Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS - Edição 91

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JORNAL LABORATÓRIO | JORNALISMO | UFMS

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#ano 24 2018.2

TOLERÂNCIA respeito às diferenças

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA


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editorial

PROJÉTIL | #91

Não se pode escrever nada com indiferença Texto: Equipe projetil Edição 91 | Foto: Mylena Fraiha

É

com gratificação e comprometimento que o jornal laboratório Projétil, um dos mais tradicionais veículos de comunicação de Mato Grosso do Sul, chega no segundo semestre letivo de 2018 à sua Edição 91. Comemora-se, assim, quase três décadas ininterruptas de circulação, sempre promovendo seu papel social com responsabilidade e senso crítico na abordagem de temáticas latentes e importantes ao debate público. O tema desta edição - Respeito às Diferenças - faz um convite aos leitores para que possam romper o medo de conhecer o outro. Ancora-se, para tanto, na certeza de que uma sociedade plural e tolerante apenas se consolida quando existe a compreensão da complexidade do diferente. Esperamos que o jornal seja lido e aproveitado como forma direta de conhecimento para discussões e reflexões. É de nossa responsabilidade, como cidadãos, relembrar o Artigo 5º da Constituição Federal, que assegura a todos, perante a lei, sem a distinção de qualquer natureza, o direito à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança. Mostra-se também nossa obrigação seguir às linhas do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, que em seu Artigo 6º enfatiza que é dever dos profissionais da informação opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão e defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como combater a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, econômicos, políticos, religiosos, de gênero, raciais, de orientação sexual, condição física ou mental, ou de qualquer outra natureza. A primeira etapa de realização deste jornal foi uma experiência de imersão na Escola Estadual Amélio Carvalho Bais,

em Campo Grande (MS). Na ocasião, a equipe do Projétil se reuniu com os alunos e professores da instituição para conversar, discutir e - principalmente compreender os sentimentos que mantêm em meio às diferenças que os permeiam. Foi um dos processos cruciais para o amadurecimento dos temas e para construção da linguagem da edição, um verdadeiro laboratório. Não é por acaso que a equipe da Escola Estadual assina coletivamente o texto da seção Extramuros, que fecha o jornal. Será também nas salas de aula da instituição que será feita o lançamento da edição com a distribuição dos primeiros exemplares, uma simbologia, uma vez que deseja-se que o Projétil seja cada vez mais lido pelos estudantes de ensino médio sul-mato-grossenses. Do ponto de vista gráfico, manteve-se o redesenho da edição passada, estabelecendo, assim, uma identidade. Algumas modificações foram feitas a partir de análises críticas, para promover uma leitura que valorize os espaços em branco, a hierarquia das informações, colocando em pé de igualdade as imagens e os textos. Não se pode escrever nada com indiferença. A frase que serve de título para este editorial foi levada a sério pelos acadêmicos do quarto semestre de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). A autoria não é anônima. Trata-se de uma reflexão da escritora, ativista política, filósofa e feminista francesa Simone de Beauvoir, que debateu em seus livros os processos de formação social entre homens e mulheres e as desigualdades decorrentes disso. Que a Edição 91 do Projétil sirva de inspiração para que tantos e tantas jovens possam desenvolver seus pensamentos e ideias como as Simones de Beauvoir do futuro. Boa leitura!

Turma de Jornalismo 2020, responsável pela edição

EXPEDIENTE Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - 2018.2. Produzido por acadêmicas e acadêmicos sob orientação dos professores Marcos Paulo da Silva (Jornal Laboratório I) e Rafaella Lopes Pereira Peres (Planejamento Visual e Produção Gráfica). Editoria Executiva: Alex Nantes, Camila Andrade, Izabela Piazza, Marcos Saucedo e Stefanny Azevedo. Editoria de Arte: Evelyn Mendonça, Fábio Faria, Gabriela Dalago, Guilherme Correia e José Câmara. Editoria de Imagem: Guilherme Carrara, Mariana Moreira e Victória Lacerda. Editoria de Opinião: Evaldenir Amaral, Gabrielle Tavares, Giovanni Dorival, Isabela Assoni, Jéssica Lima e Reinaldo Lopes. Ilustração: Accacio Mota, Jodri Aquino (capa), Maria, Natalia Hirata e Oliver Mott, sob orientação da Professora Constança Lucas (Artes Visuais). Monitoria: Monique Faria e Thalya Godoy. Reportagem: Alison Silva, Amanda Raíssa, Camila Silveira, Felipe Dias, Gabriel Garcia, Gabriel Sato, Gerson Wassouf, Giovana Martini, Giovanna Pércio, Henrry Oden, Jenifer Souza, João Victor Marques, Jonatan Cavalcanti, Letícia Schiavon, Raíssa Quinhonez, Rafael Navarro, Rafaela Moreira, Raquel Eschiletti, Rúbia Pedra, Samuel Lima e Wesley Wallace. Correspondência - Jornal Laboratório Projétil - Curso de Jornalismo - Faculdade de Artes, Letras e Comunicação (FAALC) - Cidade Universitária, s/n, CEP 79.070-900 - Campo Grande, MS. Fone: (67) 3345.7607 - e-mail: jorn.faalc@ufms.edu.br (Jornalismo UFMS). As matérias veiculadas não representam, necessariamente, a opinião da UFMS ou de seus dirigentes, nem da totalidade da turma.


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crÔnica

Lei da Selva Texto: Isabela Assoni | Ilustração: Natalia Hirata e Oliver Mott

S

ubiu no rochedo, ajustou a gravata, coçou a garganta e soltou um forte rugido. Houve uma excitação por parte do reino animal ao ver aquela figura simbólica no centro do controle. Recebeu uma aceitação calorosa daqueles que entendiam o que o som significava. Emergiram do público outros rugidos entre barulhentas batidas de cascos. Ouvia-se também sons diversificados, um pouco mais abafados, mas muito numerosos. Esses eram em protesto. Sabiam o que o leão no topo significava: a volta hierárquica da cadeia alimentar, a lei da selva. Eram capazes de ver em sua figura o paternalismo e uma ordem tradicional na qual nem todos se encaixavam. É verdade que a floresta tinha passado por mudanças nos últimos anos e enfrentava um período difícil. As cheias dos rios não eram mais frequentes, as árvores não se enchiam de frutos como antes, a população aumentava e exigia-se mais espaço. O leão postado imponente no topo da pedra era Augustus. Não se destacava pela inteligência, como nenhum outro de sua espécie, mas pela força intimidadora. Era um oportunista. Sabia que não voltaria ao topo se o momento não fosse o de descrença com a ordem vigente. Ao terminar, se retirou, deixando todos inquietos. Alguns animais eram adeptos da lei da selva, em geral os mais velhos, que se lembravam de um período de abundância. Já os defensores mais jovens escutavam histórias de um passado que não viveram, mas almejavam. No entanto, se analisada de perto, a lei da selva quase nada tinha de lei: favorecia poucos. Se deixassem que assim vigorasse, animais que não se destacassem pelo tamanho ou pela força bruta sairiam prejudicados. No meio da multidão, surgiu o Major, um jabuti de 150 anos, representante da Organização das Florestas Unidas (OFU). Apresentou-se com o propósito de

mediar um acordo de paz entre os animais. Era respeitado, já havia vivido muito e visto muita coisa. Com dificuldade, chegou a uma altura na qual todos pudessem vê-lo e ouvi-lo. “Acalmem-se, camaradas. Discutir com os nervos à flor da pele não leva a lugar algum. Amanhã, ao pôr do sol, estejam pontualmente em volta do rochedo aqueles preocupados com o interesse público”, discursou. Na tarde seguinte, uma multidão estava no lugar marcado. Uma figura surpreendeu a todos. Seu nome era Celeste, uma hiena que andava à espreita de outros animais. Acomodou-se em um lugar mais afastado e ali ficou. O tempo passava e a agitação aumentava com a ausência de Major e Augustus. Após alguns minutos, os presentes começaram a se agitar, clamando por um debate. Vendo-os indecisos, Celeste tomou à frente: “O Leão sempre foi o rei!”, bradou. Outra onda calorosa emergiu daqueles que concordavam. O que quase ninguém percebera é que nenhuma hiena, a começar por Celeste, participava ativamente de questões políticas no reino animal. Apenas a Girafa questionou o fato. Sua memória era muito boa e, por sua altura, enxergava coisas que não estavam no campo de visão dos outros bichos. Na época em que o leão reinava, cansou de ver hienas sorrateiramente se aproveitando dos restos deixados por animais de linhagem parecida. Nunca se esforçavam! Viviam em fartura e eram incapazes de ver a injustiça que acontecia à volta em nome dos privilégios. As palavras de Celeste excitaram a muitos, principalmente um jovem leopardo chamado Átila, grande fã de Augustus. Sentiu tamanha emoção que avançou sem pensar sobre um grupo de macacos que protestava. Em um violento golpe, abocanhou o mais indefeso deles. Quando soltou, o pobre primata não mais reagia. A atitude de Átila deixou todos imóveis, o medo se tornou unívoco. Até mesmo os que inicialmente defendiam a volta do leão ficaram assustados. Silen-

ciosamente, então, chegou à cena o Major. Diante da situação, nem mesmo o sábio jabuti sabia o que fazer. Trazia consigo a constituição da selva, documento escrito com o apoio de tantas patas e cascos que registrava as leis que protegiam todos os animais. Ficou tão atônito com a cena e derrubou o documento. De que serviria a carta magna se no momento da discórdia sequer lembravam o valor daquelas palavras? Não seriam capazes de enxergar que o respeito às diferenças era o que dava sentido e harmonia à floresta? – pensou. Um vento soprou sobre o reino. As folhas amareladas da constituição voaram para longe. Ninguém se moveu. Aquele crepúsculo duraria para sempre.

