Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS - Edição 92

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ENTREVISTA

FEMININO

MÃO DUPLA

Cientista social discute a relação entre o poder econômico e a desvalorização do conhecimento

Reportagens visuais debatem o jogo de forças entre ciência e questões de gênero

Tecnologias digitais transformam métodos de ensino, mas uso exagerado entre jovens preocupa

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JORNAL LABORATÓRIO | JORNALISMO | UFMS

CIÊNCIA E TECNOLOGIA

gasto ou investimento?

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#ano 25 | 2019.1 DISTRIBUIÇÃO GRATUITA


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editorial

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Conhecer, ação para transformar Texto: Equipe Projétil Edição 92 | Foto: Ana Carolina Antonelli

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e a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. A frase do educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997), autor de referência nas principais universidades do mundo, ilustra o espírito de inquietação com que chega aos leitores a Edição 92 do jornal laboratório Projétil. O tema da edição, a primeira de 2019, é Ciência e Tecnologia e traz como subtítulo a inquietante pergunta: gasto ou investimento? É no interior desta trincheira – e como forma de convite aos leitores para uma ampla discussão sobre a seriedade do assunto – que se encontram as pautas produzidas pelos futuros jornalistas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). As reportagens e textos opinativos despontam nesta edição como chaves para libertar a pluralidade de pensamento. Afinal, o Projétil é filho legítimo de uma Universidade Pública que tem como vocação o conhecimento científico – e, como ensina o pesquisador David Tauro, entrevistado da edição, “fazer ciência é estar ciente”. Segundo a Academia Brasileira de Ciências (ABC), as Universidades Públicas respondem por mais de 90% da produção científica brasileira. Os cortes anunciados nas despesas discricionárias (que afetam custos como água, luz, serviços terceirizados, equipamentos e realização de pesquisas) anunciadas pelo Governo Federal ao longo do primeiro semestre colocam em xeque o funcionamento dessas instituições e, por consequência, a contribuição que elas oferecem à sociedade. No caso específico do Projétil, os cortes colocam em risco a sua própria existência como veículo laboratorial com quase três décadas de duração – e por onde passaram centenas

de jornalistas de diferentes gerações, hoje profissionais e cidadãos que contribuem com o país. A prova de que o Projétil está atento aos dilemas e às demandas da sociedade é o reforço por mais um semestre da parceria do jornal com escolas públicas de ensino médio. A instituição parceira é novamente a Escola Estadual Manoel Bonifácio Nunes da Cunha, localizada no Jardim Tarumã, em Campo Grande (MS). Desta vez, porém, além da atividade de visitas técnicas para o levantamento de pautas, a parceria evoluiu para um projeto de extensão – um dos pilares das Universidades Públicas ao lado do ensino e da pesquisa. A ação propiciou o oferecimento de cinco oficinas por parte dos estudantes da UFMS aos alunos de ensino médio. Viu-se, na prática, o Jornalismo como forma de conhecimento e de transformação social. Por fim, não se pode deixar de mencionar que o Projétil ficou na primeira colocação em três categorias – melhor jornal laboratório, melhor design gráfico e melhor reportagem em jornal impresso da região centro-oeste – na Exposição de Pesquisa Experimental em Comunicação (EXPOCOM), premiação realizada em maio durante o XXI Congresso de Ciências da Comunicação da Região Centro-Oeste, em Goiânia (GO). Com os prêmios, o jornal representará toda a região na premiação nacional que será realizada em setembro, em Belém (PA). São provas de que em todas essas décadas o Projétil permanece resistindo sem abrir mão do compromisso social e da qualidade editorial. Boa leitura!

Turma de Jornalismo 2020, responsável pela edição

EXPEDIENTE Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - 2019.1. Produzido por acadêmicas e acadêmicos sob orientação dos professores Marcos Paulo da Silva (Jornal Laboratório II) e Rafaella Lopes Pereira Peres (Laboratório de Produção Gráfica). Editoria Executiva: Gabrielle Tavares, Letícia Schiavon, Rafaela Moreira e Samuel Lima. Editoria de Arte: Camila Andrade, Fábio Faria, Raquel Eschiletti, Rúbia Pedra e Stefanny Azevedo. Editoria de Imagem: Gabriel Garcia e Giovana Martini. Editoria de Opinião: Amanda Raíssa, Giovanni Dorival e José Câmara. Ilustração: Accacio Mota (capa), Akimi Ueda e Jenn Arantes sob orientação da professora Constança Lucas (Artes Visuais). Estágio Docência: Leopoldo Pedro Neto. Reportagem: Alex Nantes, Alison Silva, Camila Silveira, Evaldenir Amaral, Evelyn Mendonça, Felipe Dias, Gabriel Sato, Gabriela Dalago, Gerson Wassouf, Giovanna Percio, Guilherme Correia, Henrry Oden, Isabela Assoni, Izabela Piazza, Jenifer Souza, Jéssica Lima, João Victor Marques, Jonatan Cavalcanti, Letícia Franco, Marcos Saucedo, Mariana Moreira e Victória Lacerda. Correspondência - Jornal Laboratório Projétil - Curso de Jornalismo - Faculdade de Artes, Letras e Comunicação (FAALC) - Cidade Universitária, s/n, CEP 79.070-900 - Campo Grande, MS. Fone: (67) 3345.7607 - e-mail: jorn.faalc@ufms.br (Jornalismo UFMS).

As matérias veiculadas não representam, necessariamente, a opinião da UFMS ou de seus dirigentes, nem da totalidade da turma.


Aspas

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A condição de ser humano Fluente em cinco idiomas e com trajetória acadêmica trilhada em três continentes, o cientista social David Tauro não esconde sua insatisfação com a atual desvalorização do conhecimento científico; em entrevista ao Projétil, o pesquisador afirma que reduzir a importância das ciências aos interesses econômicos pode destruir a humanidade Texto: Gabrielle Tavares | Letícia Schiavon | Rafaela Moreira | Samuel Eich Foto: Mariana Moreira

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e sorriso no rosto e livro na mão, o professor David Victor-Emmanuel Tauro recebe a equipe do Projétil de forma simpática e com um olhar que transmite a tranquilidade de quem não gosta de ser tratado com deferência. Apesar disso, o motivo do encontro é seríssimo: discutir sobre a desvalorização das ciências, assunto que tratou com propriedade ao longo de duas horas de entrevista. Nascido no Kuwait, emirado árabe situado no nordeste da península Arábica, o pesquisador possui pais indianos e é fluente em diversas línguas: Francês, Inglês, Espanhol, Português e Latim. “Só consigo fazer cálculos em inglês”, brinca sobre a complexidade de pensar em diferentes idiomas. David possui uma jornada acadêmica ímpar, trilhada em três continentes. Professor na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) há 26 anos, começou a carreira acadêmica no início de 1969 na Índia, durante a graduação em Humanidades, equivalente no Brasil aos cursos de Economia, Política e Sociologia. Em seguida, mudou-se para a Europa, período em que concluiu seu mestrado e doutorado em Sociologia na prestigiada Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, onde foi orientado por um dos principais pensadores do século XX, o filósofo Cornelius Castoriadis. No Brasil, David desenvolveu pesquisa de pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) na área de Ciências Humanas. Bastante enfático, não acredita na divisão entre as ciências. “Ciência não é feita por ratos nem por forças físicas, mas é feita por gente. Pouco importa se é sobre o buraco negro, se é sobre os ratinhos ou se é sobre gente”, diz o pesquisador, para quem “toda ciência é humana”. O que difere as áreas, na perspectiva de David, são os interesses políticos e econômicos de quem está no poder. Em sua carreira de duas décadas e meia na UFMS, o pesquisador, que atualmente dedica-se ao curso de Ciências Sociais e ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia, já ministrou disciplinas em diferentes áreas das Humanidades, como a Educação, a Antropologia e a Comunicação. Em um momento de crise na valorização das ciências, com cortes que afetam as Universidades e Institutos Federais, David ressalta sua insatisfação com a retirada de recursos das pesquisas científicas. Em sua opinião, tal situação é reflexo do descaso das autoridades governamentais e ocasiona prejuízos tanto à classe científica quanto à população em geral. “Esses estudos são importantíssimos para o desenvolvimento econômico e para o status do nosso país”, destaca. A seguir, os principais trechos da entrevista:

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Projétil: Como foi fazer ciência em diferentes culturas acadêmicas?

David Tauro: Olha, não é nada simples. Não é tão simples quanto abrir um dicionário e ficar olhando. O ser humano precisa de muito esforço para começar a pensar em outras línguas, precisa de abstrações lógicas. Em cada país, a ciência depende da cultura. Na Índia, somos altamente orientados à ciência, porque a abstração é via de regra e por uma razão simples: na cultura hindu a vida aqui [na Terra] é uma ilusão. É mais fácil assimilar a abstração da concreticidade da sociedade. Então, eles desenvolvem a todo momento o pensamento abstrato e a questão de ciência para eles, como cultura, não é tão difícil. Na cultura européia, a ciência não se dá nesse nível de abstração, ela é também confundida com a praticidade, com aplicabilidade. A cultura anglo-saxônica é muito baseada em prática, em percepção sensorial, em conhecimento aplicado, como tecnologia, e assim por diante. Os latinos foram mais ligados por muito tempo à abstração pura, que é baseada essencialmente no Idealismo de Platão. Custou muito para as questões práticas entrarem na lógica. Não exatamente na lógica, mas nas praticidades.

Projétil: Você trabalhou com um dos principais pensadores do século XX, o filósofo Cornelius Castoriadis. Poderia explicar brevemente aos nossos leitores quem foi Castoriadis? Qual a importância de ter sido orientando dele no doutorado?

David Tauro: Castoriadis começou a trabalhar na Universidade [Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris] no mesmo ano em que entrei, em 1979. Tive aulas e me formei com ele em 1987. O grande destaque de Castoriadis é a capacidade de pensar o Ser como membro da sociedade e, ao mesmo tempo, a sociedade como conjunto de cidadãos. Isto é, não há a possibilidade de pensar o indivíduo ou a sociedade sem juntar os dois. É impossível! Cada pessoa é socializada, cada sociedade é composta por indivíduos. O direito de liberdade é imprescindível, mas não há possibilidade de liberdade sem igualdade. Não é questão de igualdade de recursos contando em centavos e reais, mas igualdade de oportunidades, sobretudo de uma democracia como projeto de autonomia contra a heteronomia de Estado imposta para a humanidade. A criação [criatividade] não é algo divino, é nosso, é algo que atribuímos a uma potência que criamos. Mas, efetivamente, somos nós os responsáveis pelo o que fazemos. Deveríamos tomar ciência do que fazemos para não deixar que os outros façam em nosso nome.

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P: Qual é o papel da ciência em uma sociedade democrática?

D: Em nossa sociedade capitalista, a ciência é primordial, pois é ligada a todo momento ao lucro, à riqueza, à produção de benefícios para um grupo. Então, ciência é estar ciente de alguma coisa. Tudo o que é ciência hoje, de verdade, se origina na falseabilidade [propriedade de uma hipótese ou teoria poder ser mostrada falsa] pelo próprio processo de atividade científica. Logo, a noção de verdade é momentânea, precisa ser derrubada, senão entra-se em dogmatismo, e dispara-se: “isso é conhecimento, não vou querer mais, não quero ser mais ciente sobre esse assunto, então acabou!”. Daí vira dogma. Mas, em princípio, tudo que fazemos tem uma base científica. Isso de dizer “conhecimento popular”, “juízo comum”, “senso comum”, é balela. Sem o senso comum não temos ciência. Com o abuso da ciência, estamos tendo necessidade de procurar conhecimento constante perante doenças que criamos para a nossa própria existência, como, por exemplo, os cânceres da vida. O Ministério da Agricultura está liberando agrotóxicos em nome da ciência para produzir alimentos. Consequência, milhões de abelhas têm morreram porque o agrotóxico passa por cima delas. Há pessoas que estão se envenenando com esses produtos. Na realidade, a sociedade está produzindo doentes junto com a própria ciência.

“Sem o senso comum não temos ciência” afirma David Tauro P: Nesse sentido, como chegar em um pensamento de emancipação? D: O que posso dizer é que se hoje nós não tomarmos ciência e não nos juntarmos para buscar uma solução em coletividade, a coisa vai continuar. Se ficarmos nessa corrida de ratos, correndo atrás de lucro e de progresso, achando que isso é simplesmente a vida, vamos para a destruição da humanidade. Agora, todos nós temos que trabalhar nisso, somos dotados de criatividade para pensar. A questão é tomar ciência em que mundo estamos e o que estamos fazendo. Quais as necessidades da humanidade? Qual a responsabilidade da humanidade, além de suprir suas necessidades e sua existência? Será que todo mundo no mundo precisa ter um veículo? A terra vai aguentar isso? Será que é necessário produzir comida do jeito adoidado que estamos produzindo soja transgênica? Estamos nos matando com esses produtos.


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P: Qual é a relação entre ciência e poder? Por que determinados projetos de poder atacam tanto a ciência? D: Projetos como os do atual Ministério da Agricultura, por exemplo, não estão atacando a ciência, ao contrário, estão a privilegiando. Toda pesquisa que está sendo feita na agroindústria está sendo usada, então não é contra a ciência. Hoje no país temos um presidente e uma equipe de ministros que eu considero que não têm noção de onde estão e o que deveriam fazer. Anunciaram [em maio de 2019] uma política de corte de bolsas de pesquisa. Há pessoas de vários cantos do país migrando para estudar. Quando chegam e começam a pesquisar, o trabalho imediatamente é paralisado por conta de uma política pública que suspende as bolsas. Uma irresponsabilidade tamanha. Sinto muito, mas é o poder: eu mando, então faço o que eu quero. Normalmente, seria o inverso na ciência: eu sei, logo eu mando. O que está acontecendo é que a ignorância está mandando sobre o conhecimento. A ideia é acabar com a viabilidade das universidades públicas para eventualmente privatizá-las e selecionar o que é lucrativo para ser desenvolvido como ciência, o que é um puro exercício de poder político em favor de um regime capitalista.

P: Historicamente, os investimentos em ciência são majoritários nas chamadas ciências duras (exatas e biológicas). Você percebe que existe uma desvalorização das ciências humanas no Brasil e no mundo?

nos. Isso é muito importante, pois as pessoas não têm noção do que é humanidade. Na condição de pessoas que frequentam uma instituição como a Universidade, precisamos nos dar conta de que ser humano quer dizer alguém que é responsável por si e pelos outros. Ser ciente e consciente das responsabilidades e das necessidades de não apenas cuidar de si mesmo, mas lembrar que cada um de nós tem um lugar na sociedade individualmente e coletivamente. Não gosto de separar a ciência da consciência ou a educação da existência da vida. É tudo implicado. Existe educação a todo momento, da mesma maneira em que a vida está presente na educação. Estamos numa sociedade que extrai as pessoas constantemente, onde tudo é feito para as pessoas se abstrairem das suas responsabilidades. Insisto, esta é uma expressão que provavelmente nunca foi tão necessária quanto agora: a consciência da responsabilidade. Somos criativos, sim, somos capazes, sim, mas precisamos nos lembrar disso e usar para nossa vida e para mudar as coisas.

P: Vivemos em uma sociedade em que as religiões têm grande importância. É possível assimilar os valores religiosos à esfera do pensamento crítico?

D: Nós vivemos numa sociedade capitalista em que as coisas são pensadas em relação ao progresso. O que interessa ao progresso, logo interessa ao lucro. O que interessa ao lucro é o que pode dar resultados rapidamente perceptíveis. Como disse o Ministro de Educação [Abraham Weintraub], Enfermagem, Medicina e Agricultura são as coisas que valem, o restante não. Garante-se a vida humana e o progresso tecnológico, do restante não se quer saber. O problema é que se nós não considerarmos tudo globalmente, se as ciências humanas estão separadas e desprezadas em relação às ciências da vida ou das ciências exatas, trata-se de uma opção política. Segundo o conhecimento que tenho, posso estar errado, mas a última vez que fui somar eram cerca de 12% dos recursos para a área de humanas e 88% para o resto, as ciências exatas e da vida. O que isso significa? Não se têm interesse em produzir conhecimento crítico sobre si mesmos, pois isso leva as pessoas a questionarem, a tomar ciência, a mudar a sociedade.

P: O que a nossa sociedade precisa para dar mais importância às ciências humanas? D: Olha, precisa de várias coisas. Primeiramente, a sociedade precisa se dar conta de que somos seres huma-

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David ressalta a importância da responsabilidade individual e coletiva no exercício da ciência

Não se têm interesse em produzir conhecimento crítico sobre si mesmos, porque isso leva as pessoas a questionarem, a tomar ciência, a mudar a sociedade diz David Tauro

D: Religião é um fenômeno social que tem dois aspectos. Um é o dogma e a crença, que não se discute. Se você tem, ninguém tira. Isso é uma parte. A segunda parte é social - experiências sociais, criação social - onde a noção de crença é socialmente impregnada e implica na desresponsabilização do fundamento: para todos que praticam a religião, há a crença em uma potência divina e, a partir do momento em que se passa a ter crença na potência divina, você se abstrai da responsabilidade íntima. Coloca-se “nas mãos de deus”. Então, não é para misturar ciência e religião. Isso aconteceu no século XVI, começo da Modernidade, como rebelião contra o domínio da fé sobre a vida. Mas, a princípio, não tem nada que impede o cientista de ser religioso e de ter crença.


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Não é para ele necessariamente tecer críticas em nome do racionalismo. Em 1984, em Paris, na França, um dos mais importantes geneticistas publicou uma carta no principal jornal do país, o Le Monde, e disse que iria parar suas pesquisas e entregar os recursos de volta para o governo. Ele alegou que havia chegado em um ponto bem próximo de um limite que não queria ultrapassar. Estava parando porque não queria brincar de ser “deus”. Esse é o problema. Até onde nós temos o direito? Até onde nós iremos criar? Quais serão as consequências se começarmos, conforme nossas vontades, a produzir seres vivos aparentando seres humanos? Não é simplesmente porque nós podemos que nós devemos. Ali, no caso do cientista, entra a questão da fé, da relação entre religião e ciência, pois esse homem, em seu conhecimento, tomou a decisão por não querer ser responsável por isso. Não é necessariamente a relação entre ciência e religião, mas entre ciência e ética ou ciência e responsabilidade política.

P: Como percebe a internet enquanto uma plataforma de comunicação? D: Um dos princípios da dialética é a transformação de quantidade em qualidade. As coisas mudam qualitativamente por conta de erro ou de aumento de quantidade. E o inverso também, não é? Existe um elemento de lógica entre espalhar entre uma, duas, três ou cinco pessoas, e espalhar entre 20 mil, 20 milhões de pessoas. Qualitativamente há uma mudança efetivamente em si. Tem um grande efeito no sentido de eu ter acesso a um número infinito de pessoas ou, ao contrário, no meu caso, fontes finitas. Tornamo-nos escravos da comunicação também. Isso é outro problema péssimo, mas, sem dúvidas, os meios têm efeitos nos dois sentidos, podem ser benéficos ou maléficos.

P: A desinformação proveniente das chamadas fake news prejudica a legitimidade da ciência?

