Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS - Edição 88

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Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS

Nº 88 - ano 27 - DEZ/JAN/FEV 2017-18

Distribuição Gratuíta

Trilhos da memória A ligação entre os estados de São Paulo e o, até então, Mato Grosso proporcionado pela ferrovia Noroeste do Brasil, trouxe a Campo Grande desenvolvimento econômico e social inéditos para a região. Desse modo, foi constituída a híbrida identidade cultural sul-matogrossense, englobando diversos povos que chegaram por meio dos trilhos há mais de 100 anos

Pé na estrada

Quatro jovens viajam pela América Latina para espalhar a arte e se desvencilhar da vida padrão exigida pela sociedade pós-moderna

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Era uma vez... Descubra o que está por trás de um país de poucos leitores

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Mulher sul-matogrossense Conheça a história de mulheres com diferentes atuações que contribuíram para a cultura do estado

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Editorial

Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS -

Cultura Trilhada Do latim “cultura”, o termo representa um conceito de várias acepções, sendo a mais corrente, especialmente na antropologia; a definição genérica formulada por Edward Burnett Tylor, que explana a cultura como todo um complexo que inclui conhecimento, crenças, arte, moral, leis, costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade. O ser humano, como ser social, caracteriza-se, naturalmente, como ser cultural. “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. O Artigo 215 da atual Constituição Brasileira demonstra o quão importante é a cultura para uma sociedade, a ponto de o Estado garantir acesso a ela. Há presente no código uma seção tratando apenas de cultura - o que é ideal -, pautando-a como fundamental no desenvolvimento dos cidadãos de qualquer país. Porém, o Governo Federal não parece dar tanta notoriedade na prática quanto a Constituição deu na teoria. Na principal cidade do país, por exemplo, o orçamento municipal para a cultura é de 1% e, dessa pífia quantia, o governo Dória efetuou um corte de 43,5% do que seria encaminhado para os eventos culturais e programas de incentivo à cultura como o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) e a Lei Rouanet. Em tempos de crise, o desenvolvimento cultural do país segue em risco. Saindo da grande metrópole paulista, em exatos 992,7 quilômetros seguidos pela BR-163, adentra-se à Cidade Morena, Campo Grande. A brisa do ar mais puro, as retorcidas árvores e os suntuosos ipês denunciam as características físicas do cerrado e dão boas-vindas aos turistas e a quem por aqui passa - e a quem, porventura, decide ficar. Considerado um povo “fechado”, o campo-grandense tem em sua cultura pontos rotineiros como o Parque das Nações Indígenas ou passeios nos shoppings da cidade. Fugindo dessa rota, nos bairros é possível ver rodas de conversa entre vizinhos ou amigos na calçada com o tereré na mão. A cultura popular se estende à história: moradores sabem bem como foi a transformação promovida pela chegada da ferrovia à cidade, e que, com ela, imigrantes se assentaram na Cidade Morena. Desde então, é possível ver a miscigenação não só nos traços dos habitantes da cidade, mas também - e talvez principalmente - em sua cultura. O tereré mistura-se à comida árabe, japonesa, tailandesa e chinesa na feira central: o monumento com a forma do macarrão com caldo, carne, ovo e cebolinha exemplifica a convivência, adaptação e mistura de culturas na cidade. Além da cultura aqui já enraizada e, constantemente, aprimorada pelos campo-grandenses, outras também se fazem presentes e são criadas a partir de segmentos sociais esquecidos pelo poder público e pela sociedade em geral. A cultura cinematográfica indígena surpreende e mostra que esse tipo de produção não é exclusiva e monopolizada pela indústria branca. A cultura negra também é reverenciada e ganha destaque em como é compor um grupo étnico-racial que enfrenta ainda tantos preconceitos em pleno século XXI. A mulher sul-mato-grossense, por sua vez, ganha voz e espaço para identificar o que caracteriza a mulher dessa terra e os desafios que ainda são enfrentados por elas em uma cidade com um histórico social machista. Além desses temas, são trazidos assuntos também renegados pela mídia tradicional como a problemática da depressão e os porquês de a Cidade Morena ter altíssimos índices desse mal que afeta cada vez mais campo-grandenses. Por fim, a Síndrome de Down é tratada sob um olhar humanizado, demonstrando a situação de famílias que lidam com pessoas que possuem essa alteração genética produzida pela presença de um cromossomo a mais, o par 21. A edição 88 do Projétil vem para mostrar a cultura, do modo mais amplo, de Campo Grande.

Boa leitura!

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Carta do leitor Segunda, quatro de setembro de 2017, 17h20. Toca o celular e, do outro lado, teacher Edson Silva, dando notícias, como havia eu solicitado pelo MSN mais cedo, de como andava a carpintaria final da Edição 88 do Projétil. Segundo ele, o jornal estava resolvido editorialmente falando, com a decisão da Turma de destravar material das páginas 23 e 24, e ainda, por fechar o texto da retranca Carta do Leitor, duas colunas de texto, na dois, ao lado do Editorial. Edson: Professor Marcio! Por decisão da Turma essa carta é sua! Manda uma foto bem legal para gente publicar! Eu: Como assim! Aposentei ou melhor fui pra re forma. Faz algum tempo que abandonei o teclado! Tenho fugido de escrever. Não devia! Então... aproveito esse espaço para pontuar algumas reflexões sobre como se faz jornalismo impresso na prática acadêmica, e, em particular, no ensino dos acadêmicos no processo de criação (diagramação) e produção gráfica de mídia impressa, em especial no jornal laboratório. O Jornal Laboratório Projétil NÃO pode acabar. Sua impressão, circulação e distribuição gratuita devem estar garantidas pela instituição. Eu estou na produção do Projétil desde a edição nº 12 (Capa caixa de sabão em pó) em junho de 1993 até a 87. São 75 edições em 24 anos de UFMS, trabalhando a produção deste jornal dentro da disciplina de Planejamento Gráfico e como gestor na busca dos recursos orçamentários necessários para garantir os custos de impressão. Umas constatações. O Projétil tem que continuar! Com esse tempo todo de circulação em nosso estado, fora dele, e principalmente em Campo Grande, o Projétil é um produto editorial consolidado como mídia do Curso de Jornalismo da Faculdade de Artes, Letras e Comunicação-Faalc/UFMS. Tem MARCA! Arrisco dizer que é o veículo laboratorial, produzido por estudantes e professores de instituição pública de ensino superior, mais antigo do Brasil, com regularidade e sempre com total independência editorial.

Tudo o que é publicado é discutido em sala de aula democraticamente! O Projétil tem MUITO texto. Sempre foi assim. Que bom! É no Projétil que o repórter floresce. E toda essa vivência na rua, na reportagem, vem para o texto. Tudo é importante. Nada pode ficar de fora. E agora? Calma! Vai dar frutos. Não cabe na página. Quero mais espaço. Não tem! EDITA! Sempre foi assim. Mesmo no InDesign, a 88 é assim. Que Bom! Acredito que é no ensino do jornalismo impresso a verdadeira forja desta profissão. Por isso não se pode parar. Só aprende a escrever, lendo e escrevendo. Quem não publica no Prójetil não passou pelo curso de Jornalismo da UFMS. Por conta dessa árdua tarefa, defendo aqui que haja mais participação de outros professores da área do texto nessa empreitada, pois é muito grande o volume de informação e de produção escrita que devem receber orientação e fomentar no acadêmico a reflexão crítica sobre aquilo que se está publicando. A área da fotografia deve estar nessa empreitada também. O Projétil sempre foi editado por três ou mais professores. É só ver os expedientes. Finalizo essa missiva ao leitor com a Capa da edição nº 63, de julho de 2009, onde posei de modelo fotográfico, tomando um tereré, para a matéria Pantaneiro Mesmo. Assim, como Alfred Hitchcock, que sempre dava um jeito de aparecer como figurante nos seus filmes, dei um jeito de ficar para sempre impresso no Projetil. Republica essa “foto” de capa por favor! Fico feliz! Beijos a todos.

JMarcio Licerre (no Facebook)

Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Dezembro/Janeiro/Fevereiro de 2017. Produzido pelas acadêmicas e acadêmicos do 5° semestre de Jornalismo, sob orientação dos professores Edson Silva (Jornal Laboratório II), Rafaella Lopes Pereira Peres e José Márcio Licerre (Planejamento Visual). Edição: Daniel Catuver, Fernanda Sandoval, Lucas Castro, Lucas Silva, Raira Rembi. Diagramação/Produção Gráfica final: Adrian Albuquerque, Daniel Catuver, Fernanda Sandoval, Lucas Castro, Raira Rembi. Redação: Adrian Albuquerque, Bárbara Rezende, Beatriz Camargo, Carlos Yukio, Claiane Lamperth, Daniel Catuver, Diego Eubank, Douglas Ferreira, Fernanda Sandoval, Gabriela Coniutti, Gustavo Zampieri, Heloísa Carvalho, Ighor Avanci, João Victor Vieira, Karina Cantieri, Ketlen Gomes, Larissa Ivama, Lorrayna Ferreira, Lucas Castro, Lucas Silva, Marcelle Marques, Maria Paula Garcia, Paula Navarro, Raira Rembi, Sarah Santos, Silvia Helena de Souza, Talita Oliveira e Vitória Teslenco. Apoio Técnico: Panagiotis Alexandro Tsilfidis. Editorial: Fernanda Sandoval e Lucas Silva. Capa: Adrian Albuquerque Foto: Adrian Albuquerque Correspondência: Jornal Projétil – Curso de Jornalismo – Faculdade de Artes, Letras e Comunicação – Cidade Universitária s/n – CEP 79.070-900 – Campo Grande, MS. Fone (67) 3345-7607/ (67) 99271-8018 – E-mail: eseiva@ terra.com.br (Prof. Edson Silva). Agradecimentos ao Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul pelos arquivos cedidos. As matérias veiculadas não representam, necessariamente, a opinião da UFMS ou de seus dirigentes, nem da totalidade da turma.

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Ferrovia Foto: arquivo cedido pelo IHGMS

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“A ferrovia semeou a cidade”

A estrada de ferro trilhou os rumos socioculturais de Campo Grande Adrian Albuquerque Daniel Catuver Gabriela Coniutti Os trilhos que proporcionaram a diversificada composição sociocultural da Cidade Morena foram fontes de sonhos e decepções. Ao longo de mais de 100 anos, a estrada de ferro Noroeste do Brasil (NOB) continua a atravessar a memória daqueles que tiveram suas vidas marcadas pela ferrovia.

Tarde ensolarada, rua estreita e casas de semblante simpático. A rua Dr. Ferreira, ou rua da Vilinha (como é chamado pelos moradores), é onde descansa e abriga boa parte da história da estrada de ferro que semeou a capital sul-mato-grossense. A arquitetura já alterada – parte pela contemporaneidade, parte pelo tempo – ainda mantém o ar de vizinhança amistosa, e dentro das moradias se encontram os diversos relatos sobre os trilhos que cruzaram a cidade.

A Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (NOB) começa sua história no Mato Grosso, atual Mato Grosso do Sul, em 1908 durante o começo de sua construção na frente em Porto Esperança — sendo a outra frente em Bauru, SP — para a conexão do interior com Campo Grande, na época uma vila. Tal feito teve repercussões consideráveis na capital fazendo, primeiramente, com que se deslocasse o eixo comercial de Corumbá para Campo

Grande, o que permitiu um maior desenvolvimento urbano. “Essas chegadas de povos vêm muito disso, a oportunidade”, relata o pesquisador e historiador Celso Higa. Além disso, é notável a modificação e miscigenação cultural que a estrada de ferro causou. Da imigra ção japonesa, árabe, libanesa, paraguaia, além de brasileiros de outras regiões do país que se instalaram em Campo Grande, a ferrovia possibilitou no Mato Grosso


“Nosso tecido social, ele é muito amplo e a ferrovia trouxe isso” Maria Madalena Dib

Desses japoneses, grande parte okinawanos, que se instalaram aqui em MS houve uma perceptível contribuição à cultura campo-grandense. Seja por disseminarem certo conhecimento sobre hortifrutigranjeiros na capital ou pela colaboração na mão-de-obra da ferrovia, os japoneses foi um dos primeiros povos a dar a partida na cidade multicultural que hoje é Campo Grande. “Ofereciam salários grandes aos imigrantes. Então, aqueles japoneses que vieram desde 1908 e estavam em São Paulo nas experiências da colheita do café, que se viu infrutífero — a ideia da propaganda que se fazia no Japão era plantar as árvores que dão ouro — então eles vieram e começaram a ser relacionados como mão de obra da estrada de ferro”, explica Higa. Hierarquia sócioarquitetônica Segundo Maria Madalena, houve na comunidade ferroviária campo-grandense um microcosmos de poder que distribuía tanto socialmente quanto por sua arquitetura a hierarquia vigente. “É o enclave dentro de uma cidade.” As pequenas casas de madeira denunciam a simplicidade da Rua dos Ferroviários e da vida dos operários que moravam abaixo da estação. Já a parte em que se seguia a Rua Calógeras,

Foto: arquivo cedido pelo IHGMS

instalavam-se os chefes, engenheiros e pessoas de alta graduação. A ferrovia dividia as classes sociais de uma maneira específica que se estendia ao inconsciente de quem ali morava. “Filho de engenheiro não brincava com filho de soca” (trabalhadores da via permanente que socavam as pedras miúdas que revestia a linha entre os dormentes, conhecida como brita), relembra. “Nessa parte da Calógeras de frente pra estação funcionava a casa da diretoria, ali morava só diretor. Aqui onde nós estamos, que hoje é o prédio do Instituto, era o pernoite da chefia. Não era o pernoite de funcionários sem graduação, aqui só vinham engenheiros, médicos, advogados, supervisores... aqui era um hotel da ferrovia”, acrescenta. De acordo com a diretora do Instituto, na Rua dos Ferroviários se instalavam os operários de menor graduação, e que, consequentemente, moravam em casa de menor orçamento (de madeira), mas que era necessário estar perto dos engenheiros e supervisores no caso de algum acidente ocorrer. “Eram pessoas que estavam dentro de um sistema que tinha que funcionar muito rápido. ” No que se diz dos trilhos que aqui passaram, há certa unanimidade nostálgica da população. À medida que os anos passam, mostra-se o efeito perceptível que a estrada de ferro teve na capital. “Isso é a criação de uma cultura. Eu acho que ela é mais que uma mudança, a ferrovia ela criou uma cultura”, afirma Maria Madalena.

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Entrada principal da estação ferroviária de Campo Grande, na década de 90 Foto: arquivo cedido pelo IHGMS

do Sul algo semelhante ao melting pot (ou seja, um caldeirão de raças) como ocorreu em Nova Iorque — uma alusão a uma sociedade heterogênea que se torna uma só à medida que seus elementos se fundem. “Ficaram muitas influências e nós permeamos entre elas. O nosso tecido social, ele é muito amplo e a ferrovia trouxe isso. A ferrovia semeou a cidade”, diz Maria Madalena Dib, diretora do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul (IHGMS).

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Rua Dr. Ferreira, Vila Ferroviária, na década de 90 Foto: Adrian Albuquerque

Ferrovia

As pequenas casas de madeira denunciam a simplicidade da Rua dos Ferroviários e da vida dos operários que moravam abaixo da estação Memórias sobre os trilhos A pequena Rua Imbaúva, localizada na região oeste de Campo Grande, abriga em uma de suas casas a grandiosidade histórica de um senhor que, por

Ex-ferroviário caminhando, vestido em seu uniforme da época, pela Rua Dr. Ferreira, Vila dos Ferroviários - 2017


Ferrovia Foto: Adrian Albuquerque

5 - Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS 32 anos, dedicou sua vida à ferrovia. A figura avistada na charmosa casa 258 é a de um homem moreno, com traços bem marcados em sua pele que revelam sua vasta experiência ao longo de seus 84 anos de vida. Antes mesmo de a campainha ser acionada, os passos na rua despertam aquele senhor que está sentado na varanda de sua casa tirando um cochilo. O pequeno radinho preto, que toca uma sequência de música sertaneja, é a trilha que adormece Sr. Valto.

Levantando-se de sua cadeira em direção ao portão, o ex-ferroviário abre um largo sorriso que anuncia o entusiasmo de quem tem muita história para contar. Na porta da casa, que dá acesso direto à sala, uma senhora com um lenço preto e bobes no cabelo, estica-se no sofá para ver quem é. Logo sorri dizendo que havia se esquecido de arrumar-se para receber visitas. Tornando a acomodar-se na cadeira, Valto fica risonho o tempo todo. Demonstrando muita vitalidade em sua fala e em seu andar, após desligar o rádio, ele se levanta de sua cadeira para buscar um livro no quarto. Não demora muito e volta à varanda arrastando uma pequena mesinha de madeira para apoiar o exemplar e outros tantos objetos que contam a ligação entre ele e o sonho de trabalhar na ferrovia. Sua primeira carteira de trabalho com registros de suas efetivações na carreira, uma cópia de seu documento de contratação, muitas fotografias em seu trabalho que mostram sua juventude e de sua esposa – que conheceu no trem – são alguns dos pertences que resistiram ao tempo e que Valto guarda com muito zelo, como se fosse um tesouro. Nascido no dia 5 de setembro de 1932, em Três Lagoas, no então estado de Mato Grosso, foi somente em 1954, aos 21 anos que Valto Batista foi contratado para trabalhar como operário na turma de empedramento em sua região de origem. Também conhecida como “soca”, sua função era desempenhada na linha de trem socando a brita, uma pedra miúda que servia de apoio para reforçar a segurança dos dormentes. E foi realizando seu ofício com excelência que o então ferroviário foi conduzindo a cargos com melhores condições de trabalho.

Sobre o livro, as mãos enrugadas sinalizam a imagem de antigos engenheiros e da primitiva estação de Bauru-Noroeste. As páginas seguintes ilustram a diretoria, a equipe de comunicação, as máquinas e suas diferenças de cargas, os operários. Um compilado de informações que eram utilizadas para o estudo dos ferroviários. O aposentado conta que a “estrada” também ensinava muitos a ler e a escrever, e fala sobre as dificuldades que enfrentava para estudar. “Eu morava no Cascudo [...], chama Vila Esplanada, nós morávamos ali, nossas crianças todas pequenininhas. Onze horas eu saia de lá naquela buraqueira. Não tinha ônibus, não tinha asfalto, não tinha nada”. Sr. Valto lembra que chegou a fazer o curso de matemática por correspondência pelo Instituto Universal Brasileiro, de São Paulo. “Sabe por que eles queriam pessoas caipira? O moço da cidade chegava lá cheio de razão, e o caipira, ele queria aprender, ele queria trabalhar, então a estrada fazia reciclagem todo ano com os funcionários pra ensinar ele”. Com olhar enlevado e cheio de orgulho, relembra o empenho que tinha em apren-

Foto: Adrian Albuquerque

- Olá! O senhor é o Seo Valto? - Batista Dias, 84 anos? Eu mesmo!