isabela.assoni20@gmail.com


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Esta língua não é minha

Texto: Amanda Raíssa, Henrry Oden e Rafaela Moreira Fotos: Mariana Moreira

Campo Grande abriga mais de 900 haitianos que imigraram para o Brasil em busca de condições dignas de vida; enfrentamento do preconceito e da xenofobia são desafios do poder público e de associações voluntárias para garantir a integração

U

m carro passa pela rua de terra e estaciona em frente à Igreja Comunidade Divino Espírito Santo, no Bairro Rita Vieira, em Campo Grande (MS). Deixa quatro pessoas e parte em seguida. Minutos depois, volta e desembarca outras quatro. Embora aparente uma carona convencional, trata-se uma ocasião especial. O motorista é o médico Jean-Daniel Zephy, haitiano que chegou ao Brasil em 1991 e formou-se pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Naquela tarde, o voluntário se prontifica a trazer os imigrantes de diferentes bairros da cidade para participarem da reunião da Associação Haitiano-Brasileira (ASHABRA) que ocorre

no galpão anexo à capela. O local é amplo e arejado, com várias janelas e chão cimentado. Cadeiras de metal ficam enfileiradas no centro e há bancos de madeira nas laterais. À frente, um quadro com uma pomba branca transmite a ideia de paz. É para lá que as atenções de cerca de 60 pessoas estão voltadas. Em busca de condições mais dignas de vida, milhares de haitianos têm imigrado para o Brasil nos últimos anos. A ligação entre Brasil e Haiti se fortaleceu muito a partir de 2004, com o envio de tropas das forças armadas brasileiras para uma missão de paz no país da América Central (ver box). Em 2016, os haitianos representaram 34,3% das entradas de estran-


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geiros no Brasil e, de acordo com relatório da Organização Nações Unidas, entre 2010 e o mesmo ano, houve mais de 67 mil autorizações de residências. Em Mato Grosso do Sul habitam mais de 900 haitianos e a maior parte reside na capital. A fronteira com a Bolívia, em Corumbá, porém, serve de entrada para um fluxo muito maior de imigrantes que passam pelo Estado com objetivo de chegar a outras partes do país - na maioria das vezes a São Paulo, Santa Catarina ou Paraná. A ASHABRA auxilia no direcionamento desse fluxo e atua como forma de amparo aos haitianos, além de ser, para os que ficam, uma ponte para o mercado de trabalho e para outras instituições assistenciais.

Acolhimento

Jean-Daniel e Marisa Zemphy, sua esposa, são conselheiros da ASHABRA. Depois de hegar ao Brasil no início dos anos 1990, Jean retornou para a terra natal, onde trabalhou até o terremoto de 2010. “Quando voltei, comecei a oferecer consultas gratuitas a imigrantes africanos. Um dia, uma dessas pacientes me questionou se eu sabia que havia haitianos aqui. Não, eu não sabia”, recorda. Assim, deu-se início à Associação, que ao lado da Pastoral dos Migrantes, realiza as reuniões em Campo Grande. A irmã Rosane Costa Rosa, coordenadora da Pastoral, caracteriza a imigração como um processo instável, de altos e baixos. Os haitianos detêm a maior demanda do Estado. Nos últimos meses, enfatiza a voluntária, a Associação tem passado por mudanças desafiadoras: enquanto antes chegavam de 100 a 200 haitianos pela fronteira de uma só vez, desde julho de 2018 a chegada passou a ser em pequenos grupos, de 10 a 20 pessoas. A voluntária explica que nem sempre a Pastoral e a Associação estão prepa-

radas para receber os imigrantes nessa forma de fluxo – principalmente porque um novo grupo pode chegar a qualquer momento, mesmo nos finais de semana, feriados, inclusive no período noturno. Nessas horas, a equipe busca colchões e, de improviso, move-se para prestar a assistência necessária para acomodar os recém-chegados. Roseane conta que já abrigaram no espaço da igreja 17 haitianos em uma só noite. Destes, muitos seguiram viagem e apenas quatro permaneceram. Mas o ritmo não para: três dias depois do ocorrido, chegaram outros 10 imigrantes. Quando se trata de números expressivos, como 200 ou 300 haitianos, a irmã explica que são feitas campanhas com pedidos de doações e há um preparo para a recepção - o que fica inviabilizado quando os grupos são menores. A voluntária também explica que há uma rede de parceria dentro do Estado. Embora o trabalho maior aconteça na capital, a Associação presta assistência em outros municípios, como Dourados, Naviraí, Três Lagoas e Corumbá. Considerando os mais de 900 haitianos espalhados por 18 bairros em Campo Grande, Rosane revela a intenção de criar núcleos menores, constituídos em diferentes áreas da cidade, o que pode fortalecer a visibilidade da causa e melhor atender a todos os imigrantes. Outro ponto destacado pela voluntária é a união dos haitianos. “A sensação de estar em um país diferente e encontrar alguém de mesma origem, que fala a sua língua e que, muitas vezes, está passando pelas mesmas coisas, os une muito. Em uma casa onde vivem oito, sempre há espaço para mais dois que não têm onde morar”, conta.

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Desafios

Os maiores obstáculos dos imigrantes, todos de caráter urgente, são o idioma e a consequente dificuldade para se comunicar, além da busca por moradia e a integração - por exemplo, associar-se a uma comunidade. Para a antropóloga Flávia Cruz, que desenvolveu pesquisa de doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) sobre família e mobilidade no Haiti, o processo de adaptação no Brasil apresenta grande complexidade. “A questão do visto é muito burocrática, a maioria dos imigrantes vem por uma rota do Equador e entram no país pelo Acre. Ao chegarem, recebem um visto provisório da Polícia Federal e também em CPF, mas isso é pouco dentro de todo o processo de inserção de um estrangeiro em um novo país. A carteira de trabalho, por exemplo, é um documento importantíssimo”, explica. Flávia passou cinco anos entre idas e vindas do Haiti, onde criou laços e pôde aprofundar sua vivência e o contato com elementos culturais. A antropóloga diz que a época deixou saudades. “A experiência que tive lá mudou minha vida”, ressalta. O caso de Bernard Denord, 29 anos, ilustra o grande número de etapas envolvidas no processo imigratório. Nascido em Marchand Dessalines, no Haiti, vive há seis anos no Brasil. Antes de chegar a Campo Grande, fez um longo percurso. Vindo pela República Dominicana, país vizinho ao Haiti, passou pelo Equador, chegou ao Acre e depois à capital sul-mato-grossense, totalizando 16 dias de viagem até seu destino final. Um primo de Bernard já morava na cidade, o que facilitou a sua chegada: o rapaz tinha onde dormir e alguma assistência. Atualmente, trabalha como conferente em uma distribuidora e estuda, com planos de concluir seu ensino médio e realizar a prova do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Quando Bernard veio para o Brasil, ainda não existia a Associação. O imigrante relata ter sido o primeiro haitiano a chegar na comunidade. “Cheguei aqui em 2012 por vários motivos, o primeiro é que estudava e via que o território brasileiro dava oportunidades para os imigrantes, então decidi que viria porque seria o melhor pra minha família. Quando cheguei, gostei e fiquei”, relata. Mesmo assim, o rapaz conta que o choque entre expectativa e

realidade foi um desafio. “Quando você chega a um país que não sabe falar a língua e se adaptar sem a família, é muito complicado. Eu não conhecia nenhum haitiano, só meu primo, que havia chegado há mais ou menos dois meses, não podia me ajudar com o português e outras coisas”, lamenta. Apesar dos problemas, um sentimento parece ser unânime: a paixão pelo futebol. A cultura é tão forte nesse sentido que a seleção brasileira, em 2004, chegou a fazer um amistoso pela paz no país e consolidou ainda mais a admiração dos haitianos pelos jogadores.

“Via que o território brasileiro dava oportunidades para os imigrantes; Quando cheguei, gostei e fiquei” diz Bernard Denord

Auxílio

Com o objetivo de melhorar a estrutura do Estado para receber os imigrantes, a Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Mato Grosso do Sul (OAB/MS), reuniu em outubro de 2018

as comissões de Segurança Pública e de Apoio aos Refugiados Haitianos e membros de entidades da sociedade civil para discutir o aumento do fluxo da chegada dos grupos, a recepção e o atendimento. Foram debatidos o papel e os recursos estaduais na tentativa de verificar e remediar a ampliação no número de imigrantes, não somente do Haiti, mas também de venezuelanos, cenário que inspira a prevenção com medidas de acolhimento legal e de controle das fronteiras. Também entrou em pauta a falta de conhecimento da população sul-mato-grossense sobre a dimensão do número de haitianos no Estado. Segundo a secretária de Direitos Humanos, Assistência Social e Trabalho (Sedhast), Elisa Cleia Nobre, a reunião foi mais uma forma de ajudar os refugiados e de fazer cobranças a outras instituições. “Nós precisamos dar uma atenção especial para o acolhimento dessas pessoas que chegam aqui em uma situação muitas vezes de vulnerabilidade para que sejam realmente atendidas”, argumenta. Outros sérios problemas são a xenofobia e a intolerância por parte da população local, que teme a ocupação alheia, principalmente nas vagas do mercado de trabalho. No entanto, o envolvimento e inserção dos haitianos ajuda

“A sensação de estar em um país diferente e encontrar alguém de mesma origem, os une muito”, afirma Rosane Costa Rosa


a fomentar a economia do Estado e pode gerar um ganho positivo tanto para os imigrantes quanto para a comunidade. “Muitas vezes as pessoas veem os imigrantes como um empecilho, mas eles ajudam a fomentar a economia do país”, diz a voluntária Marisa Zemphy. Wadner Abfalon, presidente da ASHABRA, é professor de português e foi quem ajudou a maioria dos haitianos da Associação que já estão familiariza-

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dos com o idioma a aprender a língua. Como a maioria é recém-chegada, as reuniões da Associação são feitas praticamente inteiras em créole, língua falada no Haiti, cujo vocabulário é 90% derivado do francês. Além de movimentar a economia local, outro ganho é o enriquecimento sociocultural com a música, a culinária e o jeito contagiante dos haitianos. Mesmo quando a reunião se encerra

Laços entre Haiti e Brasil se estreitam a partir de missão e paz Em 2004, ocorreu a queda do então presidente Jean Bertrand Aristides e houve um princípio de guerra civil no Haiti, o que levou o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), em setembro daquele ano, a criar a Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (Minustah) a fim de restaurar a ordem e a normalidade institucional do país. O Brasil comandou a operação e suas tropas obtiveram destaque. Além das patrulhas, as tropas brasileiras contribuíram com atendimento médico, odontológico, distribuição de alimentos e roupas e a manutenção de escolas.

na Associação, ainda não é hora de ir embora. Começa o momento de descontração, tão importante quanto a reunião em si. Músicas típicas são colocadas e todos se animam, dançam e conversam. “Os haitianos são pessoas incríveis, calorosas e que amam o Brasil”, conclui a antropóloga Flávia Cruz.