D: Quanto mais acessível o conhecimento, há mais possibilidade de a sociedade se dar conta do que acontece, do que se faz, do que se precisa fazer e assim por diante. Com a transparência, se produz informação, se corrige. A informação pode ser usada para piorar, sim, mas aí entra a responsabilidade de decidir o que devemos ou não fazer. As fake news são

Livro The Bad Citizen in classic Athens - O cidadão mau na Atenas Clássica (tradução livre), que David utiliza em suas aulas de Ciência Política como exemplo da democracia da Grécia Antiga

simplesmente a contemporaneidade de um fenômeno que existe dentro da humanidade: a mentira, a tentativa de espalhar mentiras ou fofocas - e geralmente as fake news não são feitas em busca de resultados benéficos. Eu não vejo o que podemos fazer para evitar as fake news. A questão de definir fake news e “notícia verdadeira” é problemática, pois a veracidade é um problema.

sim. Ou espero que isso ainda aconteça, que as pessoas se lembrem. Bom, continuo trabalhando, acho que vou continuar a trabalhar até morrer, pois do jeito que essas reformas estão andando, da forma como estão cortando as aposentadorias das pessoas, é melhor dar aula enquanto consigo.

P: Com tantos anos de carreira, qual é a sensação de ter participado da formação de tantas gerações de estudantes e pesquisadores?

SOBRE O ENTREVISTADO

D: Bom, não sei quantos passaram por minhas mãos neste tempo todo, mas escrevemos textos que são lidos. Por exemplo, conheci obras de Paulo Freire em 1969 na Índia. Foi uma edição em inglês publicada na Inglaterra pela Penguin, que é uma editora enorme. Na Índia, comprei o livro Pedagogia do Oprimido. Um cara como Paulo Freire atinge o mundo: África, Ásia e América. Eu não tenho como alcançar nem em três vidas o que uma pessoa como essa alcançou. Eu teria feito mais e melhor se pudesse? Sim, com certeza, não estimo que fiz grande coisa. Gostaria de ter feito mais e com efeito maior,

nome: David Victor-Emanuel Tauro formação: Graduação em

Humanidades (Bangalore University, Índia), Mestrado e Doutorado em Sociologia (EHESS, França), PósDoutorado em Ciências Humanas (UNICAMP)

carreira: 26 anos de docência na UFMS

gabitavares17101999@gmail.com leticiaschiavonn@gmail.com rafamoreeira5@gmail.com samilimaeich@gmail.com


crônica

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O preço da humanidade Texto: Amanda Raíssa | Ilustração: Jenn Arantes A sala de espera, apesar das paredes e do chão brancos, parecia metálica devido ao reflexo das figuras de metal que aguardavam. Mas sou de carne, então os metálicos me olharam feio e cochicharam entre si. Eu mesma, em meu humano complexo de inferioridade, começava a pensar que não deveria estar ali, que não era párea. As “pessoas” sentadas ao meu lado tinham braços e pernas de metal e fitavam meus cambitos de carne. As mãos não tremiam, não suavam, nem demonstravam reação. A competição era tão grande que se uniram para me maldizer. A maior ocupação era medir a humanidade alheia. Em uma entrevista de emprego, quanto menos humano melhor. As entrevistas eram feitas em duplas. Quando me chamaram, uma pessoa de nome Eva também foi acionada. Levantamo-nos ao mesmo tempo, mas o que eu não sabia era que nenhuma parte de minha concorrente era de carne, absolutamente nada. Quando Eva se moveu, os feixes de luz branca incidiram sobre sua face. Meus olhos lacrimejaram com o forte reflexo. Os metálicos retomaram seus cochichos a meu respeito. “Ela chora, está chorando”. Senti vergonha. Conduzidos a outra sala, percebi que os mestiços eram a maioria. Eva e eu, porém, éramos radicalmente opostas. Sentia-me pior, despreparada. Os cochichos continuaram. Diziam os mestiços: por que ela ainda está aqui?. Eu realmente não sabia dizer. Mas se não estivesse ali, para onde iria? Eva e eu nos sentamos lado a lado. Na nossa frente, uma mesa com um gravador. “Fase Um”, disse uma voz de um autofalante. “Capacidades e Currículo – O que vocês têm a oferecer à empresa?”. Olhei pra Eva, pois minha

humana cordialidade não permitia responder antes dela. Sua voz, quase mais robótica que a do autofalante, logo respondeu: “Sou Eva. Capacidade de armazenamento ilimitada, programação adaptável a qualquer função. Posso ser aperfeiçoada de acordo com a conveniência”. Entendi que ela havia acabado quando olhou para mim. Então eu disse: “Sou formada e especializada para este emprego. Atuo nesta área há anos e, pelo acerto e erro da experiência, posso acrescentar a esta empresa como ela pode

igualmente me acrescentar”. A verdade é que ninguém ligava para o que eu tinha a dizer. Sem disfarçar, a voz mal me deixou terminar: “Fase dois: Personalidade”. Teoricamente, se havia algo que eu poderia oferecer diferentemente de um robô era a personalidade. Na prática, no entanto, a pergunta trouxe-me de volta à realidade do mercado: “Quanto tempo vocês podem dedicar à empresa?” Constatei que a pergunta não tinha nada a ver com personalidade, mas suspirei

e respondi antes de Eva: “Sou casada e tenho filhos. Posso me dedicar oito horas por dia, salvo domingos e feriados”. Minhas exigências eram prescrição médica. Depois de tanto tempo trabalhando com dedicação total, mais horas no escritório do que em casa, certo dia acordei com a cabeça robótica. Na ocasião, o médico alertara-me: “para o sintoma sumir, seja menos robô e mais humana”. Eva, porém, que provavelmente não tinha filhos, respondeu com sua boca metálica: “Horário integral”. De volta ao corredor, recebemos novas orientações: “Venham comigo”, disse a funcionária. Fomos para o lado de fora, num ambiente ao ar livre naquela manhã fria e chuvosa. “Para este último teste, quero apenas que vocês corram até o final do terreno. Medirei o tempo de cada um e isso acumulará pontos nas entrevistas”. Uma vez mais, eu não tinha chances. Corri os olhos pelos meus concorrentes e Eva era o centro das atenções, a maior das ameaças. A largada foi dada como um trovão. Em poucos segundos, os robôs tomaram à frente e eu já era a última colocada. Terminei o percurso ensopada em lágrimas, suor e chuva. Foi quando notei que era a única. Atrás de mim, um cemitério de peças robóticas em curto-circuito que tremiam entre as poças de água do chão e soltavam faíscas. Os pedaços de Eva estavam no centro – um conjunto de partes sem vida, enquanto gotas de chuva entravam em sua lataria. “Parabéns”, disse a funcionária, “está contratada”. E nunca senti tanto orgulho da simples humanidade de poder despretensiosamente me molhar. amandaraissa26 @gmail.com


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Injeção de inverdades Movimentos antivacina crescem no Brasil com campanhas de desinformação nas redes sociais; em 2017, praticamente todas as vacinas indicadas para os dois primeiros anos de idade não atingiram metas do Ministério da Saúde Texto: Camila Silveira | Giovanna Percio Ilustração: Raquel Eschiletti Foto: Alex Nantes

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ual o seu objetivo no grupo? Você é contra as vacinas? Você sabia que células de bebês abortados, células cancerígenas, células de macacos e ratos são parte dos ingredientes da formulação de uma dose de vacina? Essas perguntas integram o questionário formulado pelos administradores da comunidade online “Vacinas: o maior crime da História!” para decidir a entrada de novos usuários. Com cerca de 6 mil participantes de todo o Brasil, o grupo fechado da rede social Facebook tem se destacado como fonte de disseminação de notícias falsas e de boatos sem embasamento científico a respeito do assunto. Após o membro ser aceito, o primeiro impacto vem logo da foto de capa da comunidade virtual. Além de um fundo tempestuoso, cheio de raios e trovões e letras que remetem a sangue e a fotos de bebês chorando, a imagem contém o link para uma petição pública pelo fim da obrigatorieda-

de das vacinas. O grupo conta com 31 administradores e moderadores responsáveis por publicar e controlar as notícias que circulam pela plataforma. Não existe padrão, são pessoas com bandeiras de partidos de esquerda, de partidos de direita, de luta em defesa da Amazônia, de defesa do porte de armas e até mesmo de fotos de animais. Há mulheres, homens, jovens e idosos. Dezenas de posts diários pedem a opinião dos demais membros sobre vacinar ou não os filhos e a respeito de eventuais manobras do governo com o intuito de cegar a população para os “problemas reais” da vacina. A mais discutida das postagens, com cerca de 500 comentários, trata de uma teoria da conspiração que acusa o “governo” de usar os idosos como público-alvo das campanhas de vacinação para atraí-los e envenená-los e assim fazer com que o “problema da Previdência seja resolvido” – palavras de um membro do grupo.

Segundo o Ministério da Saúde, entre as principais causas para a queda das coberturas vacinais no país estão campanhas de desinformação e a resistência de pessoas a acreditar na eficácia das doses. Dados do portal oficial do Ministério indicam que o Brasil possui o maior programa público de imunização do mundo. Ao todo, são 27 vacinas como parte da cobertura prevista no Calendário Nacional de Vacinação, o que remete a mais de 300 milhões de doses aplicadas na população.

Desinformação

Alguns moradores de Campo Grande (MS) estão na lista de membros do grupo antivacina e são ativos em suas postagens no Facebook. É o caso do empresário Louis*, 36 anos, casado e pai de uma menina de apenas um ano. “Hoje em dia tem muita manipulação da população, o governo acha que pode obrigar a população a fazer o que quiser”, argumenta. Para o empresário, a motivação para o in-

gresso no movimento aumentou depois de se tornar pai. “Quero o que é melhor para minha filha e sei que a vacina não é necessária da forma como passam, afinal, nossos avós e bisavós foram saudáveis por anos da vida e nunca precisaram disso”, complementa. Ainda ao longo da entrevista, o ativista relata vários casos de pessoas que compartilham as mesmas ideias para se engajar no movimento extremista. Os motivos particulares que levam o indivíduo a adotar essa forma de resistir ao avanço da ciência e da tecnologia, inevitavelmente, coincide em algum ponto com as campanhas de desinformação, a exemplo das chamadas fake news. Para o jornalista português Helder Prior, professor visitante da área de Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), as fake news podem ser compreendidas como notícias fantasiosas ou satíricas, publicadas em páginas de humor sobre política e sociedade, e conteúdos propagandísticos, disfarça-


dos ou travestidos de linguagem jornalística, que visam confundir os indivíduos ou manipular a opinião pública. “As notícias falsas sobre saúde são ainda mais problemáticas quando são os próprios políticos que contribuem para a sua propagação. Por exemplo, foi o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump que, em 2014, através do Twitter, ajudou a difundir o boato de que algumas vacinas provocavam autismo”, explica o pesquisador.

Religião Além da desinformação sobre a eficácia da ciência, outro fator de bastante peso nos grupos antivacina é a religião. A professora do ensino básico Sarah*, 53 anos, apresenta uma resposta incisiva ao ser questionada sobre sua resistência. “Se for a hora de Deus, ele vai me levar. Se não for, os meus anticorpos vão trabalhar e vou conseguir me curar sozinha”, defende. Embora bastante velado, a religiosidade é um motivo de força no impedimento das vacinas, sobretudo em países como os Estados Unidos, com um grande número de adeptos de crenças como a Amish, que condena o uso da ciência na cura e auxílio de doenças. Um mergulho nas características dos usuários dos grupos antivacina nas redes

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saúde

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sociais mostra que uma parcela significativa apresenta perfil de classe média e com acesso ao ensino formal, muitas vezes ao nível superior – caso dos ativistas campo-grandenses entrevistados. De acordo com o médico infectologista Guido Levi, em seu livro “Recusas de Vacinas – Causas e Consequências”, o principal argumento “científico” utilizado por grupos antivacina estrutura-se na ideia de que há uma possível sobrecarga no sistema de defesa das crianças. Com base nessa “pseudoteoria”, até os dois anos as crianças recebem 21 injeções contendo 33 vacinas, o que leva os adeptos dos grupos antivacina a adiar o início das vacinações de seus filhos para quando o sistema imunológico estiver mais “maduro”. Na publicação, Guido Levi refuta a ideia ao afirmar que os recém-nascidos desenvolvem a capacidade de responder a elementos estranhos a seu organismo mesmo antes do nascimento. Ainda que o campo científico e o poder público venham se esforçando para invalidar os boatos dos movimentos antivacina – como no caso da campanha de marketing “Saúde sem fake news”, do Ministério da Saúde –, em 2017 e 2018 os índices de cobertura vacinal das principais vacinas ofertadas pelo SUS têm

Até o dia 31 de maio de 2019, final da campanha, apenas 65% do público alvo recebeu a dose da vacina da gripe do vírus Influenza no Brasil

registrado queda. Doenças como poliomielite, sarampo e outras já consideradas eliminadas ou erradicadas no país têm se tornado ameaças. Para o Ministério da Saúde, estar em dia com calendário de rotina e campanhas de vacinação é a principal forma de se proteger e colaborar para que vírus e bactérias não encontrem campo aberto para disseminação.

* No caso dos membros do grupo antivacina, optou-se pela utilização de nomes fictícios para preservar a identidade das fontes. O nome Louis faz referência ao cientista francês Louis Pasteur (1822-1895), cujas descobertas tiveram enorme importância na história da medicina. Já o nome Sarah refere-se à camponesa Sarah Nelmes, voluntária que em 1796 permitiu que seu material biológico fosse utilizado na primeira experiência bem-sucedida de vacinação da história.

silveiracamila2905@gmail.com gio.percio.s@gmail.com

Medo e resistência preocupam agentes de saúde Ao cruzar a porta de entrada da Unidade Básica de Saúde “Doutor Celso Lacerda de Azevedo”, localizada no bairro Pioneiros, em Campo Grande (MS), depara-se com um ambiente tranquilo e até silencioso. Era final de abril, a Campanha Nacional de Vacinação da Gripe já havia começado há dias e meia dúzia de pessoas se dividiam em diversas cadeiras ao longo da sala. Caminhando até o fundo era possível verificar gestantes e crianças, alguns familiares, feições de receio como quem não queria estar ali, porém sabia a importância das vacinas. Depois de passar pela mesa de atendimento, na segunda porta à direita é possível encontrar a agente de saúde Marinilce Lopes, prestativa ao oferecer orientações sobre a importância da imunização. Vestida com jaleco branco e sorriso no rosto, é pontual ao destacar as dificuldades enfrentadas para o alcance popular da campanha, principalmente em torno do público-alvo: idosos, gestantes e crianças. A profissional de saúde relata que o esforço é recompensado quando se nota, ao final da campanha, a cobertura esperada se concretizar. “Nós agentes, e o governo, fazemos muito esforço para chegar até as pessoas e não deveria ser assim. O interesse maior é da população, é um benefí-

cio, e deveria ser comemorado, não temido”, contesta. Até o final da mobilização, no 31 de maio de 2019, apenas 65% do público alvo recebeu a dose da vacina da gripe do vírus Influenza no Brasil. Ainda assim, a medida atende a uma das prioridades do Governo Federal: ampliar a cobertura vacinal no país com a criação do Movimento Vacina Brasil, que reúne a publicidade de todas as campanhas de vacinação do ano. Marinilce recorda de forma detalhada alguns casos que viu em 15 anos de trabalho na área. A profissional afirma que no cotidiano da vacinação a maioria das pessoas tem medo por causa da dor. “É claro que ninguém gosta de sentir a dor, mas a grande preocupação está direcionada aos que resistem de forma bastante incisa à decisão de tomar vacina”, opina. “Nesse campo existem dois extremos que são complicados para trabalhar, aquelas pessoas completamente sem informação, que ao ouvir um boato ou notícia equivocada se recusam a se prevenir, e também a classe mais informada, que duvida e questiona o que é transmitido, por isso torna difícil o acesso”, completa a agente de saúde. Apesar dos esforços dos profissionais no dia a dia dos postos de saúde, dados do Governo Federal mostram que em 2017 praticamente todas as vacinas indicadas para os dois primeiros anos de idade das crianças não atingiram a meta estabelecida no país.


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Alternativa verde Iniciativas acadêmicas orientam e estimulam a cadeia produtiva de alimentos orgânicos em Mato Grosso do Sul; agroecologia desponta como alternativa ao consumo de agrotóxicos que cresce em ritmo acelerado no país Texto: Alison Silva | Jonatan Cavalcanti Foto: Mariana Moreira

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va da Silva Andrade, 64 anos, ou simplesmente Dona Eva, como é conhecida, costuma dormir apenas duas ou três horas todas as terças-feiras. “Levanto às 3h para acabar de organizar as coisas da feira”, afirma. A agricultora, moradora de uma chácara em Jaraguari, peque-

no município localizado a 44 quilômetros da capital Campo Grande (MS), é a mais antiga vendedora da feira agroecológica do Projeto Semente, que semanalmente ocupa um dos corredores da Cidade Universitária da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Antes de se tornar produtora agrícola, Eva foi empresária e chegou a dirigir uma construtora com 170 funcionários,

que mais tarde veio à falência. Sem ter o que fazer, mudou-se para a zona rural e começou a plantar frutas, verduras e legumes. Encontrou, no entanto, dificuldades para produzir e vender sua colheita. Até que, em 2011, surgiram em sua vida a Incubadora Tecnológica de Cooperativas (ITTP) e o Projeto Semente, ambos da UFMS, desenvolvidos por meio de iniciativas institucionais que visam integrar os produtores à comunidade acadêmica - o que a levou a mudar sua forma de plantio. Dona Eva integra o grupo de 17,8 mil comerciantes certificados no setor agroecológico no Brasil, segundo

dados do Cadastro Nacional de Produtores Orgânicos (CNPO). Mato Grosso do Sul registra 116 produtores aptos a realizar esta modalidade de comércio, 63 deles apenas em Campo Grande, o que representa aproximadamente 55% do total do estado.

Um passo de cada vez

A agroecologia é vista como uma saída em um dos países que mais consome agrotóxicos no planeta. De acordo com o estudo Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, conduzido pela pesquisadora Larissa Mies Bombardi, do Laboratório de Ge-


ografia Agrária da Universidade de São Paulo (USP) e revelado pela Agência Pública, somente em 2017 as plantações brasileiras receberam mais de 60 mil toneladas destes químicos. O ritmo de consumo segue em crescimento. De acordo com dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), 2019 é o ano que mais realizou registros de novos agrotóxicos no país. Desde 2005, o órgão é responsável por levantar esses dados. Somente neste ano, novos 169 agrotóxicos entraram em circulação no Brasil – embora mais da metade dos registros seja de produtos similares ou genéricos aos já utilizados pela indústria agrícola em anos anteriores. De economia essencialmente agrária, Mato Grosso do Sul não escapa deste contexto – um motivo a mais para que os pequenos produtores voltados à agroecologia necessitem de apoio técnico. “O que nós precisamos pensar como fomentadores? Precisamos fortalecer aqueles que estão na produção orgânica, aumentar esse processo com ações que tragam tecnologia para que possam se fortalecer, se manter nessa produção e abrir espaço de comercialização. Achar que nós vamos concorrer [com o agronegócio] é besteira”, afirma a pedagoga e técnica em assuntos educacionais Miriam Aveiro, coordenadora do Projeto Semente, ação que faz parte da ITTP-UFMS. A incubadora é um projeto de extensão que tem por finalidade apoiar os produtores rurais na organização de cadeias produtivas, não se restringindo apenas a alimentos orgânicos e agroecológicos. As ações coordenadas por Miriam datam de pelo menos uma década e se estendem à zona rural, nos assentamentos, aldeias e quilombos da região. “Surgiu uma demanda de produtores que tinham uma produção diferenciada, a produção orgânica, e juntamente uma cobrança de participação maior da Universidade em relação a um espaço para a comercialização destes produtos, visto que era um fator crucial quanto ao enfraquecimento do interesse continuo

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de produção”, explica a coordenadora. A partir disso, os produtores foram localizados junto ao MAPA, que possuía de uma lista de agricultores certificados a trabalharem no âmbito da Associação dos Produtores Orgânicos de Mato Grosso do Sul (APOMS), formalizada em 2000, em Glória de Dourados, município localizado no sudoeste do estado. “Dentro de Mato Grosso do Sul, nós temos a dependência de uma produção externa tremenda. Campo Grande produz só 4% do que consome”, ressalta Miriam Aveiro. Os demais 96% de alimentos convencionais comercializados no Centro de Abastecimento de Campo Grande (CEASA-MS) são de outros estados e até de outros países. “Temos a área da China entrando no estado, principalmente em Campo Grande”, alerta a responsável pela área na UFMS.

