga horária de estudos a que os alunos são submetidos, o que acaba por transmitir a ideia de que o ensino superior é a única opção para um futuro “melhor”. Nas escolas de Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul, o cenário educacional apresenta outra perspectiva, contrária a dos dados.


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Segundo a Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul (SED), existem na capital sul-mato-grossense 463 escolas, sendo 287 instituições públicas e 176 particulares. Dentre estas, as melhores posicionadas no ranking nacional do ENEM de 2016, que possuem número de estudantes maior que 90, divulgado pelo Ministério da Educação (MEC), foram as escolas estaduais Professor Severino de Queiroz e Vespasiano Martins e as particulares Colégio Elite Mace e Nota 10. Através do enquadramento fotográfico, foi possível dissecar as particularidades das estruturas, metodologias, identificar os problemas, o cotidiano e o distanciamento de realidades. O contraste entre dois mundos fica claro nesta narrativa fotográfica. É um mesmo trajeto, o da educação, mas o s caminhos percorridos pela escola pública e privada são diferentes.

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O contraste nas escolas não se trata de competição pela melhor qualidade de ensino, mas constitui um problema de estrutura no Brasil. A educação virou moeda de troca: resultados e rankings, ao invés de investimento em valores de cidadania dos jovens brasileiros. O detrimento da bandeira de Mato Grosso do Sul estampado na parede de uma instituição de ensino estadual que obtém os melhores resultados em nível nacional, declara a preocupação dos órgãos públicos com a formação de seus cidadãos

ethienykarenb@gmail.com juli.look98@gmail.com lyanny98@gmail.com


saúde

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Evelyn Mendonça

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Estado de alerta Estudo mostra que 31% dos estudantes do último ano do ensino fundamental em MS já tiveram casos de embriaguez Texto: Thiago Rezende | Vitória Oliveira

Tinha brigado com a minha mãe, aí fui pra rua e me perguntaram se eu queria fumar.” Assim foi a primeira vez que Jonathan*, 16, estudante do 8º ano do ensino fundamental de uma Escola Municipal de Campo Grande, disse “sim” à maconha. Acanhado e com um sorriso sincero, mesmo camuflado pelas mãos em sinal de timidez, ele é um dos jovens sul-mato-grossenses que engrossam as estatísticas de consumo de drogas. Emanuelle*,14, afirma fazer uso de maconha desde os 12 anos. Ela relata ter consumido a droga horas antes da entrevista e apenas minutos

antes do início de sua aula. “Foi só uma pontinha”, minimiza. Ao ser questionada se alguém havia notado, a resposta é negativa. A adolescente também não tem problemas em contar sobre seu primeiro contato com o entorpecente. “Eu fui por vontade própria, e não me arrependo!”. Histórias como a de Jonathan e de Emanuelle motivaram a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e divulgada em 2016. O estudo revelou um crescimento no número de alunos do 9º ano do ensino fundamental que con-

sumiram bebidas alcoólicas, tabaco ou drogas ilícitas ao menos uma vez. Em nível nacional, um em cada cinco jovens relataram que tiveram pelo menos um episódio de embriaguez. No âmbito de Mato Grosso do Sul, 31,2% dos jovens entrevistados afirmaram ter consumido álcool, número que posicionou o estado atrás apenas do Rio Grande do Sul (34%) e de Santa Catarina (33,8%). “Existem crianças que iniciam muito cedo, com 11, 12, 13 anos. As consequências de se iniciar este processo tão cedo são devastadoras”, explica a psicóloga Sandra Maria de Amorim, professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

Reflexos do meio

Segundo dados divulgados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em 2016 a média internacional de consumo de álcool foi de 6,4 litros por pessoa ao ano. A média brasileira superou esse índice e o país figura na 49ª posição entre os 193 avaliados, com um consumo per

capita de 8,9 litros. A Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP) lançou em 2017 um manual que alerta sobre os danos causados pelo uso precoce do álcool, denominado “Guia Prático de Orientação sobre o impacto de bebidas alcoólicas para a saúde de crianças e adolescentes”. O guia revela que quase 40% dos adolescentes brasileiros experimentaram álcool pela primeira vez entre 12 e 13 anos dentro de casa. “Como dizer para o jovem não fazer tal coisa, se ele observa em todos os finais de semana seus parentes enchendo a cara?”, problematiza a psicóloga Sandra Amorim. “Do ponto de vista psicossocial, um indivíduo não se constitui sozinho. Ele é o reflexo do ambiente e das pessoas com quem convive”, completa. Para a especialista, embora os adolescentes sejam vulneráveis ao abuso de substâncias como o álcool e as drogas ilícitas, existe uma tendência na sociedade de culpabilizá-los. “O que observamos é um desamparo e as drogas acabam preenchendo um vazio e fazem


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Ethieny Karen

com que o sujeito se sinta inserido em algum grupo”, afirma Sandra Maria. A psicóloga esclarece que o uso precoce de substâncias químicas é consequência de uma ausência na estrutura social dentro da trajetória do sujeito. A falta de saúde, a ausência de adultos que sirvam como referência e a carência de acesso a programas de cultura, de esporte, de lazer e de escolas satisfatórias fazem com que o jovem busque preencher as lacunas dessas estruturas básicas com substâncias que lhes trarão sensação de conforto. “Crianças e adolescentes são sujeitos em desenvolvimento, então eles não podem ser considerados como adultos responsáveis e aptos de tomar decisões. Quanto menos você protege e respeita os direitos deles, mais eles ficarão vulneráveis para ir atrás de caminhos alternativos”, explicita Sandra Maria. A posição da professora da UFMS encontra sintonia com a pesquisa realizada por Elisângela Maria Machado Prattal, doutora em Psicologia, e Manoel Antônio dos Santos, psicólogo e docente da Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto, que demonstra que o primeiro contato com a droga ocorre geralmente na adolescência. Segundo o estudo “Adolescência e uso de substâncias psicoativas: o impacto do nível socioeconômico”, publicado pelos autores em 2007 na Revista Latino-Americana de Enfermagem, essa etapa do ciclo evolutivo é marcada por múltiplas e profundas mudanças no plano físico e psíquico, que tornam o adolescente mais vulnerável do ponto de vista psicológico e social. Para chegar às conclusões, os pesquisadores entrevistaram mais de 600 jovens com idade entre 14 e 20 anos no interior do Estado de São Paulo. O quadro apresentado pelos especialistas remete a um agravo aos princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). De acordo com os princípios legais, menores de 18 anos não respondem legalmente por seus atos e, portanto, não são responsabilizados pela aquisição e pelo consumo de substâncias químicas. No entanto, o ECA insti-

saúde

Moedor utilizado para preparar o tabaco ou outros tipos de fumo, conhecido entre os jovens como “dechavador”

tui que é proibida a venda à criança ou ao adolescente de produtos que possam causar dependência física ou psíquica. O adulto que fornecer essas substâncias para um menor de 18 anos estará sujeito a receber detenção de dois a quatro anos e multa de três a dez mil reais. Além disso, caso seja verificada a violação dos direitos de uma criança ou adolescente, o Conselho Tutelar e o Juizado da Infância e da Juventude poderão intervir aplicando medidas protetivas.