Anos depois, em 2010, o Haiti sofreu um abalo sísmico de grandes proporções próximo à capital, Porto Príncipe, o que trouxe consequências catastróficas para a população do país e deixou milhares de pessoas desabrigadas, vulneráveis e sem condições básicas de sobrevivência. Segundo dados da organização humanitária Cruz Vermelha, cerca de 3 milhões de pessoas foram afetadas pelo terremoto, dentre as quais uma estimativa indica que 316 mil foram mortas. Desde então, o Brasil recebe haitianos diariamente. Dados do Sistema de Tráfego Internacional (STI) da Polícia Federal mostram que mais de 72 mil imigrantes entraram pelas fronteiras brasileiras entre 2010 e 2015, dos quais mais de 12 mil saíram no mesmo período, gerando um saldo de aproximadamente 59 mil pessoas. Além disso, segundo o Alto Comissariado das Nações

Em busca de condições mais dignas de vida, milhares de haitianos têm imigrado para o Brasil nos últimos anos.

amandaraissa26@gmail.com henrryoden21@gmail.com rafamoreeira5@gmail.com

Unidas para os Refugiados (ACNUR), o número de haitianos que entraram no país sob condição de refúgio ou similar saiu de apenas sete em 2009 para 595 em 2010, chegando, em 2014, a mais de 29 mil. Apesar disso, o Ministério da Justiça brasileiro decretou que os haitianos não são assim. De acordo com a Convenção de 1951 do Estatuto dos Refugiados, são considerados refugiados apenas os que deixam a pátria de origem sem intenção de regressar por motivos de perseguição racial, religiosa, relacionada à nacionalidade, opinião política ou participação em grupos sociais, conflitos armados, violência generalizada e violação massiva dos direitos humanos. O Haiti é um dos países mais pobres do mundo e o mais pobre das Américas. Detém um baixo patamar de desenvolvimento humano, o que leva muitos nativos a saírem em busca de melhores condições de vida.


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Diário de um refugiado Texto: Jéssica Lima | Ilustração: Accacio Mota

em rodeios, posso dizer: sou um refugiado. Junto com esse nome, que hoje já posso sentir estampado em minha testa com letras garrafais – “RE-FU-GI-A-DO” –, carrego uma série de adjetivos que parecem definir o lugar que ocupo neste mundo. Sou filho da diáspora, cidadão de um país qualquer, pouco importa no final. Sinto-me como um número, mais um entre os 69 milhões de transeuntes de todo o planeta que no último ano precisaram se deslocar de sua terra natal em busca de algum lugar distante; ou, mais precisamente, um entre os 150 mil cidadãos do mundo que bateram à porta do Brasil apenas em 2017. Consigo reviver em detalhes o dia em que cheguei por aqui. Passos apressados, mãos trêmulas, mas tomado por uma esperança tão grande que me segurava em pé em meio àquelas longas filas. Linhas humanas que servem de fronteira entre um passado que todos querem esquecer e um futuro que, com sorte, pode ser melhor. Filas do meu povo que hoje, estranhamente, só consigo chamar de irmãos. Quando se vive o caos, à beira da destruição, acaba-se por criar um laço com quem compartilha as mesmas dores e traumas. Ali estavam eles, mulheres, homens, mães e pais, crianças e todo tipo de gente, da minha gente e de tantas outras gentes. Todos em busca de uma centelha de luz, uma esperança no nosso imaginário em meio ao desastroso cenário que a

terra natal acabara de configurar em nossa vida de todo dia. Minha antiga realidade – dias dignos de labuta entre prédios e plantas, o pãozinho quente no fim de tarde – agora parece um traço utópico de um mundo distante. Na aridez do hoje ecoam as palavras do ontem, onde minha avó, do alto de seu otimismo, costuma repetir: “Estude, meu filho, pois nesta vida só o que não podem tirar da gente é o que se sabe, o que se aprende”. Pergunto-me se minha sábia avozinha imaginara que, depois dos estragos feitos por homens que parecem acreditar que tudo sabem e que com suas velhas e arrogantes táticas pelo poder nos empurram goela abaixo suas “verdades”, pouco importaria, ao fim, o que de fato se aprende. Aos 18 anos, comecei a faculdade de engenharia, um sonho que no auge da juventude parecia ser enfim o início de minha jornada pelo conhecimento. Décadas depois, posso dizer que meu sonho é ter comida na mesa, um instante de completa paz com minhas filhas em um lugar para novamente chamar de lar. Busco na memória... é triste quando a farmácia que um dia vendera uma lata de leite em pó para a sua criança recém-nascida passa a ecoar o desespero do anúncio do fim da última remessa de medicamentos. A dor na cabeça aumenta e torna-se mais latente com o passar dos acontecimentos. Pudera! Um dia, então, você ouve dizer que há uma saída, um país vizinho que é conhecido pela amabilidade e “boas vindas”. Além de tudo, escuta a história de um lugar com comida, água e saúde de graça. Não há como não pensar: “duvido que o povo desse país possa reclamar, o que pensam quando escutam que

minhas crianças nem leite tem mais pra tomar?”. Decido que é para lá que eu vou e parto rumo a essa nova terra. Passo dias compridos e arrastados no meio de tanta gente que compartilha do mesmo sonho na hora de dormir. Desejo em pensamento que toda essa gente tenha novos dias de paz. Sem perceber, sonho com a alegria de pegar no sono com a certeza de que tudo estará em pé na manhã seguinte. Os dias passam e, ainda que tenha encontrado em algumas pessoas calorosas doses de solidariedade, percebo que o olhar nas ruas faz com que nos sintamos intrusos, como se tivéssemos roubado a fatia de algo. Dá-me a cega vontade de expressar: – Sabe, amigo verde e amarelo, não quero nada seu, só quero um emprego em um país que tem a fama de ser acolhedor. Mas não o faço. Todos os dias, esforço-me para aprender algumas palavras no novo idioma. Sinto, porém, que não importa aonde eu vá, sempre carregarei o mesmo estereótipo: “RE-FU-GI-A-DO”. No final, percebo que estou atrás de algo simples: um refúgio, uma casa ou abrigo. Enquanto não trago minha família para perto, espero que o povo de cá note que a mensagem de “bem-vindos” não anda muito convincente. Volto a sonhar... E então, quando estivermos todos juntos, buscaremos nada mais do que novas memórias, sem medo. jessicapaulaslima@gmail.com


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ímpar

Sou porque nós somos Fundador de uma das principais entidades humanitárias do país, a ONG Fraternidade Sem Fronteiras, Wagner Moura inspira multidões com projetos que amenizam o flagelo de crianças na África e no Brasil; pacifistas, como Luther King, Gandhi, Teresa de Calcutá e Chico Xaxier inspiram o voluntário

Texto: Camila Silveira | Giovanna Percio | Rafael Navarro Fotos: Giovanna Percio | Ilustrções: Fábio Faria