Projeto Semente

No contexto do crescimento da necessidade de capacitação dos pequenos produtores agrícolas no Estado, a Incubadora da Universidade assumiu o compromisso de apoiar e orientar os interessados na agroecologia. Foi assim que em 2007, amparado por uma política de fomento do MAPA, surgiu

Eva Andrade, produtora credenciaada à Incubadora Tecnológica de Cooperativas UFMS, integra o grupo de 17,8 mil comerciantes certificados no país do setor agroecológico

o Projeto Semente – Feira Agroecológica da UFMS. Dois anos mais tarde, a ação foi oficializada e, desde então, semanalmente a comercialização ocorre sempre às terças-feiras, das 7h às 15h, num dos pontos mais movimentados da instituição universitária. Na prática, o trabalho teve início quando a equipe da UFMS contatou a APOMS para diálogos sobre possíveis parcerias, que envolveram também o Ministério da Agricultura, visando a participação dos produtores na feira. “O projeto teve início com a incubadora organizando o espaço de comercialização, a APOMS cedendo os produtores certificados para participar da feira e o Ministério fiscalizando os processos de produção e comercialização”, esclarece Miriam Aveiro. Na parceria, fica sob responsabilidade da Universidade o zelo quanto ao processo organizacional, o espaço e a logística. Um dos principais objetivos do Projeto Semente é auxiliar os agricultores com tecnologias voltadas à demanda de produção eficiente e manter uma oferta mais constante dos produtos agroecológicos em escala que atenda o consumidor diariamente. Segundo a Coordenadora, a ação de extensão

universitária orienta agricultores como Dona Eva para a produção em escala adequada ao nicho de mercado. “Vamos orientá-los, por exemplo, a pegar um hectare e dividi-lo em quatro ou seis partes, plantar 2,5 mil metros em maio, 2,5 mil metros em junho, e por aí em diante”, exemplifica. Vamos orientá-los, por exemplo, a pegar um hectare e dividi-lo em quatro ou seis partes, plantar 2,5 mil metros em maio, 2,5 mil metros em junho, e por aí em diante diz Miriam Aveiro

Fatia de mercado

Uma das características da agroecologia é o escoamento da produção voltado a um nicho de mercado bastante específico. Segundo uma pesquisa realizada pelo Conselho Brasileiro de Produção Orgânica e Sustentável (ORGANIS), em 2017 os alimentos mais consumidos foram as frutas, as verduras e os legumes. Quem se acostuma ao universo desses produtos não tende a abrir mão do consumo.


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“Os benefícios são muitos e só quem come sistematicamente esses alimentos percebe. Eles melhoram a disposição, a imunidade do organismo às doenças, o seu bem-estar em geral, a pele, os cabelos, o corpo em si”, afirma Eliane Guaraldo, docente do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFMS, que frequenta assiduamente a feira do Projeto Semente. A consumidora ressalta que os alimentos são muito vantajosos e que a comercialização no Brasil somente não é maior em razão dos preços, geralmente até 30% maiores do que dos alimentos não-orgânicos. Miriam Aveiro enfatiza que, para sua validação, o processo de produção orgânica não pode ser idealizado em escala convencional. A dinâmica consiste na valorização da qualidade em pequena escala na conquista do consumidor. “É impossível hoje ficarmos dentro de um embate em que a agricultura orgânica possa concorrer com a tradicional. Pensar nesse sentido é loucura”, destaca. De acordo com a coordenadora do Projeto Semente, os alimentos convencionais, devido às grandes escalas produtivas, são diferentes de todo o cultivo minucioso da produção agroecológica. “A produção orgânica exige um trabalho mais detalhado que não está ao alcance do grande produtor que utiliza de grandes maquinários”, diz.

Não convencionais

“Infelizmente, em relação ao uso de agrotóxicos não há nada que eu possa fazer”, lamenta o agente de turismo aposentado Belloto do Couto, 48 anos, técnico em produção de plantas alimentícias não convencionais - as chamadas PANCs - que semanalmente comercializa sua produção na feira da UFMS. As PANCs podem ser encontradas em quintais, canteiros e terrenos baldios. O feirante defende sua produção a partir dos eventuais benefícios que podem trazer à saúde dos seus clientes. Para Belloto, a alimentação à base de uma

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planta alimentícia por semana livra os consumidores de uma série de preocupações, uma vez que são ricas em proteína vegetal e outros nutrientes, o que contribui para a melhoria da qualidade de vida.

“É impossível hoje ficarmos dentro de um embate em que a agricultura orgânica, possa concorrer com a tradicional. Pensar nesse sentido é loucura” diz Miriam Aveiro Bastante comunicativo e de fala firme, os ex-agente de turismo trabalha há oito anos neste ramo. “O mal da humanidade atualmente é a falta de informação”, costuma dizer. Belloto atribui parte de seus conhecimentos às viagens que realizou em seu emprego anterior. “Sempre fui muito curioso com as plantas. Viajei o Brasil inteiro, então, em cada lugar por onde passava, era uma pesquisa com um velho xamã, com um velho índio”, conta. As PANCs são de fácil cultivo e podem ser semeadas até mesmo em pequenos vasos de plantas em residências comuns. O valor financeiro, comparado com outras produções orgânicas, não é tão elevado uma vez que essa modalidade de planta rapidamente gera novas ramificações. Beldroega, Ora Pro Nobis e Peixinho são alguns exemplos mais conhecidos.

Pantanal

Em Corumbá, cidade localizada a 420 quilômetros de Campo Grande, outro projeto de extensão universitária que atende semanalmente comerciantes e a população da região é desenvolvido pelo Núcleo de Estudos em Agroecologia e Produção Orgânica do Pantanal (NEAP), coordenado pelo geógrafo Edgar Aparecido da Costa, professor do Câmpus do Pantanal (CPAN) da UFMS.

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Inicialmente, a incubadora corumbaense foi auxiliada pelo projeto desenvolvido na Cidade Universitária da UFMS. Posteriormente, no entanto, a iniciativa passou a funcionar por conta própria. “Desde o início nosso ideal era de que pudéssemos formar uma incubadora na qual pudéssemos caminhar sozinhos”, afirma Edgar. O NEAP foi viabilizado em 2017 por meio de um edital do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que no período financiou vários projetos semelhantes em todo o território nacional. Porém, desde 2011 o pesquisador já realizava atividades relacionadas à agronomia no Assentamento 72, localizado em Ladário, município vizinho de Corumbá situado às margens do Rio Paraguai.

Incubadora incentiva outras estratégias sustentáveis Além da feira agroecológica, a Incubadora Tecnológica de Cooperativas (ITTP) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) incentiva outras estratégias de soluções sustentáveis, a exemplo da produção de energia solar. Segundo a técnica em assuntos educacionais Miriam Aveiro, integrante da incubadora, bombas d’água já auxiliam pequenos produtores sul-mato-grossenses evitando que fiquem marginalizados e que trabalhem com tecnologias ultrapassadas. O engenheiro Alexandre Meira de Vasconcelos, docente da Faculdade de Engenharias, Arquitetura e Urbanismo e Geografia (FAENG) da UFMS, é coordenador de um dos projetos da ITTP que visa integrar professores em uma rede de colaboração técnico-científica para atender as demandas

O NEAP, que possui parcerias com instituições como a Embrapa Pantanal, a Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural de Mato Grosso do Sul (AGRAER-MS) e a Prefeitura de Corumbá, desenvolve trabalhos na linha de enfretamento ao consumo excessivo de agrotóxicos. “A preocupação é constante, desenvolvemos ações o tempo todo para lidar com isso. Nos reunimos em abril para definir uma agenda de combate ao uso do agrotóxico e fundamentalmente incentivar as pessoas a consumirem alimentos saudáveis”, defende o geógrafo.

alison_silva02@gmail.com joonjon.cavalcantii@gmail.com

do público-alvo da incubadora. De acordo com o pesquisador, as demandas são ligadas a variadas áreas do conhecimento: desenvolvimento de produtos alimentícios; organização de cadeias produtivas; desenvolvimento de embalagens e fracionamento de produtos; geração de energia; compostagem e preservação do meio ambiente; monitoramento da saúde; controle da fauna e flora; educação financeira e projetos de construção civil. “O papel da Universidade é não ser passiva diante dos anseios da sociedade, então precisamos ir a ela para suprir um dos pilares das universidades públicas que é a extensão”, ressalta Vasconcelos. “Essas pessoas têm um conhecimento que muitas vezes subsidiam o conhecimento do próprio pesquisador, um conhecimento tácito, da experiência de vida, do conheci mento acumulado”, conclui o professor.


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resenha

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Cortiço para as ciências Texto: Giovanni Dorival | Ilustração: Akimi Ueda

ao acesso ao conhecimento das culturas, das artes em suas diversas linguagens, dentro e fora da comunidade de cada indivíduo.

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uem diria que em uma única obra de mais de cem anos pudesse encontrar ecos das aulas de Antropologia, Sociologia, História e Psicologia com tamanhos requintes de páginas policiais dos dias contemporâneos? Mas a sensação é essa mesma! É possível encontrar em O Cortiço, obra publicada originalmente em 1890, o frescor dos dias de hoje, com aquelas ações, situações, enlaces e desenlaces, risos e tristezas que passam das personagens ao leitor. Como se o grande naturalista, o escritor brasileiro Aluísio de Azevedo (ora vejam só!), precedesse a teoria de que todas as relações são passageiras, como as discutidas atualmente pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman, autor da expressão “modernidade líquida”. Apesar disso, O Cortiço possui certos argumentos, certas maneiras de pensar, muito próprias de sua época, o fim do século XIX. Assim, no livro, o autor não esqueceu de abordar os temas sociais, como as divisões de classe, sobretudo seus conflitos, no que se refere às relações próprias do capitalismo que não se restringem às discussões econômicas. Ah, mas não mesmo! A obra também lança um triste olhar às diferenças sociais ligadas

Mas porque digo isso, caro leitor? Muito simples! Em um determinado momento da obra de Aluísio de Azevedo, o personagem João Romão, um capitalista incorrigível, percebe que para alcançar um status quo na sociedade não basta ter o melhor e o maior cortiço da região. Não! Ele precisa também saber se vestir com elegância, ter um certo repertório de conhecimento sobre as artes, sobre a ópera, sobre a política e sobre o teatro. Só assim ele consegue a mão de uma moça de família renomada e passa a ser, ele mesmo, reconhecido como importante figura. Tudo isso é muito bem explicado na narrativa pela lógica da ciência. Uma lógica, porém, calcada no cientificismo da época, marcado por um projeto de poder, que remetia à divisão racial onde uma negra, ainda escrava, como a boa Bertoleza, necessitava unir-se a um homem de “raça forte” e dominante qual João Romão para extinguir na descendência a fraqueza biológica de seu povo – tal como se prescrevera desde o século XVIII até o começo do XX quando, finalmente, começou a se cair em desuso a tese do branqueamento pela miscigenação. É possível ver ecos desta teoria na narração de Aluísio. Temos lá um cadinho de determinismo ilustrando em seu laboratório literário como não apenas a raça, fator biológico daquele cientificismo arcaico, mas igualmente o meio e o tempo como formadores de caráter e práticas. Isso porque um português de nome Jerônimo, ao entrar em contato com aquele lugar de sol tão esplêndido e benéfico para hortaliças, e ao mes-

mo tempo tão maléfico para os miolos, conduzindo a degradação moral e a liberação dos instintos, havia de passar de nobre trabalhador regrado, líder e marido exemplar para, perdido nos braços serelepes da Rita Baiana – aquela mulata que não nega a influência da miscigenação em seus hábitos – tornar-se preguiçoso, mal pagador, mal pai e, grande farrista. É assim, caro leitor, que O Cortiço apresenta toda uma sociedade que se pensa civilizada, um romance teórico que é escrito com base no pensamento científico de seu tempo, contexto tratado atualmente por muitos antropólogos do país, como Roberto da Mata e Lilia Schwarcz, que pesquisaram sobre a formação da cultura, as correntes raciais e as diferenças sociais. Trata-se, no entanto, de um pensamento superado? A história mostra que há cortiços em maior ou menor semelhança em tantas outras épocas, locais e relações sociais. Existem donos de tantos outros cortiços que receberam, recebem e receberão honrarias semelhantes ao estalajadeiro do São Romão após a definitiva dispensa de sua leal Bertoleza. Os mais fortes prosperam, os mais fracos padecem. Afinal, diz a obra, “o dente que já não presta arranca-se fora”.

journalisthansvongodenvalley@gmail.com

#ParaLer O cortiço Aluísio de Azevedo Romance publicação:

1890


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economia

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Aposentadoria.com

Segundo IBGE, 71,7% da população brasileira ocupada com mais de 60 anos encontra-se na informalidade; nova economia digital baseada em aplicativos permite reinserção no mercado de trabalho Texto: Felipe Dias | Jenifer Alves | João Barbosa Foto: Gabriel Garcia

D

urante grande parte da vida, Tomáz Antônio Barrueco, 62 anos, dedicou seu tempo ao trabalho como gerente em uma fazenda. Até que veio o desemprego e a falta de ocupação o forçou ao ingresso no mercado informal. Hoje, o ex-funcionário do setor agrícola ganha a vida como motorista de um aplicativo de transporte. “Assim que fiquei desempregado, logo depois veio o convite de um primo que já trabalhava na Uber e por necessidade acabei aceitando. Hoje dependo totalmente do aplicativo”, revela. Barrueco integra os 71,7% da população brasileira ocupada com mais de 60 anos que se encontra na informalidade. Os dados são da pesquisa “Síntese de Indicadores Sociais: Uma Análise das Condições

de Vida da População Brasileira 2018”, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para o instituto, o fenômeno ocorre principalmente pela circunstância de os idosos já terem passado pelo mercado de trabalho. O retorno geralmente constitui uma forma de se manterem ativos, seja por gozarem de boa saúde, para complementarem a renda ou ainda como meio de socialização. Além da Uber, empresa multinacional norte-americana que presta serviços na área de transporte privado via aplicativo, onde Barrueco trabalha, o mercado conta atualmente com um vasto leque de opções também na área de transportes – como as marcas nacionais Urban, 99Pop e Easy – e em outros setores, como a hospedagem,

caso do aplicativo internacional Airbnb. A força dessas empresas no mercado informal é tamanha que, somente no Brasil, segundo dados da própria empresa, a Uber conta com mais de 600 mil motoristas e atende cerca de 22 milhões de usuários. A Airbnb, por sua vez, de acordo com dados de 2017 do Instituto Datafolha, possui no país cerca de 117 mil anfitriões e 2,2 milhões de hóspedes. Parte deste contingente de trabalhadores é formada por aposentados. O economista Wladimir Machado Teixeira, docente do curso de Economia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), afirma que a propensão de queda da taxa de natalidade juntamente ao aumento da esperança de vida tem provo-

cado um crescente aumento da população idosa, tendência que já ocorre no continente europeu. A expectativa, conforme o IBGE, é que a população de idosos no Brasil dobre até 2042. “Dessa forma, pela abundância de mão-de-obra idosa e a escassez da força de trabalho jovem, a tendência é que haja uma procura maior por idosos para ocupar postos de trabalho vagos como forma de compensar a ausência de jovens ocasionada pela queda da natalidade”, complementa o pesquisador.

Pirâmide etária

Ainda segundo o IBGE, em levantamento realizado em 2018, o número de idosos no Brasil corresponde a 9,2% (19,2 milhões) da população. Em comparação


com a pesquisa anterior, realizada em 2010, nota-se o crescimento de quase dois pontos percentuais desse grupo etário, passando de 7,4% (14 milhões) para os números atuais. De acordo com o instituto, na estimativa para o ano de 2017, a expectativa de vida ao nascer era de 76 anos, o que configura um aumento de dois anos em relação à pesquisa realizada sete anos antes. Já em relação à taxa de natalidade, de acordo o Banco Mundial, as mulheres brasileiras têm em média 1,73 filhos, uma queda de 0,65 no ritmo de crescimento. Para a população continuar em movimento crescente, é necessário um nível mínimo de 2,5 filhos por mulher. Para Teixeira, um dos fatores que motiva o retorno ao mercado de trabalho é o fato de a aposentadoria ser insuficiente para as despesas dos idosos. Muitas vezes, esta parcela da população possui familiares que são dependentes dessa renda, o que torna o dinheiro insuficiente. De acordo com uma pesquisa feita em 2017 pela empresa de consultoria LCA, cerca de 10 milhões de pessoas dependem da renda dos aposentados, percentual que tem aumentado gradativamente. Wilson Pedrosa Melo, 60 anos, é formado em administração e atualmente também trabalha como motorista da Uber. O ex-funcionário administrativo da área de construção civil depende exclusivamente da renda adquirida pelo aplicativo, pois não recebe aposentadoria. “Na verdade, comecei a trabalhar com o aplicativo para complementar a renda, mas daí vi que ela seria suficiente para cobrir as minhas despesas, então deixei meu emprego e comecei como fonte de renda fixa”, conta.

Desemprego

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE referente a 2018 apontam que a faixa etária em que o desemprego mais se ampliou no Brasil foi entre pessoas com 60 anos ou mais. Entre 2012 e 2018, segundo levantamento realizado pelo jornal Le Monde Diplomatique, o crescimento foi de 199,3% entre as mulheres e 147,2% entre os homens. De forma geral, conforme

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economia

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o IBGE, o desemprego alcançou 12,4% da população brasileira no primeiro trimestre de 2019, o que corresponde a 13,1 milhões de pessoas.