O ex-ferroviário Valto Batista Dias, 84 anos, relembra histórias da época em que trabalhava na ferrovia

der e acrescenta, “[...] eu, por exemplo, vim aprender a ler aí. Eu era analfabeto. Entrei lá com 21 anos, eu e muitos. ” Anos mais tarde, foi efetivado como auxiliar até chegar ao cargo de chefe de estação. No dia primeiro de fevereiro de 1986, 32 anos depois de seu ingresso, Valto Batista Dias findou sua trajetória como trabalhador da NOB. Hoje, 31 anos depois de sua saída da ferrovia, Valto diz, com a voz em tom

nostálgico, que tem saudades da época em que conseguiu viver seu sonho, ter criado seus filhos através do suor derramado nos trilhos e, com o coração cheio de orgulho, repassa sua história, pois somente assim é possível mantê-la viva. “Por favor, não fale da ferrovia!” A sala abarrotada de quadros transpassava o orgulho que carregava por ter


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Foto: Adrian Albuquerque

Foto: Adrian Albuquerque

Ferrovia

O ex-ferroviário Valto Batista Dias, 84 anos, e sua esposa, Dativa Batista dos Santos, 82 anos, na casa em que vivem.

criado três gerações. O cômodo pouco iluminado continha em seu espaço dois sofás e uma televisão a poucos metros de distância. Lá estava ela, deitada, acompanhando atentamente o objeto brilhante que estava na sua frente. Dona Dativa Batista dos Santos, de 82 anos, se mostra surpresa com a nossa chegada, com as mãos na cabeça diz: “Nossa! Esqueci mesmo que vocês viriam”. Cumprimento seu marido, Valto, ferroviário aposentado, e sigo para conversar com Dona Dativa, a senhora que em passos lentos me leva à cozinha, e em um tom de quem quer se desculpar, conta que não tem coisas boas para me dizer. “Quem tem coisa boa é ele, eu não” [se referindo ao marido], abaixando os olhos e abrindo um leve sorriso de conformidade. A dua-

lidade entre espanto e curiosidade me desperta ainda mais interesse em saber o que aquela mulher, de voz frágil e movimentos suaves teria a me contar. Ao sentarmos uma de frente para a outra, na parte central da cozinha onde a mesa de refeições estava posicionada, a matriarca da família me analisa em uma fração de tempo de um suspiro, ela estava pronta para falar! Seu tom de fala sucinto, com suas nuanças de mistério, fazia minha cabeça borbulhar em centenas de perguntas. Não conseguia parar de pensar no tanto de histórias que a mulher sentada à minha frente poderia ter vivido. De todas as coisas que eu poderia imaginar, nenhuma chegou perto do que Dona Dativa, tinha para me contar. Olhando fixamente nos meus

olhos, movimentando as mãos com uma angústia que parecia ter sido acumulada por anos, dando pequenas pausas enfim exprime o que sentia: “Eu não gostava, era muito pouco pra mim, eu queria outra coisa, não era aquilo que eu queria... viver ali, sabe? Eu queria trabalhar, viver fora, estudar.. aí, cortou tudo isso de mim”. Arrependimento, frustração por ter vivido uma vida que não queria. Sacrifício. Com os olhos marejados, a mãe de cinco filhos lembra das dificuldades que passava para criar suas crianças pequenas enquanto seu marido trabalhava. Dona Dativa relembra de um dos episódios mais tristes e desesperadores que teve por conta da falta de acesso aos hospitais com sua filha Rosa, nascida com encurtamento dos membros superiores devido ao remédio Talidomida. Ninguém imaginava que a pequena tinha problemas cardíacos: “A criança ficava doente e não tinha como você tratar, não tinha um médico, não tinha nada. Era longe e não tinha condução pra você ir, era o trem, e o trem era o coletivo de passageiros, ele só passava uma vez, se adoecesse depois que passou... só amanhã. Às vezes tinha trem de carga e eu ia no trem de carga levar a criança. Ela [a filha Rosa] levei uma vez, estava roxinha parecia de iria morrer, eu não sabia se ela estava morta ou se ela estava viva, e para chegar até o médico eram mais de 12 horas depois da minha casa. Eu morava em Albuquerque e o

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médico era em Aquidauana. Ela tinha problema cardíaco e ninguém sabia”. Com os olhos marejados, Dona Dativa dá uma pausa, abaixa a cabeça, olha para os lados e segue contando. “Então levei ela... estava fora de hora, era de noite, estava sem luz no vagão. Eu com ela nos braços no escuro sentada em um banquinho baixo. Cheguei em Aquidauana, o condutor do trem parou ali, me perguntou para onde iria, então falei que não sabia porque não conhecia a cidade. Cheguei em uma cidade a noite com uma criança doente que não sabia se estava ou não morrendo e sem luz pra ver... Eu saí, fui andando, passei em uma rua que estava escura, ainda não tinha amanhecido e sentei em um banco da rua. Fiquei sentada com ela no colo, depois foi clareando e deu pra ver ela, então passou um rapaz que me ajudou pra chegar no médico”. Sempre em segundo plano, Dona Dativa ajudou e assistiu o marido vivendo o sonho de trabalhar com o trem. E mesmo com o sentimento de isolamento pulsando em seu peito durante anos, ela não perdia sua capacidade de sonhar: “Eu tinha vontade de sair pra cidade, ver gente, trabalhar no comercio, conversar outras coisas”. Seo Valto hoje conta suas histórias, mostra suas fotos, gesticula. Já Dativa arruma a casa e assiste TV para passar o tempo. Quando recebem visita, a matriarca da família já sabe o que irá acontecer: “Eu não gosto... chega 3 ou 4 pessoas aqui em casa durante o dia, resumindo... só sai ferrovia. Ele lembra muito do passado e o passado pra mim não foi bom”. Com um sorriso no rosto, Dona Dativa diz que seu grande sonho era ser enfermeira, e que quando pequena, a brincadeira que ela mais gostava de fazer era fingir que estava cuidado de quem precisasse, pois bem... Ela cresceu e cuidou, não apenas do marido, mas também dos filhos, netos e agora bisnetos. Mas ela... Ela ficou. Condicionada a viver em um ambiente em que não se sentia bem, a senhora de 82 anos diz que assumiu o controle da sua vida recentemente: “Eu tomei a rédea agora, há pouco tempo”. Dona Dativa Batista dos Santos é a força em forma de mulher.

adrian.ferrera01@gmail.com dpo.catuver@gmail.com gabrihhhtelaconiutti@gmail.com


Mochileiros Foto: Lucas Castro

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Pé na estrada

Quatro jovens viajam pela América Latina para espalhar a arte e, acima de tudo, se desvencilhar das garras da vida padrão exigida pela sociedade pós-moderna Lucas Castro Lucas Silva “Podem cortar todas as flores, mas não podem deter a primavera”, disse Pablo Neruda. Mas ainda não é setembro, as folhas caem apenas. É julho, é inverno. O que poderia florescer de tão belo antes do programado pelas estações? Diego Cuellar, 24 anos, colombiano e imigrante em terras brasileiras, dá a resposta e diz: “É mais do que belo, é um lugar que nos inspira a fazer a arte”. Pedi para que nos conduzisse até lá, mas sem aviso prévio, era para lá que ele nos levava. A brisa fria disputava espaço com os raios de sol. De imediato, os olhos vislumbraram o chão que parecia um belo jardim rosado devastado por uma criança travessa. Estávamos sob a sombra de um Ipê rosa, a árvore símbolo da cidade de Campo Grande. Mas suas flores pa-

reciam brotar do chão e não dos troncos secos de seus galhos. O cenário era de fato, incrivelmente belo. Era dali que emanava a fonte de inspiração de Diego e seus amigos também latino-americanos, a chilena Katerina Araneda, 26, e os compatriotas colombianos Jonathan Adames, 25, e Camilo Andres, 27. Uma mulher forte, decidida e esperançosa “Meus pais me deixaram viajar porque eles se renderam: ‘Ah, não posso contigo. Anda, vá ser feliz!’”. É o que conta Katerina, artista e mochileira, sobre a opinião do pai e da família que ficou em Santiago no Chile, a respeito da vontade de se reinventar, conhecer e estudar fora de seu país, que julga sério demais para se criar e viver da arte. É

no Brasil que pretende se tornar mestre de dança e pedagogia. E, se possível, comenta esperançosa, pensa em viver um tempo por aqui, reforçando que no país é muito legal fazer arte.

“Meus pais me deixaram viajar porque eles se renderam: ‘Ah, não posso contigo. Anda, vá ser feliz!’” Katerina Araneda Licenciada em dança contemporânea pela Universidad de Arte Y

Ciencias Sociales (ARCIS), localizada na capital chilena, Katerina é agitada, opta viver em constante movimento, enchendo o mundo com sua arte e contando sua história através da voz e com seu charango na mão (instrumento andino de cordas dedilhadas). Depois da dança, dedicou-se ao estudo de canto, mais especificamente o Jazz, na Escuela Superior de Jazz, também em Santiago. Há pouco tempo, a jovem também se envolveu com a Capoeira, o maior motivo que a fez conhecer o Brasil, país criador e referência dessa manifestação cultural. O espírito forte, guerreiro e feminino dela traz à tona a figura de uma mexicana que também dedicou sua vida à arte, Frida Kahlo, que deixa claro sua genialidade em uma célebre


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Foto: Lucas Castro

Mochileiros

Katerina e Jonathan vão juntos rumo ao nordeste levando muita música e arte pelo caminho

Da vizinhança para o mundo Outras histórias estavam por vir, a conversa se delonga. E Katerina era uma entre quatro jovens sedentos por contar suas vivências, anseios, preocupações e expectativas. Um discurso se diferencia dos outros no que tange aos planos para o futuro. Eram vagos. Estavam abertos para as intempéries do destino e suscetíveis aos ventos irregulares do outono a serem alterados a qualquer instante, controlados por um clima que ele mesmo ditava sem previsão do tempo. “Não penso muito no futuro, quero ficar tranquilo em algum lugar, mas não pra sempre, por pouco tempo e seguir viajando, sempre quero viajar, seguir conhecendo e aprendendo mais”, é o que explica Jonathan Adames. Em sua cidade de origem, em Bogotá, na Colômbia, ele teve seu primeiro contato com a arte através da música, mais especificamente a percussão e a bateria.

Seu maior desejo é comprar uma kombi e viajar pela América Central e andina vivendo da música. Tal anseio não deixou de lembrar o famoso longa-metragem dos anos 70 do cinema mexicano, o filme “El Topo”, do diretor franco-chileno Alejandro Jodorowsky, no qual retrata a vida de um pistoleiro que caminha pelo deserto do México na fronteira com os EUA em busca de compartilhar aventuras e desvendar alegorias e enigmas em cima de seu cavalo. A diferença é que Jonathan queria perseguir suas aventuras dirigindo uma Kombi em lugares que iam desde o Canal do Panamá, a passar pela cordilheira dos Andes até o sul do deserto do Atacama. Uma flor de lótus tatuada em seu joelho esquerdo se destaca quando cruza as pernas e condiz com a pureza espiritual que emana de Jonathan para que consiga alcançar o seu sonho por mais estranho e excêntrico que se pareça. Insatisfeito em só contar suas histórias, ele ainda deixa um conselho: “Sempre que tiver a oportunidade de conhecer outro país, conheça. Pois as únicas fronteiras e barreiras se encontram aqui”, expressa, em tom de conclusão, apontando o dedo para sua cabeça. E também nascido em Bogotá, sendo vizinho e amigo de longa data

“Sempre que tiver a oportunidade de conhecer outro país, conheça. [...] As únicas fronteiras e barreiras se encontram aqui (na cabeça)” Jonathan Adames

de Jonathan, está Camilo Alarcon, o único com trajes que denunciam e identificam claramente sua origem andina e a cultura indígena que ainda prevalece e sobrevive no modo de vida do povo colombiano originária dos Maias, Astecas e, principalmente, dos Incas. Em suas mãos encontram-se três claves de malabares, que aprendera a manusear uma semana antes de sair da Colômbia, com cores diferentes entre si, uma verde, outra alaranjada e a última azul. Na junção de seus significados, sugerem liberdade, vitalidade e harmonia, respectivamente. Elementos mais que necessários para quem transita de um lugar a outro, sem mapa, bússola e ponto cardeal. O primeiro contato com a arte foi com a pintura e, posteriormente, com a convivência e o aprendizado compartilhado de outras viagens também o fez aprender a fazer música e a viver dela. Assim, como seu vizinho, ele não tem uma meta de manter uma vida estável em um lugar já programado. Ele gosta de estar em movimento. “Tenho 27 anos, porém não sinto que tenho 27, ainda me sinto jovem. Um dia quero morar na Europa, estar viajando, não tenho uma meta como uma vida estável em uma casa”, finaliza. Uma canção do Pitbull, cantor de ascendência cubana com forte influência latina em suas músicas, chamada “Across The World” expressa que a música é a linguagem universal e em seu refrão reforça a vontade do artista ao compor o seguinte trecho: “Eu vou cantar ao redor do mundo, ao redor do mundo”. E Camilo, nada mais quer do que o trecho sugere, viajar ao redor do mundo com sua música e sua arte, Foto: Lucas Castro

frase: “Pensavam que eu era uma surrealista, mas eu não era. Nunca pintei sonhos. Pintava a minha própria realidade”. E Katerina, assim como ela, não vive seus sonhos apenas no campo da imaginação. Ela manifesta sua realidade em gestos, em cantos e em movimentos que contagiam, sensibilizam e emocionam quem estiver disposto a sentir sua arte.

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Camilo é o mais velho do quarteto, porém é o que se sente mais jovem


Foto: Lucas Castro

9 - Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS

Diego deseja viver seus últimos anos de vida junto ao seu povoado

O jovem que deseja morar entre as montanhas Pra divergir do ponto de encontro em que convergem os planos de vida de Katerina, Jonathan e Camilo, apresenta-se Diego Cuellar com uma novidade e distinção entre os quatro. Ele deseja ter uma casa em seu povoado. Um lugar com muita montanha e belas cachoeiras chamado San Agustin, um povoado na Colômbia. E para conseguir construí-la, tem planos de sair em breve do Brasil e ir à França para conseguir dinheiro suficiente e realizar seu sonho através da arte circense e da música.

dedilhar. Sempre gostou do som das cordas e decidiu comprar o seu próprio instrumento. “Meus pais davam dinheiro para comer no colégio. Com esse dinheiro eu não comia, eu guardava para comprar o violão”, conta o jovem mochileiro, com um sorriso de canto de boca. Nitidamente, Diego é mais seguro de si, tem uma meta bem definida e um desejo de morrer em sua terra natal.

Incerto destino Os quatro têm projetos diferentes. Separam-se na 18ª Convenção Brasileira de Malabarismo e Circo, em Goiânia, a Capital do Cerrado. De lá, cada um seguirá seu rumo, seu futuro, seus sonhos... Katerina vai ao nordeste, com destino à Bahia. Jonathan pretende acompanhá-la. Diego, antes de pisar em solo francês, quer ir até Lima, no Peru, passar um tempo com

“Meus pais davam dinheiro para comer no colégio. Com esse dinheiro eu não comia, eu guardava para comprar o violão” Diego Cuellar

sua namorada e regressar para ver seus familiares na Colômbia. Camilo deseja chegar até o litoral do Brasil. “Nossa família sempre se preocupa, porque eles sabem que estamos na rua e que às vezes passamos fome e precisamos de dinheiro.” A saudade da família é inevitável na vida dos quatro jovens. A fala é de Diego, mas o sentimento é compartilhado por todos ali presentes. As estradas que os conduzem ao próximo destino também são as mesmas que os distanciam de seu passado, da sua história e da segurança de ter um lar junto de seus familiares. Caronas vem e vão nessas estradas a fora, algumas duram de quatro a cinco dias. Como o próprio Diego nos conta, é difícil para os pais saberem sempre onde Foto: Lucas Castro

conquistando novos lugares, novos rostos e novos fãs de todas as idades, línguas e culturas.

Gabriel Garcia Marquez parece prescrever em uma de suas frases a vida do jovem Diego: “Todo mundo quer viver em cima da montanha, sem saber que a verdadeira felicidade está na forma de subir a escarpada.” Sim, os momentos mais felizes de Diego é o presente. Segundo ele, buscar sua vida da sua maneira é o que faz ele sentir feliz consigo mesmo e contente com esse modo de vida. Sua casa, nas montanhas, entre as cascatas, só virá depois de muito suor e luta. Mas são nessas batalhas que ele encontrará vários guerreiros que darão conta de compartilhar ao seu lado os momentos plenos de sua vida: a tal verdadeira felicidade citada por Marques para, enfim, escalar a montanha e ter direito a sua sonhada estabilidade e segurança junto ao seu povo, onde foi criado.

Mochileiros

“Ainda me sinto jovem. Um dia quero morar na Europa, estar viajando, não tenho uma meta como uma vida estável em uma casa” Camilo Alarcon Diego aprendeu aos 14 anos a tocar violão sem nenhuma ajuda e teve a companhia de seus amigos que também ansiavam aprender a arte do

Ao longo do caminho, os mochileiros conhecem muitas pessoas e têm que lidar com a saudade dos familiares


Mochileiros e como estão. Terão de confiar esperançosos que tudo ficará bem, assim como seus filhos deverão ter a mesma expectativa ao acenar o braço em uma rua sem direção e rota definida. Quatro jovens. Incontáveis viagens. Um futuro com local improvável. Seus lares não são mais as casas, elas não acompanham a dinâmica do movimento. Uma vida programada foi deixada de lado, rejeitaram seu destino. Não vão plantar para colher no futuro. Não colherão frutos, nem flores. Porém, suas sementes podem ser plantadas por todos os lugares que passarem e sem esperar pelo crescer, prosseguiriam com a certeza de que

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florescerão daqui centenas ou milhares de dias e com a confiança de que voltariam a dispersar seus grãos por outras terras, outros povos e outros cenários outrora mais belos que aquele da praça rodeada de flores rosas. Eram sem dúvida tão semelhantes e, paradoxalmente, distintos dos Ipês. Similares, pois floresciam antes do esperado, no tempo seco, no inverno. Contudo, diferentes, porque continuavam a florir depois de agosto.

lucas.bcastro@hotmail.com lucas_13088@hotmail.com

Foto: Lucas Castro

O Cedami Solidariedade, amor, compaixão e satisfação. Estes são alguns dos sentimentos transmitidos e demonstrados no Centro de Apoio ao Migrante (Cedami), em Campo Grande, que completará 33 anos de existência no dia 25 de outubro deste ano. O projeto de ação social começou com a distribuição de alimentos a pessoas que não eram da cidade e que vagavam pelas ruas, principalmente a Avenida Afonso Pena. O local recebe pessoas de todo o estado, do Brasil e até do exterior, que chegam à Capital e não têm condições de se hospedar em algum local adequado durante a estadia na cidade, como nos conta Joelma Moraes, 49, assistente social e coordenadora da casa: “Atendemos quem não tem condições financeiras de arcar com suas próprias despesas, uma pousada, um hotel, alimentação e pessoas que vêm fazer perícia ou consulta médica”. As pessoas que procuram o centro ou são encaminhadas até lá, chegam na cidade à procura de emprego, com problemas sérios de saúde ou com familiar doente e, muitas vezes, não têm como voltar, por falta de dinheiro. “É feita uma triagem desse migrante e a casa acolhe com alimentação e hospedagem” explica a assistente social. Dessa forma, Ficamos por aqui. Cada um seguirá seu caminho levando música, arte e, acima de tudo, alegria para outros povos ao redor do mundo

o Cedami ampara e disponibiliza acomodação para dormir, café da manhã, almoço e janta, até que a pessoa consiga resolver o problema e voltar para casa. Além desses casos, o Cedami recebe também imigrantes que vêm visitar e conhecer Campo Grande. Joelma revela que ali antigamente era um albergue, que servia sopão para moradores de ruas e pessoas necessitadas. Atualmente, atende, principalmente, imigrantes vindos dos mais variados países latino-americanos. E foi dessa maneira que chegamos aos quatro viajantes, conhecemos suas histórias e ouvimos seus sonhos e aflições. Lá os acolheram, lá nos receberam e de lá fica a expectativa de que mais pessoas necessitadas consigam apoio e que tenham a mesma sorte de encontrar um lugar tão acolhedor como tiveram a oportunidade de conhecer Katerina, Jonathan, Diego e Camilo. “Ajudo da maneira que pode. Nossa profissão é um pouquinho cruel, nós seres humanos sempre queremos fazer o que está ao nosso alcance, mas nem sempre isso será possível, mas nós temos feito muito por eles”, expressa a principal interlocutora dos residentes da casa, dona Joelma, que não só os orienta, como também escuta as diversas histórias que essas pessoas têm pra contar.


Gastronomia Foto: Gustavo Zampieri

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Gosto de herança

Carlos Yukio Gustavo Zampieri

A notável influência do sobá na culinária campo-grandense

Em meio a caixas de madeira, grandes panelas de metal, fogões industriais e mesas, começa a ferveção. Coloca o macarrão no Tchauan, pote onde é consumido. Mede o tamanho. Pequeno, médio ou grande. Coloca na peneira. Coloca no caldo. Embebeda no caldo. Coa. Bota no pote de novo. Coloca o caldo no pote. Coloca cebolinha, ovo em tiras e carne. Leva para mesa. Começa de novo. E assim, prato a prato, sobás e mais sobás saem das cozinhas das 25 sobarias da Feira Central e Turística de Campo Grande. O sabor de uma cultura é passado para os visitantes que andam para lá e para cá nos corredores da feira. A noite começa mais cedo para os feirantes donos das barracas. Desde às 16h já se preparam para o grande movimento que borbulha o local todas semanas, das quartas aos domingos há 88 anos. Os legumes são picados, preparados e reservados. A omelete é cortada em tiras e colocada para secar em tábuas de madeira em frente a ventiladores. A carne começa a ser cozida e o caldo de carne, preparado. O macarrão, previamente feito e cortado, colocado para

fora da geladeira. Cinco horas. As lanternas de papel se acendem junto com as lâmpadas. Homens e mulheres que carregam nos olhos puxados e no cabelo liso e preto, um país, trabalham lado a lado com outras nacionalidades e pratos. Não só de sobá vive a Feira Central. Mas é essa a jóia da coroa de Mato Grosso do Sul. A culinária carrega consigo histórias e informações de um povo. Através dela, conseguimos enxergar o desenvolvimento e a organização social humana. A arte de cozinhar evolui junto com a trajetória e está totalmente ligada com a cultura local. Ela é típica e histórica. Pela alimentação, é possível visualizar e sentir tradições que não são ditas. A comida é também memória, opera muito fortemente no imaginário de cada pessoa, e está associada aos sentidos: olfato, visão, paladar e até a audição. Campo Grande abriga diversos povos e culturas: gaúchos, nordestinos, paulistas, mineiros, paraguaios, bolivianos, portugueses, italianos, árabes e japoneses. Todos eles se misturam e criam a cultura campo-grandense. A partir disso surge a culinária pró-

pria da cidade morena. Muitos pratos considerados típicos e originários da cidade, são na verdade, de outros locais e que quando chegaram aqui foram adaptados, como é o caso do sobá.