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frica Subsaariana, região do continente africomo lema de vida. Wagner relembra seu primeiro “chacano composta por 47 países e localizada gemado”, como ele mesmo denomina. Aos doze anos, caograficamente abaixo do deserto do Saara. minhava pelas ruas do bairro no qual cresceu em Campo Berço da humanidade que, paradoxalmente, Grande e chorava pelo recente divórcio dos pais. Sentiu assiste a uma parcela significativa de sua população então o que mais tarde se tornaria o forte ideal Ubuntu padecer pela falta de humanização. Em Moçambique, que inspira a ONG que preside: “Por que você lamenta país lusófono que como o Brasil também tem na Línpela separação de seus pais se existem no mundo, progua Portuguesa o idioma oficial, 55% da população blemas tão maiores? Se tiver que chorar, que chore pelas vive abaixo da linha de extrema pobreza. São estimaguerras, por todas as crianças passando fome na África”, dos 1,8 milhão de crianças órfãs, das quais quase um recorda. Ali parou, enxugou o rosto e guardou na mente quarto é consequência de uma das maiores calamidao momento que guiaria seu propósito como marco inides da saúde pública mundial, em especial nessa parcial para a iniciativa da FSF. te do planeta: a síndrome da imunodeficiência Ubuntu, sem tradução direta para adquirida, popularmente conhecida pela sigla o português, é uma noção presente AIDS. Apesar dos esforços do Ministério da Martin Luther King: Ativista em idiomas da África Subsaariana norte-americano, lutou Saúde moçambicano, a situação da que remete à ideia de humanidade. contra a discriminação doença no país é extremamente “É um ideal africano, um estilo de racial e tornou-se séria. Cerca de 20% da popuvida, existente em várias regiões e um dos mais lação é portadora do vírus. aldeias do continente que signifiimportantes líderes ca ‘eu sou porque nós somos’, ou Movido pela indignação dos movimentos frente às diferenças, Wagner seja, não existe eu sem nós, se meu pelos direitos civis irmão estiver em necessidade eu Moura Gomes costumava se dos negros nos questionar sobre formas de também estarei até que ele se reerEstados Unidos mudar números como esses. A ga.”, explicita Wagner. inquietude do então jovem sonhaSem estrutura para atravessar dor em relação aos próprios conflitos o tornou o fundao oceano imediatamente, embora fosse essa sua vontade dor e presidente de uma das principais organizações nãona época, Wagner iniciou o contato com outros proje-governamentais brasileiras com projetos humanitários: a tos sociais na capital sul-mato-grossense, onde reside até Fraternidade Sem Fronteiras (FSF), entidade sediada em hoje com a esposa e dois filhos. Passou a voluntariar, Campo Grande (MS) e responsável atualmente por mais desde 1996, por intermédio do centro espírita de seu de 15 mil acolhimentos na África e no Brasil. Por acolhibairro. Aos dezessete anos já organizava ações semanais. mento, a ONG compreende uma espécie de adoção, com Nas poucas vezes que fala sobre si próprio, Wagner um aporte financeiro mensal, de crianças em situação de ressalta que a espiritualidade, que sempre o conduziu, vulnerabilidade social. A FSF proporciona condições bápassou a se manifestar fisicamente com dores, o que se sicas de alimentação, higiene, educação e acesso à cultura, intensificava a cada projeto finalizado. “Na adolescênalém de promover construções de centros de recreação, cia, sentava no meio-fio, caminhando sozinho e olhanescolas e postos de saúde de uso comunitário. do aquele vazio imenso, chorava e a África vinha em minha cabeça, mas ainda não havia um significado. Por que a África, tão longe? Ainda não entendia”, relembra, com um leve sorriso, como quem se orgulha em Ubuntu De semblante extremamente calmo e riso fácil, Wagner silêncio de ter encontrado sua missão. mantém a ideia de coletividade no discurso até quando fala O tempo passava, porém, e a dor não o abandonava. sobre si próprio. Quase nunca utiliza o pronome “eu”, no “No final, antes de decidir realmente fazer alguma coisa, singular, prefere o “nós”. As palavras saem sem pressa e o costumava acordar às cinco horas da manhã com minha tom baixo da voz dão ênfase à tranquilidade. A sabedoria e esposa ao lado e chorar por uma hora… vinha tanta coia experiência acumuladas não condizem com a idade. Ainsa na cabeça, a África de novo”, conta. O caminho era da jovem, na faixa dos 40 anos, tem em sua trajetória de irreversível, a missão estava dada. vida muitos feitos. E não pretende desacelerar. O vocativo pela primeira pessoa do plural, “nós”, não O Início é casual. O termo brota em suas frases como quem quer Enquanto empregado de alguma empresa, devido à dizer, sem querer, que sozinho não conseguiria ser ou fazer falta de recursos financeiros, Wagner não conseguiria nada – o que naturaliza o próprio conceito de fraternidade encontrar uma possibilidade de realizar seu sonho. A

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primeira oportunidade veio quando, após um convite decisivo de seu irmão, movido pelo sentimento e intuição de infância, conseguiu investir na abertura de uma loja de materiais de construção. “Enxerguei nesse convite uma passagem para a África”, revela. A abnegação falou mais alto que os lucros e a acumulação pessoal. Após três anos alimentando a expectativa e seus ideais, obteve, em 2009, o volume de recursos necessário para fazer sua viagem à África, sozinho, ainda em fase exploratória. Os primeiros dias foram tensos. “Conversava com alguns brasileiros que moravam em Moçambique, na capital, e fui com a esperança de que me guiassem. Acontece, porém, que todos têm compromissos e passei dois dias de mãos atadas, sem ninguém, tentando entender o meu propósito”, lembra. Wagner sabia que a capital Maputo não era onde deveria estar. A pobreza, a real necessidade, estava nas aldeias, quilômetros dali, e tão distante que nem a própria população se disponibilizava a visitar. Sentado na cabeceira de sua cama no quarto do hotel, já na terceira noite, frustrado pela tentativa falha de imersão, Wagner passou por uma intensa crise de identidade. “Perguntava-me se não passava de vaidade o fato de eu estar ali. Minha família precisava de mim, meu filho tinha um ano. Eu escutava uma voz me dizendo para voltar para casa”, relata. Reconfortou-se, porém, com um sentimento de paz e conseguiu se desligar do que tanto lhe afligia. Era mais uma tentativa. Na manhã seguinte, levantou motivado e sentia que algo daria certo. Desistir não era mais uma opção. Enquanto tomava seu café da manhã no salão principal do hotel, sua atenção se voltou a um garçom específico, simpático e solícito. Passaram a conversar. Após alguns minutos e com o relato de Wagner sobre o principal motivo de sua estadia, o garçom se dispôs em levá-lo até as aldeias. “Se você veio para ajudar o meu povo, serei seu voluntário”, foi o retorno que recebeu do novo parceiro. Wagner se orgulha ao dizer que o mesmo garçom que naquele dia o guiou, Armanda Banzi, hoje é coordenador-chefe das ações da ONG em Moçambique. Madre Teresa de Calcutá: Missionária católica, conhecida por seu trabalho de ajuda às populações carentes dos países subdesenvolvidos


A realidade ardeu em sua frente e era pior do que conseguia imaginar. A necessidade urgente de intervenção, qualquer que fosse, era clara. Um choque. Notou que dali havia sido roubado o princípio básico da existência humana: o direito de sonhar. “Uma vez em contato com eles é impossível virar às costas, mesmo com tão pouco são tão puros”, reproduz o argumento que passou a apresentar a qualquer um que desse ouvidos à sua história quando voltou ao Brasil. A proatividade é uma característica forte do homem que ajudou a devolver àquelas pessoas a chance de sonhar. Não descansou por um dia sequer até levantar os fundos para construir o primeiro centro de acolhimento da FSF na África. O montante de R$ 30 mil era o suficiente para atender cerca de 70 crianças. Do outro lado do planeta, nas aldeias subsaarianas, o cadastro já estava sendo organizado. A demanda, porém, só evoluiu. Wagner trouxe para perto de si amigos e familiares, todos comovidos e motivados pela causa. As portas da ONG, no entanto, como o presidente faz questão de evidenciar, permaneceram sempre abertas. “Todos são bem-vindos, somos uma corrente de coração do bem”, convida.

Papa Wagner

Desde a primeira visita à sede da ONG em Campo Grande, ainda sem a presença do fundador, pôde-se notar uma característica unânime entre os funcionários e pessoas próximas. Quando questionados sobre Wagner, a primeira referência aponta para a expressão “papa”, um sentimento de pai, de figura paterna. Não deixa de ser curioso ver um senhor com quase o dobro da idade de Wagner referir-se a ele desta forma. É assim, contudo, que Carlinhos, amigo de longa data e testemunha de todo o processo de fundação da FSF, o chama. “Aquele é o escritório dele, fica posicionado daquele jeito, pois assim consegue orar por nós, o tempo todo”, ressalta o senhor enquanto aponta orgulhoso para uma espécie de “oca” no canto de um jardim aos fundos do prédio. Todo de vidro, o espaço possui apenas uma mesa e um quadro grande na parede, uma pintura da criança africana que ganhou o coração do voluntário. Hoje já adolescente, foi Malfa quem cessou, no primeiro encontro que tiveram em Moçambique, o vazio que Wagner relatava sentir desde a juventude. Ele conta que a menina, aos 12 anos, chegou aos cuidados do centro da FSF muito debilitada e desnutrida. Soropositivo, não recebia nenhum tratamento desde os três anos. Foi acolhida. Três meses depois, quando Wagner retornou em outra carava-

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ímpar

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na, a menina correu ao seu encontro e lhe deu um abraço forte. “Foi um amor tão grande que não queria mais soltá-la”, emociona-se. O exemplo daquela criança o marcou. Assim como Malfa, entretanto, quase todas as outras crianças o enxergam como figura paterna, de onde vem o “papa”, termo que o acompanha inclusive no Brasil. Além do sentimento de gratidão, faz parte da cultura africana o tratamento do provedor dessa forma. Ao encarnar na sua imagem a iniciativa da FSF, Wagner carrega consigo esse marco como maneira de receber o carinho e a admiração das pessoas ao seu redor.

Wagner, o pai Ainda na primeira visita à sede da ONG em Campo Grande, após caminhar pelo extenso jardim, é possível se deparar com uma escada lateral branca que se harmoniza com a cor amarela da casa. Logo à frente, a assessora de imprensa da entidade aguarda em pé, com um sorriso no rosto. De maneira espontânea e receptiva, logo se apresenta: Kamila Lovizon. Desculpa-se pela ausência de Wagner, que devido a tantos compromissos, tem sua disponibilidade difícil. A jornalista enfatiza o sentimento de paternidade exalado pelo voluntário. “Hoje ele é visto como exemplo, um modelo a ser seguido, então quando as pessoas descobrem que ele estará presente numa caravana é uma euforia, muitos ligam chorando perguntando se é verdade”, conta. Ao subir as escadas, uma porta de vidro separa o exterior de um cômodo de madeira que remete a um chalé. É o Setor de Comunicação. Kamila apresenta os funcionários que estão dispostos em computadores posicionados estrategicamente, de modo com que ninguém fique de costas para o outro. A maior surpresa chega com a descoberta de que os dois dos filhos de Wagner trabalham ali: Fernanda, de 24 anos, e Wagner Junior, de 19. O fundador da FSF pouco passa informações sobre sua vida pessoal. Wagner é muito discreto ao comentar qualquer assunto da própria família. Pudera! Com a grandeza do ideal Ubuntu, os limites de sua vida não mais lhe pertencem. Discreta como o pai, Fernanda é dona de respostas monossilábicas. Sempre com tom sereno, dificilmente fala mais de dez segundos seguidos, mas tem sólidos na memória os trabalhos voluntários que realiza desde pequena. A filha diz que Wagner é como qualquer pai. “Mas é muito sábio”, enfatiza ao apontar os valores que leva como ensinamento: a fraternidade e a esperança pela evolução do ser humano. Formada em Publicidade e Propaganda, Fernanda trabalha na divulgação das ações da ONG.