“O esperado para o idoso é a aposentadoria, no entanto a presença destes no mercado de trabalho mesmo após terem idade para se aposentar é cada vez mais comum” explica Teixeira De acordo com o professor do curso de Economia da UFMS, o que mais conta para o mercado de trabalho é a experiência e qualificação. Teixeira explica que os jovens que não possuem formação adequada acabam desempregados, dependendo da renda dos idosos. O pesquisador aponta que essa é uma das maiores causas para o retorno da população idosa ao mercado, o que é considerado uma situação fora do comum. “O esperado para o idoso é a aposentadoria, no entanto a presença destes no mercado de trabalho mesmo após terem idade para se aposentar é cada vez mais comum. Muitos adiam o benefício para garantir um melhor auxílio”, declara. Para Teixeira, são necessárias políticas públicas para estimular o emprego dos jovens como forma de atenuar a situação. “No mercado de trabalho é muito importante ter experiência e qualificação. Logo, isso pode explicar parte do desemprego entre jovens”, relata. Ainda que o percentual de pessoas acima de 60 anos no mercado de trabalho tenha crescido no país – no segundo semestre de 2018, a empregabilidade bateu o recorde de 7,9% de acordo com o IBGE – apenas 26% dos trabalhadores têm carteira assinada. A maior parte está na informalidade ou em ocupações por conta própria. É o caso do ex-administrador Wilson Melo, que teve como principal motivação para trabalhar com o aplicativo de transporte a independência

e a flexibilidade de horários. “Trabalho oito horas por dia, faço meu horário de acordo com a minha conveniência. Essa foi a razão principal, trabalhar para mim mesmo, não ter que dar satisfação para ninguém da minha vida, de nada, faço o que eu quero, na hora que eu quero, como eu quero”, afirma.

Mercado restrito

Segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) do Ministério do Trabalho, a faixa etária mais excluída do mercado formal é também a que mais tem sofrido com o fechamento de vagas com carteira assinada. Especialista em mercado de trabalho, Teixeira aponta que o fator de maior impacto que impede os idosos de adentrar o mercado formal é a idade, o que faz com que muitos optem por aplicativos como Uber e Airbnb. A pesquisa realizada pelo CAGED mostra que, somente em agosto de 2018, foram fechados 37 mil postos para pessoas acima de 50 anos, enquanto abriu-se mais de 140 mil vagas para pessoas com até 39 anos. Nesse contexto, ainda conforme informações do CAGED, 32,2% das pessoas de 60 anos ou mais que não tomaram medidas para conseguir ocupação apontam como principal motivo de não conseguir trabalho o fato de considerarem-se muito idosos. De forma geral,

os idosos optam pelo mercado informal e por subempregos como maneira de complementar a renda e custear os gastos com convênios médicos e remédios, por exemplo. O ex-gerente de fazenda Tomáz Barrueco trabalha no aplicativo da Uber para compor renda com sua esposa. “Não possuo pessoas que dependam de mim”, diz – situação que difere do caso do ex-funcionário administrativo Wilson Melo. “Tenho pessoas que dependem financeiramente, sou divorciado, tenho um filho e possuo um compromisso com ele e com sua mãe. Essa renda é retirada da Uber”, conta. O motorista acredita que os usuários do aplicativo sentem-se mais seguros sob a direção de pessoas mais experientes, o que aquece o mercado para os idosos. “As pessoas gostam, confiam mais e nunca sofri nada em relação à idade trabalhando com o aplicativo”, revela. A solidão é outro fator que faz com que muitos idosos decidam retornar ao mercado de trabalho como forma de socialização. “Tenho vários amigos, conheci muito mais agora com o Uber e não tenho restrição quanto a isso”, conclui Melo.

felipecsdias@gmail.com jeniferalves.jor@gmail.com joaovitor200027@gmail.com

Com horários flexíveis, emprego informal é uma alternativa ao índice de desemprego entre os idosos


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Direitos humanos

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Em todos os lugares, olhos Novas tecnologias da informação diminuem a barreira entre o público e o privado e potencializam práticas danosas como o stalking; projeto de lei pode tornar crime a perseguição obsessiva

Texto: Evelyn Mendonça | Jéssica Lima Ilustração: Raquel Eschiletti Foto: Mariana Moreira

“E

u nunca conheci ou o vi na vida”, pensa consigo enquanto caminha a passos rápidos e sucessivos olhares para trás. “Se eu contar para alguém, irá adiantar?”, reflete diante do medo. Sozinha, percebe que pouco pode fazer a respeito. A jovem campo-grandense Michaela*, 22 anos, sentiu na pele o que é ser perseguida. Em uma ocasião com amigos em uma conveniência, um homem estranho a abordou na tentativa de puxar assunto e, mesmo depois da negativa, forçou o contato a agarrando pelo braço. “Ele puxou tanto que derrubei a cerveja que havia acabado de comprar”, recorda. Nos dias seguintes, o rapaz manteve-se agressivo na tentativa de forçar um vínculo por meio de mensagens e ligações constantes. A exposição do caso nas redes sociais foi a forma que a jovem encontrou para se sentir amparada. Para a estudante, as novas tecnologias podem representar ao mesmo tempo uma ferramenta de denúncia e um canal de vigilância por estranhos.

Em 2016, a radialista Helena* presenciou os primeiros indícios que a alertaram para a gravidade da angústia que viveria durante meses. No início foram elogios aparentemente despretensiosos de um ouvinte. Na sequência, pacotes de presentes – que sequer chegaram a ser abertos – passaram a ser mandados para a emissora onde trabalha. Depois vieram os contatos forçados com amigos próximos. Até mesmo uma conta de telefone da vítima fora paga pelo perseguidor, que chegou a alterar o endereço da correspondência. “Ele invadiu minha privacidade de tal maneira e senti-me tão pequena que comecei a chorar”, relata. O espaço pessoal de Helena gradativamente foi ocupado. No total, 12 números diferentes do autor da perseguição foram bloqueados por ela. “Apesar das grades, não conseguia dormir com as janelas abertas. Durante o dia, quando eu ficava em casa, trancava tudo, desconfiava de qualquer coisa. Na rua, observava tudo por sentir muito medo”, afirma a radialista.

Michaela e Helena foram vítimas do stalking, conceito de origem inglesa que remete à perseguição, cada vez mais comum, caracterizada pelo assédio e pela importunação de forma reiterada. As consequências são graves para as pessoas, geralmente mulheres, que se encontram em contextos onde seus passos são constantemente observados, seja na esfera virtual ou na vida real. No caso de Michaela, os efeitos nocivos foram desde o cansaço até o profundo estado de tristeza. Já para Helena, a perseguição foi tão acentuada que a levou a se mudar de cidade. “Quando as ações obsessivas são relatadas, as vítimas não raro recebem como resposta as sentenças ‘ela está fazendo drama’ ou ‘não deve ser tão grave assim’”, explica a promotora Ana Lara Camargo de Castro, membro do Conselho Nacional do Ministério Público. A promotora, que possui vasta experiência na área de violência contra as mulheres, afirma que quando as pessoas não entendem a complexidade de situações dessa natureza, tendem a mi-


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nimizar, ou ainda, chegam a romantizar o comportamento dos perseguidores apenas como elogios. O termo stalking deriva da tradução do verbo da língua inglesa to stalk, entendido como ficar à espreita, vigiar ou espiar. A prática é marcada por ações repetitivas dos stalkers – como são chamados os perseguidores obsessivos – que importunam seus alvos nas vidas privadas e profissionais. Na ação, os perseguidores valem-se de artifícios que colocam as vítimas em uma posição de vigilância integral, comprometendo a tranquilidade do simples ir e vir. Os stalkers costumam adotar diferentes táticas para obter informações, acompanhar a vida e, em certas situações, até mesmo ocasionar danos psicológicos. A prática ganhou notoriedade nos Estados Unidos na década de 1990, após o assassinato da atriz Rebecca Schaeffer em sua própria casa pelo seu perseguidor, o fã Robert John Bardo.

Novas tecnologias Segundo o Centro de Pesquisa, Prevenção e Conhecimento sobre Stalking (SPARC, em inglês), entidade norte-americana voltada ao tema, uma em cada seis mulheres serão vítimas dessa prática em algum momento da vida no país. Já de acordo com a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), 90% das vítimas são mulheres, fato que explica o entendimento da prática por especialistas como um crime de gênero. As vítimas não costumam ser diferenciados pela idade e variam desde adolescentes até mulheres idosas. Geralmente, apresentam como característica em comum as consequências vividas, como a depressão e a ansiedade até, em casos mais extremos, a agressão física. O autor da prática pode ser um ex-companheiro, um conhecido ou um mero anônimo, escondido, muitas vezes, pela barreira das novas tecnologias. O tema ainda não é estudado a fundo no Brasil e passou a ser objeto de abordagem jurídica nos últimos anos após a constante ocorrência de casos que tendem a aumentar na contemporaneidade. Além disso, em uma sociedade cada vez mais conectada, percebe-se a facilidade do acesso do stalker a dados privados da vítima, consequência da inserção das novas tecnologias nas relações sociais. “A internet é um fenômeno novo que muda as relações sociais e causa um estranhamento, mas as pessoas precisam aprender a conviver de uma forma sadia sabendo que é algo que veio para ficar”, explica a promotora Ana Lara de Castro, que também é autora do livro Stalking e Cyberstalking: Obsessão, Internet, Amedrontamento. No mundo virtual, diante de um perfil em uma rede social, um amplo leque de dados pode ser aberto: pre-

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ASPAS Humanos Direitos

ferências, gostos, lugares frequentados, amigos próximos e outras informações que potencialmente podem municiar um stalker. Ana Lara de Castro destaca a necessidade de se atribuir devida culpa ao perseguidor em detrimento da vítima. “Há várias linhas de autores sobre direito cibernético, alguns são mais restritivos no sentido de afirmarem ‘não poste’. Eu não sou dessa linha, pois acredito que o importante na internet é que todos estejam bem informados dos riscos e do potencial de amplitude e de permanência daquilo que foi postado. Mas não adianta dizer ‘não faça isso’. Existem limites éticos e de imagem para o que é postado, mas as consequências devem ser para quem faz o mal uso dessas publicações.””, completa a promotora.

O Stalking como crime As normas existentes sobre o stalking variam de país para país. Em alguns locais, o tema é tratado como simples ato ilegal. Em outros, como em Portugal, Canadá e Estados Unidos, o ato é caracterizado como crime nas respectivas legislações. Em 2018, por exemplo, foram registradas em Portugal cerca de 470 denúncias relacionadas ao stalking. No Brasil, atualmente apenas alguns estados, como o Paraná, tipificam em suas leis esta moda-

lidade de perseguição como crime. De modo geral, o stalking não é considerado crime no país, mas contravenção penal. O Artigo 65, da Lei de Contravenções Penais, ressalta que “molestar alguém ou perturbar-lhe a tranqüilidade, por acinte ou por motivo reprovável” pode remeter à prisão simples de quinze dias a dois meses ou multa. Como a maioria das vítimas é mulher, pode ser também abordada a Lei n.º 11.340/2006, tipificada no artigo 5º, popularmente conhecida como a Lei Maria da Penha. No âmbito de Mato Grosso do Sul, a promotora Ana Lara de Castro ressalta que o local mais adequado para a realização das denúncias é a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, situada na Casa da Mulher Brasileira, local onde se incluem os profissionais mais qualificados para lidar com a problemática. É também no âmbito de Mato Grosso do Sul que começa a ser discutido um projeto de lei federal para caracterizar o stalking como crime em todo o país. O projeto 1020/2019, de proposição do deputado federal Fábio Trad, prevê textualmente “pena de reclusão, de dois a quatro anos, em casos de assédio de forma reiterada com invasão, limitação ou perturbação da esfera de liberdade ou privacidade

Redes sociais servem como ferramenta para os stalkers com intenção de obter dados pessoais das vítimas


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de alguém de modo a infundir medo de morte, de lesão física ou sofrimento emocional substancial”. A proposta estabelece ainda que caso o autor tenha sido parceiro íntimo da vítima, a pena pode se estender de três a cinco anos de prisão, além da atribuição de multa. “Os stalkers não atuam apenas perseguindo, eles utilizam de um conjunto de ações que visam causar pânico e a aproximação forçada das suas vítimas, quase sempre com uma relação pretérita de frustração ou de idolatria”, afirma Roberto Pinto de Almeida, o bacharel em Direito e autor de um estudo acadêmico sobre a prática intitulado “A Tipicidade do Stalking no Brasil”. As “loucuras” que caracterizam os mais altos níveis de fanatismo, beiram a obsessão e colocam o “idolatrado” em estado de perigo. Entre as formas em que o stalking é expresso, além do prejuízo psicológico à vítima causado por inúmeras táticas de perseguição, em muitos casos, a moral da vítima é posta em xeque pelo compartilhamento de fotos, mensagens e de falsos boatos que colocam o perseguido em estado de total exposição. “Acredito que a sociedade deve estar atenta aos chamados sintomas que os stalkers geralmente apresentam, tais como ligações telefônicas insistentes, encontros ocasionais

DIREITOS HUMANOS

provocados, comportamento e obsessivo nas redes sociais, devendo comunicar às autoridades competentes quaisquer constrangimentos sofridos para fins de prevenção”, complementa Almeida.

“A importância de se ter uma criminalização é não se entender a conduta do stalking e confundi-la com um ‘a pessoa não quer ser incomodada’” diz Ana Lara

Conscientização O stalking não é um fenômeno novo, entretanto, a tecnologia oferece uma gama de ferramentas que potencializam o poder nocivo da prática. Alguns exemplos são os chamados “check-ins” além de funções de localização ativadas por um simples serviço de mapeamento presente nos telefones celulares. No caso da radialista Helena, conseguiu-se uma medida protetiva após o registro de um boletim de ocorrência e a apresentação de uma série de provas materiais, como prints e registros de chamadas. A promotora Ana Lara de Castro afirma ser essencial que, junto à decisão pela denúncia, os amigos e parentes mais próximos sejam informados pela vítima sobre a

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incidência da perseguição. A jurista ressalta a fundamentalidade de se guardar provas ditas “materiais”, como as próprias mensagens, ameaças e ligações recebidas, uma vez que se tratam de elementos importantes para a denúncia e expressam a gravidade do sofrimento vivido. Para Ana Lara de Castro, uma das grandes motivações para a compreensão do stalking como crime no Brasil é a falta de compreensão do fenômeno pela sociedade. “A importância de se ter uma criminalização é não se entender a conduta do stalking e confundi-la com um ‘a pessoa não quer ser incomodada’. Não se trata disso, estamos falando daquelas pessoas que são obcecadas e que tornam a vida de alguém um inferno”, explica. Ainda que nos casos de perseguição restritos ao cenário virtual exista uma sensação de invisibilidade assumida pelo stalker, a denúncia formal faz-se essencial. De acordo com os especialistas na temática, quando a sociedade não identifica o problema, tende a minimizá-lo. “Devem ser feitas campanhas de conscientização, prevenção e de informação, inclusive para as autoridades lidarem com o problema de maneira a não ocorrer a odiosa ‘revitimização’, que é quando o sofrimento da vítima não acaba após o fato criminoso, mas perdura por todo o processo, que sabemos, é de fato traumático”, esclarece o pesquisador Roberto Almeida. No caso de Helena, quando teve sua conta forçadamente paga por um estranho, a vítima ouviu de conhecidos que deveria estar agradecida. Hoje, a radialista reforça que o que passa do limite necessariamente precisa ser intermediado. “Se a mulher passa por uma situação dessa, deve ir na justiça, tem que procurar ajuda”, orienta. * Para preservar a identidade das fontes que narraram suas histórias nesta reportagem, foram utilizados nomes fictícios. O nome Michaela faz referência ao filósofo francês Michael Foucault (1926-1984), que estudou os dispositivos disciplinares de vigilância. Já o nome Helena se refere à musa da mitologia grega que sofreu perseguição por sua beleza.

evellyn.trindade43@gmail.com jessicapaulaslima@gmail.com

Serviço A Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Campo Grande (MS) fica localizada na Casa da Mulher Brasileira, rua Brasília, Lote A, Quadra 2, Jardim Ima. O telefone para atendimento é (67) 4042-1324, ramal 1311.


Ciência,

substantivo feminino

Ao longo da história, as mulheres precisaram romper as barreiras das desigualdades de gênero para ocupar seus espaços no campo científico

O campo científico reflete ao longo da história as relações de poder presentes na sociedade. A foto acima, tirada em 1911 na 1ª Conferência de Solvay, que reuniu em Bruxelas, na Bélgica, alguns dos maiores cientistas do mundo, ilustra o jogo de forças entre as ciências e as relações de gênero. Na imagem, Marie Curie, pioneira no ramo da radioatividade, é a única mulher entre 23 homens dentre Texto: Izabela Piazza | Henrry Oden

os quais, nomes como Albert Einstein. Com o passar das décadas, porém, o protagonismo das cientistas cresceu. A seguir, o Projétil apresenta uma linha do tempo em um recorte de 150 anos com mulheres que contribuíram para a ciência mundial e o contexto histórico em que estão inseridas. A escolha não foi por acaso: considerou-se a pluralidade de áreas, de nacionalidades e a interseccionalidade. Ilustração e infografia: Fabio Faria


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raio-x

MARIE CURIE Varsóvia, Polônia (1867 - 1934): Única pessoa que ganhou dois prêmios Nobel: Física, em 1903, e Química, em 1911. É conhecida pela descoberta da radioatividade, tema que resultou em sua morte por leucemia devido a fortes exposições a elementos tóxicos.

1917 Mulheres operárias saíram em passeata na Rússia para reivindicar seus direitos, dando início ao estopim da Revolução Russa, que tiraria a família real Romanov do poder.

DOROTHY CROWFOOT

ALICE BALL Seattle, Washington (1892 - 1916): Fez pós-graduação na Universidade do Havaí. Em 1915, desenvolveu um extrato de óleo eficaz contra a hanseníase, o único tratamento efetivo contra até a aparição dos antibióticos, em 1940. Primeira pessoa negra e primeira mulher a se formar na Universidade de Washington.

1893 Liderado por Kate Sheppard, o movimento sufragista da Nova Zelândia conseguiu garantir o direito de voto às mulheres.

MELANIE KLEIN Viena, Áustria (1882 - 1960): Psicanalista, foi pioneira em estudar o psiquismo de crianças. Seus métodos são referência em psicanálise e psicoterapia infantil. Influenciada por Freud, a pesquisa auxiliou na compreensão das origens da ansiedade infantil.

1920 Aprovada a emenda à Constituição dos Estados Unidos que estabeleceu o direito de voto às mulheres.

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Cairo, Egito (1910 - 1994): Considerada um grande talento por seus trabalhos sobre a emissão de raio-X. Doutora pela Universidade de Cambridge. Impedida de se associar ao clube da faculdade pelo fato de ser mulher. Em 1964, ganhou o Prêmio Nobel de Química por estudos sobre a estrutura da vitamina B12.

1941 No Brasil, o Conselho Nacional de Desportos (CND) proíbe, a partir do decreto-lei 3199, a prática do futebol feminino.

SIMONE DE BEAVOUIR Paris, França (1908 - 1986): Conhecida por seus estudos sobre filosofia existencialista e feminismo. Foi autora do livro O segundo sexo, tese de referência para o movimento feminista nos anos de 1960. Autora da marcante frase: “ninguém nasce mulher, torna-se”. Beauvoir representa a vanguarda das lutas contra o machismo.