“Ele vendia na casa dele e o japonês que vinha na chácara vender verdura, ia lá comer. E ele cercava! (...) Aí o pessoal começou a ficar curioso para saber o que que era e aí começou.” Nina Katsuren Prazer escondido Com origem japonesa, o sobá se tornou tradicional e faz parte da cultura campo-grandense. Sua receita é simples: macarrão, molho, ovo em tiras, cebolinha e carne suína ou bovina,

mas, cada família tem seus ingredientes especiais. A tradição é ir até a Feira Central comer, mas, pela sua popularização, hoje as sobarias já estão em todos os lugares da cidade. Nem sempre foi assim. “Meu sogro vendia mais para os feirantes, mais para o japonês, né? ”, conta Níria Katsuren (62), que está a 34 anos no mercado e traz na face o semblante de calmaria e paciência contrastando com a correria a sua volta. Pertencente à primeira família que popularizou o sobá em terras campo-grandenses e proprietária da Barraca da Níria, diz que antes era um constrangimento para seu povo comer um prato, na época, diferente. “Ele vendia na casa dele e o japonês que vinha da chácara vender verdura, ia lá comer. E ele cercava! Tinha vergonha de comer aquilo lá na frente de todo mundo porque japonês quando come macarrão faz barulho, né? Aí o pessoal começou a ficar curioso para saber o que que era e aí começou. ” Toda semana, Dona Níria prepara cerca de 80kg de macarrão em sua fábrica familiar. A massa, segundo


Gastronomia ela, é a base de ovo, farinha e mais outros ingredientes que diferem entres as barracas e fazem com que o gosto mude sutilmente entre os pratos. Mas o espetáculo gastronômico vai além do palco onde são vendidos pratos quentes, doces, bebidas e artesanato. Atrás das cortinas, nos bastidores é que a feira se movimenta de verdade. Adentrando os corredores pouco explorados pela maioria da multidão, encontra-se uma porta com os dizeres acima dela: “administração” e lá dentro encontra-se Alvíra Appel Soares de Melo (53), presidente da Associação da Feira Central e Turística de Campo Grande. De origem germânica, veio do Sul do país para Campo Grande após casar-se com um campo-grandense. Inicialmente feirante, plantava figos e fazia compotas que vendia na feira quando ainda era feita na rua. Conquistando seu espaço entre os demais feirantes, na maioria japoneses e que tinham um contexto cultural totalmente diferente, foi eleita presidente em 2006 com 70% dos votos. Hoje, 11 anos depois, é uma figura emblemática que sabe o importante papel que tem em sua comunidade: “Eu sei da responsabilidade que eu tenho. Eu não estou aqui apenas por que eu quero estar aqui, eles [os demais associados] também têm que querer que eu esteja ”.

para o público que se perdeu devido à concorrência da onda de restaurantes fast food que invadiram a cidade. Há 88 anos a Feira Central acontece pelas ruas da capital. Originou-se na Avenida Afonso Pena e funcionava das 8h às 16h aos sábados. Mais tarde, a Feirona mudou-se para a Rua Calógeras e Antônio Maria Coelho antes de, em 1966, ir parar nas ruas José Antônio e Abrão Júlio Rahe. Lá ganhou mais força na cultura campo-grandense, e tomou conta também da Rua Padre João Crippa e virou definitivamente um local tradicionalmente familiar. Em 16 de dezembro de 2004, o então prefeito André Puccinelli assinou decreto e transferiu a Feirona para a Esplanada Ferroviária. Foi totalmente reformada em outubro de 2006, possuindo uma melhor infraestrutura para os feirantes trabalharem em relação as demais localidades passadas e onde funciona até hoje.

A Feira Central é o abrigo e o berçário das sobarias da cidade A Feira Central é o abrigo e o berçário das sobarias da cidade, dali saem os melhores chefes de cozinha. O local comporta, atualmente, 25 estabelecimentos, variando de 5 a 30 funcioná-

Foto: Gustavo Zampieri

Prato principal A feira passa hoje por uma reformulação para que se torne mais atrativa

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Fachada da Feira Central de Campo Grande rios, por barraca. Geralmente, os restaurantes são familiares, passando de geração a geração. A média de visitantes na feira é de 50 mil, variando em períodos de festas. A feira tem 1,1 mil pessoas com vínculo empregatício. Há 12 anos, a Associação promove o Festival do Sobá, que acontece em agosto, para fomentar o setor com o sobá oriental de origem Okinawa sendo o prato principal. O já tradicional festival mescla aspectos gastronômicos, sociais, econômicos e culturais e tem durante quatro dias programação diversificada que inclui música, dança, exposições, cozinha show, saúde e apresentações com artistas nacionais e regionais. Este ano, a décima segunda edição acontece dos dias 10 a 13 de agosto.

Reconhecimento Para se tornar um patrimônio imaterial são necessárias expressões, práticas e conhecimentos tradicionais transmitidos de geração para geração que são especialmente valorizados pelos grupos sociais como referências fundamentais de sua história, memória e identidade. Esse patrimônio tem caráter dinâmico e depende da ação humana para existir e se manifestar à percepção. Portanto, diz respeito à uma tradição no presente. Atualmente, a Feira Central luta para que seja registrada como patrimônio cultural imaterial de Campo Grande e Mato Grosso do Sul pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Mais informações: Endereço: Rua 14 de Julho, 3335 - Centro, Campo Grande - MS Horário: Aberto Às quartas, quintas e sextas, a partir das 16h. Sábados e domingos, Às 12h. Telefone: (67) 3317-4671

Monumento ao Sobá: ponto turístico do Mato Grosso do Sul

cykfilho97@gmail.com gustavo.zampieri08@gmail.com


De Outras Terras Foto: Gustavo Zampieri

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“Os mascastes apostavam no relacionamento com o possível comprador para ter sucesso nos negócios”

Eben Arab

Seja da Palestina, Síria ou Líbano, os filhos distantes dessas terras estão aqui e contam como é viver entre duas culturas Barbara Cesaretto Silvia Helena Souza Ao andar pelo centro de Campo Grande e conversar com alguns comerciantes a respeito da história do local, não é preciso esperar muito tempo para os árabes se tornarem assunto. Conhecidos como “turcos”, denominação que muitos deles não gostam por se tratar de uma generalização, os árabes são famosos por suas habilidades

em negociar e comercializar produtos. Foi o comércio uma das primeiras ocupações de várias famílias imigrantes quando começaram a chegar ao Brasil entre o final do século XIX e início do XX. A figura do caixeiro-viajante, ou mascate, como se tornou mais conhecido, se popularizou com os árabes que percorriam o Brasil inteiro vendendo todas as mercadorias, desde utensílios domésticos até vestuário, ligando as cidades mais afastadas com os grandes centros. Devido a grande quanti-

dade de produtos que eram vendidos, os mascastes apostavam no relacionamento com o possível comprador para ter sucesso nos negócios. Alguns chegam a dizer que “a alma do árabe é o comércio”. O adeus Sírios-libaneses e palestinos saíram de seus lares, deixando para trás família, amigos e uma vida, a fim de encontrar um lugar melhor para viver. Muitos deles sentiam profundamente os

impactos dos conflitos políticos-religiosos e econômicos de suas terras natais. Não demorou muito tempo para que os imigrantes encontrassem em si mesmos a ajuda que precisavam. Em Corumbá foi criada uma colônia palestina, e esta auxiliava as famílias que chegavam ao país, fazendo empréstimos para que elas tivessem condições de se estabelecerem financeiramente. Essa atitude ajudou muitos imigrantes, como a família de Amin Asrieh.


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Amin Asrieh não esconde seu orgulho por realizar um sonho As gerações

Entrando no Malki Bar, em primeiro momento não notamos sua singularidade. Mas para cada passo dado, uma descoberta é feita. Se de um lado vemos sofás em volta de arguile, do outro existe uma parede repleta de cartazes referentes à cultura ocidental. Se em outra parede há, em alto relevo, linhas representando a arquitetura de característica árabe, a do próprio local é tão moderna quanto qualquer outro estabelecimento recém-formado na cidade. A mistura de sensações que o bar causa foi intencionalmente pensada por Amin Taher Asrieh, 27 anos, proprietário do local. Filho de pais palestinos, nasceu em Corumbá, ainda muito novo voltou com a família para Kafr Malik, cidade palestina, mas a situação não havia melhorado, então seus pais decidiram voltar. Amin cresceu, veio para Campo Grande e se formou em Psicologia. Pouco tempo depois decidiu abrir o Malki, “Eu sempre quis trabalhar com a cultura, sempre gostei da dança, de difundir a cultura” recostado no sofá de seu bar, disse confiante. Aprendeu a língua, a dança e a música, mas crescer com duas culturas não foi algo fácil para ele e muitos outros descendentes de imigrantes, “Você cresce em casa ouvindo que as coisas tem que ser de um jeito, quando se torna um adulto e começa a se deparar com o mundo real, vê que vive em uma cultura que diz totalmente o contrário”, afirma Amin. Saber o que deve ser preservado e o que deve ser negado é a decisão que mais cedo ou mais tarde essas gerações precisam tomar.

Eduardo Raslan, neto de libaneses, encontrou na culinária uma maneira de perpetuar o legado da família. Dono do restaurante Malabie, desde os quinze anos cozinha e viajou para Palestina, Israel e Egito para se especializar. Enquanto Malki é o gentílico de quem nasce em Kafr Malik, Malabie é o nome de um doce árabe que a noiva prepara para o noivo e o oferece na noite de núpcias para fortalecer o marido. A família Raslan, ao chegar no Brasil, se dividiu entre Dourados e Campo Grande. O chef, que também é consultor empresarial, explica que existem dois tipos de famílias árabes: as que mantém as tradições culturais e as que praticam o cristianismo ocidental, mas a maioria que reside no estado são “abrasileiradas”, visto que são pouquíssimas as que mantêm verdadeiramente a cultura. Mesmo sendo de gerações diferentes e criações distintas, Amin e Eduardo tem a mesma opinião quanto à cultura enraizada nas famílias de que se originaram e nos sobrenomes que carregam: ela deve ser difundida entre descendentes árabes e os brasileiros que não tem a mesma origem. Seja pelas músicas, danças, língua ou culinária. E eles se preocupam em garantir isso.

do professor, ensaiassem no dia. Mas a sensação era de calor lá dentro. Michel Ibrahim, 24, Sami Chamon, 24, e Jean Sami, 12, são descendentes, já Fernando Monteiro, 47, e o professor Marlon Rocha, 43, não tem qualquer descendência árabe, tiveram o primeiro contato com a arte através de suas esposas, mas compartilham do mesmo respeito e anseio pela aprendizagem da dança. Jean e Sami são irmãos e têm o pai árabe, Michel é neto de libanês. Acreditam que a dança é uma parte muito importante da cultura e que há a necessidade de descendentes se esforçarem para não deixar as tradições serem esquecidas. Seja em festas de família, com amigos ou em apresentações, a maior intenção é serem eles mesmos e festejar. A criação rígida os fizeram crescer unidos em questões familiares e a respeitar as diferenças. Sabem falar um pouco de árabe, adoram a gastronomia e agora dançam para diversão e valorização da sua cultura. Sami afirma que ‘‘em qualquer lugar que se dança o dabke você vê a alegria sendo transmitida, a gente quer dançar, queremos viver a nossa cultura’’, e que esse é um motivo importante que o levou a se aprofundar nas técnicas da dança.Para o seu primo, Michel, outra questão considerável é o dançar para si próprio, por querer e gostar, e não somente apresentar-se. Para Fernando não foi dificil gostar de praticar o dabke pois ele diz que ‘‘é uma cultura que te acolhe e faz você se sentir bem’’. Da mesna forma foi com o professor Marlon que, de um jeito natural, começou a estudar a cultura. Casou-se com Nidal Abdul, descendente de libaneses e professora de dança do ventre, e foi ela que convenceu o marido a começar a praticar o dabke.

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O Dabke, que significa ‘bater o pé no chão’, é uma dança folclórica de passos cadenciados, rígidos e fortes que pode ser dançado tanto da maneira popular, através de passos repetidos, que é usualmente dançado em festas, quanto o coreografado que agrega passos libaneses, sírios, palestinos e egípcios.

“É uma cultura que te acolhe” Fernando Monteiro Surgiu em meados dos anos 60 quando os homens iam amassar o barro para a construção de casa, e chamavam os vizinhos para auxiliar no trabalho, explicando assim os fortes passos. Mais tarde começaram então a dançar no chão e as mulheres se juntaram na dança, podendo ser dançada de grupo, solo ou casa. A maioria tem forma de roda, onde o patriarca ou mais habilidoso fica na ponta dando os comandos. O grupo Zaffef Al Farah tem quatro anos, e cerca de 10 integrantes, sendo eles homens e mulheres de diferentes idades. A animação, que é uma característica forte da dança, proporciona ao grupo várias apresentações em casamentos e outras festas, de árabes e não árabes, que se interessam e tem muita curiosidade pela arte.

O sabor de uma cultura

O restaurante Malabie, que empresta o nome de um doce artesanal feito de água de rosas, damasco, miski e farinha Foto: Silvia Helena Souza

Foto: Silvia Helena Souza

De Outras Terras

Uma parte do conjunto de tradições

Ainda na parte externa do estúdio de danças árabes Nidal Abdul, já é possível ouvir uma música folclórica, o Dabke. O clima frio colaborou para que apenas quatro alunos, além

Sami Chamon, Jean Sami, Marlon Rocha, Michel Ibrahim e Fernando Monteiro: unidos pelo Dabke


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O Malabie

Foto: Eduardo Raslan/Arquivo Pessoal

No primeiro momento da degustação pensamos em pudim, mas ao dar a primeira mordida não conseguimos pensar em nada semelhante já provado por nós antes. Começa doce, passa um sabor neutro e bem ao final termina com um leve azedo. O único ingrediente conhecido era o pêssego, especiaria árabe que enfeitava o doce. Foi uma experiência quase indescritível: a textura lembra um pudim, porém mais consistente, mas ao provar as lembranças de algo com que se pareça, simplesmente desaparecem. Não é parecido com nada que já tínhamos experimentado, Era um sabor tão peculiar, tão suave e que proporcionou o prazer que só um doce consegue proporcionar após um bom almoço. Tentávamos identificar algo para comparar, mas nada nos veio à cabeça. Apenas comemos todo o doce e fomos embora querendo mais. Eduardo nos avisou que esse doce é ‘ou você ama ou odeia’. Com certeza ficamos com a primeira opção.

Foto: Silvia Helena Souza

de arroz, contempla seus clientes com pratos típicos da cozinha árabe. Eduardo Raslan, o proprietário, adequou bastante a culinária para agradar o paladar do brasileiro, como, por exemplo, o famoso kibe cru, que em sua receita original é feito de carne de cordeiro ou o tabule que tradicionalmente não vai alface e, sim, salsinha, além do tomate e trigo. Para Eduardo, a cultura árabe já é disseminada pela dança e a comida, mas existem outras formas que não são comuns como a religião, vestimenta, lojas de artigos árabes, como os instrumentos musicais. Ao meio dia de um domingo, fomos até o restaurante para conversar com Eduardo e expermimentar algumas comidas árabes, como a carne de cordeiro. O ambiente torna-se mais agradável a medida que, durante o almoço, uma música árabe se inicia e então, uma bailarina entra em cena, dançando no meio das mesas, trazendo alegria e encantamento para quem está ali assistindo. Há também quadros que representam a cultura antiga espalhados por todo o salão. O local nos faz sentir em algum país árabe, com as músicas que tocam no restaurante e a bailarina que entra para dançar enquanto todos saboreiam o buffet. Durante as sextas e sábados o restaurante oferece petiscos e comidas não árabes. Aos domingos, o almoço é exclusivo da cultura.

O legado

A cultura árabe é recheada de características, amantes, descendentes e agregados. Ela nos relembra o quanto é importante dar atenção a algo que é nosso, a importância do respeito e da família, de querer sempre aprender mais, de estar junto com o outro, de ter seus valores claros, mas estar aberto a novas experiências e opiniões. Ela é apaixonante e envolvente. Os passos que dizem sobre as rotinas, sobre festejar, celebrar, estar junto, da comida, tão peculiar e saborosa, das bebidas, do arguile, dos ambientes que te fazem sentir em outro país. Das pessoas que, apesar da vida corrida e da rotina, se esforçam para mostrar a todos de onde vem e o quanto isso é importante e necessário para a sociedade. barbaracesaretto@outlook.com silviahelena.cds@gmail.com

De Outras Terras

A culinária árabe se destaca por seus sabores e temperos


Cultura Musical

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Catarse Retrô Dentre bandas e artistas que ganharam visibilidade pela Morada dos Baís, existe a Catarse Retrô, banda campo-grandense de MPB, Folk Indie e Rock Alternativo. Formada no início de 2015.

Foto: Maria Paula Garcia

“Tudo começou com a vontade de reunir amigos para tocar músicas que fugissem da temática do sertanejo, tão difundida em nosso estado”.

Onde a Cultura faz Morada Parceria entre prefeitura e SESC ocupa patrimônio histórico e fomenta cultura na capital

Maria Paula Garcia O prédio nomeado atualmente como Morada dos Baís tem grande histórico de guerreiro, foi construído no início do século XX, primeiramente como residência, depois se tornou pensão, após sofrer incêndio foi reformado e transformado em centro comercial, e anos depois foi abandonado. Em 1995 foi aberto ao público com a proposta de espaço cultural, mas era pouco frequentado. Anos mais tarde o espaço foi revitalizado, e hoje, é o principal centro de informação turística e cultural de Campo Grande, onde circula, por noite de evento, mais de 350 pessoas. Isso aconteceu quando o Serviço Social do Comércio (SESC) realizou uma parceria com a Prefeitura de Campo Grande, que cedeu o patrimônio histórico e cultural Morada dos Baís para o SESC organizar e realizar eventos culturais. Desde então a Morada conquistou os campo grandenses com programação repleta de atividades artísticas durante toda semana. Espaços expositivos de artes visuais, sala de cinema, cafés literários, programação infantil com oficina de

artes visuais, cine clubinho e contação de história, festival de circo, shows musicais, peça de teatro, restaurante com comida típica sul-mato-grossense. Estas são as atividades oferecidas pelo lugar, além da exposição fixa de Lídia Bais, onde é dedicado espaço com seus pertences, relíquias, mobiliários, suas telas, retratos, até um manuscrito escrito por ela e que depois foi impresso como livro.

“Nós temos um planejamento orçamentário de cachês para qualquer linguagem”. Andréia Gomes Palavra da Gerência Segundo Andreia Simone Gomes da Silva, 43, gerente do SESC Cultura de Mato Grosso do Sul a Morada é um espaço aberto para a cultura e todas as linguagens. Ela explica que o SESC dá oportunidade às bandas com espaço para shows e explica:

“ Às vezes você entra no bar e tem uma grande movimentação, o som está um pouco mais baixo do que a conversa do público, funciona mais como som ambiente”. Um dos princípios da parceria do SESC com museu Morada dos Baís é facilitar o acesso dos artistas ao espaço. “ Nós temos um planejamento orçamentário de cachês para qualquer linguagem”, esclarece Andreia. As bandas mandam a proposta do show, junto com o repertório e a ficha preenchida, que está disponível no site do órgão. Não existem pré-requisitos para as contratações. No entanto, o foco do projeto é dar oportunidade às bandas iniciantes. “ O bacana disso, é que a gente tem sempre na plateia músicos já experientes. Esses eventos proporcionam o diálogo desses músicos com as bandas novas”, comenta. Com o tempo, a Morada se consolidou como o berço cultural do Estado, por dar grande força às bandas regionais, não só no âmbito musical como na área de artes visuais, literária e artes cênicas.

Kézia Miranda “Tudo começou com a vontade de reunir amigos para tocar música que fugissem da temática do sertanejo, tão difundida em nosso estado”. Conta Kezia Miranda, 27, multi-instrumentalista e compositora do grupo. Composto por Camila Brusamarello, 20, vocalista e guitarrista; Bren Mandetta, 22, vocalista; Matheus Arakaki, 20, guitarrista e vocalista; Anna Rezende, 21, baixista e vocalista, Diego Marques, 22, percussão, e a KeziaKézia comenta a respeito do nome da banda “Catarse Retrô”: “ É um nome que combina nossos valores de liberdade e respeito ao passado”. Estes jovens queriam criar um repertório voltado para a nova geração MPB, proposta musical que foge dos “anseios” do mercado atual. A banda foi convidada por Thais Pompeo, analista em cultura no SESC, para lançar um EP na Morada dos Baís. “Houve muita visibilidade com isso, antes a gente não tinha uma ‘cara de banda’, nem tínhamos domínio profissional sobre o nosso trabalho. A banda ganhou repercussão com a oportunidade oferecida nesta parceria do SESC com a Morada. Recentemente a banda iniciou o projeto para aumentar a visibilidade dos artistas regionais. “ Começamos a organizar o festival “Manifesto das Pequenas Satisfações” para dar visibilidade aos artistas locais, mais da cena alternativa”. Explica Kezia. O festival vai para sua quarta edição que acontecerá no final do ano aqui na cidade, a banda já recebeu apo.io da Secretaria de Administração do Estado e Secretaria da Casa Civil para a realização dos festivais.

mariapaulag75@gmail.com


Literatura Foto: Marcelle Maques

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Era uma vez...