Chico Xavier: Médium brasileiro, psicógrafo, reconhecido internacionalmente por seus trabalhos sociais.

Por seu turno, Juninho, apelido carinhoso para o filho do meio, mostra em seu próprio jeito de ser que o respeito às diferenças começa dentro de casa. Bastante diferente da irmã, apresenta-se com um chamativo bigode e brincos pequenos nas orelhas. Cumprimenta a todos com naturalidade e não hesita e falar da intimidade com o pai. Não destoa da irmã, porém, no orgulho que sente das lições que recebe de Wagner. “O que eu mais gosto de conversar com o meu pai é sobre política, adoro ver sua visão”, ressalta. Após todos os contatos e com o dever de missão cumprida, chega-se ao final a visita à FSF. Ansiosa, a assessora de comunicação da ONG questiona se é possível compreender o quanto Wagner Moura é especial para tantas pessoas em diferentes partes do mundo – pergunta de resposta fácil para quem conhece a grandiosidade de seu trabalho. Parada no portão, Kamila estende os braços para a despedida. Em qualquer lugar, aquele seria um simples abraço. Não lá, porém. “Abraço é dado pelo lado esquerdo, assim há o encontro dos corações. E tem de durar no mínimo vinte segundos, para sentir todas as vibrações boas que desejamos uns aos outros”, explica. E assim, vinte segundos passaram-se.

Mahatma Gandhi: Líder pacifista indiano, lutou pela independência da índia e também ficou conhecido por seus pensamentos

gio.percio.s@gmail.com silveiracamila2905@gmail.com rafaelnavarroff@gmail.com


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CrÔnica

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Noite alvinegra Texto: Gabrielle Tavares | Ilustração: Natalia Hirata

lho no relógio, é quase meia noite. A mistura de insônia com ansiedade na véspera de meu aniversário afasta a possibilidade de sono. Não me lembro de quando comecei a gostar de futebol, nem de quando comecei a torcer para o Corinthians. Parece que nasceu comigo e nunca existiu uma época em que essas duas paixões não estivessem lá. Sei que isso foi influência de meu pai, mas não reclamo. Pelo contrário, o time uniu tanto a gente que ultimamente tem sido o único tempo que desfrutamos juntos, o de assistir ao jogo na TV toda noite de quarta-feira. Na semana passada ele não pôde, disse que estava muito ocupado com o caso de um novo cliente. Prometeu, porém, que amanhã assistiríamos juntos no estádio. Será meu presente. Minha mãe sempre me fala para não reclamar, pois meu pai precisa de um grande volume de clientes para começar a carreira de advogado. Ele não conseguiu achar emprego, então decidiu trabalhar por conta própria. Disse-me que é por causa de sua cor de pele. Mesmo maioria da população, nós, brancos, somos apenas 1% dos advogados em escritórios. Finalmente o sono vem, viro-me para o lado e durmo. Acordo com um chamado animado de minha mãe. A tela do celular avisa que já são seis horas. - Parabéns meu filho, te amamos muito. Nem me deixa responder e sai de cena. Ela é sempre assim, muito rápida e prática em tudo que faz. Dizem que é porque teve que amadurecer muito rápido. Vida de branco é assim. Sento-me e converso com meu pai, enquanto na televisão o apresentador do jornal anuncia outro homem branco morto em confronto com a polícia em um dos bairros periféricos de São Paulo.

- É um absurdo – diz meu pai – toda semana é um caso. E ainda noticiam como se fosse culpa da vítima. O que falta no país é um presidente branco. - Sinvaldo, no dia do aniversário do Natan, não – adverte minha mãe. Ela não gosta que meu pai fale de política à mesa. Em vão! Ele nunca perde uma oportunidade de falar sobre os problemas de discriminação. Quer me engajar em movimentos sociais desde agora. Admiro isso em meus pais, sonham em mudar a realidade do mundo incansavelmente, além de todas as preocupações financeiras que já possuem. Chego em casa depois da escola, ansioso pelo jogo da noite. Pouco depois é meu pai que adentra o portão afrouxando a gravata. Parece cansado, mas muda radicalmente o semblante quando sugiro cancelar nossa ida ao jogo. Vinte minutos depois já estamos novamente na rua. Adiantados, vamos a pé, o estádio não é tão longe. Quem diria! Um estádio deste tamanho, com esse luxo, em um bairro de periferia predominantemente branco. Pela metade do caminho, avisto uma viatura. Não dou importância, minha atenção está no estádio que cresce no horizonte. Quando percebo, minha vista já se confunde como um borrão. Dois policiais negros armados estão em minha frente. Dou um pulo de susto e recuo dois passos. “Para! Levanta a mão para o alto”, grita o mais afoito. “Calma, ele é meu filho! ”, retruca meu pai. Mas não adianta, o segundo homem se aproxima e pede sua identificação aos gritos.

Espero meu pai dizer alguma coisa, convencê-los de que estudou muito e é mesmo advogado. Ao invés disso, entretanto, somos jogados agressivamente contra o muro com as mãos levantadas. O tempo passa, somos revistados entre piadas e insultos. Quando se convencem de que não há nada, voltam para viatura que emanava no ar as cacofonias da transmissão do jogo ali ao lado. Seguem para outra abordagem sem pedidos de desculpas, como se tudo isso não passasse de rotina. - Vem filho, vamos embora, o jogo já era. Cruzamos com vários rostos felizes e animados, como estávamos horas atrás. Tudo que passava por minha cabeça se intensificava com o barulho ensurdecedor do silêncio de meu pai. Sei o que ele diria em qualquer outra ocasião. Já de noite, um sentimento de impotência toma conta de mim. Deitado, percebo que invés de ganhar o jogo como presente, perdi a esperança de viver em um país com igualdade étnica, sem precisar conviver cotidianamente com uma arma apontada para minha cabeça. Olho para meu celular, já é quase meia noite. Finalmente o sono chega, viro para o lado e durmo. Amanhã será um novo dia. Um dia de negro.

- Meu nome é Sinvaldo José Firmo, sou advogado – E empunha sua carteira da Ordem dos Advogados do Brasil.

*A crônica inverte as posições entre brancos e negros, uma demúncia ao racismo no Brasil. Foi inspirada em um caso real ocorrido em São Paulo (SP) em 2010.

- Acha que eu sou idiota para acreditar nessa carteira falsa, branquelo?! – debocha o homem ao apontar a arma para minha cabeça – Para a parede, vamos revistar os dois!

gabitavares17101999@gmail.com


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RAIO-X

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Jogo da vida A presença (ou a falta) de negros nas profissões mais elitizadas do Brasil Pesquisa e Texto: Gabriel Garcia | Giovana Martini | Samuel Eich

Infografia: Fábio Faria | Guilherme Correia

Com raízes históricas, a discriminação racial mantém-se presente no Brasil e afeta de forma direta a vida dos negros, a exemplo do mundo do trabalho. Estatísticas mostram que candidatos tem chances menores de sucesso por conta da cor da pele. O Projétil escolheu três das áreas profissionais mais rentáveis do país (Direito, Engenharia, Medicina) para ilustrar como é pequena a presença de negros.

■ O piso salarial é de, em média, de R$ 8,4 mil por 8 horas de trabalho. ■ As três engenharias mais bem remuneradas são a de Petróleo (salário médio de R$ 15 mil) de, Segurança do Trabalho (R$ 8 mil em média) e a de Minas (R$ 7 mil em média).

■ O profissional recém-formado tem certa facilidade para encontrar emprego, com salário médio de R$ 3 mil. ■ Quanto mais especializações, maior o salário.

*Em todos os casos a diferença está em profissionais das demais etnias (indígena, oriental, etc)

■ As melhores remunerações são na área de Direito Empresarial (em média, R$ 7 mil), Internacional (média de R$ 6 mil), Tributário (média de R$ 19 mil) e Civil (média de R$ 5 mil). ■ A média de salário para um estagiário é de R$ 1,3 mil. ■ Um Juiz Federal ganha em média R$ 28 mil.

Fonte: IBGE

■ O salário de um estagiário é, em média, de R$ 1,2 mil.


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RAIO - X

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12,8%

Somente dos negros entre os 18 e 24 anos cursam ensino superior segundo o IBGE (2015).

adolescentes

70,7% dos de 15 a 17 anos estão no ensino médio, etapa adequada à idade; entre os pretos esse índice cai para 55,5% e, entre os pardos, para 55,3% segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Em 2011, do total de 8 milhões de matrículas, 11% foram feitas por alunos pretos ou pardos. Em 2016, ano do último Censo, o percentual de negros matriculados subiu para 30% segundo Censo do Ensino Superior elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep)

Para contornar situações de racismo que podem ocorrer na relação candidatoempresa, foram criadas plataformas para reunir currículos de afrodescendentes e ajudar na busca por vagas de emprego, como a iniciativa criada em 2017 em São Paulo, a Afrobras.

Conforme dados do Censo da Educação Superior (2009),10% dos ingressos de novos alunos nas universidades públicas ocorreram . por meio de sistemas de

cotas

Um quarto das cotas foi preenchido a partir de critérios etnorraciais no Brasil.


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RAIO - X

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No curso de Medicina, negros representam apenas dos formandos de acordo com o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), 2010.