Consequências

Conforme o artigo publicado pelos pesquisadores da USP de Ribeirão Preto, as substâncias psicoativas atuam diretamente no sistema nervoso central, podendo causar alterações comportamentais, de humor, de cognição e de percepção, podendo ser de uso lícito ou ilícito. Prattal e Santos esclarecem na pesquisa que, a depender de seu mecanismo de atuação no sistema nervoso, as substâncias podem ser classificadas em três categorias: depressoras, estimulantes e perturbadoras. As depressoras, como o álcool e sedativos, provocam redução da atividade cerebral, levando ao relaxamento; as estimulantes, a exemplo da nicotina, da cocaína e das anfetaminas, provocam aumento da atividade cerebral, fazendo com que o estado de

vigília se prolongue; já as perturbadoras, caso da maconha e do LSD, perturbam a fisiologia do sistema nervoso central, podendo provocar distorção na percepção das cores e formas, além de provocarem delírios, ilusões e alucinações. A psicóloga Sandra Amorim aponta que as principais disfunções causadas pelo uso de entorpecentes em menores de idade são a perda de funções cognitivas, problemas de atenção e memória, insônia e disfunções sexuais. Além disso, essas substâncias afetam o sistema neural e o desenvolvimento biológico e psíquico. Na última década, um estudo publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria pelos pesquisadores Ana Cecília Petta Roselli Marques, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e Marcelo Cruz, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), já chamava a atenção para a possibilidade de efeitos agudos dos prejuízos causados pelas drogas em adolescentes, produzindo até alterações duradouras e irreversíveis. A cocaína, de acordo com a pesquisa, pode desencadear crises convulsivas, isquemia cardíaca e cerebral, além de quadros paranoides. Já a maconha pode desencadear a síndrome amotivacional, caracterizada por passividade, apatia, falta de objetivos, de ambição e de interesse na comunicação, podendo levar à queda do desempenho escolar.

Tratamento

Para o tratamento, além das clínicas de reabilitação particulares, existe o acolhimento a usuários de álcool e drogas nos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD), administrados pela Secretaria Municipal de Saúde Pública (SESAU) da Prefeitura de Campo Grande. No entanto, a psicóloga Sandra Amorim afirma que o tratamento não pode ser feito sob mecanismos de exclusão. “O paciente precisa ser estimulado a se envolver em outras atividades. Quando ele entra em um tratamento que o isola de outras pessoas, isso dificulta que consiga voltar para a própria vida”, argumenta. Além disso, para a professora da UFMS, o atendimento não pode ser exclusivamente psicológico, pois o paciente precisa ter acesso a médicos e a uma rede de suporte de amigos e família. Deve-se também investir em outras atividades de lazer para se desligar do vício. * Os nomes dos adolescentes foram omitidos para preservar a identidade.

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educação

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Direito desigual Educação inclusiva apresenta resultados positivos em Campo Grande (MS), mas casos severos de deficiência ainda causam entraves para garantia da legislação Texto: Ana Rigueti | Mariana Alvernaz

“Seguimos a legislação, então o nosso município é considerado um dos mais inclusivos do país” diz Lizabete Coutinho de Lucca

Em Campo Grande, a exemplo de João Gabriel, foram matriculados neste ano 2.053 alunos com deficiência nas escolas municipais. A principal deficiência identificada nas escolas da capital é a intelectual, totalizando 760 alunos, seguida do transtorno do espectro autista, com 413 casos, e da paralisia cerebral, com 350 registros. Segundo Lizabete Coutinho de Lucca, chefe da Divisão de Educação Especial da Secretaria Municipal de Educação de Campo Grande, há na cidade 94 escolas e em 66 delas existem as Salas de Recursos Multifuncionais (SRM), onde são realizados atendimentos educacionais especializados para alunos diagnosticados com algum tipo de deficiência. Os espaços contam com recursos e materiais pedagógicos para ajudar esses estudantes no processo de escolarização. De acordo com a Secretaria, quando um aluno com deficiência é matriculado em uma escola onde não há atendimento especializado, ele é automaticamente direcionado para a insti-

tuição de ensino mais próxima que atenda suas necessidades e conte com uma SRM. Isso acontece porque não são todas as escolas que têm estrutura física para a construção dessas salas. Ainda conforme dados da Prefeitura Municipal, contabilizando as escolas rurais, o número chega a 100 colégios com pessoas que utilizam as salas multifuncionais. “Seguimos a legislação, então nosso município é considerado um dos mais inclusivos do país”, garante Lizabete.

História Inicialmente, a educação especial se organizou como um atendimento educacional especializado para pessoas com deficiência ou altas habilidades que substituía o ensino regular. Até o início do século 21, o sistema educacional brasileiro abrigava a escola regular e a escola especial e não era possível que o aluno frequentasse ambas as modalidades. No início dos anos 2000, esse sistema Mabile Castagnetti

J

oão Gabriel acorda pela manhã, toma seu café e passa as primeiras horas do dia em casa entretido com os jogos de seu celular. Como grande parte dos meninos de sua idade, adora tudo o que é eletrônico. Perto da hora do almoço, começa se arrumar para a escola. Toma banho, passa perfume e penteia o cabelo. Veste o uniforme e o tênis preto comprado pela mãe para os dias de aula. Como na escola há muitos mosquitos, nunca esquece de passar o repelente. Também não deixa de levar diariamente uma garrafinha com água bem gelada. João almoça e chega a hora de ir. “Na escola ele é rei. Com sua simpatia, cativa quem está ao redor” – conta a orgulhosa mãe Lêda Cristina Siqueira. Querido por todos de sua sala, faz amizade até com alunos de outras turmas. “É o relações públicas da família, se comunica muito bem com todos que conhece”, completa a mãe. Quando a aula acaba, João volta para casa, janta com sua família e se prepara para dormir. Somente consegue descansar tranquilamente, porém, se tudo no seu quarto estiver arrumado: o tapete em determinada posição, as roupas organizadas, cada coisa em seu devido lugar. João Gabriel tem 14 anos e começou a estudar aos dois em uma escola particular. Anos depois, transferiu-se para uma escola clínica, mas somente se adaptou aos estudos quando sua mãe decidiu matriculá-lo em uma escola pública. Apenas lá encontrou suporte para que as suas necessidades fossem atendidas da melhor maneira possível. Diagnosticado com Síndrome de Down, João Gabriel é um dos 13.588 alunos que requerem atendimento especial em Mato Grosso do Sul. Os dados são do Censo Escolar da Educação Básica de 2017 e envolvem as escolas estaduais e municipais desde a educação infantil até a Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Métodos pedagógicos para alunos com deficiência aplicados em sala de aula


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educação

Thalia Zortéa

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começou a se modificar e um único tipo de escola foi adotado de forma a acolher todos os alunos. A educação especial inclusiva opera hoje dentro da escola regular, transformando-a em um espaço para todos. Já as antigas escolas especiais passaram a funcionar como centros de apoio. “Elas operam como apoio escolar, um atendimento educacional especializado, mas não há escolarização”, explica a professora Carina Elizabeth Maciel, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Inclusão e Educação Especial da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Atualmente, o público-alvo da educação especial são alunos com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades/ superdotação. De acordo com a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, documento do Ministério da Educação (MEC), são considerados alunos com deficiência aqueles que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial. Os alunos com transtornos globais do desenvolvimento são aqueles que apresentam alterações qualitativas das interações sociais recíprocas e na comunicação, um repertório de interesses e atividades restrito, estereotipado e repetitivo.

Incluem-se nesse grupo alunos com autismo, síndromes do espectro do autismo e psicose infantil. Os alunos com altas habilidades/superdotação demonstram potencial elevado em qualquer uma das seguintes áreas, isoladas ou combinadas: intelectual, acadêmica, liderança, psicomotricidade e artes.