1962 Início da comercialização das pílulas anticoncepcionais no Brasil.

Fonte: Livro Marias: A jornada de 50 mulheres (Eduardo Castor Borgonovi) / Revista Superinteressante / Site (BuzzFeed)

VALENTINA T

Maslennikov, antiga UR mulher a viajar ao espa aconteceu em junho de Também esteve atrelad onde lutou pelos direito dedicou ao movimento

1970

No Reino Unido, é apro salarial, o que proibiu a gênero no mercado de

NANCY GRACE ROMAN Nashville, Estados Unidos (1925 - 2018): Doutora em Astronomia pela Universidade de Chicago. Foi chefe de astronomia e física solar da NASA. Aposentou-se em 1979, mas foi convidada para trabalhar no Telescópio Hubble. Conhecida como a “mãe” do famoso telescópio.

1925 No Japão, o parlamento exclui as mulheres da lei sobre o sufrágio universal, garantindo voto apenas aos homens. Início da resistência feminina a partir do movimento das operárias.


TERESHKOVA

RSS (1937): Primeira aço. Sua viagem e 1963 e durou três dias. da à política soviética, os das mulheres e se feminista.

SALLY KRISTEN RIDE

Los Angeles, Califórnia (1951 - 2012): Entrou para a NASA em 1978. Em 1983, foi a primeira mulher norte-americana a ir ao espaço a bordo do Ônibus Espacial Challenger. Também foi a primeira mulher a ir ao espaço pela segunda vez, em 1984. É conhecida como a primeira astronauta assumidamente lésbica.

1951

ovada a igualdade a discriminação de e trabalho britânico

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raio-x

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A Convenção de Igualdade de Remuneração entre trabalho masculino e trabalho feminino para as mesmas funções é aprovada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).

FLOSSIE WONG-STAAL Kuangchou, China (1947): Considerada uma das co-descobridoras do HIV, o vírus da AIDS. Tornou-se referência mundial no campo da virologia. Entrou para a lista do Instituto para Informações Científicas (IIC) como uma das mais importantes cientistas da década de 1980.

1983 O Ministério da Saúde brasileiro cria o Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), um avanço nas políticas públicas de gênero.

MARCI LEE BOWERS

Wisconsin, Estados Unidos (1958): Mulher transgênero, formou-se em Medicina na Universidade de Minnesota, tornando-se ginecologista especialista em cirurgia de redesignação sexual. Também conhecida por sua técnica de reparação de clitóris em mulheres mutiladas por questões religiosas.

2015 Tipificação do feminicídio como crime no Brasil pvelo decreto-lei 13.104, que atualizou o Código Penal.

MAE JEMISON Decatur, Estados Unidos (1956): Aos 36 anos, se tornou a primeira mulher negra a ir ao espaço. Candidatou-se ao programa de astronautas à NASA e foi aceita em 1987. Durante a missão no ônibus espacial, foi co-investigadora na pesquisa sobre células ósseas.

1988 No Rio Grande do Sul, é instituída a primeira Delegacia para a Mulher do Brasil, levando ao ingresso das primeiras três delegadas de polícia.

KATIE BOUMAN West Lafayette, Estados Unidos (1989): Cientista da computação que liderou a criação do algoritmo responsável pela captação dos dados que geraram a primeira fotografia de um buraco negro. Até então, só haviam ilustrações a respeito. A pesquisa demandou a captação de cinco milhões de gigabytes durante dois anos.

2018 Na Arábia Saudita, mulheres passaram a ter o direito de dirigir veículos automotores.

JAQUELINE GOMES DE JESUS Brasília, Brasil (1978): Formou-se em Psicologia pela Universidade de Brasília. Professora, pesquisadora, escritora e ativista dos direitos LGBTQ e da população negra. Uma das poucas mulheres transexuais doutoras no Brasil. Autora do livro “Transfeminismo: Teorias e Práticas”.

2010 A economista Dilma Rousseff vence as eleições para se tornar a primeira mulher Presidenta da República do Brasil. Tomou posse em 1º de janeiro de 2011.


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SILHUETAS

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Em qualquer lugar Foto e Texto: Gabriel Garcia | Giovana Martini

Nas aulas de Matemática, Biologia, Física e Química, discutir ciência é lembrar de homens cientistas. Nesta reportagem fotográfica, o Projétil acompanhou a trajetória de mulheres campograndenses que vivem ou querem viver da ciência. As imagens mostram os desafios e as alegrias que as acompanham desde a escola até a universidade e a vida profissional. Afinal, o lugar das mulheres deve ser onde elas bem entenderem, das salas de aula aos laboratórios

NA ESCOLA Na contramão do pensamento de que as ciências exatas, por não representarem assuntos “femininos e delicados”, não são para as meninas, iniciativas como a da Escola Estadual Lino Villachá, no bairro Nova Lima, as introduzem no mundo científico.


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SILHUETAS

NA UNIVERSIDADE Embora a presença de mulheres seja mais equitativa nas universidades brasileiras, em áreas como Engenharia, Matemática e Computação elas ocupam apenas cerca de um quarto das vagas, segundo dados de 2017 do Censo da Educação Superior.

NA VIDA PROFISSIONAL As cientistas enfrentam as expectativas sociais jogadas sobre elas, como a maternidade e o cuidado do lar. Ainda assim, entre 2014 e 2017, de acordo com a Organização dos Estados Ibero-americanos, 72% dos artigos científicos brasileiros são assinados por pesquisadoras mulheres.


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ímpar

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Autonomia solidária

Aos 23 anos e vítima de paralisia cerebral, Caio Henrique utiliza a tecnologia para fazer valer seus direitos na sociedade; formado em Marketing Digital, o jovem tem canal no YouTube como principal ferramenta Texto: Alex Nantes | Marcos Saucedo Foto: Giovana Martini

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ma figueira frondosa com cerca de 10 metros é a primeira vista ao se chegar na pacata rua Martinez, no bairro Jardim das Macaúbas, distante a quase uma hora do centro de Campo Grande (MS). A aparente tranquilidade do local contrasta com realidade da rua de chão de terra que dificulta a vida dos moradores que precisam passar por ali com limitações de locomoção, a exemplo de quem depende de uma cadeira de rodas. À esquerda de quem chega à rua pela avenida principal do bairro, uma bela casa com portão de elevação em cor marrom, muro alto em tons pastéis e o número fixado em azulejos com desenhos de flores se diferencia do padrão simples das demais moradias da região. Naquela tarde de terça-feira de abril, a sombra da mesma árvore que se destaca na rua empoeirada também ameniza o calor escaldante de 30 graus. Ao tocar a campainha – “já vai” –, uma voz não tarda a gritar por detrás do muro. O grande

portão se abre e logo é possível avistar o verde gramado do quintal com suas palmeiras, flores e a varanda ao fundo acoplada à cozinha. Cuidadosamente limpo, o local demonstra o zelo da família. Na cadeira de rodas, muito bem vestido e perfumado, com uma camisa azul marinho dobrada três quartos, calça jeans e sapato social marrom, o jovem Caio Henrique aguarda com um sorriso tímido e um ar de ansiedade para o início do diálogo. Após a apresentação inicial, Marcia Romero, sua mãe, auxilia-o na condução até o cômodo ao lado da cozinha, espaço denominado por ele de “escritório”. É ali, local destinado aos estudos, onde também são gravados seus vídeos. O produtor audiovisual Caio Henrique Romero, 23 anos, nasceu prematuro. No terceiro dia de vida, sofreu uma parada respiratória que ocasionou uma paralisia cerebral, levando ao comprometimento de suas funções motoras e à tetraplegia. Devido às limitações de movimento, o jovem necessita de sua cadeira de rodas.

Escritório “Azul”. Sem pensar muito, Caio confirma sua cor favorita que se mostra em nuances nos detalhes do cômodo decorado por ele próprio. Na parede do fundo, uma placa de vidro onde se lê “Diário do Caio Henrique” se destaca ao lado da poltrona azul-celeste e da luminária preta confeccionada a partir de um cano de PVC. O macio tapete felpudo completa o ambiente onde o jovem produtor audiovisual diariamente desenvolve seu trabalho. Na escrivaninha, o notebook branco ao lado do moderno fone de ouvido deixa nítida a forte relação com a tecnologia. Há dois anos, Caio resolveu criar um canal no YouTube para compartilhar suas experiências de vida e, por meio delas, ajudar outras pessoas – seu grande objetivo. “A princípio, comecei o canal no escuro, não sabia se iria ter uma aceitação do público. O que me motiva a continuar a fazer isso hoje é o retorno deles”, conta. Tanto o escritório quanto o canal do YouTube ilustram não somente a proximidade de Caio com as


tecnologias digitais, mas também a utilização que o produtor faz delas para garantir sua autonomia e fazer valer seus direitos de cidadania. Como ele próprio costuma destacar, trata-se de uma forma de sentir-se útil frente à sociedade.

Canal

O canal “Diário do Caio Henrique” surgiu no Facebook em 2017. Na noite em que teve a ideia, o jovem passou horas em claro. Ao amanhecer, contou à mãe que havia recebido uma “luz divina” para ajudar as pessoas. “Vou gravar um vídeo sobre a minha história e colocar na rede”, recorda. A mãe, sem entender muito bem a proposta, perguntou o motivo da ideia e, de início, não demonstrou concordância. O rapaz, no entanto, insistiu. “Com todas as limitações que tenho, venci várias batalhas em minha vida e várias etapas. Acredito que vai ser útil para alguém”, argumentou na ocasião. Quando decidiu criar o canal, Caio fazia tratamento em casa com o enfermeiro Diego Besou, com quem logo compartilhou o sonho. O enfermeiro não hesitou em apoiá-lo. “Eu ia na casa do Caio, levava minha câmera, criava os conteúdos, gravava, editava e o ensinava a fazer. Depois que aprendeu, começou a gravar e editar com a ajuda da mãe”, conta Diego, que também é ator desde os 8 anos e hoje grava vídeos cômicos para o seu próprio canal no YouTube. Marcia relata que tinha receio de o filho se decepcionar. “Como mãe, eu tinha medo de que ele não fosse aceito ou de que não tivesse visualizações, meu maior medo era o possível preconceito e o bullying que ele poderia enfrentar nesse novo mundo”, explica. Caio Henrique, porém, não se abalou com os poucos feedbacks que teve no início. Hoje, o produtor demonstra um sentimento de vitória e não se vê fazendo outra coisa. Seu maior hobbie é procurar estratégias para aperfeiçoar a qualidade e o alcance de seus vídeos para o canal e suas demais redes sociais. Os vídeos, que no começo eram postados de maneira despretensiosa e amadora, já chegam a contar com mais de 10 mil visualizações. O menino ainda sonha em atingir o total de 1 mil inscritos para poder ganhar dinheiro com a ferramenta digital.

Parceria de mãe

Embora autônomo o suficiente para realizar o sonho de ajudar as outras pessoas com o auxílio das tecnologias, Caio Henrique não deixa de con-

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ímpar

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tar com a parceria da mãe. Durante a entrevista, por exemplo, Marcia interrompe o preparo do almoço, arruma o ventilador do escritório, observa e fotografa o filho. O jovem explica que, para gravar os programas para o seu canal, costuma posicionar o celular na frente da poltrona e pedir para que a mãe o auxilie no controle das pausas dos vídeos. “Sobra até prá mim”, brinca Marcia. Caio já enfrentou muitas barreiras na vida, como o ingresso na faculdade. Ele é formado em Marketing Digital, curso que fez na modalidade à distância (EaD) numa universidade privada de Campo Grande. O próprio acesso ao ensino superior foi um direito conquistado com o apoio da tecnologia, já que tem severas limitações de locomoção. Mesmo num curso à distância, porém, o jovem passou por situações de preconceito, o que o ensinou duramente que uma parcela significativa da sociedade ainda não sabe respeitar as diferenças do próximo. “No começo não foi fácil”, lamenta. A mãe atenta, vem até a porta do escritório e interrompe a entrevista. Com um sentimento de revolta, rememora o momento vivenciado pelos dois na ocasião da matrícula. “Ele passou no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em 2016. Liguei na universidade e me informei, falaram-me que tinha até 30 dias para levar a documentação”, conta Marcia. Um dos documentos obrigatórios era o chamado Modelo 19, que comprova a conclusão do ensino médio. Questionada então pela recepcionista no momento da matrícula, a mãe, envergonhada, afirmou que não tinha conhecimento sobre o documento. “Foi quando ela deu uma gargalhada na minha cara”, relata a mãe ao lembrar da forma discriminatória na qual foram tratados. “Puro preconceito”, afirma indignada. Mesmo com todas as dificuldades, Marcia conta que Caio Henrique é muito autônomo e nunca o viu reclamar. “Ele tem 23 anos e nunca o vi triste por algum motivo por pior que seja. É como se filtrasse tudo, em toda situação, seja boa ou ruim, nunca o vejo desanimado”, conclui.

O jovem passa por atividades regulares de fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional. É quando transforma o escritório e estúdio de gravação em sua clínica particular. No local, uma cama especial divide espaço com seus equipamentos tecnológicos. Durante o tratamento, a forma com que Caio Henrique encara a vida impressiona e entusiasma não somente os seguidores de seu canal e de suas redes sociais. “Confesso que aprendo muito mais com ele do que ele comigo”, diz a terapeuta ocupacional Rosiane Rezek que atende o jovem três vezes por semana.

Tratamento

Atualmente, Caio Henrique faz seus tratamentos em casa, o que constituiu uma grande conquista para a família junto ao plano de saúde. Antes, era necessário que pegassem cinco ônibus diariamente para poder fazer os atendimentos em clínicas da cidade.

alexmuruilos@gmail.com marcosroberto.saucedo@gmail.com


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crônica

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A ditadura perfeita Texto: José Câmara | Ilustração: Jenn Arantes

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essoas morrem, outras agonizam. A dor pode ser vista nos olhares de alguns sobreviventes. Gritos embaralham-se com barulhos estrondosos e escutados com frequência que até parecem a trilha sonora de um filme trágico. Filas extensas são formadas aos pés de templos de contemplação, verdadeiros totens. Pessoas são separadas por características físicas, religiões, escolhas, sexualidade, renda, status e o quão à frente estão umas das outras. O poder se impõe perante um ditador pouco crível ou esperado, mas (in)tocável e inabalável. O fruto de sua conquista é abastecido dia após dia por fiéis que são iludidos por uma necessidade utópica. Na história da humanidade, os caminhos trilhados pelas ditaduras são marcados por mortes. Registros apontam que 47 milhões de pessoas foram mortas durante a Segunda Guerra Mundial, cenário protagonizado por um dos maiores tiranos do mundo, Adolf Hitler. Já a autocracia soviética, comandada por Joseph Stalin, foi responsável por dar fim à história de mais de 20 milhões de pessoas. O totalitarismo, manifestado em sistemas autoritários ao longo do século XX, porém, assumiu uma nova roupagem no século atual. Um aspecto que difere entre os exemplos de regimes autoritários mencionados para a atual “ditadura perfeita” é que lá, nos registros da história, apenas uma ou poucas pessoas receberam a culpa pelas milhares de mortes. Agora, no palco perfeito da pós-modernidade, os subjugados são responsáveis pelo próprio fim. Na perspectiva da “ditadura perfeita”, colocar o papel de carrasco em apenas um personagem mostra-se um equívoco. Pois, na realidade, os carrascos são peque-

nos ditadores individuais, máquinas inteligentes, atrativas a tal ponto que levam as pessoas a escolherem e optarem por sua companhia. A presença dos pequenos ditadores faz com que as pessoas apaguem a necessidade do outro, do diferente. Aquele amigo que está ao seu lado foi trocado por um muro de ilusões e por falsas carências. O humano jaz, as telas brilhantes acalentam os olhos fracos e cerram-nos ao plástico e ao metal. As novidades, que já não são tão novas, suplantam nas timelines uma disputa por status e brigas internas são criadas para que a atenção seja exclusiva a ele, o carrasco que está prestes a concluir o seu verdadeiro trabalho.

Você acordou hoje pela manhã e qual foi a primeira coisa que fez? Agradeceu pela vida? Respirou fundo e planejou como seria seu dia? Provavelmente não. Ao som das trombetas soadas pelo despertador, um dejavú, a mesma história. Pessoas se curvam defronte ao brilho, à vida dos outros, à beleza, à voz que comanda a sua vida. Chegada a noite, um ato de amor intenso – uma confidência carinhosa, uma transa – havia sido roubado pelas horas de prazer que o pequenino ditador já havia propiciado. A excitação foi trocada por longas horas de “pegação” com o seu algoz particular. Um novo dia, a mesma história se repete. O ditador se impõe de forma tão onipresente que a necessidade compulsória por carregadores de energia é vital. Locais foram remodelados para atendê-los. O “bom dia! ” foi trocado pelo “qual é a senha do wi-fi mesmo?”. Os submissos acham que estão no controle da situação. Acham errado! A cada clique, curtida, acesso, like ou compartilhamento, um minuto de atenção é colocado em xeque. Dados foram espalhados, fotos compartilhadas, intimidades expostas, vidas destruídas, vidas construídas na base de estereótipos. O sentido do “EU” é vulgarizado, a singularidade de cada ser humano é esquecida. Ao toque do celular, o barulho da notificação de um aplicativo, um momento de distração. A autonomia dada pelo “ditador perfeito” contraditoriamente ceifa vidas. Enquanto você lê esta crônica, uma pessoa em um lugar completamente distante pode ter morrido distraída, talvez atropelada, por causa do brilho que seduz a qualquer um. Ou ainda, entre um clique e outro, você mesmo pode ter sido tomado pela tirania do “perfeito ditador” e se perdido das linhas do texto. E o que é pior, talvez sequer tenha se dado conta.

jmarcalcamara@gmail.com


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saúde

Para além da realidade

Fruto das novas tecnologias digitais, realidade virtual tem ampliado as possibilidades de tratamento na área da saúde; na educação, recurso fornece novas alternativas de trabalho aos professores Texto: Gabriel Sato | Gerson Wassouf Foto: Beatriz de Almeida (APAE) Infografia: Rúbia Pedra

A

cordar cedo, fazer inalação, tomar os antibióticos e vitaminas são tarefas comuns no cotidiano de Tamires Maciel, 25 anos, paciente da APAE em Campo Grande (MS), diagnosticada há dois anos com fibrose cística – doença genética que atinge diferentes órgãos do organismo e, sem receber o tratamento adequado, pode levar à morte. A constatação da doença veio tardiamente. Tamires tinha 23 anos e muita coisa mudou em sua rotina desde então. A jovem, que passou sua vida inteira com o diagnóstico equivocado de bronquite, descobriu por meio do chamado “teste do suor” (exame considerado mais preciso para identificação da fibrose cística) que a doença genética lhe acompanhava desde a infância. As séries de fisioterapia passaram a ser diárias no trata-

mento da paciente que, pelo perfil sedentário, acumulou dificuldades com a rápida fadigação e as constantes dores musculares. Foi aí que a utilização de jogos virtuais no tratamento tornou as sessões de fisioterapia mais prazerosas e melhorou sua qualidade de vida. “Nos primeiros dias eu sentia dor, alongava, e como não estava acostumada a fazer atividades físicas, fiquei com dores por uma semana, mas hoje, com a competitividade que os jogos trazem, sinto-me animada e pretendo continuar a me exercitar”, afirma Tamires. Esse é o diferencial da tecnologia, que faz com que tratamentos como os da jovem campo-grandense possam ser mais efetivos, estimulantes e regulares. “A realidade virtual na fisioterapia exige maior engajamento dos pacientes, por ter atividades terapêuticas

mais interativas e divertidas”, explica a fisioterapeuta, Valine Zucchi, que acompanha o tratamento de Tamires. Segundo a profissional, o objetivo da tecnologia é proporcionar o estímulo aos pacientes, principalmente com exercícios aeróbicos e o fortalecimento muscular, o que auxilia na otimização da função pulmonar de uma forma lúdica. Os pacientes com fibrose cística - ou mucoviscidose - apresentam secreções mucosas espessas e viscosas, obstruindo os ductos das glândulas exócrinas, o que contribui para o aparecimento de características básicas: doença pulmonar obstrutiva crônica, níveis elevados de eletrólitos no suor, insuficiência pancreática com má digestão, má absorção e consequente desnutrição secundária.