...Um país de poucos leitores. Descubra o que está por trás disso Marcelle Marques É fato conhecido que o Brasil não é um país de leitores. Segundo a pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, divulgada em maio de 2016, o brasileiro lê em média apenas 4,96 livros por ano – dos quais 0,94 são indicados pela escola e 2,88 lidos por vontade própria. São contados também livros não terminados, os quais são 2,53 desse total. O Brasil tem em 56% de sua população, pessoas que se consideram leitoras, mas com essas pouquíssimas exigências. Já o Ministério da Justiça, em junho de 2016, divulgou que o índice de livros é 1,7 per capita ano. Para o ministro Juca Ferreira, a leitura no Brasil é uma vergonha e deveria haver campanhas para ela,

“Você dá visibilidade para o show da Anitta e não dá visibilidade para a presença do PROLER na cidade.” Maria Adélia Menegazzo semelhantes às do Fome Zero e da paralisia infantil. A professora doutora da UFMS e curadora da Feira Literária de Bonito (FLIB), Maria Adélia Menegazzo, 61, concorda que o governo deveria ter ações para estimular o ato de ler.

Ela apoia iniciativas como as do SESC e as da Livraria Le Parole, como salas de leitura e contação de história, mas acredita que “a lém dessa s iniciativas mais espontâneas, digamos, você tem que ter políticas públicas pra leitura. O Programa Nacional de Incentivo à Leitura (PROLER), por exemplo, é um projeto que eu acho fundamental e às vezes não tem a visibilidade que ele devia ter. Você dá visibilidade para o show da Anitta e não dá visibilidade para a presença do PROLER na cidade. Acho que precisava dosar um pouco as coisas. Não tenho nada contra a Anitta, nem sei o que ela canta, mas certas práticas têm que fazer parte das políticas governamentais. O estado tem que estar atento a isso.

Eu acho que o estado é muito tímido nessas coisas relacionadas à cultura, não pode ser assim. E principalmente em relação à literatura. ” Já James Jorge Barbosa Flores, escritor e professor, acredita que eventos relacionados à leitura são pouco eficazes na formação do leitor, pois quem realmente vai e usufruir é quem já lê ou tem interesse. No caso das contações de história, porém, os pais levam os filhos, logo precisa ter o incentivo deles, que é outra coisa que falta muito no Brasil. O professor da Escola Estadual Maria Eliza Bocayuva, Nelson Peteco, afirma que “a maior parte das famílias são pais que não tiveram uma educação plena, então isso passa para os filhos. Por isso que os melhores alu


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Foto: Marcelle Maques

Literatura

para a educação. Em períodos ruins, havia rudimentares. No cursinho, eram intermediários. Para ele, a alfabetização e a leitura pioraram muito a partir de 1997, com o programa do MEC de aceleração da aprendizagem, que segundo ele, consistia em mascarar a aprendizagem e reduzir a repetência a “canetadas”. Ela teria melhorado a partir de 2005, sem nunca voltar aos níveis anteriores a 1997. Nesse período, teria crescido a culpabilização do professor por todas as mazelas do ensino.

Há esperança?

Maria Adélia Menegazzo, professora doutora da UFMS e curadora da Feira Literária de Bonito nos são aqueles que provêm de famílias estruturadas, de famílias com pais profissionais liberais, esses são os melhores alunos, porque a leitura começa em casa”. O método de Nelson para fazer os alunos ler não é muito ortodoxo. Ele dá a opção de revistas, gibis e mangás. Maria Adélia acha uma boa ideia clássicos em história em quadrinhos, como as obras de Franz Kafka e “Pinóquio”, pois são a mesma história com uma linguagem diferente. Ela até levou o autor da HQ de “Noite na Taverna” para a FLIB.

Subindo os degraus da alfabetização

O Instituto Oswaldo Montenegro e a ONG Ação Educativa criaram um Indicador de Analfabetismo Funcional (Inaf) divido em 5 níveis. Segundo o Instituto, o número de analfabetos e analfabetos funcionais é de apenas 4%, porém 23% dos alfabetizados estão no rudimentar, que ainda não está no alfabetismo funcional (elementar, intermediário, proficiente). A pesquisa é separada por níveis de escolaridade e estado atual no trabalho e, contrariando o esperado por Maria Adélia, alunos

que chegam ou se formam na faculdade estão em sua maioria nos níveis elementar e intermediário. Ela disse acreditar que se o estudante leu durante toda a escola, deveria ser proficiente na faculdade. Mas o problema é esse: que eles não leem. A professora também pensa que deveria haver um sexto nível para universitários de Letras (onde lecionou), pois, os níveis julgam leitura, escrita e matemática, mas não entra muito na literatura. Humberto Eco tem uma tese a respeito dos leitores primários e secundários. O primário estaria interessado apenas no começo, meio e fim, enquanto que o secundário não fica só no nível profundo do texto literário, desce as camadas. O primeiro tipo não conseguir=ia identificar intertextualidade, por exemplo. Roland Barthes, em seu livro “O Prazer do Texto” também comenta sobre a diferença de ler uma história do início ao fim e de aproveitá-la, sentir prazer lendo. Os alunos de Ensino Médio do professor James eram, no geral, de níveis elementar e intermediário, com poucos proficientes, durante 2004 e 2009, período que considerou bom

Este ano, o presidente Temer aprovou a reforma do Ensino Médio, na qual Literatura passa a ser disciplina opcional. Dois dos entrevistados concordam que a mudança na grade não deve fazer muita diferença, já que os alunos já não leem e o Exame Nacional do Ensino Médio nem mesmo exige leitura de livros, como os antigos vestibulares. As questões do ENEM relacionadas à literatura são muito fáceis e de interpretação e características básicas das escolas literárias. Para Nelson Peteco, “a ficção ajuda, mas o que ajuda realmente o aluno é estar atualizado, principalmente para o ENEM, e atualização está na leitura de jornais e revistas. Não só para o ENEM, mas para arrumar um emprego, o que precisa é informação. ” A tecnologia divide opiniões. Para James, ela atrapalha, principalmente por ter criado o método de copiar e colar, no qual os alunos não leem para realizar trabalhos de escola. Para Nelson, ela ajuda um pouco, mas nela, o aluno se distrai muito. Além de que ele aprende mais escrevendo manuscrito. Maria Adélia acha que torna mais acessível, com os livros eletrônicos e os e-readers (dispositivos próprios para leitura, em formato de tablet). Você pode ter 200 livros no aparelho, aumentar a fonte, ler onde quiser. Também há os blogueiros e vlogueiros literários como sua antiga aluna, Patrícia Pirota, professora de Literatura que fala no Youtube para jovens e adultos sobre suas leituras e eles a pedem sugestões. A Internet também dá oportunidades a escritores. Patrícia publicou um livro com textos do seu Twitter, processo parecido com o de Pedro Gabriel, responsável pela página de Facebook “Eu me

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Chamo Antônio”, onde mostrava poemas que escrevia em guardanapos. Alguns foram parar no livro e ele publicou até mesmo um segundo, inédito. Maria Adélia o convidou para a FLIB. O único ponto negativo que a professora vê é que na Internet tudo é rápido e todos dão opinião sobre tudo, sem argumentos. Mas ela diz que isso não está relacionado à literatura e, também, que ocorre em todo lugar. Num país sem leitores, também não há como ter escritores. Portanto, James tem sorte de estar vivendo apenas disso no momento. Autor de livros como “Na Fronteira”, ele diz que nem procurou editoras no estado, e fechou com uma pouco comercial do Rio de Janeiro. Para ele, as editoras brasileiras pouco se importam com a “cultura”, e só publicam livros de auto-ajuda e romance. “Vivemos em um estado que apresenta problemas para as grandes editoras no geral ou mesmo as pequenas, pois temos uma população pequena, e ainda mais diminuta se formos considerar o percentual da população que lê”, afirma. Isso é verdade. Quando o jornalista Rubens Valente veio a Campo Grande lançar seu livro “Os Fuzis e as Flechas”, o representante da Cia das Letras não mostrou interesse em trazer os livros para cá, pois acreditava que não teria retorno. Maria Adélia crê que isso pode ser também falta de conhecimento da editora, de não saber que ele tem público aqui, e até pode ser preconceito de achar que somos ignorantes. “Quando penso que poderia ter uma bolsa, um apoio financeiro ou coisa parecida e a ineficácia ou desinteresse da secretaria estadual/municipal de cultura por literatura, dá uma pontinha de mágoa... Quando reflito sobre os salários de políticos, juízes, magistrados e o quanto eles custam para nossa sociedade e não dão retorno positivo algum! Aí é muito triste. ”, conclui James. O nosso país deve começar a pensar em formar cabeças pensantes, não apenas mão de obra. Mas na política caótica em que ele se encontra, em que nem nossos direitos básicos são respeitados, é difícil pensar que um dia conseguiremos isso.

marcelle_cnec@yahoo.com.br


Literatura

19 - Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS

Obras desconhecidas

Lobivar Matos o poeta brasileiro que escreveu as obras Areôtorare e Sarobá.

A literatura de Mato Grosso do Sul começa bem antes de 1977, quando o estado ainda fazia parte do Mato Grosso. Nas obras literárias, os autores se expressavam através de crônicas, poemas e artigos. Nestes espaços os escritores propagavam o seu ponto de vista sobre o cotidiano, as tradições e as vivências. Nas obras eles também apresentavam histórias sobre as cidades e revelavam suas emoções, seus heróis e vilões, crises e superações. Em Campo Grande as primeiras publicações literárias e culturais foram publicadas na Revista Folha da Serra que foi editada por nove anos (1931 a 1940) por Aguinaldo Trouy. Além da revista as obras também eram publicadas em jornais estudantis. O jornalismo cultural teve uma grande contribuição nestas manifestações literárias traçando um perfil cultural da época. Mesmo com esse longo processo, na década de 20 em Mato Grosso ainda circulava as primeiras criações literárias. Poetas como Pedro Paulo de Medeiros, Clio Proença e Lobivar de Matos.

O poeta desconhecido

Foi por erro do tabelião que Lourival, como deveria ser chamado, se tornou Lobivar Matos ou para os mais íntimos Lobito, nascido em Corumbá no Mato Grosso em 1915. Mas em 1933, o jovem de apenas dezoito anos se muda para o Rio de Janeiro para estudar na Faculdade Nacional de Direito do Distrito Federal. Durante a sua estadia no Rio de Janeiro ainda na década de 30, Lobivar conviveu com o poeta Manoel de Barros, uma amizade que se desencadeou desde a infância. Naquela cidade estavam reunidos dois homens diferentes, mas com uma mesma paixão: a poesia. O poeta desconhecido (Lobivar Matos) traz para Mato Grosso na década de 1930 o modernismo que se difere da geração de 22 erradicada na cidade de São Paulo com a Semana de Arte Moderna (1922), já com a

Foto: Heloísa Fontes

Heloísa Fontes

Livros com as obras reunidas de Areôtorare e Sarobá

Susylene Dias, professora Doutora da UEMS e autora do livro O Modernista des(conhecido) geração de trinta se tem uma perspectiva ética e ideológica mais aprofundada na poesia.

“Não sei o destino que me espera, porque eu sou o próprio destino” Lobivar Matos Com um estilo mais livre de escrever suas poesias, o poeta de vanguarda denuncia os problemas sociais e conta o cotidiano de sua cidade. Nos temas tratados em suas

obras são representados os negros, indígenas, a Maria Bolacha que circulava pelo Porto, o menino que corre na região portuária de Corumbá e a mulata Isaura. Lobivar Matos publicou dois livros. O primeiro em 1935, o qual ele chamou de Areôtorare significa ‘o índio sábio da tribo boróros’. Nesta mesma obra, em seu poema de estreia, o autor se intitula como o poeta desconhecido. A professora Susylene Dias de Araujo, autora do livro O modernista des(conhecido) explica o porquê do autor se descrever desta maneira: − Em seu poema Destino do Poeta Desconhecido, Lobivar se apresenta como poeta desconhecido, ‘Não sei o destino que me espera, porque eu sou o próprio destino’.

Com esses versos, nós podemos perceber que o poeta se lança sem a pretensão clara de ser badalado, conhecido, mas nós podemos interpretar isso também como uma perspectiva de quem joga com a sorte que nesse caso é a critica. No ano de 1936, o poeta escreve o seu último livro: Sarobá, que significa bagunça, confusão. Nas palavras do próprio Lobivar a palavra é definida como “mancha negra bulindo na cidade mais branca do mundo.”. Lobivar Matos retorna para o Rio de Janeiro para trabalhar como censor, revelando outra vez a sua face contraditória, colaborando constantemente com a imprensa carioca. Já limitado fisicamente, o poeta contrai uma úlcera e em 27 de outubro de 1947 morre aos 32 anos no Rio de Janeiro, o poeta (des)conhecido.

helloisa_mariafontes@hotmail.com


Cinema Sul- Mato-Grossense

20 Foto: Karina Cantiere

Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS -

Palavras Filmadas A adaptação dos livros para o cinema

Karina Cantiere Que a literatura é uma das essências da cultura ninguém tem dúvida Afinal, ela traduz o que somos através das palavras, nos proporcionando emoções, as sensações, e elas dão sentindo a nossa vida, ou melhor, como diz TdvanTodorov, das culturas, em Identidades Coletivas: “somos seres multiculturais”. Grandes autores como Machado de Assis e Clarice Lispector ao nosso conterrâneo Manoel de Barros, traduzem a natureza em versos de poesias: “Minhocas arejam a terra, poetas a linguagem”- Pré-Coisas (1985). Assim nasce a arte, a tradução do nosso ser retratado em obras, neste

caso, cinematográficas ou audiovisuais, porque até então os livros podiam proporcionar as imaginações. Um romance. Um filme. A literatura e o cinema se entrelaçam, sendo assim, duas linguagens.

Débora Alves

Em uma conversa descontraída, sentadas em um banco perto de uma lanchonete, Débora Alves, jornalista e atualmente professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, conta um pouco sobre seu livro-reportagem: Viagem a bordo das Comitivas Pantaneiras. Como funciona este mundo do audiovisual, suas visões e perspectivas

“Cinema é um trabalho de equipe” Débora Alves sobre o futuro do mesmo.A proposta de Débora é transformar o livro em um documentário, uma série de 5 capítulos com 20 minutos cada. Contando um aspecto de cada parte da comitiva, este projeto será realizado juntamente com o Professor Dr. Hélio Godoy, sendo uma obra audiovisual. Os primeiros passos, segundo Débora, é a susten-

tação do argumento para a realização do documentário, que no seu é o livro reportagem de sua autoria, “quando se fala que em alguma premiação de cinema, ganhou o melhor roteiro adaptado, é porque a parte do livro foi reescrita para a produção audiovisual”,explica Débora. O livro aborda a vida das comitivas pantaneiras: a viagem que transporta gado de uma região mais alta para outras no pantanal, quan do ocorrem os alagamentos,e segundo ela, o documentário teria riqueza, pois este trajeto “rende boas imagens”, está recheado de histórias dos peões. “Cinema é um trabalho de equipe”, explica a professora.


Professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Débora Alves é autora do livro-reportagem Viagem a bordo das Comitivas Pantaneiras Bate Papo no MIS

Sete horas da noite na fundação da cultura de Mato grosso do Sul, o ambiente é silencioso, espero a entrevistada chegar. Marinete Pinheiro,coordenadora do Museu. A recepcionista atenciosa me atende, depois de uns 20 minutos sou recebida em sua sala, puxo a cadeira e começamos a conversa. No âmbito audiovisual, qual o perfil de Campo Grande? “Culturalmente tem um público interessado, um exemplo é o curso de documentário com oferta de 25 vagas e o número de inscritos foi de 138, assim percebe-se que existe público constante, tem um nicho para ser aproveitado no âmbito do audiovisual”, relata Marinete. A curadora da Feira Literária de Bonito (Flib) de 2015 retrata que as adaptações se encontra mais baseado em contos, do que em livros propriamente dito, exemplos: A Poeira, idealizado e dirigido por Augusto César Proença e Hélio Godoy, Um conto de solidão, Os Matadores,(com tema Indígena) Em nome da Lei,dirigido por Sérgio Rezende. E o Caramujo-flor,dirigido por Joel Pizzini, baseado nas obras de Manoel de barros: “Ainda precisa ser construída essa ligação entre literatura em cinema, na verdade é muito difícil a adaptação de uma obra literária.” No livro Salas de Sonhos, de sua autoria, há um trecho interessante onde

relata que nos anos 70 com a criação da TV, o cinema foi perdendo espaço sendo que na década anterior, 1960, foi o auge, pois as pessoas se informavam pelos filmes, inclusive para ver as notícias, como o famoso Cine Jornal. Sobre o futuro do cinema Sul Mato Grossense: “Me sinto motivada, na escola tinha um professor que eu gostava muito que ele falava assim, que a Europa gosta muito de filmar a América, porque a América está para ser descoberta (audiovisualmente), ou seja, a gente tem muita coisa para ser mostrada, como por exemplo, os dinossauros em Nioaque, a Corumbela, enfim tem muita coisa para ser contada”, opina Marinete. A descentralização da produção,ou seja, eixo Rio-São Paulo, é necessária. O Festival de cinema do Vale do Ivinhema, do interior do estado, vêm com essa proposta, assim como o documentário da dama do rasqueado, Delinha, por exemplo, dirigido por Marinete, passando essa sensação de pertencimento e identificação.

Cinema Sul- Mato-Grossense

transfigurado a partir do livro Gramática Expositiva do Chão (1969), edição que reuniu livros de Manoel de Barros, onde se considerava como um “vagabundo profissional”. Foi sua primeira produção. O filme tem 21 minutos, é composto de 30 segmentos e 122 cenas. Foram selecionados versos e poemas de obras escritas de 1937 a 1989. No início, aparece o rosto de Antônio Houaiss e os poetas Geraldo Carneiro, Fausto Wolff e Chacal, depois se apresentam os atores sul-matogrossenses Rubens Corrêa, Aracy Balabanian e os cantores Ney Matogrosso, Almir Sater e Tetê Espíndola. Da poesia de Manoel de Barros, Joel Pizzini identifica dois personagens centrais, a primeira é o “Cabeludinho”, um menino lúdico do mato que sai do Pantanal para o mar. A outra é o andarilho vagabundo, com um sentido um pouco mais trágico. A trilha fica por conta de Tetê Espíndola. Em um trecho da entrevista para o Projétil, Joel cita Manoel: “porque deixo que o menino que é do mato amar o mato com tanta violência”, onde traduz a própria história de Pizzini, essa relação com Mato Grosso Do

Sul e o Rio de Janeiro, onde passa boa parte do tempo atualmente. A transfiguração é a palavra chave, segundo Pizzini, entre a literatura e o cinema, onde a poesia é o resultado final: “fiz o filme com toda liberdade, e inventabilidade, entrei de cabeça”.

“Fiz o filme com toda liberdade, e inventabilidade, entrei de cabeça” Joel Pizzini Para Joel, temos que achar nossa lacuna, o seu olhar para contar a história, pois é difícil essa relação entre os dois, por justamente serem duas linguagens, com características diferentes. Sua próxima produção será o Rio da Dúvida, retratando a fase que está no momento, utilizando-se elementos da sua infância.

karina_cantiere@hotmail.com Foto: Karina Cantiere

Foto: Karina Cantieri

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Caramujo-flor de Joel Pizzini

Joel Pizzini se diz apaixonado por cinema, desde 1 ano de vida, influenciado por seu pai que foi dentista e sua mãe que o levava regularmente ao cinema. O filme foi

Marinete Pinheiro, coordenadora do MIS


Cinema Indígena

Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS -

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Luz, câmera, revolução

As flechas não são mais a única forma de se defender

Raira Rembi

Foto: Raira Rembi

O cinema sempre foi uma forte ferramenta para disseminação de ideais, normas de comportamentos e regras da sociedade. Podemos ver ao longo da história as formas com que esse poderoso meio de comunicação foi utilizado. Por exemplo, na Alemanha nazista, os comerciais transmitiam os ideais de Adolf Hitler, reforçando o regime totalitário e tornando-o um ditador absoluto. Um outro modelo de normas ditadas por esse meio de comunicação, são os Estados Unidos da América com as estrelas do cinema hollywoodiano que ditam regras de comportamento do estilo “American Way Of Life” ao mundo todo. Através desta arte outras pessoas entram em contato com culturas diferentes nunca antes imaginadas por elas. O cinema constrói e forma a identidade regional, mostra para aqueles que não conhecem os costumes, tradições e como vivem aqueles representados ali. No Brasil, a primeira exibição cinematográfica foi feita em 1896. No início as exibições retratavam a vida e o cotidiano, mostrando traços da cultura. O primeiro filme que retratou um indígena como personagem principal foi “O Guarani”, de José de Alencar, em 1912, no período artístico do romantismo nacionalista onde a figura do índio era exaltada como herói nacional. Em Mato Grosso do Sul, a presença indígena é muito forte. O audiovisual é um dos recursos utilizado como forma de manter a cultura e apoiar as lutas dos povos indígenas, fortalecer suas identidades e seus patrimônios territoriais, por meio de recursos audiovisuais e de uma produção compartilhada com os povos indígenas. Dessa forma, surgem projetos como Video nas Aldeias (VnA) e o Ava Marandu.

As oficinas de cinema foram ministradas por vários cineastas conhecidos, entre eles, Joel Pizzini, Mauricio Copetti, Gilmar Galache e outros colaboradores. Os índios Guarani Kaiowá produziram dez curtas metragens, nos gêneros ficção e documentário. Depois da produção foi feita exibição desse material.