Jornada

Estudos mostram que a família desempenha um papel crucial na educação dos alunos com deficiências. É a partir do ambiente familiar que são desenvolvidos novos meios comunicacionais e relações pessoais com a sociedade para que haja inserção do aluno especial na escola. O exemplo de Lêda Siqueira é significativo. A mãe de João Gabriel insistiu durante anos para que seu filho tivesse o direito à educação garantido. João ingressou em um colégio particular aos dois anos. Embora Lêda a reconhecesse como uma boa escola, sentiu que não havia foco na educação de seu filho. Passou, então, a levá-lo em uma escola clínica. “Mas era extremamente cara”, relata. Além disso, não via progresso em João. “Ele acabou regredindo por causa dos outros que ainda não tinham a mesma mobilidade”, conta. Por fim, mesmo reticente, Lêda decidiu matriculá-lo em uma escola pública. “Tinha um certo preconceito no início,

mas foi justamente nela que comecei a ver o progresso na aprendizagem de meu filho”, completa. No primeiro ano de João na escola, a mãe foi chamada para uma conversa. O menino havia caído e ralado o joelho, relatara a professora preocupada. Ledo engano. “Nessa hora meus olhos encheram de lágrimas, pois era exatamente isso que eu queria, ver meu filho correndo, brincando, igual a uma criança normal”, recorda a mãe com brilho nos olhos. Ela ainda viria a enfrentar outras adversidades na educação de seu filho. Quando notou que na escola onde ele estava matriculado não havia um professor específico que acompanhasse seu desempenho, recorreu ao Ministério Público para garantir que houvesse um docente de apoio em sala de aula. “Uma vez que a gente tem um filho especial, o medo é que as pessoas não olhem para ele como uma criança normal, então não baixei a guarda até que ele tivesse todos os direitos”, afirma Lêda que hoje identifica uma grande evolução no processo de aprendizagem de João.

O outro lado

Laurice Alves de Oliveira leva todos os dias o filho Victor Emanuel, 16, ao colégio. O jovem campo-grandense estuda em uma escola municipal regular, mas sua entrada para as

atividades ocorre sempre em horário especial. Somente após todos os alunos ingressarem em sala de aula é que a mãe, com o coração apertado, entrega o filho nas mãos de seu professor. O tratamento diferenciado se dá também ao fim das aulas. Algumas horas depois de deixá-lo, ela busca o estudante antes de todos os outros jovens regressarem às suas casas – um cuidado necessário, pois Victor mostra-se muito incomodado com a bagunça dos alunos. O rapaz tem um grau de autismo severo e o funcionamento de suas capacidades social, cognitiva e linguística é bastante afetado, tornando seu dia a dia na escola penoso.

“Uma vez que a gente tem filho especial, o medo é que as pessoas não olhem para ele como uma criança normal” diz Lêda Siqueira

Laurice conta que relutou em matricular o filho na escola regular. Tomou a decisão quando ele tinha 8 anos. “Foi depois de perceber que estava havendo um movimento de inclusão, mas mais por aconselhamento dos psicólogos”, relata. Para a mãe, no entanto, não houve evolução significativa no aprendizado de seu


“Os pais precisam resistir menos para que os filhos vivam essa experiência escolar, mesmo se o retorno não for positivo”

diz Laurice Alves

Rede de apoio

Em Campo Grande, os profissionais treinados e capacitados em educação especial recebem um treinamento de 1000 horas e são acompanhados pelas equipes da Divisão de Educação Especial da Secretaria Municipal de Educação. O treinamento inclui métodos como a tecnologia assistiva para ampliação das habilidades funcionais das pessoas com deficiência. Um exemplo são os alunos com cegueira, que recebem material especializado e acompanhamento diretamente do Núcleo Braille da Divisão de Educação Especial. Além disso, a Divisão promove reuniões com familiares dos alunos com deficiência, en-

contros de pais ao final do ano letivo e palestras com convidados a respeito da educação especial. É realizado também um trabalho de conscientização promovido pelos professores nas salas de recursos. Professores do ensino regular recebem capacitação dos técnicos da Educação Especial, isso porque tanto o docente que trabalha na sala de recurso quanto o que administra a sala de aula precisam atuar juntos. O professor regular faz um planejamento que é compartilhado com o auxiliar pedagógico, responsável por adequar as atividades de forma que todos os alunos com deficiência possam ter acesso ao currículo escolar dentro do seu nível de desenvolvimento. Atualmente, de acordo com a Secretaria Municipal de Educação, há 1.300 funcionários para atender os 2.053 alunos especiais matriculados nas escolas municipais. Os familiares dos alunos com deficiência também passam por um acompanhamento feito pela Divisão. Isso é realizado para saber o progresso do aluno tanto em casa quanto na escola. Se há identificação de negligência por parte da família, seja no âmbito social ou escolar, automaticamente são acionados os órgãos responsáveis, que passam a fazer outro tipo de acompanhamento para saber qual a causa da falha. Mabile Castagnetti, uma das professoras da rede municipal especializadas em educação especial, explica sua experiência de educar um aluno que precisa de atendimento especial. “Comecei a montar jogos adaptados e procurei saber o planejamento dos professores em sala de aula, pois na rede municipal nós temos que participar dessas formações, além de montarmos um Plano Educacional Individualizado, o PEI, para que as necessidades desses alunos sejam devidamente atendidas”, conta. A docente defende que alunos com deficiência conseguem captar os conteúdos como qualquer outra

Mabile Castagnetti

filho nesses oito anos. Ela inclusive já decidiu que Victor não fará o Ensino Médio. “Tanto por ele não ter interesse no conteúdo quanto por meu receio de brincadeiras maldosas dos outros alunos”, argumenta. A mãe afirma que gostaria que as escolas tivessem mais preparo: de professores, de espaço físico, de material e de salas de recursos com mais especialistas. Apesar disso, Laurice explica que não se arrepende do tempo em que deixou Victor matriculado na escola regular. Mesmo não tendo vivido uma boa experiência, a mãe defende que é necessário que os pais insistam na educação dos filhos especiais antes de tirar outras conclusões. “Os pais precisam resistir menos para que os filhos ainda vivam essa experiência escolar, mesmo se o retorno não for positivo”, conclui.

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educação

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Computadores são utilizados no processo de aprendizado dos alunos com deficiência

criança, apenas não ao mesmo tempo, e que são necessários jogos e atividades lúdicas para que eles entendam todo o processo. De acordo com o método, ocorre uma verificação ao final para constatar se o aluno conseguiu compreender as atividades. Depois de dois ou três dias as mesmas atividades são reaplicadas. “Somos nós mesmos que confeccionamos esses jogos, não é algo disponibilizado pelas escolas. Como professora de educação especial, tenho que incluir esses alunos nas atividades de sala dos professores titulares”, explica Mabile. Experiências como as de João Gabriel e Victor mostram que para a Educação Especial alcançar um bom desempenho é fundamental uma estrutura que atenda as necessidades dos alunos com deficiência. As especificidades estão no material pedagógico, no auxílio dos professores das

salas de recursos e no monitoramento do desempenho de cada aluno, além da compreensão e da paciência dos professores do ensino regular. Segundo Mabile, as famílias dos alunos com deficiência também representam grande parte do apoio para que esses estudantes tenham bom resultado pedagógico. O suporte pode estar no incentivo durante atividades do período escolar, na participação ativa no dia a dia dos estudantes, no contato com professores ou na ajuda nas tarefas diárias. “Não existe um padrão, todas as crianças conseguem aprender, não de modo igual e nem todos ao mesmo tempo”, finaliza a docente.

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opinião

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Educação inclusiva é diversidade Texto: Marco Antônio Cruz | Ilustração: Natalia Hirata

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om os importantes avanços de democratização social no Brasil nas últimas décadas, como a adoção de políticas de inclusão (como as cotas) e o respeito às diversidades étnicas e de gênero, conquistados principalmente por movimentos de Direitos Humanos, as concepções de adequação dos espaços sociais também iniciam um processo de transformação para que não sejam excludentes e efetivem os degraus já alcançados.

deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades em escolas regulares públicas e privadas. A reestruturação que possibilita a permanência desses alunos também é assistida e visa a continuidade da escolarização aos níveis mais elevados de ensino e da formação de professores para o atendimento educacional especializado, além da acessibilidade urbanística, arquitetônica, nos mobiliários e equipamentos, nos transportes e na comunicação.

Com isso, quando compreendemos a Educação como um direito de todos a partir dos princípios do Capítulo III da Constituição Federal de 1988, os espaços nos quais se constroem essa formação social também passam a um olhar de ressignificação organizacional. Ao se universalizar o acesso ao ensino, que antes era limitado a grupos privilegiados, cria-se um paradoxo em que indivíduos fora de padrões homogêneos seguem à margem da inclusão em razão de características intelectuais, físicas, culturais, sociais e linguísticas.