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“A realidade virtual na fisioterapia exige maior engajamento dos pacientes, por ter atividades terapêuticas mais interativas e divertidas” diz Valine Zucchi

Contra a monotonia O constante avanço tecnológico pode desempenhar papel crucial como alternativa nos tratamentos de saúde e do bem-estar do corpo. Atletas de alto rendimento, por exemplo, já se utilizam de softwares em seus telefones celulares ou relógios smartwatchs para o acompanhamento dos treinos, da qualidade física e da alimentação. Os usos mais populares, no entanto, estão relacionados aos jogos de realidade virtual. No caso de Tamires, a tecnologia serve como complemento às fisioterapias diárias que, por serem repetitivas, podem deixar o tratamento monótono e tirar o ânimo dos pacientes. Na prática, o tratamento utiliza o

Saúde

videogame como complemento para o exercício muscular, uma vez que a doença costuma punir severamente um portador sedentário. Com a realidade virtual, cada dia torna-se um novo jogo, uma nova aventura e, o melhor, o paciente pode evoluir nos níveis dos games conforme sua resistência aeróbica e muscular. Na capital sul-mato-grossense, o Instituto de Pesquisas, Ensino e Diagnósticos da APAE (IPED/ APAE), em parceria com a Faculdade Anhanguera, iniciou há cerca de seis meses um projeto de realidade virtual chamado Gameoterapia para pessoas com diagnósticos como o de Tamires. A jovem e outros cinco pacientes são constantemente avaliados e acompanhados por Valine, pela fisioterapeuta Lilian Assunção - professora titular da Faculdade Anhanguera - e por estagiários. O acompanhamento é feito duas vezes por semana com duração entre 45 minutos e uma hora. Os pacientes iniciam com a fisioterapia respiratória e, em seguida, realizam as sessões de realidade virtual. Quando finalizadas todas as sessões, eles são avaliados novamente com o exame de pulmão (espirometria) e com o teste de caminhada para a verificação do progresso individual.

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Realidade virtual X realidade aumentada O primeiro ponto a ser esclarecido quando se pergunta o que é “realidade aumentada” é que ela se difere da “realidade virtual”. Esta segunda diz respeito a um ambiente de imersão criado por meio de ferramentas computacionais no qual o usuário realiza determinadas tarefas. Um bom exemplo de realidade virtual é o jogo The Sims. Já a realidade aumentada designa a interação entre ambientes virtuais e o mundo físico. Um exemplo de realidade aumentada são as etiquetas QR Code em pontos turísticos de cidades.

O IPED/APAE é o responsável pelo ambulatório especializado da Fibrose Cística no Estado de Mato Grosso do Sul. A unidade conta com uma equipe multidisciplinar que inclui pneumologista adulto e pediátrico, gastroenterologista pediátrico geneticista, nutricionista, psicólogo, fisioterapeuta, farmacêutico e assistente social. Hoje, o Instituto atende 43 pacientes diagnosticados com a doença, sendo 34 na pediatria e nove adultos.

Bem-estar do corpo

Tamires encontra por meio dos exercícios, um estímulo para levar uma vida mais ativa

Para além do tratamento de doenças e dos esportes de alto rendimento, a realidade virtual tem sido também utilizada como alternativa para diminuir o sedentarismo da população em geral. Em sua monografia de conclusão de curso defendida em 2014 na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), campus do Pantanal, em Corumbá (MS), o educador físico Luís Augusto Ricco explorou o tema da utilização de games para a melhoria do bem-estar do corpo. “Senti a necessidade de inovar o conceito de promoção da saúde através da utilização de jogos eletrônicos específicos para cada treino, aliando a diversão e o entretenimento com os benefícios de uma atividade física, que pode variar de moderada a intensa no caso dos treinamentos funcionais”, explica o educador. De acordo com Ricco, as academias geralmente possuem um ambiente monótono e pouco convidativo para manter os indivíduos numa constante prática das atividades físicas. “Por isso, a união dos jogos eletrônicos e seu claro poder motivacional para vencer as fases e obstáculos, bem como seu enredo lúdico e competitivo entre os jogadores, tornam-se imprescindíveis na vida cotidiana”, prossegue o profissional.


Alternativas pedagógicas

A motivação que os esportes transmitem aliada às sensações proporcionadas pela mídia por meio das coberturas jornalísticas sempre estiveram presentes na vida do educador físico Silvan Menezes dos Santos, docente da Faculdade de Educação da UFMS, em Campo Grande. Natural de Sergipe, onde se graduou, o pesquisador desenvolveu estudos de mestrado e doutorado sobre o tema, respectivamente, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Universidade Federal do Paraná (UFPR). As reflexões sobre as interfaces entre o esporte e as mídias num cenário de convergência tecnológica, entretanto, também levaram o docente a se reaproximar uma outra paixão que lhe acompanhava desde a infância: os games. Atualmente, como professor responsável pela disciplina Metodologia e Teoria do Jogo na UFMS, Silvan tem levado a realidade virtual para a vida cotidiana dos alunos. “Tenho experimentado atividades de realidade virtual, ou seja, dos games, experiências corporais dinâmicas que são próprias dos jogos. Pegamos as dinâmicas de alguns games e levamos para quadra ou algum espaço aberto”, exemplifica o docente. Para Silvan, a realidade virtual e os games eletrônicos que frequentemente são associados ao sedentarismo e à solidão possuem muitos pontos positivos na construção de cidadãos ativos. “Trazemos experiências de diversos jogos, seja de esporte, de guerra ou de qualquer outro tipo, e levamos para quadra. Os alunos constroem capacetes, escudos medievais, utilizamos bolas e levamos a dinâmica do jogo para este espaço. A intenção é mostrar para esses alunos e futuros professores que dá para recriar a dinâmica dos games na vida real, até como forma de dialogar com as crianças por ser uma linguagem conhecida por elas”, elucida o educador.

FASES DA REALIDADE AUMENTADA

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Em 1963, o engenheiro elétrico Ivan Sutherland, premiado na área de desenvolvimento da computação gráfica e de interfaces interativas, apresenta sua tese de doutorado “Sketchpad: A Man-Machine graphical communication system” no Massachusetts Institute of Technology, em Boston, nos Estados Unidos

Também nos anos 1960, o próprio Ivan Sutherland apresenta o “Sword of Damocles”, um dos primeiros computadores “vestíveis” que serviu de base para a realidade aumentada

O nome Realidade Aumentada é utilizado pela primeira vez por Thomas Caudell no início dos anos 1990. Caudell estudava maneiras de auxiliar os manuais de montagem e a manutenção de aeronaves da empresa norte-americana Boeing com a utilização de feixes de luz

Em 1999, houve a disponibilização para a comunidade nãocientífica da base de dados ARToolKit, desenvolvida pelo Nara Institute of Science and Tecnology, no Japão, e lançada pela Universidade de Washington, nos Estados Unidos. Trata-se de uma das bibliotecas mais populares para o desenvolvimento de sistemas em realidade aumentada A empresa japonesa Nintendo lança o game PokemonGo em 2016. O jogo usa tecnologia de geolocalização para distribuir elementos pelos mapas reais das cidades, fazendo os usuários se deslocarem fisicamente pelas ruas atrás de objetivos virtuais. O game chegou a ter mais de 500 milhões de downloads ao redor do mundo e levantou novamente o tema da realidade aumentada

Ainda assim, desconstruir a imagem dos games aliada ao sedentarismo é uma barreira que as empresas voltadas ao universo das novas tecnologias digitais tentam derrubar. Exemplos de atividades como dos professores Luís Augusto Ricco e Silvan Menezes são importantes para que esse estereótipo seja quebrado. “Nossos alunos se interessam muito em trazer a realidade dos games para a nossa realidade e veem como uma alternativa paralela ao jogo digital,

Fonte: Ricardo Casseb - A Medium Corporation

Para chegar às conclusões, o educador físico desenvolveu um estudo de natureza bibliográfica sobre as formas e definições dos jogos eletrônicos, seu potencial pedagógico e as viabilidades de apropriação na sociedade. A pesquisa também destacou alguns dos principais limites e possibilidades do uso dos games na formação dos participantes. Ao fim, as reflexões teóricas foram colocadas em prática em uma academia de Campo Grande. “Tive uma experiência muito interessante. As pessoas se motivavam ao tentar alcançar pontuações maiores nos jogos de realidade aumentada ou mesmo em competições com amigos e instrutores”, esclarece. “Entendemos, assim, que ao aliar a diversão com a prática de atividades físicas conseguimos trazer um novo sentido para o continuo desenvolvimento corporal e intelectual”, complementa Ricco.

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saúde

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não no sentido de nega-lo, mas como uma forma de ressignificar e aumentar a prática dos exercícios físicos, ampliando o lazer, levando a uma vida mais saudável, promovendo o bem-estar e a socialização”, conclui o professor da UFMS.

gabrielsato1999@gmail.com gersonwassouf@gmail.com


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economia

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Futuro da indústria ou indústria do futuro?

Mercado de games emerge como nova opção profissional para jovens desenvolvedores; Brasil ocupa 13º lugar entre países que mais geram receita no setor Texto: Mariana Moreira | Victória Lacerda Ilustração: Raquel Eschiletti Foto: Mariana Moreira

dia começa com o banquete de café da manhã no salão principal. A primeira aula é de “Tratos das Criaturas Mágicas”. Às 10h, é a vez de “Defesa Contra as Artes das Trevas”, com o professor Snape. Já no final da manhã, chega o momento do treino de quadribol para o duelo contra a Sonserina na sexta-feira seguinte. O mundo descrito, conhecido entre os fãs do personagem da literatura juvenil Harry Potter, pode parecer preenchido apenas de fantasia, mas, na realidade, é responsável por despertar no estudante campo-grandense Gustavo Rédua, 17 anos, a intenção de desenvolver jogos digitais. “O interesse surgiu da vontade de ser o personagem, imaginava-me vivendo aquilo, então o jogo vem como uma forma de resolver o problema, de como passar isso para vida real. Você cria o jogo, cria o mundo nas condições ideais, como você gostaria de estar inserido e no qual acontecem coisas que você gostaria de viver”, explica o jovem, aluno de ensino médio do Instituto Federal de Mato Grosso do Sul (IFMS), em Campo Grande (MS). Além da inspiração no mundo de Harry Potter, desenvolver um dispositivo ultra tecnológico – a exemplo da armadura do personagem Homem de Ferro, dos estúdios Marvel – ou criar um jogo digital, eram as referências de Gustavo ao escolher o que fazer em seu Trabalho de Conclusão de Curso. O estudante optou por desenvolver um jogo em parceria com o colega de turma Mateus Azambuja. “Quando entrei no

IFMS, sabia que teria um trabalho de conclusão de curso. O Mateus, então, me apresentou a ideia, que gostei e agora estou inserindo a minha opinião no jogo”, detalha Gustavo. A relação com os jogos começou desde muito cedo. “Meu pai jogava muito, então quando nasci ele ainda tinha o videogame, se não me engano era um Nintendo 64”, recorda o jovem. Gustavo relata que seu primeiro contato com os jogos digitais foi através de um simples celular Nokia. Profissionais do setor apontam que ser autodidata é uma das características das novas gerações. Com base em sua própria experiência, Gustavo acredita que esse é um diferencial para o futuro da indústria dos jogos. “Com a globalização, a internet e com o YouTube, você pode aprender diversas técnicas, então sempre estive bem antenado, sempre fiquei muito esperto e me perguntava como eles conseguiam fazer aquilo. Isso me levou a pesquisar”, destaca. O estudante pretende seguir com o desenvolvimento de jogos no futuro, primeiramente como hobby para, após a graduação, se arriscar no mercado.

A indústria

O mercado atual de games gira em torno dos bilhões de dólares em todo o mundo. Segundo o Global Games Market Report, levantamento internacional realizado pela consultoria Newzoo, uma das principais condutoras de pesquisas sobre a indús-

tria dos games do mundo, o Brasil ocupa o 13º lugar no ranking dos países que mais geraram receita no setor. Em 2018, a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil), em parceria com a Associação Brasileira das Empresas Desenvolvedoras de Games (Abragames), criou o projeto Brazilian Game Developers, com o objetivo de desenvolver e promover no exterior a indústria nacional de games. O jornalista Cleidson Lima, especializado na área de tecnologia, ressalta que a indústria de games só existe da maneira conhecida atualmente, pois, em 1972, um engenheiro e inventor alemão naturalizado americano, Ralph Bear, conseguiu desenvolver o protótipo que viria a ser o primeiro console. Bear, pioneiro dos jogos eletrônicos, criou na época o Magnavox Odyssey, um videogame off-line, ou seja, sem conexão nenhuma, que também não possuia cor ou som. Para Lima, foram os erros do passado que permitiram os acertos do presente. O sucesso precoce do console Xbox Kinect, por exemplo, que a partir da câmera que capta os movimentos corporais e tornou o jogo Just Dance extremamente popular, não impediu que a Microsoft eliminasse em 2018 o acessório, já que os desenvolvedores deixaram de criar jogos que o utilizassem. “Eles produziram a ferramenta, criaram as possibilidades, e os desenvolvedores não quiseram, o mercado não quis”, explifica o jornalista.


ECONOMIA

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Por não se localizar entre os primeiros colocados no ranking global dos países que mais se destacam no setor, o Brasil ainda é mais consumidor do que produtor de conteúdo de jogos. Os principais polos de desenvolvimento do mundo estão localizados nos Estados Unidos, no Japão e na Europa, que durante décadas se destacaram na evolução dos conhecimentos compartilhados atualmente com o mundo todo. Apesar desse cenário, hoje as produções independes já conseguem obter destaque no mercado facilitadas pela expansão do acesso a tablets e celulares. Isso permite o contato ao conhecimento da linguagem dos games a quem jamais teria a chance, por exemplo, de trabalhar em um grande estúdio de produção de jogos no mundo. Esses são os populares “jogos de garagem”, games difundidos por meio de startups (empresas emergentes que trabalham com inovação por meio de negócios que permitem o crescimento em escala) que produzem especialmente para celulares ou para fins corporativos. Eles representam possibilidades inéditas de comercialização e ampliam a ideia do consumo de jogos para além dos consoles, o que proporciona novas perspectivas ao novo público consumidor da categoria mobile.

Mercado regional

De acordo com Cleidson Lima, o mercado nacional ainda é muito pequeno em relação ao chamado primeiro mundo. Já a produção local, em Mato Grosso do Sul, é menor ainda, principalmente pela falta de mão de obra especializada. “Nós não temos um grande número de cabeças para executar o trabalho e quando essas cabeças aparecem, pouquíssimas ficam por aqui”, afirma. Na opinião do jornalista, “um bom desenvolvedor de games, a menos que tenha um motivo muito grande para ficar no Estado, vão todos para fora”. Esses profissionais deslocam-se para os grandes centros urbanos, como São Paulo, Recife e Curitiba, que são os polos de desenvolvimento de games no Brasil. A realidade na capital sul-mato-grossense é vista de maneira crítica em relação ao mercado nacional. “Campo Grande não tem essa cultura do desenvolvimento de games. Na verdade, ainda estamos no início com alguns exemplos isolados, não há uma preocupação da gestão pública ou mesmo de parceria dela com a iniciativa privada para criar polos. Não existe essa preocupação, por isso nosso mercado ainda é muito pequeno no âmbito Brasil”, explica Lima, que foi o idealizador e é o curador do Museu do Videogame, iniciativa inédita no país.

Crescimento

Novo capítulo do Magic Rampage em desenvolvimento, que tem a previsão de lançamento só em 2020

Por outro lado, a indústria é vista de maneira positiva por Thiago Correia, coordenador do curso de Tecnologia em Jogos Digitais do IFMS, campus de Dourados (MS). Correia ressalta que o mercado de jogos tem uma curva positiva de crescimento que apresenta grandes oportunidades para os desenvolvedores, oscilando em um crescimento anual superior a 5%. Para o professor, anualmente são injetados bilhões de dólares provenientes de novos consumidores ávidos ao redor do mundo. Um exemplo do crescimento pode ser visualizado em outro aspecto apresentado pela a consultoria internacional Newzoo. O levantamento da empresa estima que em 2018 o volume total de recursos gerados com a comercialização de games chegou ao patamar mundial de 138 bilhões de dólares, superando as expectativas de projeção. Em 2015, o mercado era de 92 bilhões de dólares. Mesmo com a projeção positiva do mercado em geral, entretanto, o Curso Superior de Tecnologia em Jogos Digitais do IFMS em Dourados ainda é um dos poucos estabelecidos em Mato Grosso do Sul. Um fator diferencial é a proximidade da cidade com o Paraguai, o que é apontado como um fator positivo para a importação de produtos de tecnologia e a constante atualização do parque tecnológico no segmento do audiovisual. Correia acredita que conforme houver um amadurecimento do mercado, novos perfis profissionais serão exigidos para integrar as equipes. “Isso pode provocar um processo de atualização cíclica no projeto pedagógico do curso voltado para o mercado”, conclui o coordenador do curso.

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economia

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Made in MS Um exemplo de sucesso em Mato Grosso do Sul é a empresa Asantee Games, criada em 2012 pelos amigos Bruno Pereira e André Santee, ambos com 32 anos, em Campo Grande. O empreendimento tem se destacado no mercado de jogos voltados para o mobile. Entre os games produzidos está o Magic Portals, primeiro jogo da Asantee Games que entrou em destaque no Google Play Store (loja oficial de aplicativos para o sistema operacional Android) e projetou a empresa a um espaço de destaque. A primeira versão do jogo foi resultado de um aporte de R$ 5 mil. Ao longo de todo o ciclo de vida do game, foram realizados investimentos em torno de R$ 30 mil. O jogo foi desenvolvido em três meses e atualizado a cada duas semanas durante um ano.