2,7%

1%

Menos de dos cargos dos mais de mil escritórios são preenchidos por sócios, advogados ou estagiários negros, segundo dados do Centro de Estudos de Sociedades de Advogados (CESA)

84,2% dos

magistrados

Segundo dados da Fundação Universitária para o Vestibular (FUVEST) em dos calouros 2015, do curso de engenharia civil eram pretos, 10% pardos, 8,3% amarelos e 78% brancos.

3,3%

são brancos e apenas 15,6% são negros, segundo Censo do Poder Judiciário Brasileiro (2013).

67% dos profissionais negros já sentiram que perderam uma vaga de emprego por conta de sua cor. (Etnus - Consultoria e Pesquisa) Brancos ganham, em média, 72,5% mais do que pretos e pardos no país. (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, 2018) 63,7% dos desempregados no Brasil são pretos ou pardos (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, 2017)

O Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos (SP), vai aderir ao sistema de cotas raciais pela primeira vez no vestibular 2019. Serão destinadas 22 das 110 vagas para estudantes negros.


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crônica

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Ponto final

Texto: Reinaldo Lopes | Ilustração: Natalia Hirata e Oliver Mott

V

aldirene tirou o celular da bolsa, fez casualmente a tela de espelho para conferir o visual e o guardou novamente. Já eram seis horas e dois minutos. Estava quase no horário. Poucos minutos depois, o ônibus parou e Valdirene seguiu em direção ao trabalho, como acontecia diariamente. Seria um deslocamento normal, a não ser pelo fato de ser sexta-feira. Assim que a porta se abriu, o motorista recebeu os passageiros com um sorriso que nem os óculos escuros conseguiram disfarçar. O entusiasmo característico daquele dia da semana era contagiante. Todos os passageiros expressavam certa euforia no olhar, nos cumprimentos, nas conversas, nas risadas. Trabalhadores jovens e maduros, homens e mulheres pareciam acometidos por aquela euforia. Um policial que costumava pegar o lotação naquele horário, nos outros dias tinha uma postura mais austera e a chegada do final de semana parecia deixar-lhe um quê de descontração. Os estudantes, esses são eufóricos naturalmente todos os dias da semana, mas nas sextas-feiras a alegria extrapolava. Atravessaram a catraca com aquelas mochilas enormes e tomaram os bancos do fundo, como se estivessem demarcando território. Aquela área do ônibus pertencia a eles, era como se já tivesse sido convencionado com os demais passageiros. Com a algazarra dos jovens, o ônibus se tornava um verdadeiro espetáculo. Valdirene sentou-se num banco que a permitia assistir ao show dos estudantes de um ângulo privilegiado. Sem perceber, imergiu nas histórias daqueles personagens. Por um instante, lembrou-se da adolescência. Num piscar de olhos, reviveu as viagens diárias com a amiga Roseli e seus impecáveis cabelos lisos. Tentou buscar na memória quais eram os motivos que as faziam gargalhar como aquelas garotas do ônibus, que riam sem se importar com os sacolejos do lotado coletivo. A gente era empregada na casa da dona Fernanda. A gente lavava, limpava, cozinhava. Fazia de um tudo naquela casa e ainda cuidava daqueles guris quando vinham da escola. Era na época da Marisol, a gente assistia escondido. Aquela novela foi boa... O doutor Mário deixava a gente ir pra casa nos dias de jogo do Brasil. Um dia ele até levou a gente no terminal. Aquele magrelo da lanchonete era doido na Roseli. Ela nunca quis nada com ele. Se tivesse alguém doido ni mim daquele jeito, eu até casava... Eu ia sê igual a Tia Maria com...

- Cabelo esticado? Tão falando de mim? – A alegria típica da sexta-feira cedeu lugar a um constrangimento que vez ou outra aparecia e roubava a paz de Valdirene. Subitamente passou as mãos sobre os cabelos, desde a testa até o final do tufo, para constatar que eles estavam controlados. Apoiou os braços sobre a nuca e segurou por alguns segundos o minúsculo rabo-de-cavalo. Tentou se enxergar na imagem refletida no vidro da janela e confirmou que tudo estava no devido lugar. Não era dela que falavam, mas o abismo de aflição já estava posto na calmaria daquela manhã. Nas lembranças mais remotas da infância, Valdirene já se encontrava marcada pelo cabelo crespo. As imagens que lhe vinham à memória eram de sua mãe, sentada na cadeira do pequeno cômodo de madeira improvisado como sala, desembaraçando com força os cabelos da menina. Depois, os amarrava com mais força. Por vezes, Valdirene chorava durante o ritual. Na pré-adolescên-

cia, o choro passou a ser pelas dores no couro cabeludo. No entanto, doía também a alma de Valdirene. Seu desejo era ter cabelos lisos como das outras meninas. Às vezes, a mãe tentava consolar e dizia que o cabelo da filha era duro mesmo, mas quando crescesse faria chapinha, assim como ela, e tudo ficaria bem. Aceitar-se não era uma opção. No itinerário da vida, Valdirene perdia o ônibus de sua identidade étnica e da autoestima que sua alma tanto buscava. Pagaria caro para abastecer o cartão de sua não-aceitação. Puxou o cordão e desceu na parada de sempre. Para seus resignados pensamentos, aquele era o ponto final. Caminhou apressadamente com passos mecânicos em direção à casa da patroa. Talvez, outras sextas-feiras mais felizes estariam por vir.

reinaldolopes193@gmail.com


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ASPAS

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Perspectiva ou desencanto? Defensora pública com três décadas de carreira e atuação com comunidades indígenas e outros grupos minorizados, Neyla Ferreira Mendes fala sobre a carência de valores de cidadania das etnias sul-mato-grossenses Texto: Alex Nantes | Camila Andrade | Izabela Piazza | Marcos Saucedo | Stefanny Azevedo Fotos: Guilherme Carrara

U

m aparador repleto de lembranças das três décadas de carreira como defensora pública serve de cartão de visita. No escritório localizado no prédio da Escola Superior da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, ainda dividem espaço algumas fotografias de congressos, artigos indígenas e um pote com seu nome entalhado na tampa, além de uma Bíblia e um presépio. Uma das paredes da sala,

inteiramente de vidro, deixa a luz do dia entrar, iluminando as samambaias artificiais cuidadosamente alocadas como se formassem um canteiro. Nas mesas, pilhas de processos, todos em pastas de arquivos etiquetadas, aguardam sua verificação e encaminhamento. É neste ambiente, ao mesmo tempo sensato e acolhedor, que a defensora pública Neyla Ferreira Mendes - responsável atualmente por processos que

envolvem questões indígenas, quilombolas, de ribeirinhos e de outras comunidades minorizadas - recebe a equipe do jornal laboratório Projétil. Durante a entrevista, novos acessórios indígenas são trazidos para adornar a mesa. São toalhas das comunidades Guarani, Kadiwéu e Terena. Tudo é tratado com muito zelo e organização no escritório. Pudera! Por ali passam algumas das questões sociais

mais sensíveis do território sul-mato-grossense. Como membro da Defensoria Pública, Neyla atua na defesa de causas sociais e questões coletivas. Afinal, entre outras atribuições, é papel do órgão a defesa da população desassistida de assistência jurídica. Na conversa com o Projétil, a defensora pública comenta o processo de demarcação de terras indígenas no país e debate a falta de perspectiva de vida das etnias.


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ASPAS

SOBRE A ENTREVISTADA

nome Neyla Ferreira Mendes formação Direito função Defensora Pública tempo de atuação 30 anos especialização Questões indígenas, quilombolas, de comunidades ribeirinhas e outros grupos minorizados.

Projétil. Como funciona o papel da Defensoria com as questões indígenas? Neyla Ferreira Mendes. Nós estamos com um Núcleo, mais ou menos recente, criado em abril de 2018. Temos tentado mapear as necessidades dos indígenas, as mais prementes. Por exemplo, políticas públicas, questões de saúde e de educação, além de uma questão muito séria atualmente, que é a de documentação básica, como o Registro Civil de Nascimento, feito em cartório, a Carteira de Identidade, a Carteira de Trabalho, o CPF. Parece uma coisa muito corriqueira para quem está em um grande centro ou mora numa cidade, mas algumas aldeias indígenas às vezes distam 50 ou 60 quilômetros do centro. Além da distância, eles não têm condições de locomoção. Há ainda a barreira da língua, que é muito forte em algumas aldeias mais para o sul do Estado, pois não falam português e existe a questão cultural. Às vezes, quando uma pessoa chega na porta de um cartório para fazer o Registro Civil de Nascimento de uma criança, os próprios trajes dela já criam uma barreira. É a primeira barreira, o olhar torto para aquela pessoa. A cultura é outra, a simbologia, que chamamos de signos, é outra. P. O que te levou a escolher a área e defender questões indígenas? N. Pela Constituição, a Defensoria Pública é promotora de direitos humanos. Em Mato Grosso do Sul, as comunidades que são mais pobres, mais vulneráveis, podemos colocar assim, são as indígenas.