Desde a implementação de tais políticas foi expressivo o crescimento de alunos com algum tipo de deficiência matriculados em classes comuns da educação básica regular. Também foi significativo o aumento no número de professores com formação em educação especial. Contudo, os números das organizações que medem o desenvolvimento na educação inclusiva e a população com algum tipo de deficiência como um todo ainda são incongruentes e desafiam as instituições de ensino, que por dever legal não podem se negar a matricular esses alunos.

No que diz respeito às distinções de condições físicas, historicamente no Brasil perdurou o entendimento de que educação especial e educação comum eram organizações paralelas, e, portanto, se instaurou a ideia de normalidade e anormalidade, segregando alunos especiais em salas ou instituições especializadas em atendimentos clínicos. A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, de 2008, assegurou o acesso e a aprendizagem aos alunos com

Os últimos dados do Censo Escolar da Educação Básica, divulgados em janeiro deste ano, referentes à 2017, indicam que houve um aumento de 90,9% de inclusão de pessoas com deficiência em classes de ensino regular. Entretanto, o atendimento capacitado se restringe a 40,1% desses alunos. Apesar do significativo aumento, no ensino fundamental o percentual desses alunos é de 2,8% do total de matrículas. No ensino médio essa porcentagem cai para 1,2% do total.

No quadro quantitativo referente ao progresso das políticas em vigor, os dados, que deveriam ser levantados por instituições responsáveis pelo censo, não são suficientes para acompanhar a universalização do ensino básico. Nesse sentido, constitui-se mais uma objeção, mesmo que menos óbvia, aos alunos com algum tipo de deficiência. Com todos os amparos e convenções que asseguram aos alunos com deficiência o direito ao acesso de ensino regular, aos professores a capacitação para o processo educacional desses alunos e, aos pais, o dever e o direito de optar por esse sistema de ensino, a concepção de escola é redimensionada junto à ótica que contempla a diversidade. Numa perspectiva geral, a educação, mesmo com um avanço gradual, principalmente quando se sai do perímetro urbano, ainda é servida em espaços que não cumprem a permanência básica, como acesso, transporte, biblioteca, saneamento e até mesmo água potável e energia elétrica. As agendas passadas e atuais se encontram e pesam o passo do Estado. Os obstáculos no campo da política e da cidadania devem ser debatidos e derrubados por consequências que não passam despercebidas. Os vieses da educação inclusiva são amplos e dizem respeito a todos; seja o próprio aluno, familiar ou amigo da pessoa com deficiência, ou ainda o cidadão na esfera mais ampla de convívio e respeito à todas as diversidades.

marcoffernandes@hotmail.com


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ímpar

A violência que cala Letícia, hoje com 23 anos, conta que o trauma de infância e os vícios e violência sofridos na adolescência não foram o bastante para impedir que ela realize o seu sonho de terminar seus estudos pelo EJA e entrar em uma universidade Texto: Lua Souza e Julia Renó | Fotos: Júlia Renó

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ete horas da noite no fuso-horário oficial de Campo Grande (MS). Letícia caminha calmamente pelo corredor da Escola Estadual Orcírio Thiago de Oliveira. As paredes de tijolos à vista junto a elementos coloridos e uma pintura de um rosto indígena no pátio trazem um ar mais leve ao conjunto escolar, localizado no Jardim Paulista, na capital sul-mato-grossense. Ao tocar o sinal, os alunos começam a entrar na última sala do segundo andar do acolhedor edifício. Alguns se destacam em meio à multidão por terem uma idade mais elevada em comparação aos outros alunos do colégio. De modo geral, como Letícia, são integrantes do diverso público de alunos do Ensino de Jovens e Adultos (EJA), um universo de mais de 1,5 milhão de estudantes no Brasil. De acordo com o censo 2017 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), esta realidade compreende 516.202 pessoas que cursam o ensino fundamental e 983.791 que estão no ensino médio. Segundo o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC), o EJA é uma categoria de ensino que perpassa todos os níveis da educação básica do país. Essa modalidade é destinada a jovens e adultos que não deram continuidade em seus estudos e àqueles que não tiveram acesso ao ensino fundamental ou médio na idade padrão. Muitos alunos do EJA correm contra o tempo. Durante as aulas, apesar do cansaço após um dia de trabalho dentro e fora de casa, é possível observar que o sonho de terminar os estudos se materializa na atenção, na participação e no interesse em tirar dúvidas. Alguns seguem ainda além e exibem com o orgulho na frente da camiseta a estampa “Terceirão” ao lado do nome da escola. Nas costas, o nome de cada um. Em letras de forma, lá estava escrito: “Letícia Lechner”. Fechada à primeira vista, mas bastante comunicativa, Letícia parou de es-

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tudar aos 15 anos, num intervalo de quase uma década longe do ensino formal. Sua história é marcada por agressões, um relacionamento abusivo, uso de drogas e uma gravidez não planejada – cenário que interrompeu alguns de seus sonhos.

“Ele começou a ter muito ciúme, um ciúme possessivo, e a gente começava a brigar por causa disso. Discutíamos e, quando vi, ele me deu o primeiro soco” diz Letícia Lechner

Infância marcada

A infância é uma das partes mais importantes da vida de uma pessoa. Diversas lembranças são guardadas e ensinamentos absorvidos, mas para muitos, sobressaem os traumas, como é caso de Letícia. Quando criança, teve como exemplo apenas Angélica, que além de trabalhar fora como técnica de enfermagem, criou três filhas com o suor e louvor de mãe solteira. Os pais se separaram logo quando Letícia era pequena e as lembranças paternas são de brigas e decepções constantes. Ao falar do pai, desabafa e recorda das discussões que cravaram na menina a certeza de que nunca deixaria nenhum homem lhe levantar a voz. Os olhos castanhos de Letícia falam por si. Enchem-se de lágrimas que resumem a angústia e a mágoa que a ausência paterna deixou. “Não tive um pai presente em minha vida. Meu pai foi minha mãe. Sou a única que mantém mágoa dele por ter me deixado, pois praticamente criou minhas duas irmãs, mas não me criou”, relata. Antes de desistir da escola, Letícia sofrera bullying. Sempre foi uma menina muito magra, cheia de espinhas e com um cabelo diferente do padrão de suas colegas. Logo que entrou no primeiro ano do ensino médio, ao mudar de colégio, visualizou uma chance de se enturmar com novas pessoas. As dro-

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gas, que tinham como ponto de uso o próprio colégio, eram a chave para finalmente ser aceita. A cocaína passou a ser seu local de refúgio e a conexão que ligava Letícia aos outros estudantes. Com pesar nos olhos e arrependimento, a jovem conta que, na medida em que os amigos ofereciam as substâncias, aceitava sem ponderar as consequências do ato. Aquilo parecia ser apenas uma forma de se aproximar das demais pessoas. “Achava que era para se enturmar mesmo, sabe? Se eles faziam, é por que deveria ser legal”, rememora. Aos 15 anos, Letícia conheceu o primeiro namorado. O rapaz já tinha envolvimento com drogas e, a partir do relacionamento, o interesse dela pelos estudos se diluiu. A jovem passou a matar as aulas na companhia do namorado e dos novos amigos. Com o tempo, simplesmente parou de estudar. No começo, o companheiro era um cara legal e carinhoso. Após um ano e meio de relacionamento, quando ele foi morar com Letícia, uma mudança radical aconteceu: o ciúme do moço se transmutou em possessão. “Ele começou a ter muito ciúme, um ciúme possessivo, e a gente começava a brigar por causa disso. Discutíamos e, quando vi, ele me deu o primeiro soco”, revela.