Exibição aberta ao público do filme Martírio Vídeo nas Aldeias e o Ava Marandu Vincent Carelli foi o precursor desse projeto. O indigenista, que já vinha trabalhando essa temática, criou o projeto em 1986 e realizou o primeiro experimento entre os índios Nambiquara, no Mato Grosso. O resultado desse projeto despertou o interesse dos indígenas pela ferramenta audiovisual e ali começou a produção do cinema indígena de autoria própria, feita por diferentes comunidades.

“O que acontecia antes era que os filmes de índios eram produzidos por brancos através da perspectiva do homem branco, para os brancos” Cid Nogueira Os resultados de cada produção incorporavam uma maneira particular de se expressar. A forma que cada povo vê o mundo é, para aqueles que não fazem parte dessa cultura, uma nova experiência. “O que acontecia

antes era que os filmes de índios eram produzidos por brancos através da perspectiva do homem branco, para os brancos”, observa o professor e pesquisador, Cid Nogueira. Esses filmes produzidos por não-indígenas traziam com ele o estigma e retratavam esses povos de uma maneira que muitas vezes fugia do real, representava o imaginário que a sociedade tem sobre eles. O índio muitas vezes é alvo de fetiche do imaginário dos não-indígenas, retratado muitas vezes como inimigo do homem branco e, sobretudo, como inimigo do progresso. As produções no projeto VnA mostrou o contrário disso. Um material muito rico em representações do que é a cultura desses povos e qual a relação que eles têm com a terra, com a religiosidade, como eles veem os não-indígenas, entre outras coisas. “Logicamente que nós temos que entrar para ver essas produções indígenas com a mente aberta, vazia de pré-conceitos, porque elas são cheias de detalhes e nuances que são muito específicas deles”, diz Cid Nogueira. Já o projeto Ava Marandu, realizado em Dourados (MS), ofereceu oficinas de cinema e fotografia. A ideia era levar a capacitação aos membros das aldeias para que eles pudessem ter a apropriação tecnológica e, através das suas produções, ser empoderados.

“Logicamente que nós temos que entrar para ver essas produções indígenas com a mente aberta, vazia de préconceitos (...)” Cid Nogueira Existia a disponibilidade das produções dessas oficinas no Portal de Cultura, o portal não existe mais. A exibição desse material ficou comprometida e de difícil acesso. A falta de preservação da obra é recorrente na produção do audiovisual autoral. Outro problema é a não-catalogação das obras produzidas. Sem essa relação de fichamento de material, fica difícil o ciclo de produção cinematográfica ser concluído, pois a obra não chega na ponta final da distribuição. A produção audiovisual feita por indígenas garante dois processos. O primeiro é a desses povos recebendo a formação necessária para retratar sua imagem com perspectiva própria. O segundo é que as pessoas podem conhecer as histórias desses povos narradas por eles mesmos. raira_m@hotmail.com


Aldeia Urbana

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Comunidades religiosas dentro da aldeia Marçal de Souza Em pauta, a discussão da influência -- benefícios e malefícios -- das religiões brancas dentro das aldeias indígenas pelo olhar da comunidade Marçal de Souza

A influência branca está presente na vida dos indígenas, principalmente os que vivem em aldeias urbanas, mas como em qualquer tipo de cultura, existe alguma influência de algo sobre ela. Em relação a religião, pode até ser feita uma comparação com o que os europeus fizeram, a catequização dos índios. O costume mais forte e arraigadomantido nessa cultura é a relação de parentela, isso fica muito forte e costumam manter o vínculo com a aldeia de origem. Ao menos uma vez ao ano eles voltam às aldeias para visitar os familiares. Povos indígenas sempre foram vítimas de preconceito e o mesmo sempre acaba aflorando quando se entra no campo da religião, desde o descobrimento do Brasil, quando os Jesuítas vieram no intuito de catequizar os nativos, até hoje, quando comunidades religiosas brancas tentam difundir seus pensamentos dentro das aldeias. Na comunidade Marçal de Souza existem cinco comunidades religiosas, sendo elas todas protestantes. Nas proximidades, existe apenas uma comunidade católica, que fica a poucos metros dali. O Professor Doutor Antônio Hilário Urquiza, tem opiniões bem categóricas acerca dessas comunidades religiosas que se instalam tanto nas aldeias rurais, quanto nas urbanas. Para ele, o ato dessas igrejas se instalarem dentro dessas aldeias é uma imposição cultural e, apesar de existir pontos positivos, os negativos são maiores como, por exemplo, a proibição de rituais indígenas. Para Silvana, hoje em dia é sim possível praticar o seu cristianismo e participar das rodas de dança de sua comunidade. Sidney pontua a importância de se ter uma comunidade re-

ligiosa não só ali, mas em outras aldeais. Já Nivaldo, diz que não aceita comunidades religiosas que queiram fazer com que os indígenas deixem suas culturas de lado.

Foto: Douglas Ferreira

Douglas Ferreira Ighor Avanci Vitória Teslenco

Roda de Conversa – Cultura Terena

Sábado, dia primeiro de julho de 2017 foi realizada uma roda de conversa entre acadêmicos e indígenas da comunidade Marçal de Souza. Com o desenrolar do bate-papo surgem duas pessoas. Conceição de Ornelas, 54 anos. E Silvana Dias de Souza, candidata a deputada federal no ano de 2014 e ex-subsecretária dos povos indígenas, de 41; é esposa de Sidney, jornalista, 38, e mãe de Natiele. ‘‘Vinte e dois anos morando aqui, eu comecei a militar junto com a nossa primeira cacique (Enir Terena), fui para o mo-

“A gente não pode mais combater o preconceito, os direitos, com arco, a flecha ou o tacapé. Nós Precisamos ir para universidade estudar e formar” Silvana Terena

vimento, conheci o Genilson no acampamento Terra Livre. Tudo isso que eu faço é porque é meu dever. De fazer com que meus filhos que nasceram aqui tenham essa mesma visão que eu tenho, do fortalecimento, da identidade, orgulho’’. Ela conta deve haver um orgulho da sua cultura. ‘‘Eu acredito

Memorial da Cultura Indígena na aldeia urbana Marçal de Souza muito, uma nação sem cultura é uma nação sem vida’’, E reitera: ‘‘A gente não pode mais combater o preconceito, os direitos com o arco, a flecha ou tacape. Nós precisamos ir para universidade, estudar e formar’’. Silvana não é falante da sua língua materna, a indígena. ‘‘Aqui foi o encontro de tudo que eu precisava na minha vida’’, desabafa Silvana. Ela conta que quando se mudou para Campo Grande o preconceito era muito grande. ‘‘Você olha para mim e sabe que eu sou indígena, meu rosto, meus traços, para manter sua cultura tinha que ser valente’’, desabafa a terena, e que se mudando para a Marçal de Souza foi importante para fortalecer sua identidade, sua raiz, sua origem, a língua materna. ‘‘Isso aqui foi essencial para nós’’. Em abril, Natiele, 17, filha de Sidney e Silvana, vai à escola pintada com traços indígenas. Segundo decreto de lei 5540, de 1943, pelo presidente Ge-

túlio Vargas, dia 19 de abril comemora-se o dia do índio. ‘‘Nós ensinamos ela dentro da nossa casa que o diferencial dela é fazer com que as pessoas respeitem a cultura e identidade dela, isso é o fortalecimento da nossa vivência. Porque se você não fortalece sua identidade, você não existe, qualquer lugar, você deixa de ser o que é’’, comenta Silvana. Ela defende que este mês é o que simboliza a busca pelos direitos, da luta, da cultura. Data que eles demonstram os seus sentimentos. Silvana ainda diz: ‘‘Você pode viver em outro mundo, mas a cultura tem que estar aqui’’, aponta o seu coração, se referindo que a cultura precisa estar presente dentro dela. Sem estar desestruturado, mas a gente tem que lutar para manter nossa cultura’’, diz a terena e continua em tom de orgulho. ‘‘Eu tenho maior orgulho de ser indígena, aos quase 42 anos, dizer aos meus filhos de que tenham orgulho de


ser netos, bisnetos e filhos de índios’’. Chega a roda Genilson Roberto, de 30 anos, estudante universitário, de etnia Kinikinau. Povo considerado quase extinto e sem terra. Ele conta que na aldeia rural o seu povo mantém costumes. O índio é recém mudado com sua esposa e filhos para a comunidade Marçal de Souza. ‘‘Ninguém ouviu falar do povo Kinikinau. Sabe por que? Fomos considerados extintos’’, diz em tom de desabafo. ‘‘Eu mesmo nunca ouvi falar’’, revela a terena Conceição. ‘‘A própria Funai fez isso com a gente, um órgão que era para defender os indígenas. Como que eles passaram a identidade de um povo para outro?’’, argumenta Genilson. A questão é que o órgão (Funai) reconhecia os Kinikinau como Terena. Eis que surge Nivaldo, 42 anos, ex-cacique da aldeia urbana Marçal de Souza. Ele encosta sua bicicleta de modelo monark e se junta ao bate papo. ‘‘Todas as coisas da nossa cultura não passam assim de pai para filho’’, conta Nivaldo ao se referir das pessoas que tinham habilidades de cura, etc. O antigo líder defende a volta do costume da dança bate-pau, a dança da ema. ‘‘Tem que ter estudo, tem que ter aula, é um compromisso com sua cultura, como uma religião’’. Essas danças possuem significados, a da Kipaé, possui 12 passos, cada uma com seu significado.

O olhar da Marçal de Souza sobre a influência das religiões brancas

Povos indígenas sempre foram vítimas de preconceito e o mesmo sempre acaba aflorando quando se entra no campo da religião, desde o descobrimento do Brasil, quando os Jesuítas vieram no intuito de catequizar os nativos, até hoje, quando comunidades religiosas brancas tentam difundir seus pensamentos dentro das aldeias. Na comunidade Marçal de Souza existem cinco comunidades religiosas, sendo elas todas protestantes. Nas proximidades, existe apenas uma comunidade católica, que fica a poucos metros dali. Equipe de Reportagem: Professor, como o senhor vê os evangelizadores difundindo seus pensamentos religiosos dentro das aldeias? Prof. Dr. Hilário (54): Os índios pediram? Se não pediram, então está

Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS Foto: Douglas Ferreira

Aldeia Urbana

Na comunidade Marçal de Souza existem cinco comunidades religiosas, todas elas protestantes errado. Os índios querem políticas públicas, eles querem, precisam e têm direito. Quem leva a religião está a fim de fazer proselitismo e impor sua cultura em cima do indígena. Isso é uma imposição cultural, isso é errado. E.R.: Essas igrejas que acabam por se instalarem nas aldeias, trazem malefícios ou benefícios? P.H.: Durante muito tempo a Funai proibiu [a entrada dessas igrejas], mas não dá para proibir, porque os índios são livres. Também não é só um problema, eles ensinam alguns valores. Quem se converte geralmente deixa de beber, com todas as consequências negativas que a bebida traz, como a violência... Então, existem alguns elementos positivos? Existe, só os negativos que, em minha opinião, são muito maiores. E.R.: Por que o senhor acredita que os elementos negativos são maiores que os positivos? P.H.: Porque eles proíbem os indígenas de fazer seus rituais, de falarem a língua, proíbem a religião deles, suas crenças, seus rituais, não pode cantar, não pode se vestir da maneira tradicional. Como aconteceu a 500 anos atrás, continua repetindo a mesma coisa hoje. A impressão é que a história não ensinou nada. Então isso continua sendo uma imposição cultural nossa sobre a cultura deles, totalmente indevida. Eu sou totalmente contrário a isso. E o pior: isso não acontece só no

contexto urbano, acontece também nas aldeias rurais. As opiniões à cerca da religião são bastante divergentes. Apesar de uma maioria massiva –da roda– não ver problemas com a entrada dessas comunidades religiosas, fica visível que os indígenas “menos afetados pela cultura branca”, são os que mais veem problemas nesses evangelizadores e acabam, por assim, resistir mais. E.R.: A entrada das religiões brancas afetou a cultura indígena? Na opinião de vocês, os evangelizadores estão certos em difundirem seus pensamentos religiosos nas aldeias? Silvana Terena (41): De certa forma sim. Quando eu conheci o protestantismo eu tinha nove anos, então dentro de uma comunidade evangélica pentecostal, ela é forte, então para o pastor dessa comunidade na época, quando se dançava, ela sempre era vinculada como se fosse uma oferenda para outros deuses, e não é verdade. Isso eu sempre observei. Então, o pastor fazia com que as pessoas da aldeia que frequentavam a comunidade se distanciassem da parte cultural e tradicional do nosso povo. Então, prejudicou de um lado? Prejudicou, mas hoje muitas das igrejas já entenderam que não existia aquilo, que eles não poderiam e não podem desvincular a gente da nossa cultura. Hoje as igrejas

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estão mais abertas ao diálogo, antigamente não. Eu vivo a nossa cultura e isso não me impede porque eu estou frequentando a igreja. Na minha igreja, os próprios pastores são falantes da língua materna. Hoje as próprias igrejas fazem as comemorações culturais. Hoje ela é importante dentro de uma comunidade como essa, porque trabalha a assistência social. (Sidney Terena) Eu acredito que todos nós temos conhecimento [de] que, a Bíblia Sagrada é o livro que o evangélico segue os ensinamentos de Deus. [Nela] fala: “Vá e leve a palavra para o próximo”, nesse contexto, não impede desses evangelizadores fazerem um trabalho dentro das aldeias. Então, o que eu acho deles? Muito importante. Qualquer cidadão que tenha um projeto bom de levar a palavra de Deus dentro de uma aldeia indígena, no meu ponto de vista, não tenho nada contra. Os pastores começaram a ter outra visão do que é uma cultura indígena e o que é ser um crente religioso, e isso é importante. (Nivaldo Terena, ex-cacique da comunidade Marçal de Souza) Discussão interessante, ‘né’? Esse negócio de cultura e religião tem que ser bem colocado. Eu sempre falo que quem segura a língua são as igrejas, elas mantêm a cultura. Mas tem uns pastores que vêm de fora montar igreja aqui dentro que a primeira coisa que eles falam é, a cultura vai ficar de lado. Discuti com um pastor que falou para mim: - Eu vim para fazer mudança, cultura vai ficar de lado. - Então você veio no lugar errado. Pode virar seu carro e ir embora, porque eu não aceito quando o pessoal de igreja fala para deixar a [nossa] cultura de lado. É notório que os “neo-Jesuítas” são bem menos impositivos com as suas crenças, se comparado com os de quinhentos anos atrás, entretanto, o objetivo central não mudou. Empregar sua cultura e, principalmente, sua religião, para eles continua sendo o interesse.

douglasferreira123@hotmail.com ighor.avanci@gmail.com vitoriateslenco@hotmail.com


Mulher Foto: Sarah Santos

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O que é que a sul-mato-grossense tem? Realidades distintas, com traços em comum. Conheça a história de mulheres com diferentes atuações, que contribuíram para a cultura do estado

Sarah Santos Falar sobre mulher é uma delícia. Ao imergir no universo feminino, nos envolvemos com os cheiros, sabores, energias, dores, sorrisos e histórias que aquele indivíduo oferece. Quanto mais profunda uma mulher é, mais difícil se torna fazer o caminho de volta. Em um estado como Mato Grosso do Sul, dono dos mais belos requintes naturais, não poderia ser diferente. Apesar do cenário negativo das marcas do machismo em uma cultura interiorana, as sul-mato-grossenses existem, resistem e pintam novos traços para uma realidade melhor. Embora jovem, o estado possui poucos registros de contribuições femininas em sua construção cultural e um histórico de comportamentos masculinos que contribuem para a desigualdade

“[...] Existe um Mato Grosso do Sul machista, que é aquele da tradição política, da fazenda. Ao mesmo tempo, há grupos de pessoas contestadoras que não se deixam contaminar por isso” Lenilde Ramos de gênero. Luiza Ribeiro, ex-vereadora de Campo Grande e militante afirma: “A cultura é o resultado das vivências. Toda vivência de um aglomerado humano produz uma maneira de ser, isso que é uma cultura!”. Para transformar essa realidade, é preciso conversar sobre os costumes

sul-mato-grossenses. Valorizar as muitas mulheres que executam políticas públicas, estudam ou produzem cultura. Por exemplo, Silvana Valu, a famosa dona do carnaval campo-grandense, que se esforça o ano inteiro para fomentar os dias carnavalescos da cidade. “Meu maior medo é não conseguir responder às expectativas do público, mas enquanto houver possibilidade, estaremos lutando para que os carnavais saiam”, disse. Em uma investigação bastante dedicada, foram descobertas mulheres com diversas histórias, mas que, de sua maneira, com desafios e conquistas, colaboraram para o estado que queremos: mais justo, mais igual e com mais oportunidades.

Tem história

Era outubro de 1977 quando o então presidente Ernesto Geisel assinou a lei que dividia o estado de

Mato Grosso e criava Mato Grosso do Sul. Lenilde Ramos, escritora, compositora, jornalista e produtora cultural, tem sangue quente e alma pantaneira, participou fortemente desse processo, como um filho em seus braços: “Foi um momento histórico, de ver nascer um estado. Fui convidada para fazer parte da equipe de transição que montaria a primeira fundação de cultura. Eu peguei com as duas mãos essa oportunidade e tive o privilégio de me envolver com toda a estrutura!”. Para que um novo estado fosse criado, foi preciso fomentar a cultura do local. “Foi o momento de descobrir qual era a cara da cultura de Mato Grosso do Sul. Então, montamos uma colcha de retalhos. Nós juntamos tudo o que tínhamos de vivência, de herança”, relata.


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Lenilde Ramos compartilha suas lembranças sobre a divisão do estado A mudança que parecia se limitar a um documento, representou a chegada de novos ares para aquela população. Lenilde é positiva quanto às oportunidades surgidas: “A divisão do estado potencializou o trabalho de mulheres. Com essa efervescência cultural, houve possibilidade para que elas tivessem destaque”, relembra. A cantora afirma que a criação melhorou a realidade feminina naquele momento. “Eu vejo dois estados. Existe um Mato Grosso do Sul machista, que é aquele da tradição política, da fazenda, do interior. Ao mesmo tempo, há grupos de pessoas contestadoras que não se deixam contaminar pelo machismo”, comenta.

“A nossa luta é todo dia, toda hora, todo momento. Cochilou, o cachimbo cai. Literalmente, o machismo não dá sossego!” Ana José Alves Sua relação com a cultura sul-mato-grossense eternizou-se no livro “História Sem Nome”. “A escrita sempre me acompanhou, fiz isso de forma muito natural. Ler e escrever nunca foi difícil para mim”, afirma com sorriso radiante. “O livro é calcado na minha realidade.

Trabalhei a vida inteira em função das pessoas e não aprendi a ganhar dinheiro, pensei em vender a minha vida!”, brinca. Em meio às nuances da conversa, sua amizade com o falecido poeta Manoel de Barros foi uma recordação inevitável. “O chão de Mato Grosso do Sul criou um poeta revolucionário”, pondera. “Na faculdade, me envolvi com a literatura e conheci Manoel. Ele era pai de uma amiga e dava livros para a gente. Descobri que fazia poesias e musiquei suas palavras, e ele se tornou meu amigo até a velhice”, recorda, amarrando essa com outra história marcante: “Quando um sobrinho dele, que era amigo nosso morreu, eu fui cantar na missa de sétimo dia. Estava indo embora e ele, em forma de brincadeira, pediu para que eu cantasse em seu velório. E na morte dele, fiquei com isso na cabeça… Ficava escutando ele falar isso para mim. Na missa de sétimo dia dele, cantei a mesma música: Monte Castelo”.

são a autoestima, sexualidade e discriminação da mulher negra, que passa pelo machismo e racismo. “A solidão da mulher negra é triste, porque ela é preterida. Casa com mais idade, mas a sexualidade é realçada [...] Você tem que se olhar no espelho. Seu cabelo, seu nariz, sua boca, sua pele e se achar linda!”, afirma. As mensagens do coletivo são propagadas por meio de ações sociais constantes. “A nossa luta é todo dia, toda hora, todo momento. Cochilou, o cachimbo cai. Literalmente, o machismo não dá sossego!”, fala entre risos, contrastando com seu olhar sério. Mirian Pereira, preta, lésbica e militante, também teve uma vida difícil e traz toda sua força para o movimento social. “Sou filha de uma negra maravilhosa, porém, fui roubada da minha mãe e dada em adoção. Devido a esse fato, eu sofri muita violência na infância, por ser negra e mulher”, conta. Dona de pouca altura, uma voz potente e escolha de palavras inteligentes para compor a entrevista, ela mostra que tem muito a contribuir para a luta LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais). “Na minha criação, não foram acrescidos nenhum valor moral, cresci limpando chão. Na militância, entrei justamente para combater essa visão”, enfatiza. “O homossexual tem conflito consigo mesmo antes da família saber da sua sexualidade. Não é fácil se olhar no espelho e saber que você é diferente! Eu, particularmente, quando era adolescente, olhava minhas coleguinhas

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crescendo e passando maquiagem, sandália, bolsinha… E eu nunca tive essa vontade”, revela.