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P. Mas teve algum caso que te sensibilizou e te fez seguir essa área? N. Na realidade, foi verificar que eles estão totalmente à mercê da sorte. Na primeira vez que fizemos um trabalho numa aldeia em Dourados, chamou-me muita atenção o fato de que, mesmo estando praticamente dentro da cidade, quando entramos lá, em 2011, 90% daquela população não tinha registro de nascimento. Se uma população está dentro da cidade, como era o caso, e ninguém praticamente possuía o registro, imaginem em outras aldeias. Isso chamou muito nossa atenção. Naquela oportunidade, foram feitos 10 mil registros. Quem não tem Registro Civil de Nascimento no Brasil também não possui acesso a quase nenhuma política. A situação é grave, sem falar da questão da miséria absoluta, a fome que assola aquelas regiões, principalmente mais para o sul do Estado. Para as crianças realizarem uma refeição por dia já é muito complicado, pois realmente não têm o que comer. E há a questão da água. Para quem está mais ao sul, a água está contaminada com agrotóxicos. Então, em troca daquilo que os índios nos deram, estamos dando a miséria. P. Como funciona o Comitê Nacional de Defesa dos Povos Indígenas (Condepi)? N. Criamos o Condepi em uma fase em que estavam ocorrendo muitos assassinatos de liderança indígenas, quando mataram - e até hoje não encontraram o corpo - de Eunizio Gomes. A situação estava desesperadora aqui. Então, juntamos todas as associações do Brasil que são ligadas à terra, ao racismo ambiental. Juntamos-nos com ONGs de combate ao racismo ambiental, ao ponto de que em certo momento já estávamos com cerca de 150 associações. Desde, por exemplo, uma associação ribeirinha do meio do Estado do Amazonas até associações urbanas. Nossa ideia era fazer pressão contra as ações do Governo Federal, que na época possuía um comitê. Fazíamos pressão com a Polícia Federal para resolver essas questões. Chegamos inclusive a fazer uma denuncia junto à Organização dos Esta-

dos Americanos (OEA), pedindo uma medida cautelar para solucionar a questão de assassinatos de lideranças indígenas. P. O que é racismo ambiental? N. O racismo ambiental ocorre quando uma pessoa é perseguida por aquilo que ela é ao possuir uma ligação com a terra, com o meio ambiente. Suponhamos que uma pessoa é indígena e, por isso, passa a ser impedida entrar em certos lugares por ser quem é, por ser indígena, ou então por uma pessoa ser negra ou por ser quilombola. Quando existe a discriminação com o fato de alguém ser ligado ao meio ambiente, nós chamamos de racismo ambiental. P. Como é construída a visão do indígena dentro de Mato Grosso do Sul? Quais são as características que o envolvem? N. É justamente decorrente do racismo. As pessoas enxergam o indígena e sua cultura como inferiores. O indígena vive uma cultura de coletividade, diferente do homem branco que vive uma cultura individualista. Então, dentro de uma aldeia o índio vive em comunidade, todos juntos sobrevivendo. P. Como o Estado vê o índio e como o trata? N. O Estado só não enxerga o indígena na hora de proteger e levar a política pública, pois a Constituição garante isso. Mas, na hora de cobrar o indígena, o Estado cobra, tanto que as cadeias estão cheias de indígenas e sem o devido o processo legal. O processo legal, para

Neyla mantém vários itens que remetem a seu trabalho em sua sala. Entre eles, os mantos das tribos indígenas Guarani, Kaiowá e Terena.


ASPAS

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nas estão sempre resistindo e a luta vai ser grande em 2019 e 2020 até esse Governo se assentar. Vai ser uma briga feia, digo feia no sentido de que eles irão resistir como têm resistido há 500 anos.

nós advogados, é o caminho que deve ser seguido para chegar até a cadeia. Nesse caminho, exercitamos a ampla defesa. Para a pessoa se defender, precisa saber o porquê de estar sendo sendo acusada. Outra coisa é entender a língua. Não existe intérprete na audiência, então os indígenas não entendem a gravidade do crime e nem por que estão ali. P. Qual a relação que o indígena possui com a terra? Há diferença entre essa relação e a relação que um proprietário rural estabelece com a mesma terra? N. O índio não quer a terra para construir e vender o terreno. Quer a terra para plantar, enterrar os entes queridos, fazer os rituais, quer viver da terra, pois para ele aquilo não tem valor econômico. A terra para o índio tem valor de vida. P. A Proposta de Emenda à Constituição 215, que tramita desde 2000, tem como objetivo alterar o processo de demarcação das terras indígenas, transferindo o poder de decidir sobre a demarcação, das mãos do Executivo, para o poder Legislativo. Se aprovada, qual será o impacto? N. Todo ano a PEC vai e volta. Na verdade, existe uma união entre a bancada evangélica e a bancada ruralista, que é

chamado de bancada “BB”, bala e Bíblia. Na verdade, é conhecida como “BBB”, bala, bíblia e boi. Esses grupos se juntam contra as pautas que envolvem o meio ambiente, os quilombolas, os indígenas e as comunidades LGBTs. A bancada da Bíblia é contra os LGBTs. Ela se junta com a bancada da bala, que quer a liberação do uso de armas, que se junta com a bancada do boi, que quer a liberação das terras indígenas para plantar e explorar o mineral sem regramento. Tanto que, vira e mexe, eles conseguem alterar a legislação. Com a PEC 215, por exemplo, da mesma forma, querem que a demarcação de terras passe para o Congresso Nacional. Querem o poder também de desfazer as demarcações já feitas. Não querem mexer somente daqui para a frente, mas também para trás, querem alterar as demarcações, pois estão de olho nos minerais. P. O que muda com a transferência de poder do Executivo para o Legislativo? N. Hoje, quem é responsável pela demarcação de terras no Brasil, de acordo com a lei, é a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que é uma fundação ligada ao Poder Executivo. A última palavra é do Presidente da República, mas a FUNAI começa, passa pelo Ministério da Justiça e chega por último ao Presidente. Talvez essa PEC não tenha sido aprovada até hoje, pois os indíge-

P. Quem intervém numa situação de conflito territorial entre indígenas e proprietários rurais? N. Quem está mais perto tem que resolver. Normalmente, se chama a Polícia Federal, pois entende-se que é mais neutra, dado o distanciamento que tem com o conflito e pelo fato de que todo conflito coletivo que envolve indígena é de competência da Justiça Federal. Caso a discussão seja de uma reintegração de posse de uma comunidade indígena, a instância é a Justiça Federal, pois a terra indígena é pertencente à União. Toda vez que envolve alguma coisa da União, é a Justiça Federal, a própria Constituição determina. Num momento de violência, porém, a Polícia que tiver mais próxima deve ir.

“Eles irão resistir como têm resistido há 500 anos.” diz Neyla Mendes P. Vimos em um vídeo seu divulgado na Internet sobre a gravidade da questão do genocídio indígena em Mato Grosso do Sul. Gostaríamos de saber se esse número tende a aumentar em um cenário futuro, pois o Estado está em primeiro lugar nessa situação. N. A minha opinião sobre isso não é boa, acho que vai piorar. Agrava-se principalmente não pelo aumento da repressão do estado em si, mas porque a própria população indígena tem aumentado. A população indígena cresce na proporção quatro para um, a cada quatro indígenas nasce um que não-indígena, então o espaço em que nós os confinamos, pois fomos nós quem confinamos eles lá, está muito apertado, não cabe mais. Então, misturou-se etnias,dá confusão, entendem?

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P. De acordo com o Ministério da Saúde, os maiores índices de mortes por lesões autoprovocadas em povos indígenas acontecem entre jovens de 10 a 19 anos, uma parcela de 44,8%. Esta é uma prática recorrente em algumas comunidades, você tem conhecimento de algum episódio? N. Não, fazendo um recorte do recorte, dos indígenas Guarani-Kaiowá da região sul de Mato Grosso do Sul, a faixa etária de suicídio indígena vai de sete a cerca 50 anos, de anciãos. P. E por que isso acontece? Considera que os indígenas não têm perspectiva e acabam desencantando? N. Na minha opinião, é desencanto. Desencanto e conflito de identidade, como eu já disse. Eles chegam a um ponto onde morrer é mais fácil, por mais que tenham outras explicações que envolvam a própria cultura. P. Esses casos chegam até a Defensoria Pública? Ou acontecem nas comunidades e ficam por lá? N. Tem um levantamento que se faz por um órgão do Ministério da Saúde, a Secretaria Especial de Saúde Indígena. Faz-se o recorte e se tenta fazer a prevenção. Trabalhei com o órgão há dois ou três anos, desenvolvendo a prevenção na região de Amambai, que tem os maiores índices de suicídio do mundo. A idade é variável, é mais jovem. Um filme que representa muito essa situação é o documentário “Sombra do delírio verde” (documentário dirigido por An Baccaert, Cristiano Navarro e Nicola Mu), que mostram que os interesse do agronegócio são maiores do que a vida indígena.

alexmurilons@gmail.com candradezanin@gmail.com izabelapiazza22@gmail.com marcosroberto.saucedo@gmail.com stefanny.azvdo@gmail.com


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opinião

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Texto: Evaldenir Amaral Ilustração: Fabil

A

educação indígena não ocupa grande espaço no debate público, exceto por ação dos próprios atingidos ou daqueles que atuam na causa indigenista. Segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), são cerca de 900 mil brasileiros que vivenciam as consequências da ausência desta discussão e, consequentemente, a fragilidade de políticas públicas voltadas ao tema. A Constituição Brasileira de 1988 trouxe mudanças significativas relacionadas às populações indígenas. Entre os avanços, a garantia de respeito e proteção da cultura das populações originárias. No Capítulo VIII da carta magna, estão expressos os preceitos que asseguram o respeito à organização social, costumes, línguas, crenças e tradições das diferentes etnias brasileiras. Exprime também a garantia aos povos nativos de uma educação diferenciada e multicultural.