Vício e possessividade

Letícia Lechner faz parte de uma triste estatística. De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça, em 2017 o Brasil apresentou 388.263 casos novos de violência doméstica e familiar contra a mulher, 16% a mais em relação a 2016. No caso da jovem campo-grandense, as agressões ocorriam durante a madrugada, quando o namorado chegava alterado da rua e sua mãe, sedada à base de remédios, dormia profundamente sem ouvir nada. A violência aumentara gradualmente e algumas brigas não passaram despercebidas por Angélica. Cansada e na esperança de que a filha terminasse o namoro, a mãe expulsou os jovens de

A jovem, que antes temia ter uma família, hoje mostra a filha com orgulho


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casa. A história, porém, tomou um rumo não aguardado. Aflita pelo relacionamento violento, Letícia temia ver o namorado agressor próximo à mãe pelo risco de mais violência e planejava terminar amigavelmente. Ao ser expulsa, porém, ficou sem opções. A saída que encontrou foi viver com a mãe do rapaz. Na casa alheia, compreendia-se em constante dívida, obrigando-se a realizar todos os serviços domésticos. “Eu me sentia mal pela situação, então fazia as coisas na casa”, comenta. Ciumento e possessivo, o namorado, além de agredir Letícia, passou a oprimi-la. A jovem não estava autorizada a usar as roupas que ele considerava indecentes. Além disso, ela deixara de estudar e não podia mais trabalhar fora de casa por não ter a confiança do rapaz. Estava realmente presa em um relacionamento tóxico e perigoso. O uso de drogas se tornou ainda mais frequente para Letícia. Por um lado, uma fuga e uma forma de descontar a frustração de não conseguir sair de toda aquela situação que a prendia. Por outro, um grilhão, pois todo consumo de entorpecentes somente era possível por intermédio do namorado. Assim que completou 18 anos, conseguiu um emprego e decidiu voltar para a casa da mãe. Enfim, uma pausa no relacionamento abusivo. Porém, apenas um breve intervalo. Depois de dois meses, Letícia e o rapaz reataram. Genro e sogra estavam novamente sob o mesmo teto. Os olhos cheios de lágrima revelam o arrependimento da moça ao lembrar da decisão. O relacionamento abusivo agravava-se e os atos de violência passaram a ser potencializados por chantagens constantes. Algumas tentativas de terminar o namoro foram feitas, mas o rapaz sempre se recusava a deixar a casa. Ninguém seria capaz de o tirar dali, argumentava. Apenas em uma ocasião ele saiu, mas não sem resistência. Foi durante uma grave briga na qual estavam envolvidas Angélica e a melhor amiga, que precisaram chamar a polícia e fazer uma denúncia para retirá-lo de lá. O boletim de ocorrência resultou em uma medida

protetiva estipulada pela Justiça de acordo com a Lei Maria da Penha. Segundo o site do Conselho Nacional de Justiça, as medidas protetivas podem ser o afastamento do agressor do lar ou local de convivência com a vítima, a fixação de limite mínimo de distância que o agressor fica proibido de ultrapassar em relação à vítima e, se for o caso, a suspensão da posse ou restrição do porte de armas. O agressor também pode ser proibido de entrar em contato com a vítima, seus familiares e testemunhas por qualquer meio ou, ainda, deverá obedecer à restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores. Outra medida que pode ser aplicada pelo juiz para proteção da mulher vítima de violência é a obrigação do agressor pagar pensão alimentícia provisional ou alimentos provisórios. Depois desses seis anos de aprisionamento físico e emocional, o relacionamento de Letícia deixou marcas profundas em sua vida. Seu relacionamento acabou e ela pode se sentir livre.

Reconstrução

Os anos após o rompimento são descritos como os mais felizes de sua vida. Ao falar sobre isso, os olhos, que antes estavam cheios de lágrima de tristeza, agora se emocionam de felicidade. O alívio e o sentimento de liberdade ficam evidentes. Com o apoio da família

e da melhor amiga, largou as drogas e retomou os hábitos que tinha aos 15 anos, antes de conhecer o primeiro namorado. “Gosto de lembrar da época antes de me envolver com tudo isso. Eu gostava de ler, de ir ao cinema, de conversar com as minhas amigas, comprar roupas novas… Então o que eu fiz?! Saí para comprar roupas, comprei livros, comecei a tirar fotos, dançar...”

“O EJA é muito difícil. Eu já fui desistente e sei como é, você falta dois ou três dias e não quer mais estudar” diz Letícia Lechner

Após uma fase sem conseguir se relacionar com outras pessoas por medo, Letícia conheceu seu atual marido, o qual descreve como um bom pai, bom marido e um homem que nunca levantou a voz para falar com ela. Eles estão juntos há três anos e, diferentemente do parceiro anterior, e dá liberdade e a apoia nos estudos. “Faz três anos que a gente está casado e em momento algum ele me desrespeitou, me xingou ou falou alto comigo. Sempre me deixou livre, nunca me controlou e nem controla, pelo contrário, me ajuda muito. Minha mãe e ele que ficam com a minha filha pra eu ir à escola”, conta.

Hoje, o olhar que antes retratou desesperança, é o espelho de um futuro melhor

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Mas Letícia relata que logo que voltou para o colégio sentiu muita apreensão, pois não sabia o que esperar e nunca tinha ouvido falar do local onde hoje estuda. Um de seus maiores medos era de se sentir deslocada em meio às pessoas mais novas. “Achei que as pessoas iriam me isolar por ser aluna nova, mas não, aí que quiseram me conhecer. Os professores me trataram super bem e me deram uma motivação”. Agora os estudos são prioridade e ela diz que dessa vez ninguém vai interferir em seu processo de aprendizagem. “O EJA é muito difícil. Eu já fui desistente e sei como é, você falta dois ou três dias e não quer mais estudar”, explica. De acordo com a coordenadora do colégio, Rita Del Corso, o EJA lida com alunos adultos que já tem uma história de vida e, portanto, a metodologia didática deve ser diferente da utilizada com jovens do ensino regular, procurando trabalhar dentro da vivência do aluno. Este tipo de ensino representa uma chance de concluir os estudos de forma rápida e válida para entrar em um curso superior ou no mercado profissional. Ao final da entrevista, a jovem se enche de orgulho. Hoje, o olhar que antes retratou desesperança é o espelho de um futuro melhor. Ela agora tem controle sobre sua vida e se sente no caminho certo para retomar seus sonhos. A volta aos estudos, além de representar a esperança de proporcionar um futuro melhor para sua filha, marca também a retomada dos objetivos que tinha anteriormente, como o de fazer faculdade de Direito. Ver os sonhos destruídos foi difícil, mas deixar-se abalar nunca foi uma opção. Com sua mudança de vida e o contato com a liberdade, novas ambições surgiram e agora é a hora de realizá-las. “Ainda não consegui o que eu mais quero, que é entrar na faculdade e me formar. Esse vai ser o meu ponto alto, mas estou quase lá”.

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direitos humanos

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Reflexo social Escola integral representa avanços no acesso ao ensino e na aproximação entre famílias e educadores, mas nuances de violência nas instituições espelham a sociedade e preocupam Texto: Luciano Pinheiro | Renata Vanini

“Não é sempre que conseguimos notar quando um aluno está passando por problemas” diz Nádia Gauna

A psicóloga acredita que a integração com outras instituições da sociedade, como o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), pode aprimorar o suporte dado aos estudantes que sofrem com a violência doméstica, por exemplo. “De modo geral, não há um profissional que lide com isso nas escolas. A escola não vai fazer terapia no aluno, mas pode direcioná-lo para onde possa receber ajuda. O professor que consegue identificar fala com a direção, mas e depois?”, questiona.