Tem inteligência

“Quantas vezes eu pedi uma escola de surdo e você achou melhor uma escola de ouvinte? Várias vezes eu sinalizei as minhas necessidades e você as ignorou, colocando as suas idéias no lugar”, o trecho faz parte da coletânea de poesias de Shirley Vilhalva, professora de pós-graduação e linguista. A profissional é surda-oralizada, ou seja, não ouve, mas possui a fala desenvolvida. Seu trabalho é de disseminação da Língua Brasileira de Sinais (Libras), inclusão da pessoa surda e acessibilidade comunicacional. “Quando você pensa na sua mão, na configuração da sua mão, é como se fossem novas letras e palavras”, explica. A mulher de cabelos grisalhos na altura dos ombros demonstra leveza até na maneira de andar, não hesita em dar abraços fortes e escancarar o sorriso para as perguntas feitas durante a entrevista. Graças à sua atuação, o estado de Mato Grosso do Sul é pioneiro em algumas ações de inclusão pela pessoa com deficiência auditiva. “Aqui no estado, a lei da Libras é de 1996, em Campo Grande é de 1993. Enquanto, no Brasil, é de 2002”, relembra contente. “Aprendi a falar porque minha família sistematizou o ensino. Mas eu tive que deixar de brincar, passear ou ir em festas para ficar estudando”, Foto: Sarah Santos

Foto: Sarah Santos

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Tem resistência

“Comecei a trabalhar e estudar cedo, conclui a faculdade e meu pai dizia que não dava brinquedos, mas queria resultados nos estudos. A educação é um mecanismo que transforma, mas tem que ter persistência. Se não, chega no meio, você para e não volta mais”, conta Ana José Alves, co-fundadora do Coletivo de Mulheres Negras Raimunda Luzia de Brito. “Para quem é da periferia, a cobrança e resistência é muito maior”, afirma. As pautas do coletivo

Shirley Vilhalva é linguista e milita pela causa das pessoas com deficiência auditiva


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Luiza Ribeiro é ex-vereadora e liderou pautas de cultura na câmara legislativa explica sobre seu processo de alfabetização. A representatividade é um ponto fundamental para conquista de direitos, e Shirley Vilhalva não aceita políticas públicas que não representem as necessidades de sua comunidade, diz que “o Estado não consulta a pessoa com deficiência. Eles precisam saber o que queremos e nos valorizar, contabilizar seus funcionários públicos e dar mérito a eles”, alerta.

Tem liderança

Luciana Azambuja Roca é subsecretária estadual da mulher e iniciou esse trabalho em 2015, quando foi convidada pelo governador para assumir o cargo. “Fui estudar o que eram as políticas públicas para as mulheres e como fazer. É diferente de política de governo. Deve-se ouvir os movimentos sociais, que tem uma importância muito grande. E aí, uma vez que a gente toma conhecimento, eu acho que é impossível deixar de atuar”, diz.

“A gente vai combater a violência empoderando meninas, mulheres e lhes dando conhecimentos de seus direitos, para que elas possam optar por exercê-los ou não” Luciana Azambuja

“Atuamos na prevenção, na proteção, no próprio enfrentamento à violência e na garantia de direitos para mulheres”, ela afirma, com um leque de projetos operacionais para a busca de direitos como o “Maria da Penha Vai à Escola”, “Diálogos e Desafios” e “Mulheres em Foco”. “A gente vai combater a violência empoderando meninas, mulheres e lhes dando conhecimentos de seus direitos, para que elas possam optar por exercê-los ou não”, pondera. Na capital, a população também teve ações memoráveis em benefício da mulher. A ex-vereadora Luiza Ribeiro dedicou todo seu mandato às demandas de gênero e cultura. “Tivemos uma correspondência forte com artistas, produtores culturais e o pessoal das políticas públicas para a cultura [...] Também, as políticas públicas para mulheres, pois vivemos em um país muito machista e conservador, em todos os âmbitos, e cheio de violência”, diz. Seu trabalho obteve importantes resultados, a atuante enfrentou bravamente um plenário por vezes conservador e machista. “Quando uma mulher movimenta-se politicamente com força, com vigor, com resultado, isso inicialmente já causa um incômodo de gênero, porque eles acham que você inicialmente deveria estar ali, quieta, em sub-degrau e os homens sim, poderiam se destacar, mobilizar e discutir!”, relata.

ta foi superada e em seu lugar, a interação entre indivíduos e promoção da cultura ganhou espaço, fomentando um novo e delicioso cenário para a capital. O Cordão Valu marcou território na cidade e por trás dos confetes e serpentinas, há um trabalho que dura o ano inteiro, feito por pessoas apaixonadas pela cultura e pelo estado. Silvana Valu é uma delas. “Criamos o Bar Valu para abrir o Cordão, pois não achamos nenhum local que tivesse a ver com o que queríamos fazer. Tanto que fundamos o bar em 2006 e saímos no carnaval de 2007 com o Cordão!”, relata. O trabalho que iniciou entre amigos, conquistou grande parte da comunidade campo-grandense e se tornou um espaço popular, como ela mesma diz: “O carnaval é o momento do pobre virar artista!”. O quarteirão da ferrovia é o local onde as festas acontecem todo ano; as ruas de paralelepípedo, as casas com ar antigo e a ligação entre as quadras promove o cenário perfeito para as comemorações. “Os moradores fazem parte da festa e gostam muito do carnaval. E a Esplanada Ferroviária tem tudo a ver, pois os ferroviários que fundaram a escola de samba Igrejinha!”, ela compartilha. Atualmente, a maior dificuldade do carnaval da Cidade Morena é a falta de apoio governamental, e sobre isso, Valu conta: “Nós somos atendidos pelo governo, mas sempre com muita dificuldade. O fato é que o Cordão é um evento que não utiliza verba pública, por isso

“Quando se traz algo para o espaço público, você democratiza as coisas e permite que várias classes sociais se misturem. Você aproxima as pessoas” Silvana Valu que fazemos festas juninas e pré-carnavais. São essas festas que nos ajudam financeiramente. O que pedimos para o governo é a estrutura: banheiros e segurança pública, por exemplo”. A maior contribuição que Valu e seus amigos carnavalescos trouxeram para Campo Grande não é a festa em si, mas a ocupação efetiva das ruas. “O Cordão só resiste porque ele é de rua. Quando se traz algo para o espaço público, você democratiza as coisas e permite que várias classes sociais se misturem. Você aproxima as pessoas”, ressalta. Apontando os traços retrógrados da cultura regional, ela considera as festas nas calçadas uma forma de desconstrução. “Campo Grande ainda é uma cidade muito conservadora, então, as pessoas acabam se confinando em seus espaços privados e quando não há a ocupação do espaço público, não há troca”. Foto: Sarah Santos

Foto: Sarah Santos

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Tem desafios

O carnaval campo-grandense apresentou crescimento notável nos últimos anos. A visão negativa que se tinha da fes-

Silvana Valu lidera há 11 anos o Cordão Valu, trazendo o carnaval de rua para Campo Grande


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mesmo assim esquecia. Aí, começou a chamar de “Casal de Onças que eu trouxe do Mato Grosso”, e pegou. Mas eu não gostava. No fim, caiu no gosto”, ela recorda. A dupla Délio e Delinha fez sucesso nacionalmente com o sertanejo e rasqueado. Esteve casada com Délio por 20 anos quando se separou, e dois anos depois encontrou Jairo, com quem esteve por 32 anos, até seu falecimento. Dona de si que é, a dama do rasqueado não teve receios em amar novamente e continuar produzindo sua música. Mesmo com a separação, a dupla não parou, “Eu e Délio voltamos em 1992, com O Canto da Terra, no Círculo Militar. E estava lotado!”, celebra. Após uma carreira notável, com muito material gravado e prestígio, Delinha para de compor, mas segue com seus shows, e ressalta: “se ainda falta algo, falta muito pouco. Eu tenho muitas amizades, paz e saúde. Acho que sou feliz”.

No dia da entrevista, Delinha enfrentava por uma gripe e teve que pausar o procedimento algumas vezes devido às constantes tosses, mas continuava firme e solícita com as pessoas ao seu redor. O jeito simples, humilde e ao mesmo tempo contemporâneo torna-a a maior personificação da mulher sul-mato-grossense encontrada na apuração da reportagem. A paixão pela música e persistência em trabalhar, ressalta suas contribuições para o enriquecimento da cultura do estado. Como dito por ela mesma: “Nois não tem preguiça, nois vai e anda!”

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Para ler os perfis das mulheres participantes dessa reportagem, conecte seu celular ao Código QR abaixo, ou acesse: http://www.sarahsantos.com. br/p/o-que-e-que-sul-mato-grossense-tem.html

“Nois não tem preguiça, nois vai e anda!” Delinha

sarah.sansj@gmail.com Foto: Sarah Santos

Tem destaque Não se pode falar em cultura no estado sem citar uma das mais talentosas cantoras que Mato Grosso do Sul já possuiu: Delinha. A senhorinha simpática e dona de uma voz potente gostava de cantar desde a infância e começou a carreira cedo, com 19 anos, acompanhada de seu esposo Délio. Perguntei a ela se não achava que havia começado cedo demais, e ela respondeu: “Sabe, Sarita? Nunca nada me atrapalhou. O que tem que ser será, e pronto. O que Deus põe no seu caminho, você tem que aceitar”, disse. Logo no início da carreira, foi residir em São Paulo e essa mudança foi fundamental para que sua carreira alavancasse, mas mesmo assim, foram necessários anos de trabalho para conseguir reconhecimento. “Na Rádio Bandeirantes, o Capitão Barduíno, apresentador de um programa, foi com a nossa cara. Ele chamava nós no microfone e esquecia o nome. Ele que pôs o nome de Délio, e

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Delinha enfrentava uma gripe, mas não deixou que isso prejudicasse a entrevista


Cultura Negra Foto: Richad Lima

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Filhos da África

Claiane Lamperth Paula Navarro Numa longa viagem de partida, separados da família e dos amigos, acorrentados em ferros e à infelicidade do próprio destino. Cortaram mares num Navio Negreiro. E ao contrário do que os autores narram em alguns livros escolares, a jornada dos filhos da África no Brasil não acaba após a escravidão.

“Já fui muito vítima de preconceito” Richard Lima

Resquícios da memória

Richard Lima é acadêmico de Jornalismo na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Negro. Cotista em uma universidade pública. É autor da exposição “Negro Sob um Olhar Negro”. Um tema cujo objetivo busca através da linguagem fotográfica, acabar com as in-

Luta e resistência da cultura africana no Brasil justiças, o preconceito e a visão negativa sobre o negro. Mas a sua compreensão sobre a questão só veio após o contato com pessoas, grupos e movimentos da universidade: “Eu passei a compreender a questão racial de uma outra perspectiva. Me identifiquei – não só enquanto negro, mas um negro que precisa estar disseminando a representatividade”, afirma o estudante. Para o acadêmico formador de opinião, o negro ainda passa por situações deploráveis: “Já fui muito vítima de preconceito. As pessoas subestimam muito, e eu quis buscar essa garra, essa força por uma outra perspectiva. Justamente por que eu já estava cansado de ter que passar por situações deploráveis”, relata. A atitude de Richard não é isolada. Em outros cantos da cidade e do país, há negros que ainda buscam esse empoderamento. O preconceito pela cor e pela história de um povo ainda é constante. Até mesmo por decisão dos

“Os egípicios eram negros, construíram pirâmides; era uma civilização que tinha Medicina...” Marcelo de Lima próprios pais na tentativa de proteger os filhos das retaliações sociais. Marcelo Jesus de Lima é acadêmico de Ciências Sociais da UFMS. Negro. Luta pelo fim do preconceito. Luta contra a visão deturpada do padrão estético imposto pela sociedade. “É imposta uma estética em caráter cultural universal, praticamente, em que vai nos colocar numa situação muito prejudicada. Isso vai prejudicar muito a nossa saúde mental”, afirma o acadêmico. Palavras duras e visão realista. Marcelo reforça que construir uma

opinião bem formada depende da educação. “Por exemplo, se na escola só te falam que o negro é aquilo [se refere à escravidão], eu vou pensar ‘por que eu quero ser o negro, se o negro só fez isso?’. Mas se a gente falasse pra eles [alunos] que não, que os egípcios eram negros, construíram pirâmides; era uma civilização que tinha Medicina, Arquitetura, Arte, Religião, Estado. Tinha tudo!”, enfatiza.

Movimento e resistência

Na internet, movimentos ganham força, voz e vida. “Ser um negro militante é acordar, se olhar no espelho e não odiar o seu reflexo, seus traços. E não falo apenas do cabelo; falo também dos casos de automutilação que ainda acontecem na tentativa de parecer menos negro”, relata a blogueira Livía Teodoro – Historiadora e técnica em Design Gráfico. Mãe, negra e ativista digital. A editora do blog “Na veia da Nêga” representa o pensamento de muitos militantes. E retoma: “Ser negro


Cultura Negra no Brasil é ser um militante a cada respiro, a cada vez que você retorna para casa vivo, a cada vez que você consegue chegar a lugares que por séculos vêm sendo negados ao nosso povo”.

“A educação pode contribuir muito. E a política também!” Auriellen Vicente

Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS te, mas não posso negar a importância que o movimento negro tem”. Auriellen está se formando em Artes Visuais pela UFMS. 20 anos. Negra. Ao contrário de Lívia, não se considera militante, mas usa o turbante como expressão de resistência. Para ela, é questão de consciência: “Eu acredito que talvez a situação mude quando as pessoas tomarem consciência do ‘ser negro’, principalmente as pessoas que são negras”, pondera a acadêmica. E conclui: “talvez ganharíamos mais força”. O Brasil é reconhecido por sua pluralidade cultural. Costumes e tradições herdados de muitas etnias que por aqui aportaram. Mas nada tão fortemente entranhada em nossa história como a herança cultural africana. Sabores, ritmos e expressões artísticas de valores incontestáveis. Na culinária brasileira, o negro também incrementou a sua história. Dentre as iguarias mais requisitadas do país – como o vatapá, o acarajé, o mungunzá e a cocada – a feijoada ainda é a

mais queridinha dos brasileiros. Na Literatura, Machado de Assis e Monteiro Lobato se destacam. Negros que por muitas vezes tiveram sua identidade omitida ou pouco comentada durante as aulas, mas que ainda assim são referências literárias até os dias atuais. Na música, o samba impera. O churrasco feito no fundo de casa revela. Costume que até deu origem ao nome de um dos grupos de samba mais famosos do Brasil: Fundo de Quintal. Mas outros gêneros como o jazz, o blues, o rap, hip-hop e o funk contribuem para a construção do cenário musical brasileiro. Outras vozes acompanham esse progresso, como Clara Nunes, Gilberto Gil e Luiz Melodia, por exemplo. Vozes que reforçam a entoada. Na arte, a Capoeira se destaca. Defesa pessoal. Luta, dança ou joga? A arte considerada Patrimônio Cultural do Brasil, em 2014 foi tombada como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Mas o fenômeno de resistência cultural e símbolo da cultura brasileira será sempre o Carnaval. A representação de histórias através dos sambas-

presídio e na favela, vamos saber que ele é a grande maioria. Se formos nas universidades, apesar do avanço das cotas e ações afirmativas, vamos ver que é a minoria. - Quem é o negro discriminado aqui no país, Mano Zé? - Essa é a pergunta que não quer calar! Não é aquele que tem um ou mais ancestrais negros ou indígenas; isso a maior parte da população tem. O fator excludente é a tez negra. O preconceito tá na cara, tá na pele. A discriminação ocorre muito mais com quem tem a pele negra. José do Carmo da Silva, foi apelidado de Mano Zé durante o período da faculdade. Ele é Teólogo pós-graduado em ensino de sociologia, filosofia e religião, e é pastor ordenado há 14 anos na e pela Igreja Metodista. Atualmente José atua ministerialmente e como professor de teologia. - Como funciona a discriminação com as religiões de matriz africana? - A religião de matriz africana que veio para o Brasil com meus ancestrais foi o Candomblé Ketu, que há muito tempo deixou de ser de negros e pobres. Ainda que eu não

concorde com muitos aspectos teológicos, eu não posso negar que ela é uma religião de resistência e que muito da cultura africana e da identidade desse povo se preservou a partir dos terreiros. Mas, o Candomblé ainda é mais discriminado que o Espiritismo. Há também a Umbanda, a única religião brasileira. É fruto do sincretismo entre Candomblé, Espiritismo, Catolicismo e atualmente com cultos exotéricos. É nessa religião que os dois povos excluídos do Brasil, os indígenas e negros, terão espaço de manifestação. - E o cristianismo? - Ao contrário do que muitos acreditam, o Cristianismo também tem sua vertente africana. A Palavra de Deus fala de um eunuco etíope que foi batizado por Filipe, ministro mor da rainha de Candace que fica na África, e que levou o Evangelho para o país muito antes do cristianismo surgir na Europa. E existe os cristãos coptas, ou egípcios, que não são nem protestante nem católicos, são outra vertente de um cristianismo muito antigo e tem sua própria tradição. A conversa voa, e duas horas e meia

Herança genuína

Auriellen Leonel Vicente parece tímida de longe. Na mesa da área de convivência do curso de Jornalismo, ela nos recebe com um belo sorriso. Voz baixa, serena e de atitude. Reconhece que o movimento agregou muitas conquistas para a população afro-brasileira. “Foram os movimentos negros que começaram a dar visibilidade pra nós negros. E sem a militância, sem o movimento negro, muitas coisas não teriam sido alcançadas. Eu não me considero militan-

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-enredos, fantasias e alegorias ainda é a maior festividade do país. Além disso, são em momentos como esse que blocos afrodescendentes ganham força e visibilidade. Transformam som e coreografias em identidade sociocultural. Bloco Olodum, já ouviu falar? Eis o maior bloco afro do Brasil, que agrega expressões de vida e tradições, e que cultiva o senso de diversidade. Na religião, os rituais são marcantes. A Umbanda e o Candomblé são mais populares. Herança deixada pelos Quilombos que resistiram ao batismo católico. Nos terreiros, o credo é âncora da vida. Os rituais são de proteção, fortalecimento espiritual e pedidos de intercessão. E ainda que grande parte dos brasileiros se espelhe na cultura norteamericana, é indiscutível que, de longe, a cultura afro-brasileira é a mais resistente e perceptível nesse conglomerado de costumes e tradições que influenciam nossas vidas. Exemplos que traduzem, em poucas palavras, a expressão idônea de Karol Conká, cantora negra despontada em cenário nacional: “Já que é pra tombar, tombei!”.

- Mano Zé, você é negro? - Sim. Sou negro na consciência, na cor da pele, no genótipo, no fenótipo e acima de tudo, sou negro na militância, porque ser negro vai além da cor da pele. Tem muitos que são na pele, mas não se assumem, e outros que apesar de conscientes, não lutam pela causa negra. O Mano Zé com quem tive dois dedos e meio de prosa poderia ter respondido “não”, apesar de ter traços e tez negros. Ele é filho de uma cafusa, nome dado à mistura de indígena com negro, e mais do que orgulhoso, sinceramente alegre, ele afirma que não tem uma grande família e sim um grande quilombo. - Quem é o negro hoje no Brasil? - Ser negro é ser guerreiro. Socialmente o negro não vive, sobrevive. Nós lutamos contra o preconceito religioso e racismo. Aqui no Brasil é mais difícil que nos Estados Unidos, porque ainda falta conscientização. Apesar de termos feito progresso nesse sentido, por causa do movimento negro em suas várias vertentes, ainda há muitos que não se assumem. Então, às vezes é muito fácil definir quem é o negro. Se nós formos no

Foto: Claiane Lamperth

MANO ZÉ

Mano Zé esbanja alegria e orgulho de ser quem é. não são suficientes para trabalhar todas as questões levantadas pelo assunto, mas uma coisa está em evidência: o preconceito racial existe. “Racismo é crime tanto quanto qualquer outro, e precisa ser denunciado. Todo e qualquer ser humano que sofre ou enxerga o racismo pode e deve denunciá-lo”, reforça Mano Zé.

clai_909@hotmail.com pam.navarro@hotmail.com


Síndrome de Down Foto: Larissa Ivama

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Janelas para o conhecimento Os avanços da medicina e maior conhecimento da sociedade para o bem estar das pessoas com Síndrome de Down

Ketlen Gomes Larissa Ivama A Trissomia do Cromossomo 21, Síndrome de Down, é uma condição genética onde foi adicionado um cromossomo a mais que gera algumas diferenças físicas e intelectuais, tais diferenças fizeram com que fossem afastados do convívio social, considerados inferiores e incapazes de uma vida autônoma. Essa é uma alteração genética considerada comum, no qual uma em cada

500 pessoas nascem com a mudança. De acordo com a Dra. Liane Giuliane, formada em 2013 em genética médica: “As comorbidades relacionadas à síndrome são variaveis, elas não acontecem no mesmo padrão em todos eles”, assim como um portador pode ter cardiopatia, o primeiro pode não apresentar, e em contra partida pode ter leucemia ou hipertireoidismo, que o outro não

tem. Essas variações são multifatoriais e podem, segundo a médica, estar relacionadas a alimentação da mãe na gestação, a estimulação nos primeiros meses e também a causas que ainda estão sendo diagnosticadas, não existindo o chamado “Grau de Down”, ou seja, não depende da genética, do cariótipo do indivíduo. Diversos outros fatores que es-

tão ligados a toda sociedade influenciam na melhoria de vida das pessoas com down, como a alimentação, estilo de vida, avanços tecnológicos na área médica, que desenvolveram melhor as UTIS e cirurgias cardiovasculares, uma das principais causas de morte antigamente. Em relação à gravidez, as melhorias do acompanhamento durante a gestação e o pré-natal são exemplos.