Outro investimento da Asantee Games foi o Magic Rampage, um projeto mais ambicioso desde o começo, desenvolvido durante um ano antes de ser disponibilizado. Lançado há cerca de seis anos, o jogo tem sido trabalhado até hoje. Em 2019, o game atingiu à marca de 6 milhões de downloads. Santee conta que o Magic Rampage surgiu da ideia de produzir algo nostálgico e que atingisse o público dos consoles em uma nova plataforma. “Jogávamos videogame desde pequenos e a vontade sempre foi de fazer um jogo nessa pegada, que passasse a sensação de jogo estilo Super Nintendo, mas adaptado para o mobile e que atingisse principalmente esse público”, esclarece o desenvolvedor. “É plataforma, tipo um

Mario misturado com Mortal Kombat, então sempre foi pensando nesse público”, complementa. Por enquanto a empresa ainda não tem intenção de expandir do mercado mobile para o de consoles, principalmente pela falta de mão de obra especializada. Santee salienta, contudo, que não se trata de uma opção descartada, sobretudo pelo interesse de seu sócio. “Vejo que o Nintendo Switch, por exemplo, é uma plataforma legal e que combina muito com o jogo, só que ainda não temos equipe para isso”, conclui o jovem empresário. marimoreiraab@gmail.com victoriamelo.lacerda@gmail.com

História dos games começou nos anos

1950

Os jogos eletrônicos sempre estiveram intimamente ligados ao desenvolvimento tecnológico como resultado da evolução conjunta das máquinas e dos softwares. Tennis for Two, criado ao longo de três semanas pelo físico norte-americano William Higinbotham, em 1958, é considerado o primeiro jogo eletrônico do mundo. O game foi projetado para funcionar em um computador gigantesco usado no famoso projeto Manhattan, que era liderado pelos Estados Unidos para desenvolver e produzir as primeiras bombas atômicas durante a Segunda Guerra Mundial. O jogo, de natureza bastante simples, foi concebido com a intenção de demonstrar a capacidade do computador analógico Donner de simular trajetórias com a resistência do vento. “Sessenta anos e oito gerações de consoles depois, a indústria se encontra em um momento crítico, em breve vamos chegar à nona geração que promete modificar o modo de consumo da indústria de jogos, alguns especulam que esta geração talvez seja a geração final”, opina Cleidson Lima, jornalista especializado em jogos eletrônicos e curador do Museu do Videogame.

1972

1977

1986

1990

1994

Na opinião do especialista, o objeto de desenvolvimento dos grandes estúdios tem sido os jogos que existam de maneira independente de consoles, o que caminha contra o estabelecido pelas gerações anteriores. “Quem tem acompanhado o lançamento do novo Xbox, a promessa do Playstation 5 com a turbinada do Playstation Now, percebe que a intenção deles é não ter mais jogos físicos ou mesmo jogos no HD”, diz. “Você vai ter jogos que rodam como se fosse um Netflix, é o jogo sob demanda”, explica Lima. Para o curador do Museu do Videogame, mesmo num cenário de efervescência tecnológica, existe um grande interesse por parte de quem consome e admira a indústria de jogos desde os antigos usuários do Atari no começo da década de 1980. “Existe uma nostalgia em sua essência. Em relação aos visitantes do museu, me dá alegria, pois trouxe essa galera que jogava videogame na infância e que em algum momento da vida esqueceu, deixou de jogar ou jogou menos”, relata Lima. Os adultos que jogaram Atari passam a jogar agora com as novas gerações, o que inclui seus filhos. “O Museu do Videogame, por exemplo, nada mais é do que um grande encontro de pessoas que gostam de jogos”, completa o jornalista.

1996

1998

2000

2002

2006


COmportamento

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Excesso de dados Dados do IBGE mostram que 78% das crianças e adolescentes têm acesso precoce às redes sociais; psicólogos alertam sobre os riscos no desenvolvimento educativo e na concentração dos jovens Texto e infografia: Gabriela Dalago | Guilherme Correia Foto: Guilherme Correia

A

jovem Mariana*, 15 anos, estudante do segundo ano do ensino médio, costuma acordar bem cedo para pegar o ônibus e conseguir chegar no horário da aula. No caminho, sempre checa o celular para ver o que tem acontecido nos aplicativos que mais usa: Instagram, Facebook e WhatsApp. Confere as últimas publicações, compartilha memes, curte suas fotos favoritas e passa o resto

do tempo a verificar nos stories o que os colegas fizeram no dia anterior. Como sua escola é de tempo integral, muitas vezes fica difícil manter a concentração. Apesar de gostar muito do ambiente escolar, sente-se cansada nos dias mais corridos. No último ano, passou por uma situação que têm mexido com seu ânimo. “Tinha um perfil no Instagram com um monte de fotos antigas e as usaram para

criar uma comparação e me diminuir. Fizeram publicações com ‘como a gente quer ser’ e colocaram fotos de outras meninas, e ‘como a gente é de verdade’ e colocaram uma foto minha”, desabafa a estudante. Desde então, tem tido dificuldades em falar sobre seus problemas para as pessoas próximas, preferindo guardá-los para si. O tempo exagerado de conexão tem incomodado a mãe de Mariana. “Às vezes tenho de lavar a lou-


comportamento

ça ou limpar a casa, mas me sento e deixo a vassoura ali. Logo já se passaram cinco horas e corro para fazer tudo nos últimos minutinhos antes de minha mãe chegar. Deixo tudo mal feito e ela reclama que uso o celular o tempo todo”, confessa a jovem. Identificou-se com a situação? Mariana não é uma única pessoa. Sua história foi construída a partir da junção dos relatos de diversos alunos entrevistados na Escola Estadual Manoel Bonifácio Nunes da Cunha, localizada no Jardim Tarumã, em Campo Grande (MS). Tantas outras Marianas existem Brasil afora.

Aprendizagem Dados do estudo TIC Kids Online Brasil publicados pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC.br) em 2017 apontam que 78% dos adolescentes brasileiros de 15 a 17 anos utilizam a Internet mais de uma vez por dia, enquanto 92% estão conectados às mídias sociais. A pesquisa domiciliar teve o objetivo de compreender os usos que crianças e adolescentes de 9 a 17 anos fazem das tecnologias online. Segundo a Coordenação de Psicologia Educacional de Mato Grosso do Sul (CPED-MS), órgão vinculado à Secretaria Estadual de Educação (SED) que orienta os profissionais das escolas no trabalho com a aprendizagem dos estudantes, o uso da tecnologia é inevitável no contexto

das novas gerações. “O ambiente escolar tem que abrir espaço para as tecnologias”, defende a psicóloga Paola Nogueira Lopes, da equipe do CPED-MS, que desenvolve pesquisa em psicologia escolar. “É preciso aproximá-las com a realidade da escola e com a realidade do jovem”, complementa a pesquisadora. Mariana, por exemplo, já foi prejudicada algumas vezes por usar o celular até tarde e não estudar devidamente para as avaliações. Uma de suas professoras chegou a reduzir sua nota devido ao uso excessivo durante as aulas. Por ter deixado o hábito atrapalhar os estudos, sua mãe limitou a utilização do dispositivo. “Uso muito o celular para estudar, assistindo vídeos-aula, mas, como a internet está ligada, recebo as notificações e começo a conversar”, relata a estudante. A interferência das novas tecnologias no aprendizado é tanta que algumas escolas já incentivam o desenvolvimento de técnicas para auxiliar no cronograma de estudos. A aluna de cursinho pré-vestibular, Isabella Fernandes da Cruz Martins Brum, 18 anos, menciona que usa o celular para auxiliar no aprendizado. “É claro que me distraio às vezes, mas não me atrapalha”, diz. A jovem, que teve oportunidade de realizar intercâmbio na Alemanha, conta que no país europeu seus professores costumavam incentivar bastante o uso

PERFIL DE USO

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das tecnologias como fonte de pesquisa e auxílio nos estudos.

Excesso de informações A psicóloga Paola Nogueira alerta sobre o uso excessivo dos aparelhos digitais. “Nos dias de hoje, estamos sujeitos a uma quantidade imensa de informações, tornando comum o surgimento de um grande número de pessoas com dificuldades de gerir emoções”, explica. “A energia que deveria ser destinada aos músculos e aos outros órgãos do corpo é consumida pelo cérebro, fazendo com que a pessoa se sinta esgotada física e mentalmente”, completa a pesquisadora. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-C), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2017, cerca de 74,9% dos brasileiros possuem acesso à internet em suas casas. O aumento com relação ao ano anterior foi de 5,6 pontos percentuais. Estudos apontam que a abundância de informações proporcionada pela ampliação do acesso pode causar prejuízos, dificultando o desenvolvimento de capacidades essenciais, como criatividade, inovação, reflexão e persistência. Outros sintomas relatados são: ansiedade, inquietação, dificuldade de manter o foco, sensação de cansaço contínuo inclusive ao despertar, dores de

UTILIZAM?

79% mensagens

53%

em 2017, o uso da internet em computadores

90% para 53%

caiu de

Fenômeno novo A difusão em massa do acesso a dispositivos eletrônicos é um fenômeno relativamente novo. Muitas pesquisas sobre as implicações do uso da tecno-

COMO

ADOLESCENTES NA INTERNET

90%

cabeça ou nas costas, dificuldade para dormir, entre tantos outros sintomas. Paola ainda comenta sobre o fenômeno inconsciente denominado Registro Automático de Memória (RAM), relacionado com o exagero no consumo de dados que transformam a mente em uma espécie de “depósito”. O fenômeno não está relacionado com a qualidade ou com o conteúdo dos pensamentos, mas com sua abundância. A grande quantidade de impulsos, de acordo com a psicóloga, dificulta a concentração, aumenta a inquietude, gera reatividade, intransigência, irritabilidade e prejudica a concentração. Além disso, atrapalha o gerenciamento da rotina, a sensação de ter muitas coisas a fazer e não conseguir concluir. Outros estudos mostram que o desenvolvimento dos meios digitais, com sua facilidade de acesso e instantaneidade, torna os impactos cognitivos muito mais presentes. A síndrome conhecida como FOMO (fear of missing out, ou “medo de perder algo “em português), por exemplo, caracteriza justamente esse receio de estar desconectado.

93% das crianças e adolescentes de 9 a 17 anos utilizam a internet pelo celular

64%

pesquisas por curiosidade e interesse próprio

75%

77% vídeos

música

76% pesquisas escolares

73% social

Fonte: Cetic.br

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logia na vida cotidiana ainda não possuem resultados conclusivos. Para o pesquisador na área de comportamento Ronaldo Rodrigues Teixeira Júnior, docente do curso de Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), por mais que os sintomas sejam comuns atualmente, é importante passar por uma consulta médica para que se tenha um diagnóstico preciso. “Esses nomes populares [dos transtornos] ganham repercussão porque um número grande de pessoas passa pelo que está sendo definido por essas síndromes. Mas isso é diferente de um estudo técnico, de uma pesquisa realmente validada que vai definir os parâmetros para classificar alguém que tenha aquela síndrome ou não”, esclarece. Teixeira ressalta que não se pode culpar as tecnologias e as redes sociais de forma isolada, pois é necessário analisar o uso que as pessoas fazem delas. Ele também alega que tudo é muito recente e que a sociedade ainda está aprendendo a lidar com a exposição de informações digitais e com como isso é introduzido para as novas gerações. Com base em experiência na clínica de atendimento da UFMS, o psicólogo afirma que muitas pessoas relatam esse sofrimento por não conseguirem se desconectar, assim como uma preocupação sobre algo que foi publicado (a repercussão que um post teve, o número de likes, se teve relevância, etc). “Ouvimos relatos de pessoas que se sentem mal, atualmente temos um caso de uma paciente que fica muito chateada quando publica coisas e essas publicações não têm comentários, não têm curtidas, isso gera um sofrimento”, exemplifica.

Refúgio digital Os jovens que costumam compartilhar fotos nas redes sociais podem ter a autoestima afetada. Foram quase unânimes os relatos dos estudantes da Escola Estadual Manoel Bonifácio Nunes da Cunha que afirmam se sentir insuficientes quando veem fotos de pessoas que julgam ser mais bonitas. “As vezes fico triste, pois vou lá no Instagram e vejo várias meninas boni-

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comportamento

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tas. Olho pra mim e ‘putz’, me dá uma tristeza”, comenta uma das alunas. Além disso, existem pais que usam a tecnologia para “suprir” a necessidade de atenção dos filhos. Segundo o pesquisador Ronaldo Teixeira, a situação faz com que as crianças e os adolescentes cresçam em uma realidade na qual o uso excessivo de equipamentos eletrônicos é normalizado. Caso a criança seja incentivada a se entreter a todo o momento com o uso do celular, pode se habituar a sempre utilizar o dispositivo como uma fonte de atenção e essa prática se mostra muito difícil de ser controlada. Comportamentos assim, explica o psicólogo, surgem de condições vivenciadas pelo indivíduo. Avaliar as situações às quais as pessoas são expostas na internet apresenta-se fundamental.

“Eu ficava triste, com um vazio muito grande, tentava preencher isso nas redes sociais” diz Mariana O ambiente das redes sociais pode ser usado como forma de “refúgio” da realidade, ou seja, como para se isolar ou preencher espaços vazios. É o caso da estudante Núbia Lemes Fernandes Rocha, que sentia muito a ausência de seu pai e da família em uma fase importante de sua vida. A jovem acostumou-se a aliviar esse sentimento pelas interações nas redes. “Eu fiz 15 anos e dizem que essa é a idade em que uma menina mais está com a família. Meu pai nunca ligou pra mim, me formei no ensino fundamental e ele não estava comigo. Foi o auge, eu ficava triste, com um vazio muito grande, tentava preencher isso nas redes sociais. Pegava meu celular e via fotos do pessoal com a família, queria ter isso, mas não tinha”, desabafa.

Comportamento abusivo Não é raro encontrar pessoas com alta popularidade nas redes que não possuem o mesmo grau de aprovação na vida pessoal. Na internet são muito hábeis em

propagar e divulgar notícias e comentar os assuntos, mas podem ter dificuldades nas relações interpessoais. Outra característica comum são os comportamentos tóxicos ou abusivos, facilitados no ambiente da internet, onde o feedback de sentimentos não é direto. Se precisa olhar tantas vezes a rede social, talvez esteja privada de outras coisas na vida diz Ronaldo

“Para você responder algo de forma educada, polida, sem ir para um grau de impulsividade ou agressividade, precisa ter sido educado. Você precisa ter passado por situações em que alguém chegou e falou assim: ‘olha, você se excedeu’, e às vezes na rede não se vê isso”, esclarece o psicólogo Ronaldo Teixeira. A estudante Laisa Taísa de Arruda Ferreira, 16 anos, diz que já presenciou muitos homens que são abusivos por meio das ferramentas digitais. “Ficar comentando nas fotos, beleza, tudo bem, só que às vezes são comentários abusivos e eles mandam mensagem várias vezes por dia. É preciso bloquear”, comenta. De acordo com o professor de Psicologia, algumas pessoas se exaltam de forma exagerada. Teixeira enfatiza que tudo isso fica registrado, podendo gerar danos por vezes irreparáveis. “Se você xinga alguém pessoalmente, tem espaço depois para se retratar, pedir desculpas. Mas hoje não, se você xinga online já toma uma proporção gigantesca e a pessoa às vezes nem quer saber de desculpa, já foi produzido um dano muito complicado”, argumenta. E qual seria uma recomendação para evitar todas essas situações? Ronaldo Teixeira orienta que em certos momentos pode-se simplesmente desconectar. “A pessoa pode ir a academia sem levar o celular. De repente, em uma confraternização com amigos, ela pode priorizar o contato pessoal ao invés de ficar falando online”, aconselha. Apesar disso, o pesquisador diz que é necessário analisar caso a caso. “Todo com-

portamento em alta frequência tem uma função. Se a pessoa está olhando o celular frequentemente, isso pode estar mascarando alguma coisa que está faltando. Se precisa olhar tantas vezes a rede social, talvez esteja privada de outras coisas na vida”, conclui. *A personagem Mariana foi jornalisticamente composta a partir de entrevistas com 10 estudantes da Escola Estadual Manoel Bonifácio Nunes da Cunha. A opção pela construção personagem visou a preservação da identidade dos adolescentes

gabii.dalago@gmail.com guiscorreia.0@gmail.com

Serviços Em Campo Grande, existem diversas opções de atendimento psicológico gratuito. Pela Secretaria Municipal de Saúde Pública (Sesau), é necessário se dirigir até uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) ou a um Centro Regional de Saúde (CRS), onde será realizada uma avaliação e o encaminhamento para uma das oito unidades do Centro de Apoio Psicossocial (CAPS). Pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), o atendimento é oferecido para acadêmicos, servidores e à comunidade externa através do Serviço de Atendimento Psicossocial (SAPS). Os menores de idade devem ir até o local acompanhados pelo responsável para a realização da inscrição. A equipe entrará em contato para o agendamento da consulta. Mais informações: (67) 3345-7802. Na Clínica Escola da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), o serviço é realizado por estudantes sob supervisão de professores. Após a triagem, o paciente é encaminhado para consulta. Informações: (67) 3312-3697. Já na Unigran, também com serviços gratuitos, a avaliação é feita por ordem de chegada, às segundas-feiras, das 18h às 22h, e às terças-feiras, das 17h às 19h. A consulta é marcada conforme a disponibilidade de vagas. Informações: (67) 3389-3362.


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educação

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Um novo aprender

Levantamento mostra que metade das escolas brasileiras já utilizam o aparelho celular em atividades com os estudantes; não-nativos digitais, educadores ainda vasculham melhores alternativas para uso das tecnologias Texto: Isabela Assoni | Letícia Franco Ilustração: Jenn Arantes | Akimi Ueda Foto: Raquel Eschiletti

À

s quintas-feiras, a rotina da Escola Estadual Manoel Bonifácio Nunes da Cunha, localizada no Jardim Tarumã, distante a 13 quilômetros do centro de Campo Grande (MS), apresenta uma movimentação diferente. Integrante do programa Escola da Autoria, projeto de educação em tempo integral da Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul (SED-MS), a escola dispõe de disciplinas alternativas à grade comum. Foi este o contexto que no ano passado possibilitou ao professor de educação física Peter Wiliam da Silva oferecer aos estudantes a disciplina eletiva Gamer: diversão, trabalho e vício. Segundo o docente, proposta da atividade foi orientar os alunos sobre os cuidados, os riscos e os benefícios dos jogos digitais. “Não tem como as escolas fugirem do uso da tecnologia. O que precisa é de instrução ao uso dessas plataformas para que sejam feitas de forma benéfica aos educadores e aos educandos”, destaca. Estudante do terceiro ano do ensino médio, João Victor Norberto de Souza conta que foi atraído para a disciplina não só pelo tema, mas também pelo fato de a escola abordar conteúdos mais próximos do universo dos jovens. “Esses meios estão cada vez mais influentes na sociedade”, justifica o aluno. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) – TIC 2017, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 78% da população do país com mais de 10 anos possui aparelho celular. Deste total, 97% utiliza os aparelhos para acessar à internet. Outros 57% fazem acesso à rede

por computadores e 14% por tablets. Para a professora Patrícia Henrique Cardoso, coordenadora pedagógica da Escola Manoel Bonifácio, a expansão do acesso às tecnologias no cotidiano de estudantes e educadores amplia o desafio das escolas de aplica-las nas suas atividades didáticas. Nem sempre as demandas exigidas, porém, são fáceis de se atingir. A mudança constante no cenário das plataformas digitais exige que os professores também aprendam. “Acredito que a maior dificuldade é que a inserção da tecnologia seja mais prática para o professor, porque não somos nativos digitais”, opina Patrícia. “Aqui na escola, por exemplo, temos professores de todas as idades e existe grande dificuldade com os educadores mais velhos. Eles têm disponibilidade, têm vontade e até certa facilidade para aprender, mas o processo é mais complicado”, completa.