Abordagem

Por fazer parte da rotina do aluno, o professor também integra esse ciclo de violência muitas vezes sem a devida instrução sobre como agir em sala de aula. “Não é sempre que

conseguimos notar quando um aluno está passando por problemas. Percebo quando algum aluno que costuma fazer muita bagunça começa, de repente, a ficar quieto”, argumenta Nádia Gauna, 29, professora de Ciências da Natureza no sistema estudual de ensino. A jovem educadora reconhece não ter a devida capacitação para identificar situações que possam espelhar um comportamento violento. Afirma, ainda assim, que procura trabalhar temas mais próximos da vida pessoal dos aluno. “Ajuda os estudantes a expor um pouco mais daquilo que estão sentindo, situações que talvez não entendam muito bem como lidar, algum acontecimento em casa, por exemplo”, esclarece. Para Nazira de Castro, coordenadora pedagógica da Escola Estadual João Carlos Flores, Lyanny Yrigoyen

Viadinho”, “Cala a boca, filho da puta”, “Vai se foder”, “Essa professora é uma palhaça”. Duas horas de observação são suficientes para se impressionar com as manifestações de violência verbal ocorridas entre alunos e contra os professores no interior de uma sala de aula de período integral em Campo Grande (MS). Num canto da sala, chama atenção uma troca de tapas que por pouco não se torna uma briga mais acalorada. Embora não se possa generalizar, são exemplos frequentes de agressões verbais e físicas que, ao lado da entrega de bebidas e drogas por cima do muro, refletem no ambiente escolar a banalização da violência presente em diferentes estruturas sociais. “A violência é um reflexo da sociedade”, explica a psicóloga Evelyn Fernanda da Silva Braga, mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Em seu estudo de pós-graduação sobre a violência nas escolas de período integral na capital sul-mato-grossense, defendido em 2017, a pesquisadora observa que tudo o que ocorre no interior das instituições de ensino tem origem em um corpo social mais amplo. “Além do ambiente escolar, há também toda a estrutura da sociedade e a estrutura familiar, então a violência não está somente no contexto da escola, mas em todos os contextos relacionados”, argumenta Evelyn. De acordo com o documento “Educação Integral: texto referência para o debate nacional”, publicado em 2009 pelo Ministério da Educação (MEC), a proposta desta modalidade de ensino visa não somente aumentar o tempo dos estudantes nas escolas, mas ampliar o currículo e viabilizar questões culturais e promover debates que incluam temáticas sociais como a violência, a educação sexual e a conscientização sobre os riscos do consumo de álcool e drogas.

A violência no ambiente escolar não é somente verbal, também está exposta na pele


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direitos humanos

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Rúbia Pedra

O familiar faz questão de elogiar o sistema de ensino integral. “Isso é uma coisa que eu queria enfatizar, a integração da escola. No nome já fala ‘integral’. A integração da escola-pai-aluno-professor é muito legal”, pontua. Mário ainda diz que o filho apresenta características de revolta desde a infância e que já procurou ajuda psicológica quando o adolescente era mais novo. De acordo com o pai, os psicólogos indicaram que o gatilho para o comportamento poderia ser a ausência da mãe, que o abandonou quando ainda era um bebê.

Abandono familiar

Abandono familiar também é uma forma de violência que causa impactos permanentes

no bairro Rita Vieira, as situações de violência, ainda que não alarmantes, são bastante frequentes, com ocorrências semanais. “Criança briga a todo momento, desde os pequenininhos até os grandes. Temos muitas agressões verbais, algumas brigas de puxar cabelo, mas nada de agressão grave que precisamos chamar o policiamento”, relata. Para ter um contato mais próximo com os alunos, a coordenadora enfatiza que mantém a porta de sua sala sempre aberta e realiza o acompanhamento de algumas aulas.

“É o que temos”

Colega de trabalho de Nazira, o professor Claudeci José da Cruz atua como diretor da escola desde 2012. O educador relata uma melhora nos índices de violência no decorrer da história da instituição. “Se você pegar o histórico de 15, 20 anos atrás, era uma época em que a violência era muito difícil”, desabafa, aliviado com a melhora dos índices atuais. O diretor revela que, paralelamente à queda nos casos de violência, ocorreu na escola uma melhora significativa nos índices de presença dos alunos. Em 2012, explica Claudeci, o número elevado de faltas – uma média de 50 alu-

nos faltosos por bimestre – era motivo constante de acionamento do Conselho Tutelar. Hoje, no ensino integral, que possui cerca de 200 alunos, o número de faltas na escola não chega a ser preocupante ao ponto de justificar o contato com os conselheiros. A escola integral ainda trouxe outras melhorias na visão do diretor. “Conseguimos aproximar as famílias dos alunos e passamos também a ter mais contato. Qualquer coisa que acontece, ligamos e eles vêm”, garante Claudeci, que mais uma vez compara a situação com os tempos passados. Sobre o acompanhamento dos estudantes, o diretor diz seguir o regimento escolar – um livro de regras criado na escola com base nas recomendações da Secretaria de Estado de Educação (SED) – e procura sempre dialogar com os alunos e seus familiares. “Ligamos para a família e conversamos, mas chega um momento em que não temos mais o que fazer, então realizamos a transferência compulsória, prevista no regimento”, detalha. Segundo Claudeci, a presença de um profissional de Psicologia no cotidiano da escola poderia tornar o procedimento de diálogo mais eficiente a fim de evitar a transferência compulsória. O ato de transferir o aluno para outra unidade escolar, por si só, também não é o que o educador compreende como a solução ideal.

Medidas socioeducativas

Na Escola Estadual João Carlos Flores, uma das alternativas oferecidas à família para evitar a transferência compulsória é o cumprimento de medidas socioeducativas. Em conversa com os pais, o corpo diretor sugere que o estudante que cometeu uma ação de indisciplina realize atividades no interior da instituição, como a limpeza de salas, organização da biblioteca e auxílio na cozinha. Na opinião de Nazira, infelizmente não são todos os pais que aceitam as medidas. Contra a corrente, está Mário, 45, que prefere não se identificar para preservar o próprio filho. Procurado pela escola, ele acatou a ideia de que o adolescente de 13 anos ajudasse na limpeza das cinco salas do período integral. “Foi um método alternativo que a gente achou para ajudar na disciplina dele e melhorou muito. Não adianta agredir, se você agride, amanhã ele está fazendo tudo de novo”, afirma. O estudante também aprova a medida aplicada após a quebra de uma cadeira em uma sala de aula. “Era bem chato varrer a sala, mas depois disso eu melhorei, mudei um pouco as minhas amizades. Ninguém tirou sarro de mim, mas eu vi que depois disso precisava melhorar”, conta o adolescente.

A psicóloga Evelyn Braga observa a educação integral como uma alternativa para a diminuição da desigualdade social e para a ampliação do aprendizado do aluno com o intuito de amenizar a exclusão e a pobreza, mas ressalta que isso não pode ser feito sem a ajuda da família. Com o período de tempo integral, o aluno passa a maior parte do tempo no ambiente escolar, o que, sem a presença da família, pode remeter a uma sensação de distanciamento afetivo, adverte a pesquisadora. “O abandono afetivo não deixa de ser uma forma de violência. Isso, com certeza, repercute no comportamento da criança”, explicita. O abandono familiar pode acontecer de diversas formas, seja pela falta de alimentação, de remédios, de higiene ou pela omissão na educação. Evelyn explica que a escola não está no papel de suprir todas essas necessidades, nem de intervir na função dos pais, mas deve promover a educação das crianças. “A instituição de ensino pode identificar esse tipo de situação, porém precisa ter o preparo na formação, principalmente do corpo docente, para trabalhar esses temas dentro da proposta de educação integral”, finaliza.