Há 10 anos atrás, houve um bom avanço nas melhorias de tratamento, como escolas de medicina que já disponibilizam genética clínica, fazendo com que o médico saia mais preparado para atender esses casos.

A notícia

Durante anos, muitas mães encontravam-se sem um rumo, com diagnósticos pouco precisos, sem orientação do que era a doença de seu filho e de como cuidar dessa criança. De acordo com médica, a realidade de hoje em dia está muito diferente de 20 a 30 anos atrás. O que também podemos observar em relação a todas as outras áreas da saúde que estão ligadas à Síndrome. Eram pouco médicos capacitados para trabalhar com uma criança com Down, de dar a notícia e do acolhimento das famílias. Muitas vezes, mesmo que não haja indicação em exames posteriores, é na sala do parto em que a mãe, ainda anestesiada, recebe a notícia que seu filho possui a síndrome, isso ocorre as vezes sem nenhum preparo psicológico ou um acompanhamento da família por um profissional para explicar e informar sobre o que ou como fazer. Tempos atrás essa notícia era dada de forma ainda mais chocante. Estipulavam um prazo de vida para os recém nascidos: “Seu filho é mongoloide e aos 15 anos ele irá morrer”, foram as palavras do médico, recorda dona Maria Aparecida Rozatti, 60, mãe de Fernando hoje com 38 anos (veja o texto Amor acima de tudo). O contexto de estimulação, de alimentação e manejo, também influencia no desenvolvimento dos que nascem com a síndrome, entrando o papel da escola e acompanhamento médico adequado. Na Escola Juliano Varela, pode-se perceber o trabalho inter e multidisciplinar necessários para a inserção do Down na sociedade. “Quando a criança nasce com a Síndrome de Down ela precisa aprender o movimento, aquilo que a gente nasce, que é tão instintivo, de a criança sair de deitado para sentado, ela precisa aprender esse movimento, ela precisa ter essa conexão pra saber que ela pode fazer esse movimento”, diz a fisioterapeuta Rosangela Gaúna que conta vitórias como crianças desenvolvendo a marcha com 1 ano e 5 meses, coisa que há alguns anos só era desenvolvida a partir dos 3 anos de idade, mostrando a importância do acompanhamento desde cedo.

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A oportunidade para nascerem talentos

Jefferson Mota de Oliveira é mestre de capoeira e professor para pessoas com síndrome de down. As dificuldades encontradas são mínimas, relata o mestre, sendo maior de quem está transmitindo o conhecimento e não de quem recebe. Os atendimentos embora feitos por sala são individuais, levando em conta a avaliação da dificuldade de cada um. O movimento é mostrado fragmentado, “alguns conseguem já de primeiro momento, outros requerem que você fique repetindo, mostre mais vezes, alguns que você precise de auxílio”, exemplifica. Há também os destaques, alguns nos instrumentos, outros já são m u i t o b o n s tocando e cantando, também tem a questão do jogo e outros assimilando a questão de música, do repertório. Além das melhoras motoras, a questão da socialização, da autoestima do aluno, a oralidade são itens destacados pelo professor. Dentre as várias atividades artísticas da instituição, algumas são ofertadas esporadicamente por parceiros do Juliano Varela, como é o caso de aulas de ioga e das práticas de skate, que são ofertadas pela Rema Board House, no seu projeto Rema na Escola, a convite de Rafael Luco Sanches, escritor, poeta e historiador que já trabalhou na associação.

Jefferson Mota de Oliveira é mestre em capoeira para pessoas com síndrome de down. As dificuldades encontradas são mínimas, sendo maiores para quem está transmitindo o conhecimento. O intuito é levar o sentimento e a cultura do skate para dentro dos colégios, Pedro Henrique Subtil Santos, mais conhecido como Iti, é skatista profissional, diretor de filme e consultor de marketing, fala como é passado o esporte para os alunos: “A gente não ensina né, a gente só libera o skate, porque acho que todo mundo tem essa vontade né, eles estão vendo a gente andar e eles querem andar, então a gente torna isso real”. A participação é feita dando um norte para os novos praticantes, com uma margem de segurança, mas, sem tirar a autonomia deles estarem experimentando e vivenciando o esporte de maneira individual. Iti ainda complementa “O que eu sinto é que somos diferentes, é fato, mas eles tem qualidades que a gente não tem, e

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a gente tem qualidades que eles não tem, sempre que eu venho é muito forte essa energia, é uma troca muito boa”. As práticas começam na família, passam pelos profissionais de saúde, de educação e são melhoradas com as práticas culturais, como exemplificou o professor Jefferson “ás vezes as pessoas olham ele como down, a primeiro momento “tadinho dele”, mas após ele fazer a capoeira, após ele desenvolver o movimento falam “nossa, como ele é bom nisso””.

O preconceito e síndrome de down

Ao pesquisar no dicionário, temos preconceito como uma “atitude emocionalmente condicionada, baseada em crença, opinião ou generalização, determinando simpatia ou antipatia para com indivíduos ou grupos. Esse sentimento vem de um julgamento sem o devido conhecimento do grupo”. A psicóloga e psicopedagoga Naura Stella Matiussi, 51, explica: “o preconceito faz parte do gênero humano, sempre teve, a gente percebe que tem e sempre terá”. Assim como a estimulação precoce, é de suma importância para o desenvolvimento e bem-estar do Down, a troca de informação e acompanhamento psicológico das famílias; são meios pelos quais conFoto: Rema Skate Board

Síndrome de Down


seguem rebater todo o preconceito que pode ser praticado contra seus filhos.Os pais se armam de conheci mento para que possam orientar suas crianças e adolescentes de maneira a evitar ou reduzir os efeitos do preconceito e da discriminação gerados pela desinformação da sociedade.

Cotidiano

Foto: Larissa Ivama

Juliano, que deu nome à associação Juliano Varela, sempre está cercado por amigos. Em uma noite de sábado Jú, como é conhecido, chegou com seu irmão, cunhada e primo em uma das avenidas mais frequentadas por jovens em Campo Grande. Quieto e de mansinho foi entrando na conversa, quis saber um pouco mais das pessoas que estavam por lá e que ainda não conhecia, fez convites para uma festa junina e em seguida pediu um gole de cerveja. Seu irmão, já sabendo de seus gostos deu-lhe uma cerveja sem álcool fazendo com que Juliano abrisse um sorriso e, assim, ficou socializando até que o sono começou a chegar. Voltaram para casa a fim de deixá-lo dormir, mas ao ver que estava passando luta na TV, ainda ficou mais um tempo conversando e sempre fazendo comentários sobre o que via. É notável o maior desenvolvimento daqueles que tiveram acompanhamento desde que nasceram. Em um outro fim de semana... um domin-

go de sol, a risonha Yasmim Maria. aos 3 anos de idade, corria, brincava e se relacionava muito bem com as pessoas Logo se nota sua simpatia, levando todos para conhecer seus brinquedos, a maioria deles sendo estimulantes para o desenvolvimento de sua capacidade física e intelectual. De gênio forte, seu convívio com o irmão é igual a de outros irmãos, com brigas, birras, carinhos e momentos de brincadeiras compartilhadas. Com um mês, Yasmim começou a estimulação precoce, andou aos 2 anos e a cada dia aprende e surpreende as pessoas que estão ao seu redor. Igor César, 20, aluno da associação Juliano Varela, trabalha pela manhã na Empresa de Saneamento do Mato Grosso do Sul (Sanesul), pega três ônibus para chegar ao local e à tarde participa das atividades da escola, é skatista e sonha ser youtuber para falar do esporte e de sobre seu outro sonho, que é ter uma moto XJ6 de 600 cilindradas. O jovem é um dos vários exemplos de como o trabalho de incentivo, de inserção social, de práticas de esporte e arte são responsáveis para boas condições de vida, e não apenas de quem tem a Síndrome de Down, mas de todos que vivem em sociedade.

Progresso sem prazo

O debate de políticas e práticas

Síndrome de Down Foto: Larissa Ivama

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As brincadeiras são garantia de muita felicidade. socialmente inclusivas veio crescendo muito nos últimos anos e visa atingir cada vez mais pessoas, tornando realidade a convivência social com as diferenças. O caminho encontrado para rebater o preconceito que ainda existe atualmente é a troca de informações. Se faz necessário então um acolhimento das mães ainda grávidas para que

não deixem com que esse preconceito vigore dentro da casa da criança que está para nascer e, para que a família tenha noções suficientes para não deixar com que o preconceito os abale.-

ketlen_g@hotmail.com larissaivama@hotmail.com

Associação Juliano Varela Desde o nascimento do bebê surgem preocupações e questionamentos que são feitos pelos pais como o preconceito da sociedade, o desenvolvimento físico e intelectual, a dependência, dentre outros aspectos. Foi passando por isso que Maria Lúcia Fernandes fundou em 1994 a associação Juliano Varela, mãe de Juliano, portador da Síndrome de Down. A escola especializada foi o caminho encontrado para levar informação e desenvolver o potencial dos alunos. Hoje, a associação conta com atendimento clínico em diferentes áreas que atendem desde o recém-nascido a adultos, para fim de favorecer o desenvolvimento e a independência dessas pessoas.

A Associação Juliano Varela é uma instituição filantrópica, possui convênios com órgãos públicos e privados, recebe doações de empresas e pessoas físicas. Os atendimentos são gratuitos e em sua maioria atende pessoas com vulnerabilidade econômica. É oferecido educação infantil, ensino fundamental e educação pré-profissional para mais de 150 alunos que frequentam a associação e tem como finalidade, melhorar a qualidade de vida de todos os alunos com Síndrome de Down e tornar real a inclusão social. (LI) Serviço: A Associação Juliano Varela atende pelo telefone (67) 3026-8828


Síndrome de down

34 Foto: Beatriz Camargo

Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS -

Amor acima de tudo

Maria Rozatti é mãe de um homem com síndrome de Down, mas nunca deixou com que isso fosse um obstáculo na vida dele Beatriz Camargo As grades baixas que antecedem o jardim dão ao lugar um ar de casa. E seria apenas mais uma, não fosse o fato de naquele lugar, ser a sede de uma instituição que há muito tempo inclui quem sempre foi excluído. Uma escola para pessoas com síndrome de Down. De todas as idades. Um lugar não somente onde querem incluir os alunos na sociedade, que é ainda tão preconceituosa com o “diferente”, mas sim, querem mostrar para seus alunos o quão são capazes. Entre as tantas atividades que aconteciam ali, uma porta separa toda a movimentação de uma salinha, com várias mulheres. As Mães. Tímidas com nossa chegada. E quando já estávamos nos despedindo, uma mãe compartilha sua história conosco. Maria Aparecida Rozatti, de 60 anos, leva todos os dias seu filho, Fernando, de 38 anos, à instituição Juliano Varela.

Saem cedo de casa e entram no carro, investimento feito já que Fernando não gosta de andar de ônibus. A rotina começou quando o rapaz tinha 12 anos e a mãe percebeu que não podia excluir o filho do mundo. Ele queria se manifestar, queria ter amigos e atividades. Queria ser criança. Maria descobriu que tinha um filho com síndrome de Down 4 meses depois que ele havia nascido. Na época, os médicos ainda eram muito despreparados. Contaram a Maria que seu filho era ‘mongolóide’ (termo que usavam para chamar pessoas que possuíam a síndrome) e que não viveria mais de poucos meses. Foi um susto! A mãe ficou desesperada. A falta de preparo dos profissionais que deveriam ajudar e a falta de informação deixaram Maria sem rumo. Para proteger o filho dos olhares preconceituosos e de todo o julgamento que a sociedade faz, Maria o afastou de todos. Não o deixava sair na rua ou

Na época, os médicos ainda eram muito despreparados. Contaram a Maria que seu filho era ‘mongolóide’

perguntas que fazíamos. Mas descobrimos que ele é dançarino e cantor e muda seu estilo musical preferido a cada semana e faz muitos shows dentro de seu quarto, quando não tem platéia. Palmeirense roxo, seu time é a única coisa que ele não troca de jeito nenhum. Enquanto o filho fala, o olhar de orgulho de Maria é contagiante. O amor entre Mãe e filho é visível. Ela fala do filho com muito afeto e ternura, percebível apenas pelo olhar e pelo tom de voz. Todas as dificuldades enfrentadas, que seriam obstáculos, são transformados em degraus, fazendo com que Fernando alcance cada vez mais sua independência. E ali, naquela cadeira, contando a história do filho, para o qual ela dedicou toda sua vida, Maria termina nossa conversa com lágrimas nos olhos.

Hoje, Fernando é um homem. Muito tímido, respondia baixo as

beatrizgmcamargo@hotmail.com

brincar com vizinhos. Mas Fernando era criança e queria fazer coisas de criança. Quando começou a tentar fugir para rua, a mãe percebeu que aquilo não era o certo. E sua saga para achar uma instituição que o recebesse com tanto carinho quanto ela o deu a vida toda, começa. Fernando freqüentou outras associações antes mas as experiências não foram positivas.


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Cultura Digital

Montagem: Fernanda Sandoval

A criação do homem digital

Tudo no mundo começou com um sim. Do sim veio a conversa, da conversa veio a interação e de tudo veio a cultura. Hoje, é quase impossível imaginar um lugar onde tudo e todos não estejam conectados – no sentido mais amplo da palavra, incluindo o ser humano. As culturas se cruzam no meio online e o homem torna-se um resultado digital

texto e fotos Fernanda Sandoval e Talita Oliveira

Iluminação partindo da tela de um computador, som dos dedos batendo nas teclas. Digita, apaga, aperta o botão enter. Abre uma aba no navegador, digita o conteúdo que deseja encontrar, lê, assiste, pesquisa. Essa é uma rotina que envolve a vida de grande parte dos jovens brasileiros. Segundo uma pesquisa de 2016 da Agên cia Brasil, 80% da população brasileira entre 9 e 17 anos usa a internet e 83% utiliza o celular. As crianças ainda jogam futebol na rua, correm e brincam. Elas crescem em contato com a cultura de sua cidade, mas a internet é uma possibilidade de conhecer outras culturas sem sair do lugar. Nesse processo, jogos como futebol começam a dividir espaço com jogos virtuais, livros físicos dividem com os chamados e-books (livros em formato digital) e os CDs físicos dividem com a música disponibilizada em aplicativos ou sites de vídeo como o Youtube. A partir daí surgem novos hábitos, as horas do dia são redistribuídas para que deem espaço ao acesso à internet e criam-se novas opções para os horários livres, como explica o professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Gerson Luiz Martins, 56. “Todo esse aparato determina uma alteração de comportamento das pessoas e, portanto, atua na modificação da cultura em geral”. E acrescenta: “Isso é em todos os momentos, não somente no uso em si dos aparelhos, mas tudo aquilo que ele traz, seja de uma informação imediata, seja de uma informação mais a longo prazo”.


Cultura Digital Foto: Talita Oliveira

Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS -

Grupo de jovens conectados em seus aparelhos. Não é mais a televisão a única grande responsável por destacar o que está em evidência, nesse processo de compartilhar espaço ela também precisa aprender a ceder influência, nesse caso com a internet. Para o estudante Inácio Bardella, 17, o conteúdo que ele acessava na internet trouxe a vontade aprender um novo idioma. “Muitas séries e documentários que eu assisti eram em inglês, daí eu me interessei e fiz um curso de inglês pra aprender”, conta. A internet possibilita uma rapidez na pesquisa e no acesso a informações, produtos e entretenimento sem que haja necessidade de deslocamento, o que poupa tempo, mas por outro lado, caso não seja bem administrado pode causar transtornos. O estudante Angeluz Gabriel Trindade, 19, conta um dos efeitos que percebeu no consumo constante. “Eu me tornei muito dependente, porque a internet é um uni-

verso de coisas. Eu não acho que seja ruim, acho que eu sei lidar”. Para ele a internet serviu como forma de desenvolvimento social. Através dela conseguiu aumentar seu círculo de amizades e ganhou outra ferramenta de pesquisa de informações, anterior a isso só tinha os livros e as pessoas de seu convívio. “Tudo que eu falava e reproduzia era o que eu ouvia, uma coisa ou outra era de livro”, relata Angeluz. Por outro lado, a internet, além de entretenimento, ajuda a ampliar o conhecimento. O estudante João Vicente de Oliveira Neto, 20, gosta de assistir animes (desenho japonês) e é fã do que se tornou um dos mais populares do mundo, Naruto, já tendo até comprado bandana inspirada no desenho. “Eu acabo tendo um maior horizonte através da internet, de possibilidades, ou seja, acabo tendo mais facilidade pra encontrar certas coisas e quando eu me identifico procuro ela a qualquer momento, então fica muito fácil pra acompanhar”, conta.

“Possuímos não uma, mas várias identidades culturais” Tzvetan Todorov

Cada local tem a sua cultura e, sendo um organismo vivo, tende a sofrer mudanças, ela ajuda a constituir a identidade de uma pessoa. João Vicente é uma ilustração desse processo, consumir produtos de outros locais influen-

ciou em sua formação de identidade. “Como eu passei a gostar desses conteúdos e a consumir muito isso na minha vida, eu acabei assimilando certos padrões desses países e acabo criando uma identidade própria”, descreve. O termo pop é usado para definir a cultura popular e costuma estar ligado à parte produzida para consumo, ou seja, ela é transformada em produto. Dentro da cultura pop existem as chamadas nerd e geek, relacionadas às pessoas que gostam de tecnologia, engloba elementos como filmes, animes, jogos RPG (Role playing games ou jogos de interpretação de personagens), ficção cientifica, entre outros. Essa cultura ganhou popularidade nos últimos anos. Um exemplo disso é o Campeonato Brasileiro de League of Legends (Liga das lendas), uma competição profissional que conta com transmissão na TV e prêmio em dinheiro para os vencedores.

“Se eu não tivesse visto um negócio que me chamou atenção, não tivesse entrado, clicado e começado a ler eu não seria a pessoa que eu sou hoje” Angeluz Trindade

Há contradições no que diz respeito a relação do estresse com os videogames. Uma pesquisa realizada na Alemanha pela Universidade de Mainz afirma que as pessoas que escolhiam assistir TV ou jogar videogame se sentiam culpadas e não relaxadas após consumir. As pessoas acabam sendo pegas pela sensação de tempo desperdiçado. Por outro lado, um estudo publicado na revista Journal of Cybertherapy and Rehabilitation, comparou resultados de pessoas que jogaram vários jogos depois de um dia de trabalho e pessoas que não jogaram. Eles concluíram que jogar videogame melhora o humor e relaxa o cérebro. “Eu sempre quero chegar em casa logo para jogar. Para mim, jogar é algo lúdico. Então, estou fazendo algo que gosto”, destaca Graziele da Silva Barbosa, 20. O ambiente virtual é um lugar

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propício para a hibridização, ou seja, a mistura de coisas distintas, dando origem a uma nova. Existem inúmeras possibilidades de contato com outras culturas, como vídeos do Youtube de canais estrangeiros ou mesmo de outros estados do Brasil, grupos da rede social Facebook que misturam membros de vários estados ou países e nos jogos online, há também possibilidade de conversas por áudio em diversos idiomas e sobre vários assuntos. Um dos exemplos é o citado pelo estudante Angeluz Trindade sobre sua cultura alimentar que conheceu por meio da internet, o veganismo, que consiste em não consumir nenhum alimento ou produto de origem animal. Na web ele vê receitas e consegue pesquisar marcas de produtos que não utilizam ingredientes de origem animal. “Foi na internet que eu conheci o veganismo, se eu não tivesse visto um negócio que me chamou atenção, não tivesse entrado, clicado e começado a ler eu não seria a pessoa que eu sou hoje”, destaca. Os jogos são outro mecanismo que possibilita interação virtual. Alguns deles são em equipe e possibilitam o contato com outros jogadores que podem estar próximos ou distantes. São uma forma de conteúdo que proporciona evolução do personagem dentro do universo do jogo e, em alguns casos, pode ocasionar mudanças comportamentais no jogador. O engenheiro Cleiton Hideki, 22, joga desde os 8 anos de idade e, atualmente, costuma frequentar uma arena específica para jogos virtuais. “No começo, mudou pra bem ruim, com estresse em alguns jogos, mas hoje em dia costumo ser mais calmo do que era antes e pensar mais”. Ele menciona que durante o ensino médio, os jogos de estratégia ajudaram em seus estudos, pois exercitaram seu raciocínio lógico.