Ensino em transformação Para acompanhar o desenvolvimento tecnológico e fornecer uma maior autonomia e uso crítico das novas tecnologias, professores têm se preocupado em buscar alternativas que melhorem suas formas de ensino a partir da utilização das plataformas digitais. Daiani Damm Tonetto, docente da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), trabalha há mais de uma década com educação à distância. Em seu doutorado, realizou pesquisas focadas na formação de professores com a utilização de tecnologias digitais. “Quis investigar no contexto da UFMS como os professores estavam sendo formados para o trabalho pedagógico com o uso de tecnologias e que práticas os cursos

de licenciatura efetivamente desenvolviam em sala de aula”, explica. Daiani entende que embora os educadores estejam familiarizados com o manuseio da tecnologia no cotidiano, possuem dificuldades em transformar as possibilidades tecnológicas em ferramentas para o ensino. Nesse sentido, a UFMS oferece um curso de especialização em Mídias na Educação, coordenado por Daiani, que visa capacitar e instrumentalizar os professores de licenciatura para o uso crítico e criativo das mídias e tecnologias digitais na prática pedagógica. A coordenadora argumenta que o processo de convergência é muito importante, pois com o investimento na formação contínua de outros educadores é possível quebrar o ciclo de formação comum e acrescentar modelos que façam uso da tecnologia aplicada em sala de aula. No curso de especialização, a metodologia vale-se do conceito de maker – palavra inglesa que significa “realizador” – no qual o educador perde a função de principal transmissor dos conteúdos e, consequentemente, uma maior autonomia é fornecida aos estudantes. O método


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possibilita que os discentes expressem sua criatividade e tenham experiências que não seriam possíveis sem a tecnologia – o que aumenta as percepções de sua aprendizagem pela construção de projetos que colocam a teoria na prática. Daiani conta que, ao aplicar as tecnologias para o acompanhamento do aluno com a plataforma digital Moodle – software livre de apoio à aprendizagem, executado no ambiente virtual – é possível realizar um atendimento individualizado. “Tudo o que o aluno faz fica registrado no ambiente, então conseguimos ver se ele tem alguma dificuldade”, detalha. Segundo Daiani, as novas ferramentas digitais contribuem para formar não só profissionais melhores, mas também indivíduos que se preocupam com a sua cidadania e participação política. “Não acho que a tecnologia seja a solução para todos os problemas da educação, mas se não olharmos para ela como aliada, teremos uma perda significativa da aprendizagem e qualidade da formação dos alunos”, completa a professora.

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educação

O argumento é partilhado pela professora Laís Henrique Vieira da Silva, do curso técnico em Informática da própria escola. “A vivência dos estudantes se baseia no celular, às vezes não sabem digitar em caixa alta no computador, por exemplo, ou colocar acentos e utilizar e-mail, coisas que sabem fazer muito bem nos celulares”, conclui.

Dificuldades

A nova realidade tecnológica das escolas tem relação com a popularização dos aparelhos eletrônicos na sociedade. A pesquisa TIC Educação 2016, realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC.br), mostra que 52% das instituições de ensino utilizam o aparelho celular em atividades com os alunos. Dos estudantes que têm acesso à internet, 77% usam a rede pelo celular. São várias as formas de utilização das tecnologias digitais no ambiente de sala de aula. A busca de conteúdos e os exercícios de interação com uso de aparelhos celulares, por exemplo, são realidades de praticidade que professores buscam disseminar conscientemente no ambiente escolar na contramão da ideia de que as tecnologias apenas retiram a concentração dos alunos e comprometem a aprendizagem. Ainda assim, existem dificuldades para a universalização dos métodos derivados das novas tecnologias digitais. Um obstáculo é a dependência que as escolas públicas têm dos investimentos do Estado, sendo que a dinâmica de acesso aos meios nem sempre acompanha o ritmo das inovações. “A internet não tem velocidade adequada, os computadores não são modernos o suficiente. Os nossos, por exemplo, não são trocados desde 2010. Questões como essas interferem na moldagem pedagógica”, relata Patrícia Cardoso, coordenadora pedagógica da Escola Manoel Bonifácio. Patrícia relativiza a ideia de que todos os alunos atualmente possuem facilidades nas plataformas digitais. “O acesso deles é por questão de entretenimento, mais voltado para as redes sociais em geral. Há uma dissociação entre ser nativo digital e ter domínio da tecnologia”, pondera.

Novas tecnologias da informação potencializam as metodologias de ensino e os processos de aprendizagem ao mesmo passo em que criam desafios aos educadores isabela.assoni20@gmail.com feliciarancot@gmail.com

Para pesquisador, streaming cria nova forma de sociabilidade Dados do Comitê Gestor da Internet (CGI.br), órgão do Governo Federal, mostram que, entre 2014 e 2017, o hábito de consumir a tecnologia do streaming (fluxos de dados e de conteúdos multimídia, a exemplo do Youtube) aumentou de 50% para 71% no país. O professor Tiago Ravanello, do curso de Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), destaca que o fato de a tecnologia permitir que cada pessoa construa seu próprio tempo de exibição pode levar a uma nova forma de sociabilidade, impactando também no papel das escolas. Para o pesquisador, ouvir os estudantes nesse contexto se mostra cada vez mais essencial. Ravanello afirma que o modelo de escola vigente tem um método de aprendizado vertical que prepara o aluno para o mercado de trabalho. No entanto, os estudantes não são ouvidos enquanto cidadãos e

se ignora a série de transformações que acontecem em suas vidas. “Seria muito inteligente uma escola ouvir o que eles falam, entender os meios com os quais comunicam, trazer a discussão para esse âmbito”, defende. A utilização das tecnologias digitais como plataforma para a ampliação da discussão teórica trabalhada em sala de aula também tem sido utilizada na universidade. Ciente de como a tecnologia do streaming tem mudado o consumo de mídias na sociedade, o próprio Ravanello criou junto ao Laboratório de Pesquisa em Psicanálise, Epistemologia e Linguagem (LAPPEL) da UFMS o evento Freudflix. A proposta consiste em uma mesa-redonda que debate produções audiovisuais da plataforma de streaming Netflix com base nas teorias do psicanalista Sigmund Freud. O evento é aberto à comunidade e acontece sem periodicidade definida. A divulgação ocorre nas redes sociais do laboratório. Informações: facebook.com/lappelufms e instagram.com/lappel.ufms.


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A metáfora do encontro

Novas tecnologias digitais alteram a cadeia produtiva e o consumo de música, lançando novos desafios para as diferentes gerações de artistas; Streaming já representa 47% de toda a receita mundial do mercado fonográfico Texto: Evaldenir Amaral Foto: Gabriel Garcia

instrumentista Zeca do Trombone, referência da música urbana campograndense desde os anos 1960

M

anhã ensolarada. O primeiro convidado, uma figura altiva que ostenta uma barba grisalha de respeito, aguarda o horário do encontro após uma viagem de ônibus pelas ruas de Campo Grande (MS). Com seu inseparável instrumento a tiracolo, sugere, entre um trago e outro no cigarro, um café enquanto aguarda a outra convidada. Seu nome é José Ramos de Almeida, mas se não o leitor não o conhece, talvez já tenha ouvido falar de sua alcunha, Zeca do Trombone, um sul-mato-grossense típico, nascido em Corumbá em 7 de abril de 1947. Zeca morou e trabalhou em diferentes lugares do Brasil e do mundo, como nas badaladas cidades norte-americanas de San Francisco, na Califórnia, e Austin, no Texas. Por aqui, o artista construiu uma história vasta ligada ao surgimento da identidade da música urbana campo-grandense. Participou dos primeiros festivais de música da cidade ainda no fim dos anos 1960, assinando parcerias com personalidades da cultura regional, como o historiador José Otávio Guizzo. Alguns minutos se passam e surge a segunda convidada. Jovem e despojada, chega ao local guiada por um aplicativo de mobilidade urbana. Diferentemente de Zeca, não traz consigo seu instrumento, tampouco

Streaming e autoria

chega sozinha. Em seus braços está Lua, sua criação mais original, uma criança esperta e curiosa. Aos 26 anos, Marina Peralta é uma das mais promissoras artistas da nova geração de compositoras e cantoras de Mato Grosso do Sul. O motivo do encontro? Uma descontraída conversa sobre música e tecnologia. O assunto não surge por acaso. Dados da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI, sigla em inglês) mostram que em 2018 a tecnologia do streaming (fluxos de dados e de conteúdos multimídia) cresceu pelo quarto ano consecutivo, representando 47% de toda a receita mundial de música gravada. Trata-se de um aumento de 34% em relação ao ano anterior, alcançando a cifra de 8,93 bilhões de dólares, algo em torno de R$ 36,61 bilhões. “A mudança na forma de forma de ouvir música é estratosférica. Por exemplo, na época em que eu era jovem só tinha disco, você tinha que pagar pelo disco que era caro. Disco era para rico, comparado a hoje beirava os R$ 150. Rádio, então, era horrível”, opina Zeca do Trombone do alto de sua experiência de 72 anos. “No meu caso, comecei a usar o Spotify desde o ano passado, um aplicativo que pago pouco, mas escuto de tudo”, complementa Marina Peralta.

Uma das alterações estruturais que as novas tecnologias digitais trazem às gravadoras é o combate à pirataria. Depois de décadas amargando prejuízos que colocaram sua própria continuidade em risco, a indústria fonográfica teve de se adaptar, valendo-se de novos mecanismos para reduzir os danos que aterrorizavam artistas e produtores. Para se ter uma ideia, entre 2015 e 2016 a queda de receita no Brasil relacionada à venda de compact disc, o antigo CD, foi de 43,2% segundo o IFPI. De acordo com um levantamento realizado pela consultoria britânica Muso, empresa especializada em análise de mercado, cujos dados de 2018 foram divulgados por sites da área de tecnologia, os brasileiros são um dos maiores consumidores de pirataria no mundo. A pesquisa mostra que foram identificados no país mais de 300 bilhões de acessos a sites de disseminação de conteúdos piratas, o que representa um aumento de 1,6% em relação ao levantamento de 2016. Conforme o estudo da Muso, que possui entre seus clientes marcas gigantes no mercado de entretenimento, como a Sony, a preferência mundial tem sido de busca por sites que disponibilizam conteúdo pirateado por streaming. Um dado curioso referente ao Brasil diz respeito ao acesso à pirataria de música por smartphones, que representa 87% do total, superando as buscas em computadores e televisores.


Para o músico Gustavo Rodrigues Penha, coordenador do curso de Música da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), as plataformas de distribuição como o Spotify mostram-se uma saída interessante para todos os integrantes da cadeia produtiva. “Do ponto de vista dos direitos autorais, mesmo que seja uma quantia pequena paga por mês, realmente há um retorno para quem fez a música, que seja de dez em dez centavos, mas é diferente daquela pirataria da época do Napster e do Emule”, compara o pesquisador com as antigas plataformas de compartilhamento. “O Spotify, por exemplo, por um valor baixo, possibilita uma boa saída. O artista recebe, o usuário paga pouco e tem acesso a um vasto universo. Assim, ainda que pouco, todo mundo sai ganhando nessa história”, complementa. Por outro lado, conforme apontam os especialistas, se os serviços de streaming facilitam o acesso ao conteúdo musical, eles também trazem a inevitável contrapartida da perda da qualidade do áudio. “Há uma perda grande da qualidade com esses aplicativos, pois o formato MP3 chapa a faixa frequencial das músicas e perde-se muito o harmônico agudo. Os mais puristas, de uma escuta bem aprimorada, aqueles que gostam de caixas de som de alta-performance, não ficam satisfeitos. Mas não adianta lamentar muito, afinal se quer velocidade de transmissão de dados, necessariamente precisa-se dessa diminuição, faz parte do jogo”, explica Penha.

“Sem talento ninguém faz nada, nem tecnologia” diz Zeca do Trombone

Tecnologia x talento

Os novos dilemas trazidos pelas tecnologias digitais ao campo da música não se limitam ao universo da distribuição. Os impactos na produção e no processo criativo também são perceptíveis. “Sem o talento ninguém faz nada, nem tecnologia”, diverte-se Zeca do Trombone. “Acredito que a mediocridade está sendo favorecida pela tecnologia”, continua o experiente instrumentista. A opinião é compartilhada em parte pela inventiva Marina Peralta, quase cinco décadas mais jovem. “Acho que tem muita gente sem talento, mas com acesso à tecnologia e ao dinheiro, que consegue explodir. E tem muita gente com talento que tem me-

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nos acesso, que tem menos grana e que está escondido em vários lugares do país. É uma regra? Não, mas é uma realidade”, pondera. “Se todo mundo que tivesse bastante talento conseguisse ter acesso à tecnologia, acho que estaríamos se dando melhor. Mas tem a chamada indústria cultural, aquilo que vende é o que muitas vezes é mais raso de ideia”, completa a compositora. No entendimento do pesquisador Gustavo Penha, a principal preocupação relacionada ao processo produtivo é a questão do uso dos suportes tecnológicos. “O suporte hoje possibilita que qualquer um possa compor. É a música em programas de ‘quadradinhos’, que funcionam como uma grade”, esclarece o professor em referência a um sistema pré-moldado de escrita musical. “Mas, se você consegue subverter a lógica do ‘quadradinho’, é bacana, é um desafio, como foi por muito tempo sair do mundo das notas que eram escritas no papel na música tradicional”, analisa.

lembra das grandes distâncias que no passado os músicos precisavam percorrer para gravar em estúdios dos grandes centros urbanos. “Para gravar alguma coisa naquela época, você tinha que ir até São Paulo e era custoso, aqui não tinha gravadora”, conta. No processo produtivo das novas gerações, a relação entre tempo e espaço se torna cada vez mais fluída, como menciona Marina Peralta. “Hoje em dia usamos estratégias muito rápidas. Às vezes, por exemplo, as coisas acontecem como em uma parceria que fiz com um amigo de Curitiba. Ele me mandou a música pelo whatsapp e eu desenvolvi a minha parte. Mandei um áudio de volta e, como ficou legal, fui para o estúdio gravar”, conclui a cantora campo-grandense

evaldeniramaral.ufms@gmail.com

Novas possibilidades

Uma das possibilidades que as novas tecnologias digitais permitem está relacionada ao barateamento das produções e à facilidade de registro. Zeca do Trombone, por exemplo, vivenciou na pele as dificuldades para registrar em estúdio suas produções ao longo da carreira – mesmo aquelas que tiveram protagonismo no cenário regional, como a polêmica João Galo, pistoleiro e matador, em parceria com José Otávio Guizzo, destaque do II Festival da Música Popular de Campo Grande, em 1968. “O Guizzo me levou na antiga Rádio Educação Rural e nós gravamos uma fita cassete. Fizemos duas cópias, ele ficou com uma e me deu a outra, mas meu irmão pegou e a cópia sumiu. A fita cassete do Guizzo também sumiu e a música se acabou, só está na minha cabeça. Ainda tenho vontade de gravá-la”, recorda o instrumentista e compositor. Aqui, uma vez mais, a metáfora do encontro ganha sentido. Para a geração de Marina Peralta, décadas mais jovem, a facilidade de registro é maior. “Muito doido isso, porque temos algumas estratégias de uso do e-mail. Vou lá na minha conta e resgato alguma coisa que gravei anteriormente e isso é muito legal”, relata. Zeca do Trombone, por sua vez,

A compositora Marina Peralta, expoente da nova geração de músicos sul-matogrossensses;


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SAÚDE EXTRAMUROS

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A carência de tecnologias nas escolas Texto: Miguel Ângelo Oliveira de Almeida* | Ilustração: Raquel Eschiletti | Rafaella Peres

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avanço das tecnologias é um fato que deve ser considerado ao desenvolvermos metodologias de ensino e devemos nos adaptar de acordo com esse cenário. A ausência dessa evolução no meio escolar, porém, ainda é algo que caminha a passos lentos. Grande parte das escolas brasileiras sofre com a falta de equipamentos tecnológicos e isso gera um problema real para os estudantes, que são diretamente afetados por isso, pois muitos dependem desses instrumentos para conseguir avançar em seus estudos. A falta de sintonia do ensino à época na qual vivemos é um dos problemas que a educação enfrenta, muitas vezes por conta da ignorância de políticos ou até mesmo por falta de vontade de mudar e de se adaptar ao novo período. Segundo dados divulgados pela revista Veja, a ausência de preparo para o uso das novas tecnologias é um fato presente na formação de professores. Contudo, nem sempre a falta de equipamentos tecnológicos representa o principal problema das escolas públicas. Em muitos casos, observamos mesmo a falta de recursos básicos, como água adequada, energia e ventilação. Muitas escolas atualmente oferecem cursos de capacitação a seus alunos e é exatamente aí onde os problemas se tornam mais visíveis, ou seja, algumas instituições não são totalmente capazes de oferecer os materiais adequados aos estudantes. Dessa forma, não há como fornecer um conteúdo teórico sem realizar as devidas etapas práticas em áreas em que se exige não somente a teoria, mas também o contato direto com a realidade. Muitos profissionais, então, são formados sem a devida capacidade para exercer suas funções práticas por conta da falta de materiais que deveriam ser disponibilizados no ambiente de ensino no qual frequentam. Alunos de cursos técnicos entrevistados afirmam que a falta de equipamentos é um problema que afeta o entendimento dos conteúdos fornecidos.

Devemos sempre levar em consideração, porém, o período em que vivemos. Dependemos hoje mais de tecnologias do que há 10 anos e, de certa forma, as escolas têm tentado acompanhar esse progresso tecnológico.

Pode-se comprovar isso a partir de dados do Censo realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) em 2017 e 2018. Houve um crescimento de cerca de 16% nas salas de tecnologia no período. Além disso, de acordo com o portal G1, cerca de 52% das escolas utilizam o celular em atividades didáticas. Trata-se de números muito bons, mas que ainda podem ser melhorados. Os métodos de ensino devem acompanhar de perto os avanços de sua época. Atualmente, somos muito ligados às tecnologias e poucos jovens desta nova geração não têm contato com elas. Livros recebem bem menos atenção do que antigamente e isso deve ser levado em conta quando o governo adquire recursos para as escolas. A compra de livros pedagógicos geralmente custa tanto quanto a manutenção de equipamentos tecnológicos por conta da fabricação e da terceirização da produção do papel, sem contar os danos feitos à natureza. Muitas vezes ainda ocorre o desperdício desses produtos de papel pelo fato de os alunos preferirem – em razão da praticidade e da rapidez para encontrar o que querem – o material digital. Um contato maior com a tecnologia durante os períodos de aula, portanto, melhora o desempenho escolar. Entretanto, não depende somente do governo para que essa defasagem seja resolvida. As escolas devem ter certeza de que esses equipamentos são utilizados com eficácia e que a manutenção em dia seja devidamente realizada para que os recursos não sejam desperdiçados. * Miguel Ângelo Oliveira de Almeida, 16 anos, estudante de ensino médio da Escola Estadual Manoel Bonifácio Nunes da Cunha, Campo Grande (MS), e participante das oficinas de extensão universitária oferecidas pelos acadêmicos de Jornalismo e de Artes Visuais da UFMS ao longo do primeiro semestre de 2019. A Escola Estadual também serviu de laboratório para o levantamento dos temas da Edição 92 do jornal Projétil.

miguelangelo22x@gmail.com


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