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economia e finanças

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Caminho alternativo Mercado de trabalho instável e busca por autonomia levam estudantes de ensino médio a iniciativas de empreendedorismo Texto: Guilherme Brasil | Thiago Spila

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ue dia é a prova? Quem é esse professor? Para quando é esse trabalho? Questões simples como essas de um aluno de ensino médio serviram de motivação para os jovens Gabriel Saltiva da Costa, 17 anos, e Wesley Maik Souza da Silva, 15 anos, intervirem na rotina da própria escola. Alunos do segundo ano da Escola Estadual Manoel Bonifácio Nunes da Cunha, em Campo Grande (MS), os garotos desenvolveram um aplicativo denominado MB Online (Manoel Bonifácio Online), um organizador da vida estudantil que, segundo Wesley, torna a escola “conectada digitalmente com os alunos”. O aplicativo serve como uma agenda digital para a escola, que funciona no sistema de ensino integral. Na prática, o software permite que sejam disponibilizados os cronogramas de cada aula e as atividades extracurriculares. Como motivação, Gabriel e Wesley seguiram o pretexto de que os colegas estavam “perdidos” com tantas avaliações, lições de casa, eventos e outros afazeres envolvendo a instituição. Para o desenvolvimento do sistema, que engloba tecnologia digital e aspectos pedagógicos, os alunos ressaltam o incentivo e o apoio do professor de História, Ataíde Neto. Por mais que o auxílio do docente tenha sido para “elevar a moral” dos meninos no projeto, tivera suma importância. “Acredito que todo jovem tem o desejo de realizar algo e de

se engajar em algum projeto, tento nas minhas aulas encontrar e potencializar essas ideias”, afirma Neto. Os alunos não receberam nenhum valor financeiro com o aplicativo, tampouco fora um afazer acadêmico formal. Ainda assim, a experiência de criação modificou a vida estudantil de ambos. “Não recebemos nenhum aporte financeiro, seria ótimo, mas só o protagonismo e a chance de produzirmos já foi muito bom”, revela Wesley. Mesmo sem um exemplo similar na família, não é a primeira vez que o jovem utiliza a tecnologia para empreender. “Tive uma experiência ano passado, em 2017, de criar um aplicativo conceitual para um seminário de propaganda na escola mesmo, mas nada profissional”, recorda.

Nova geração

Casos como o de Gabriel e Wesley, de jovens que pensam para além do esperado de suas obrigações, não são isolados hoje no Brasil. Com as constantes instabilidades do mercado financeiro e o consequente estreitamento das vagas formais de trabalho entre os mais novos, o empreendedorismo emerge como possibilidade tangível de parte de uma geração que não necessariamente se encaixa no tradicional ensino superior. O que não significa que um diploma não seja importante. De acordo com os dados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de

Domicílios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), a taxa de desemprego tende a ser maior justamente entre jovens e trabalhadores sem ensino superior. Enquanto o índice de desemprego total do país é de 13,1%, as gerações mais novas representam um número ainda mais alarmante: 39% dos jovens entre 14 e 17 anos estão excluídos do mercado de trabalho. Aqueles com idade entre 18 e 24 anos também se encontram nesta situação, sendo 25,3% do índice. A escolaridade é uma das chaves de ingresso no mercado de trabalho e a capacitação é determinante nos dados sobre empregos formais. Segundo o IBGE, apenas 6,2% dos brasileiros com ensino superior completo se encontram desempregados. Este cenário já conhecido na passagem da vida adolescente para a adulta, contudo, não representa aqueles que decidem se aventurar pelo mercado empreendedor ao invés de cursar um curso superior tradicional. Apenas em Campo Grande, em 2017 foram abertas 2.490 empresas, número que corresponde a 41,18% dos 6.046 novos empreendimentos de Mato Grosso do Sul no período.

Reeducação financeira

Nos últimos anos houve uma considerável mudança nas perspectivas dos jovens quanto a um futuro voltado à formalidade. Um estudo da Fundação Telefônica em parceria com o Instituto Brasileiro de Opinião Pública (Ibope), re-

alizado em junho de 2017 com alunos de todas as regiões do país, revela que 65% dos jovens preferem ter o próprio negócio a estarem contratados formalmente por uma empresa. O dado traz à tona a necessidade de capacitação desses alunos de forma a adaptarem-se a um mercado cada vez mais competitivo. Com base nessa necessidade, surgem diversas iniciativas de educar as novas gerações nas complexidades do meio financeiro e, principalmente, condicioná-los à proatividade e à independência em seus projetos.

65% dos jovens preferem ter o próprio negócio a estarem contratados formalmente por uma empresa

Um exemplo vem do Programa de Educação Empreendedora do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), que trabalha o empreendedorismo desde o ensino fundamental até o ensino superior. Segundo Patrícia Pereira, gestora do programa, o foco é trabalhar a visão de empreendedorismo não diretamente com os alunos, mas com os educadores. De acordo com Patrícia, o contato entre professor e aluno propicia uma dinâmica mais adequada ao ensino empreendedor. A gestora frisa como é importante separar a ideia


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economia e finanças

Julisandy Ferreira

Guilherme Brasil

PROJÉTIL | #90

bloco de texto olho . Em resumo, podemos dizer que a notícia faz parte do jornalismo informativo. diz Cicrano

Vitor Jucá, 21, criou um aplicativo de monitoramento agrícola que visa auxiliar produtores rurais

de empreendedorismo de um sentido puramente capitalista. “Pode ser visto como algo relacionado à disciplina financeira com base em proatividade e em se enxergar como o responsável por suas ações e direcionamentos”, explicita.

Vista de cima

Vitor Jucá, 21, é o responsável pela parte de tecnologia de sua própria startup (empresa emergente). Trata-se de um aplicativo de prestação de serviço de monitoramento agrícola que visa auxiliar o produtor a tomar decisões mais assertivas a partir de dados das propriedades. “A ideia é tomar decisões com base nas especificidades da própria lavoura, sem se prender em dados mais amplos”, explica Jucá. A startup, que está em fase de implantação, começou com a vontade do jovem e de dois amigos de criar um aplicativo voltado à agronomia logo que ingressaram no curso de Engenharia de Computação na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Com o desenvolvimento do projeto, a equipe inicial

“Pode ser visto como algo relacionado à disciplina financeira com base em proatividade e em se enxergar como o responsável por suas ações” diz Patrícia Pereira

Pesquisa revela que 65% dos jovens brasileiros preferem ter o próprio negócio

acabou reduzida apenas ao próprio Vitor, que mais tarde ganhou um novo sócio. De acordo com o empreendedor, o app encontra demanda no mercado atual devido ao fato de os investimentos serem altos – “E de ninguém querer perder muito”, ironiza o rapaz. Como se trata de um produto da área de tecnologia, a principal dificuldade é importar ferramentas de desenvolvimento devido às altas taxas tributárias.“Mas há também os perrengues de qualquer outro negócio”, complementa Jucá. Do ponto de vista de um pequeno empreendedor, a imprevisibilidade é um fator que “assombra” o funcionamento de um negócio. Dados do IBGE mostram que cerca de 60% das empresas fecham as portas até os primeiros anos. “Às vezes, coisas planejadas dão ruim por situações fora do seu controle e é preciso lidar com isso”, afirma o jovem. O risco, segundo o empreendedor, implica na possibilidade de perder repentinamente tudo o que se havia construído caso ocorra uma cuidadosa administração do capital da em-

presa. É neste ponto que entra em cena outro caráter importante da administração do próprio negócio: a responsabilidade. “Ter sua empresa não significa que todos os dias se irá acordar com vontade de ir para o trabalho ou sempre se dar ao luxo de faltar às reuniões só porque você é o seu próprio chefe”, exemplifica. Jucá explica que apesar da possibilidade constante de brigas internas e de instabilidades externas com influência determinante no funcionamento da empresa, o importante é a manutenção da perseverança e da fé nos projetos por parte dos empreendedores. De outro lado, ter o próprio negócio permite sempre sonhar. Questionado sobre o sucesso imediato do aplicativo, o empresário diz que está sempre aprendendo, e conclui com bom humor: “para mim, deslanchar é estar bilionário”.

thiagobeckan@hotmail.com guilhermebrasil14i@hotmail.com


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ciência e tecnologia

PROJÉTIL | #90

Educação Científica Bolsas e feiras de ciências são incentivo para ingresso de jovens no mundo da pesquisa Texto e Editoração: Danielle Matos | Monique Faria

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Monique Faria

espertar o interesse pela Ciência na educação básica não é fácil. Pesquisadores se esforçam para encontrar uma metodologia interessante para os estudantes. O resultado desses esforços são publicações, artigos e apresentações em congressos e simpósios. Alguns deles descobriram que a maneira mais eficaz de ensinar sobre Ciência é deixar os alunos fazerem Ciência. Os infográficos desta seção demonstram que Mato Grosso do Sul é destaque na educação científica de ensino médio público.