"Tudo no mundo começou com um sim" Clarice Lispector

Foi difícil achar o local. Não há maiores indicações de que ali moram artistas além de uma kombi com o nome do coletivo e paredes que sorriem com uma cor mais calorosa que o sol. A resposta do pedido para a entrevista foi respondida com uma citação sobre a criação do mundo: uma pessoa disse sim a uma pessoa e nasceu a conversa. Fui recebida com um abraço


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apertado – raridade entre nós, desconhecidos campo-grandenses. Nas paredes amarelas, revistas suspensas, quase um convite que sussurra: aqui há poesia. E elas estão certas. Na moradia de dois andares do Grupo Casa - Coletivo de artistas, o sorriso aberto do menino que me recebe escancara sua idade. Vinícius Febraro de Oliveira tem 18 anos e é ator, autor do livro "Poesia não existe ou ensaiodoquenãoédito" e criador da página POETASTRO no Facebook. Resultado da necessidade de se falar (de) poesia, ela nasceu quando Febraro tinha 16 anos. "Pensando no que mudava o mundo e no que me movia; eu comecei a publicar poesias e, quando eu vi, tinha muita gente querendo acompanhar a página". Na primeira semana, foram vinte mil curtidas. Em 2016, quando a página completou um ano, estava com quinhentas mil. Hoje, passa de três milhões e duzentas mil. "Os números nem são tão importantes, mas mostram algo muito interessante: a necessidade de falar de poesia é algo muito grande que vem surgindo

cada vez mais agora". Das pinturas rupestres nas paredes de Altamira à Vênus de Milo: desde que há comunicação, a arte a permeia. No século XXI, onde a tecnologia digital constrói e é construída diariamente, a produção cultural que visa sua divulgação em redes sociais torna-se cada vez mais presente. Um exemplo disso é o site Youtube. Ele foi criado essencialmente para a divulgação de vídeos em plataforma online e, hoje, abriga os mais variados gêneros, inclusive conteúdo exclusivo produzido para essa rede. É o caso do psicólogo Olegário de Godoy. Sua página no Facebook conta com mais de catorze mil curtidas e seu canal no Youtube quase setenta e cinco mil. O perfil na rede de vídeos é administrado por seu filho, Christopher Richard Ferreira de Godoy. Desde 2010 postando conteúdo online e sendo parte da geração que cresceu vendo e sofrendo o próprio avanço da internet, Christopher consegue diferenciar a produção online da física. "Os públicos geralmente são diferentes e a maneira de se comunicar com eles também. A geração mais nova praticamente não consome TV, seus ídolos costumam ser youtubers, já a geração mais velha ainda tem dificuldade de acompanhar toda essa tecnologia e prefere continuar nas mídias tradicionais. Então a produção acaba sim sendo diferente, inclusive na linguagem usada". Os produtos direcionados a redes sociais muitas vezes divergem de outros meios de massa, porém convergem entre si: os temas abordados em poesias, muitas vezes, são os

mesmos, não importando a página. É como um grande refúgio onde há apenas o que quer ser lido, já que o usuário tem poder sobre o conteúdo que lê, podendo até bloqueá-lo.

“Todo esse aparato determina uma alteração de comportamento das pessoas e, portanto, atua na modificação da cultura em geral” Gerson Luiz Martins. Assim, a internet abriga desde especialistas a artistas de todos os tipos, produzindo e reproduzindo conteúdo que agrade a todos. Tal qual a casa de paredes de livro, poesia sob a escada e paredes que sorriem.

“O verdadeiro perigo não é que computadores começarão a pensar como homens, mas que homens começarão a pensar como computadores” Sydney J. Harris O mundo real divide espaço com o virtual e a melhora da velocidade da internet possibilita maior tempo de co-

Cultura Digital

nexão. Mas como estabelecer um limite saudável entre o que é útil e benéfico para o que é dispensável ou maléfico? “Eu pessoalmente creio que tudo que é exagerado é maléfico. Existem casos de pessoas que estão o tempo todo conectadas e deixam outras coisas importantes na vida de lado”, avalia o professor Gerson Martins. A facilidade de encontrar informações no espaço virtual traz mais comodidade nas pesquisas. Cabe ao usuário determinar em que tipo de conteúdo ele investirá seu tempo, seja escolhendo o tipo de entretenimento, seja usando a seu favor a facilidade de pesquisa. “Há muitos benefícios nessa cultura digital, as pessoas têm muito mais acesso às informações, esse acesso auxilia no processo educacional da pessoa, não só a informação jornalística, mas a informação histórica, geográfica, econômica e política que faz com que as pessoas tenham uma compreensão maior da sociedade”, afirma Martins A identidade coletiva é construída em sociedade, mas as pessoas estruturam a identidade pessoal através de suas experiências de vida, convívio social e familiar. A internet aumenta cada vez mais sua presença entre os jovens brasileiros, torna-se parte desse processo e contribui na modificação da cultura. “Eu acredito que quanto mais as pessoas tiverem acesso à informação, mais puder saber explorar essa informação, ela vai ter muito mais potencial de identificação pessoal, de cultura pessoal”, frisa o professor.

sandovalfernanda127@gmail.com talitaaoliveiraa@gmail.com


Saúde Mental

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Deixados para trás

Foto: Adrian Albuquerque

A dor insuportável daqueles que são isolados pela sociedade

Diego Eubank João Victor Reis Regrada pelas batidas dos relógios, a sociedade se move em um sistema que não permite erros. Para fazer parte da grande máquina, o indivíduo se separa de si mesmo, para se tornar a peça perfeita, precisamente encaixada em uma forma imutável. Ignorando toda dor de ocupar um lugar que não é seu, gira em direção a morte. Desde o seu nascer, é comum que os bebês dividam o brilho com a iluminação artificial dos flashes que, apontados como armas, tiram suas vidas reais e transformam suas existências em números de curtidas e corações digitais. As crianças, desde então, tão acostumadas com o olhar de uma câmera quanto o olhar dos seus pais, sorriem, sem saberem que suas vidas digitais um dia valerão mais do que suas próprias vidas. Pequenos e sorridente, seus dias progressivamente deixam de ser exclusivamente seus para serem divididos com os sonhos dos seus pais. Sob cobranças excessivas, as crianças aprendem a se encaixar em um lugar que para elas que nem sempre é confortável. "Ela já tem desde muito cedo uma série de cobranças para que ela seja alguém extraordinário, que conheça línguas, esportes, artes, ciências", comenta Guilherme Passamani, doutor em Ciências Sociais. Na adolescência, o olhar infantil praticamente some para dar lugar a seres humanos que já conseguem perceber as agressivas exigências do mundo ao redor, Os sorrisos pixelados, através das telas portáteis vendem a imagem de felicidade o tempo todo. "A felicidade deixa de ser um sentimento, um estado de espírito e vira um produto", afirma Passamani. A partir daí, ao olhar profundamente dentro de si e ver um ser que constantemente erra desenvolvendo um sentimento de depress “Essa ideia

O indivíduo isolado ignora suas dores enquanto é ignorado pela sociedade

de frustração, de desencanto com o mundo, faz com que não consigamos processar tudo, o que leva esse sentimento de isolamento, de perda, de depressão”, ele acrescenta. Na constante tristeza por ser imperfeito, sem encontrarem o estado sagrado de felicidade imposto pela sociedade, não se identificam com o resto do mundo. Na universidade, por exemplo, é comum que o jovem ignore sua tristeza para buscar, com seus últimos impulsos de esperança a divina perfeição. "Essa noção padronizada de felicidade cada vez é menos acessível às pessoas, dada as desigualdades que existem na sociedade", destaca Passamani. Isolando-se nas suas próprias frustrações, é comum que o universitário coloque como prioridade o desempenho acadêmico. "Ser mediano não dá mais. Temos que ser extraordinários. E ser isso exige demais, exigências que não estamos acostumados", afirma o sociólogo.

Campo Grande

Em Campo Grande, esse comportamento é tão comum tanto pelo seu perfil universitário como por ser uma capital, que naturalmente exige rapidez exacerbada das engrenagens. "As pessoas não sabem quem elas são, pois estão atoladas, e isso gera um vazio. Elas saíram da área do agradável, do possível, para entrar em estado de overdose" constata Natalina Bassani, psicoterapeuta, especializada em psicoterapia Junguiana e Gestalt terapia. Por ser uma capital que ao mesmo tempo está em processo de desenvolvimento, há uma falta de oportunidades que não se mostra presente em capitais como São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Campo Grande então constrói-se no momento como um palco temporário na vida das pessoas, até acharem oportunidades melhores. “O que ocorre então é o fato das pessoas virem pra cá com oportunidades de empregos sazonais, temporais, faz com que elas venham

e depois vão embora, o mesmo caso dos universitários” continua Passamani. Campo Grande conta com um perfil cultural efervescente e nessas diversas formas e formatos de manifestação, o jovem se sente parte de algo e naquilo, descansa. Contudo, pela falta de divulgação, os campo-grandenses não se descarregam da violenta velocidade com que a vida acontece. "Campo Grande já foi um lugar pequeno, familiar e aconchegante, mas sofreu um boom repentino e as pessoas vieram com tudo. A cidade se desconfigurou", observa Natalina. A Capital é muito extensa, e permanecer dentro de dois ônibus por 40 minutos em cada um para ir ao Parque das Nações, por exemplo, é mais cansativo do que relaxante.

Esquecimento

O costume instaurado de esquecer completamente de si e deixar o cuidado consigo mesmo de lado ocorre entre grande parte dos acadêmicos da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). Desde a infância, números foram atribuídos ao indivíduo, as notas resumem um aluno desde o primeiro ano do ensino fundamental e é inconcebível para a sociedade, portanto, que na universidade seu desempenho seja menos que perfeito. “Justamente porque essa pessoa se encontra completamente perdida nesse estilo de vida que exige cada vez mais, que sejamos brilhantes. Ser bom não compensa mais. Ser mediano não dá mais. Temos que ser extraordinários”. Passamani acredita que a aceitação desse sentimento inferior diante da sociedade é desesperadora, criando uma realidade onde não há alternativas a não ser a tentativa de mostrar-se como o melhor. Em tempos de relações líquidas,


Saúde Mental

39 - Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS supérfluas, com ausência de intimidade, não há para o indivíduo deprimido uma superfície segura o suficiente para dividir o íntimo com o outro. Sem confiar a alguém os seus problemas, é esperado do ser humano que ele entre no jogo da sociedade sozinho, encarando os dramas da sua vida real de maneira individual, sendo que logo ao lado, seu conhecido que costumava ser amigo está passando pela mesma situação. "O individual se perde e a partir daí o conceito de massa se fortifica" reitera Natalina. A tristeza, um sentimento que a princípio é tão importante quanto a felicidade, já é constante e incômoda. Um sentimento de dor silenciosamente grita, mas pautados pelo tempo, o observar-se a si já não é mais possível. A partir de então, o jovem já deprimido e frustrado, encara silenciosamente, uma batalha contra a depressão. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) a depressão afeta 322 milhões de pessoas no mundo. No Brasil, 5,8% da população sofre com esse problema, o que afeta um total de 11,5 milhões de brasileiros.

O atentado ao eu lírico

A sociedade tem medo da morte. Encarar a finitude da vida tem como consequência perceber-se insignificante diante do universo. Questões como essas não fazem parte do roteiro que é estabelecido e entregue ao indivíduo no começo de sua vida. Ninguém quer parar a rotina diária para refletir sobre quão rápida a sua existência pode ser. Sendo assim, a sociedade tem medo da morte. Não apenas do ato em si, mas também teme o debate que ela provoca. Pois ninguém possui o desejo de morrer. Nem mesmo o suicida. Mas este possui dores tão grandiosas dentro de si, que enxerga o fim de sua vida como a única saída possível. Pois a morte, em todo seu âmago, oferece um caminho confortável pelo fato de ser considerável e irreversível. E este caminho é muitas vezes escolhido pelo fato da pessoa em processo de depressão sentir-se abandonada, justamente pelo fato da morte e o suicídio ainda serem considerados “assuntos tabus”. E é a partir desse silêncio, tanto do indivíduo como da sociedade como um todo, que o suicídio acontece.

Roberto Sinai, que desde 2002 é voluntário do Grupo de Amigos Voluntários (GAV), sede do Centro de Valorização da Vida (CVV) localizado em Campo Grande, aponta que o suicídio é acima de tudo um ponto de interrogação. Ao contrário da morte natural, a morte através do ato suicida não coloca um ponto final na história. Ele apresenta dúvidas, levanta questões do que ocorreu e o que poderia ter ocorrido para que tivesse sido evitado, ocasiona um barulho ensurdecedor que incomoda, mas que é abafado na primeira oportunidade. Pois suicídio não representa a falha de alguém diante da sociedade e sim a falha da sociedade para com o indivíduo. Mostra as rupturas que um sistema considerado tão bem consolidado possui, expõe as fraquezas existentes que ninguém parece querer lidar.

“Os desejos de infância formam um mundo simbólico que se repete, em coisas mais caras e maiores. Há uma mentalidade infantil que faz com que desejamos ser sempre o melhor” Natalina Bassani A importância do diálogo nesse momento é sem precedentes. Segundo a OMS, 95% dos casos de suicídios podem ser evitados através do diálogo fraterno desde que sejam diagnosticadas as depressões. É preciso desabafar, compartilhar frustrações e receber apoio. Edilson dos Reis, capelão hospitalar da UFMS e criador do primeiro e único curso de prevenção ao suicídio no Brasil, propaga o pensamento de que a dor compartilhada dói menos. Pois ao transbordar as angústias e decepções que o indivíduo coleciona, ele é capaz de se perceber pela primeira vez em muito tempo. O suicídio, por fim, acaba sendo o produto do sentimento mais devastador

que há: a solidão. O vazio existencial que assola através do sentimento de estar sozinho no mundo fragmenta de forma intensa o interno de cada um.

O suicídio na Capital

De acordo com o Mapa da Violência realizado pelo Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, Mato Grosso do Sul é o 4º estado brasileiro e Campo Grande é a 5ª capital brasileira, que mais registra mortes por suicídio. De janeiro a março de 2017, na capital, foram registradas pela Secretaria de Saúde (SESAU) 223 tentativas de suicídio, 13 a mais em relação ao mesmo período em 2016. Durante o ano passado foi registrado mais de 800 tentativas de suicídio e mais de 40 consumados. Campo Grande é uma capital com complexo de interior, apresentando uma disputa entre urbano e rural, ocasionando um embate entre o moderno e o conservador. “Essa tensão desestabiliza as pessoas, pois elas estão em uma transição de sistema de valores”, revela Passamani. Essa dualidade resulta na criação de bolhas sociais, isolando a população em pequenos focos que não interagem entre si.

Juventude fragmentada

Nos últimos anos, tem acontecido um aumento assustador no número de suicídio entre os jovens. Em 1980, no Brasil a taxa de suicídios na faixa etária de 15 a 29 anos era de 4,4 por 100 mil habitantes. Em 2014, a taxa subiu para 5,6, havendo um crescimento de 27,2%. Se antes a maior parte das taxas focava em adultos complexados, atualmente o adolescente tem sido grande foco nas discussões por parte dos especialistas. Bassani relata que a adolescência é fase de amadurecimento, fase transitória dos prazeres infantis para os prazeres adultos e por isso, de extremo cuidado. A realidade atual apresenta através da tecnologia o mundo fantasioso, válvulas de escape ilusórias que não oferecem de forma concreta uma felicidade real e sim um produto estruturado para dar uma falsa adesão do que é ser feliz. Por isso, de acordo com Bassani, é fácil o jovem se entediar quando se depara com o que é realmente real. Esse jovem, então quando se torna um universitário, muitas vezes se encontra em uma situação em que

é necessário a mudança de cenário. Distanciar-se de um ambiente familiar e aventurar-se de forma solitária em um mundo diferente do habitual é um choque tremendo, principalmente para alguém de 18 anos e deparam-se com uma pressão enlouquecedora. “E quando eles percebem que não são tão geniais assim, que não atingem as melhores notas para conseguir os melhores estágios, para depois conseguir os melhores empregos, elas se deprimem”, revela Passamani. O que ocorre atualmente é uma normalização desse sofrimento, como se fosse um ritual obrigatório de passagem para o mercado de trabalho.

Mídia

O suicídio, ao contrário do que muitos pensam, precisa ser discutido de forma que auxilie o maior número de pessoas na conscientização sobre o quão grave esse problema é. Roberto Sinai possui uma opinião forte sobre isso. “A imprensa tem poder fundamental na luta contra a depressão e suicídio, pois a mídia social entra em todas as residências. Seria capaz de realizar uma mudança de cultura”. Mas o que ocorre é a falta de sensibilidade por parte da mídia, uma falta de tato que é essencial para a retratação e divulgação do assunto. Os jornalistas Patrick Alif e Victor Hugo Sanches, que juntos elaboraram o livro “Espelhos Quebrados: Dor, Sofrimento, Vida e Morte na Linguagem Suicida” acreditam que é necessária uma reeducação na forma como o assunto é divulgado. As notícias precisam deixar de ser um deboche, um incentivamento para as pessoas que já estão em processo de maturação e passarem a tratar o tema com a profundidade e sensibilidade necessária para auxiliar o maior número de pessoas possíveis. Se você está com problemas, precisa de ajuda, necessita conversar com alguém, ligue para o GAV, entidade que oferece apoio para as pessoas que precisam compartilhar suas dores, pelo número 141 se mora na capital ou no número 3383-4112 nas demais cidades.

diegoimbank@gmail.com jv_vieirareiz@hotmail.com


Tereré

Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS -

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TERERÉ: a união de pessoas e culturas

A bebida que chegou ao estado pela fronteita, é marcante representação na cultura do Mato Grosso do Sul Lorrayna Ferreira

O nosso estado foi o primeiro a conhecer a bebida no Brasil. O tereré chegou aqui trazido pelos paraguaios e índios Guarani Kaiowá, na cidade de Ponta Porã fronteira com Pedro Juan Caballero no Paraguai. O Mato Grosso do Sul é até hoje o maior produtor de erva mate depois da região sul. E diante dessa história da chegada do tereré aqui, vejo como ele se inseriu, se faz presente em nossa cultura e está dentro dos costumes dos campo-grandenses. Nos corredores do Mercado Municipal, a erva mate presente nas bancas carrega consigo toda a história da sua trajetória, e junto as histórias das pessoas que em união tomam a bebida. Assim é com a comerciante Gleicemara Borges dona de seis bancas e um box especializados em erva mate. Desde que começou, há oito anos, ela tem o convívio com a erva. Com toda simpatia, fui recebida logo após a saída de um cliente. Os olhos e as palavras firmes mostram seu conhecimento ao me

Dentre os diversos tipos de sabores, o mais pedido é o tradicional contar a história da bebida no estado e a diferença do tereré para o chimarrão: — O tereré é consumido gelado, e o chimarrão é quente. E a erva para o chimarrão tem que ser mais fina, mas para o tereré é mais grossa. Nossa conversa não durou muito tempo, com precisão e muita convicção me respondera tudo o que havia lhe perguntado, sempre gentil e disposta ajudar. Como boa representante de todos os seus produtos relacionados ao tereré, ela me conta que quando se reúne com a família em dias de calor, eles sempre tomam o tereré para acompanhar a conversa. Mas onde ele mais se faz presente é nas onze horas de trabalho diário. Ela e sua família, que são unidos e trabalham juntos, tem sempre um tereré para acompanhar as vendas que vão das 7h da manhã até as 18h. Assim é a rotina de muitas pessoas, que alimentaram a cultura do tereré no estado. Mas tenho observado muito as pessoas ultimamente. Quando em frente a uma casa há grupos reunidos conversando, o tereré sempre está ali presente. As tardes do fim de

semana no principal espaço público de Campo grande, o Parque das Nações Indígenas, são sempre com amigos, famílias, aproveitando e claro, se hidratando com o tereré. Prestando atenção, os detalhes são ricos, como os sorrisos e gargalhadas, a conversa relembrando a infância e bons momentos. A saudade de quem está fora de casa, pode ser

amenizada com lembranças da sua cidade, como quem vai morar em outro estado e está sempre com o tereré na companhia para se sentir em casa. Falando da cultura do estado, algo tão representativo quanto o tereré, é o sertanejo. O homem do campo, da lida diária, a fazenda, os mangueiros, os bois, vacas, cavalos, galinhas, ovelhas, porcos, as árvores e o tereré. A porteira, a rédea, a estrada de chão, o sol quente, o suor, o trabalho pesado e o tereré. A noite, o céu, a lua e as estrelas, a fé, uma fogueira, os amigos, a roda de viola ou violão, e também o tereré. O homem sertanejo faz forte uso do tereré. A presença da bebida bem gelada é marcante e indispensável na vida quente das fazendas e do campo. Duas representações diferentes, que em uma miscigenação e união das culturas, se torna uma só. Assim como na cidade, o tereré aproxima as pessoas no campo. Ele é responsável pela união, afinal, qual a graça de tomar um bom tereré sozinho? Claro que existem pessoas que fazem isso, mas é sempre mais gostoso estar acompanhado e bem refrescado. lorraynaff@gmail.com Foto: Lorrayna Ferreira

Há 85 anos, na Guerra do Chaco, conflito entre Paraguai e Bolívia pela disputa territorial da região do Chaco Boreal, tendo como uma das causas a descoberta de petróleo, os soldados das tropas que estavam na disputa gostavam de tomar chimarrão para repor os ânimos. Para não acender o fogo que esquentaria a água da bebida e também denunciaria sua posição de combate, eles começaram a tomar o chimarrão frio, que se tornou o tereré.

Foto: Lorrayna Ferreira

Em um passeio matinal de sábado no Mercado Municipal de Campo Grande, ao colocar os pés para o lado de dentro e me deparar com tantas bancas recheadas com pacotes enormes de erva de tereré, penso como a bebida é uma forte marca da cultura do nosso estado. No mesmo instante o pensamento remete a uma viagem nas lembranças de pessoas reunidas, de rodas de amigos, em diferentes situações mas que em todas havia sempre o tereré como companheiro. E isto me fez pensar na chegada dessa bebida em nosso estado.

Gleicemara vende variados tipos de produtos naturais.


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