BOLSAS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA JÚNIOR O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) destina bolsas de para estudantes do Ensino Médio como fomento à pesquisas desenvolvidas em escolas públicas de todo Brasil. As bolsas são concedidas à instituições parceiras e cabe a elas a seleção e acompanhamento dos bolsistas. Duração: 12 meses, podendo ser renovada. Valor: R$100,00 Quem pode receber? Estudante matriculado no ensino fundamental, médio ou profissionalizante de escola pública, com frequência mínima de 80% e sem estar no mercado de trabalho. Quais são os compromissos? Dedicação de oito horas semanais à pesquisa; elaboração de relatório das atividades realizadas a cada seis meses; apresentação dos resultados nos encontros de iniciação científica desenvolvidos na instituição que cede a bolsa.


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ciência e tecnologia

PROJÉTIL | #90

O que eu preciso para participar da Mostra Brasileira de Ciência e Tecnologia (MOSTRATEC): Estar matriculado no Ensino Médio (regular ou técnico), ter no mínimo 14 anos e participar em apenas um projeto.

Há duas formas de participar das feiras científicas nacionais: Inscrever seu projeto no processo de seleção ou obter credencial por feiras afiliadas; As regras para cada uma delas são diferentes

O que eu preciso para participar da Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (FEBRACE)? Estar matriculado no 8º ou 9º anos do Ensino Fundamental ou Ensino Médio (regular ou técnico), ter no máximo 20 anos e participar em apenas um projeto com no máximo 12 meses de duração (mas pode ser inscrito continuação de projeto anterior).


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ciência e tecnologia

PROJÉTIL | #90

Ciência em Mato Grosso do Sul Saiba os números e onde estão localizadas as feiras regionais de ciências e tecnologia

Feciaq: Feira de Ciência e Tecnologia de Aquidauana Fecintec: Feira de Ciência e Tecnologia do Campo Grande Fecipan: Feira de Ciência e Tecnologia do Pantanal em Corumbá Fecitecx: Feira de Ciência e Tecnologia de Coxim Fecigran: Feira de Ciência e Tecnologia da Grande Dourados

Fecioeste: Feira de Ciência e Tecnologia da Região Sudodeste em Jardim Fecinavi: Feira de Ciência e Tecnologia de Naviraí Fecinova: Feira de Ciência e Tecnologia de Nova Andradina Fecifron: Feira de Ciência e Tecnologia da Fronteira de Ponta Porã Fecitel: Feira de Ciência e Tecnologia de Três Lagoas FETEC: Feira de Tecnologias, Engenharias e Ciências de MS


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ciência e tecnologia

Solange Romeiro

PROJÉTIL | #90

Há uma nova mentalidade na ciência, diz especialista

Participação do MS na FEBRACE

TOTAL: Número total de projetos do estado de MS EP: Escolas Públicas IF: Institutos Federais

danielleerrobidarte@gmail.com monaagfaria@gmail.com

“Por minha observação, verifico que o interesse pela pesquisa científica na educação básica tem aumentado, não só em Mato Grosso do Sul, mas em todo o país. Atribuo isso à uma nova mentalidade na ideia de fazer Ciência a partir do uso da metodologia de projetos científicos para resolução de problemas”. A constatação é da pesquisadora Solange Romeiro, membro da Comissão Organizadora da Mostra Internacional de Ciência e Tecnologia, que ocorre anualmente em Novo Hamburgo (RS) e está na 33ª edição. A mostra recebe anualmente cerca de 450 projetos de diferentes partes do mundo. Solange destaca não apenas o aumento no número de projetos finalistas, mas a evolução qualitativa e quantitativa na produção. “Percebi que os projetos têm atingido as expectativas na melhoria da qualidade. Vejo isso a partir das pontuações elevadas na avaliação e pelo número de premiações conquistadas. Os alunos estão melhor preparados para realizar e defender suas pesquisas científicas”. A especialista conclui que o aumento é reflexo da forma como a Ciência é apresentada aos alunos.


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extramuros

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Educação humanizadora Colaboradoras: Silvana Ramos (Diretora) | Lusimeire Figueredo (Diretora Adjunta) | Patrícia Cardoso (Professora) Escola Estadual Manoel Bonifácio Nunes da Cunha Ilustração: Selma Tereza

O

bservamos um cenário bastante otimista no que se refere à educação pública no Brasil, apesar de certa defasagem que pode ser justificada pelos altos índices de estudantes que chegam às Universidades sem conseguir produzir textos e realizar simples cálculos. Vislumbramos uma mudança significativa quando os estudantes são tratados de forma afetiva, empática e atribuindo-lhes corresponssabilidade.

Quando recebemos nossos estudantes, os vemos de uma forma superficial, conhecendo-os apenas como um número na lista de frequência. Quando percebemos o estudante, podemos compreender melhor as condições que resultam em suas características individuais e que se revelam no ambiente escolar. Através de suas histórias de vida, podemos planejar com mais humanidade e maior possibilidade assertiva o caminho para um aprendizado significativo. No momento em que o estudante é tratado com cordialidade por todos os atores que compõem o cenário escolar, verifica-se que o processo de aprendizagem flui de forma mais qualitativa. Outro fator de grande relevância que corrobora para a melhoria do ensino no cotidiano escolar e consequentemente em seu escopo é a corresponsabilidade do estudante, fazendo com que este seja protagonista, tanto no seu aprendizado quanto no cuidado com o espaço escolar. Pontuamos então que docentes e discentes são partes integrantes desta mudança de paradigma. O docente na reformulação de suas práticas pedagógicas alia o aprendizado acadêmico aos seus conhecimentos do cotidiano, embasado em respostas mais concretas para seu fazer metodológico de excelência; o discente, por outro lado, reconhece sua autonomia embasado em conhecimentos empíricos, considerando que tem direitos e deveres na busca de sua própria reconstrução intelectual, profissional e pessoal. Neste novo contexto pedagógico de aprendi-

zados significativos, aliando afetividade entre as partes envolvidas no processo de ensino aprendizagem e o protagonismo, encontramos uma escola mais participativa, onde a cooperação e a parceria entre o aprendizado e o fazer se relacionam de forma mais integrada e inclusiva, contextualizando as boas práticas ao real significado do conhecimento para a vida. Essas mudanças oportunizaram aos estudantes melhores condições de aprendizado. Com isso, terão um futuro mais promissor e de relevância em sua vida acadêmica e profissional. Inegavelmente esse processo de afetividade e corresponsabilidade do estudante perpassa uma visão diferenciada da formação e da incorporação do professor como agente de transformação. Na prática e vivência estabelecidas no desenvolvimento de uma escola com essa perspectiva humanizada, o professor que consegue adaptar-se é transformador, referindo-nos a adaptar-se como um mecanismo de desconstrução do perfil do educador cristalizado socialmente. Materializando a visão positiva da educação pública no Brasil, consideramos as experiências afirmativas desenvolvidas e subsidiadas pelo modelo pedagógico da “Escola da Autoria” na rede Estadual de Educação de Mato Grosso do Sul. Mesmo em um prisma in loco não universal, as possibilidades de reavaliação e reflexão são extremamente animadoras.

eembmc@sed.ms.gov.br


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