A polêmica quanto a essa diferenciação e multiculturalismo está relacionada a pontos específicos, a exemplo do ensino de Educação Física. Não raro, leigos afirmam que a disciplina não é necessária, pois, diferentemente dos brancos, os indígenas costumam praticar atividades físicas, seja no dia a dia ou em rituais, argumento que se mostra em desconexão com a realidade das várias etnias brasileiras. O aumento do sedentarismo entre indígenas, por exemplo, contribui para o surgimento de casos de obesidade e diabetes ocasionados pela mudança na dieta e pelo consumo de alimentação industrializada. Segundo o 1º Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas, estudo realizado em 2008 e 2009 e lançado em 2010 pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), somente entre as mulheres o sobrepeso passa de 50%. Todavia, não se pode deixar de reconhecer a pertinência por trás das tentativas de efetivar o que está escrito na Constituição Federal e na própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação, datada de 1996. Cita-se o caso da Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2009, do Conselho Nacional de Educação da Câmara de Educação Básica (CNE/CNB), que estabelece que a educação infantil deve ser opcional, cabendo a cada comunidade indígena decidir o que melhor se adapta à realidade local. O exemplo demonstra que os povos nativos têm assegurado por lei o direito de decidir se a criança deve começar cedo na escola ou participar em seus primeiros anos da vida em comunidade, reforçan-

do a identidade e o modo de vida com seus iguais. Tal determinação, por outro lado, a depender da interpretação, pode conceder ao poder público a possibilidade de não investir em estrutura para acolher os curumins. Esquece-se muitas vezes que essa é uma escolha da família, comunidade ou tribo. Ao poder público cabe garantir, seja qual for a escolha, a efetividade plena da decisão trilhada. O descaso se efetiva quando os pequenos deixam de ir à escola não por uma opção da família, mas por não haver qualquer possibilidade. A situação da educação indígena piora significativamente quando se passa para o nível médio, estrato que convive com uma série de problemas que dificultam ou até mesmo inviabilizam o ensino dos adolescentes nas aldeias. Isso, sem contar a perda de qualidade dos quadros docentes devido a uma série de descontinuidades nas políticas do Governo Federal. Mesmo com toda adversidade, os indígenas contam com uma alta taxa de alfabetização no Brasil. Essa população, entretanto, apresenta nível educacional mais baixo do que os não indígenas. A discrepância se agrava na área rural. De acordo com o último censo do IBGE, entre 2000 e 2010 a taxa de alfabetização dos indígenas com 15 ou mais anos de idade passou de 73,9% para 76,7%, aumento proporcional ao dos não indígenas, que passou de 87,1% para 90,4%. Na área rural, a taxa de analfabetismo chega a 33,4%, sendo 30,4% para os homens e 36,5% para as mulheres. Já nas terras indígenas, 67,7% dos nativos de 15 ou mais anos de idade são alfabetizados. Para os indígenas residentes na área urbana, a taxa de alfabetização é de 85,5%. A despeito dos números, a precariedade do sistema é evidenciada no Censo da Educação Básica do Ministério da Educação, que em 2016 revelou que havia no país 3,2 mil escolas indígenas, com 18 mil professores e 254 mil alunos. Cerca de um terço das instituições escolares, no entanto, não possuem prédio próprio e ocupam espaços improvisados, 57% sequer têm água tratada e 48% estão sem esgoto. Por essas e outras circunstancias históricas, trazer a temática da educação indígena ao debate público é mais do que fundamental. Trata-se de uma questão de direitos.

evaldeniramaral.ufms@gmail.com


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Silhuetas

Entre contrastes Fotos: Guilherme Carrara | Mariana Moreira | Victória Lacerda Texto: Camila Andrade | Izabela Piazza | Marcos Saucedo

Durante muito tempo os papéis designados para homens e mulheres foram construídos e restringidos por seus gêneros, seja no trabalho ou em casa. A reportagem fotográfica a seguir apresenta pessoas de ambos os lados em seus ambientes de trabalho, desafiando preconceitos todos os dias nas respectivas profissões


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silhuetas

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Enfermeiros Os homens cuidavam dos doentes durante a Antiguidade, principalmente em períodos de guerras. Porém, com a profissionalização da Enfermagem, as mulheres começaram a entrar em cena, predominando na profissão até os dias atuais. Dados do Conselho Federal de Enfermagem referentes a 2015 mostram que a área é composta por 84,6% de mulheres.


silhuetas

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Motoristas de Ônibus Em um setor tradicionalmente ocupado pelo sexo masculino, a participação feminina tem se tornado mais significativa nos últimos anos. Como mostram os dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) do Ministério do Trabalho e da Previdência Social, dos 2,2 milhões de profissionais na área de transportes, 17% são mulheres.

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silhuetas

Tatuadoras O universo dos tatuadores não foge do estereótipo dicotômico de ‘’coisas de homem’’ e ‘’coisas de mulher’’. A maioria dos artistas da área costuma ser do sexo masculino, porém nas últimas décadas as mulheres têm ganhado destaque com um talento que tardou a ser reconhecido. O único censo sobre tatuagem no Brasil foi realizado pela revista Super Interessante em 2016 e mostra que tem crescido o interesse das mulheres por tatuagem. De acordo com o levantamento, o número de pessoas tatuadas do sexo feminino já chega a 59,9% no país.

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Saltos e sobressaltos

Diferentemente de outros países, a prática do balé é uma odisseia para bailarinos no Brasil; preconceito e desvalorização são obstáculos para iniciação masculina na dança e prejudicam a profissionalização Texto: Alison Silva | Gabriel Sato | Gerson Wassouf | Jonatan Cavalcanti Fotos: Mariana Moreira

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cultura e comportamento

entir se tornou algo comum na vida de Marcio Elias (foto). “Costumava dizer que ia ao muay thai, mas na verdade ia escondido ao balé”, relata o hoje professor e dançarino campo-grandense. O bailarino, de 25 anos, precisou superar o preconceito de familiares e amigos para prosseguir com a carreira na dança. “Escondia-me, escondi até não dar mais, pensei que teria de estar preparado para receber a zoeira. Alguns não gostaram mesmo, tanto que cortaram contato e não falam comigo até hoje. É igual você namorar alguém que seus pais não aprovam. Eles não deixam, mas você quer”, lamenta. Exemplos como o de Marcio Elias são comuns na vida dos poucos bailarinos e professores que ganham a vida profissionalmente com a dança no

Brasil. De acordo com o dançarino Marcelo Victor da Rosa, doutor em Educação e docente da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), o preconceito e a falta de informação criaram ao longo do tempo um estereótipo machista na cultura latino-americana. “Com a introdução das meninas nas danças e os meninos no esporte, a sociedade em sua grande parte não consegue enxergar a dança como algo também masculino.

“Costumava dizer que ia ao muay thai, mas na verdade ia escondido ao balé”, diz Marcio Elias


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Cultura e comportamento

Dessa forma, quando um homem decide dançar balé, é de praxe que ocorra um estranhamento por parte das pessoas, e disso surge o preconceito”, explica o pesquisador. O cenário de dificuldades vivenciado pelos profissionais brasileiros da dança diverge do ambiente de trabalho para bailarinos nos países europeus, onde o incentivo à arte acontece desde a infância e a educação cultural é mais valorizada. “No Brasil, o apoio é muito fraco, até mesmo do público, que muitas vezes vaia. Lá fora não é assim, sempre aplaudem, valorizam a arte. Na Europa, se percebem que o biotipo é bom para a dança, logo concluem que o menino vai ter potencial. É uma grande diferença comparado com o Brasil, aqui aceitamos tudo o que aparece, pois não temos dançarinos”, relata Elias.

Inspiração Juan Ebediyet (foto) , 22 anos, é dançarino e um dos alunos que há mais tempo trabalha com o professor de dança campo-grandense. “Não tenho um ‘fisicão’, não sou estereotipado, o que me move é dançar, enquanto eu puder dançar, irei dançar”, afirma o jovem. Para o bailarino, a dança extrapola a atividade física, é uma verdadeira paixão. “Estes últimos dias foram reflexivos, pensei muito sobre isso. Imagino-me dançando até quando não puder mais, até quando meu corpo falar”, enfatiza Juan. O dançarino, que pratica balé desde os 15 anos, aprendeu a conviver ainda na infância com o conflito entre o desejo de praticar a dança e a reprovação das pessoas de seu entorno que o incentivavam a praticar algum esporte. “Certa vez, vi uma entrevista do bailarino Thiago Soares e gostei de sua história. Se ele conseguiu dançar e vencer o preconceito, pensei que também conseguiria, foi o que me incentivou ainda mais”. Thiago Soares, profissional de referência citado por Juan, é o principal bailarino brasileiro na atualidade, com participação em 2001 no Concurso Internacional do Ballet Bolshoi, na Rússia, com conquista da medalha de ouro. Com a premiação, Thiago Soares, natural de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, conseguiu um marco na história da dança nacional, sendo o primeiro e único brasileiro a possuir o título. Após isso, foi convidado para estagiar no balé Kirov, também na Rússia, e no ano seguinte foi chamado para o corpo de baile do Royal Ballet de Londres, na Inglaterra. Em 2004, o dançarino brasileiro foi promovido a primeiro solista e premiado como artista revelação masculina de dança clássica pelo Critics’ Circle National Dance Awards, prestigiada premiação no Reino Unido. Em 2012, outra importante conquista: Thiago Soares participou do encerramento da Olimpíadas de Londres representando a cultura brasileira.

Apoio familiar

Exemplos de meninos que encontram dificuldades para seguir no balé são recorrentes, como relata a bailarina e professora Mariana Torres, 20 anos, a respeito de seus alunos.

Segundo a dançarina, muitos garotos demonstram vontade de ingressar no balé, mas se sentem reprimidos ou sequer podem explanar seus interesses. “Na escola onde trabalho, os pais têm muito preconceito ainda e ninguém nunca pergunta se os meninos pretendem dançar ou não, eles já são pré-direcionados para o futsal”, lamenta. Outra barreira que dificulta o ingresso no balé é o alto custo financeiro da prática da dança – neste caso, circunstância que atinge tanto os meninos quanto as meninas. Em muitas situações, explica Mariana Torres, para além do preconceito, é necessário que o aluno consiga uma bolsa para continuar. A própria professora possui uma bolsa parcial no estúdio de dança Allegro, em Campo Grande (MS), onde se apresenta desde os 12 anos. A experiência levou Mariana a tornar-se professora. Ainda assim, argumenta a bailarina, sem a bolsa de estudos não teria condições financeiras de arcar com a mensalidade. Ser aprovado para uma bolsa de estudos integral ou parcial numa academia de balé não costuma ser fácil. Jovens obstinados, como Otavio Queiroz, 16 anos, porém, não desistem do sonho. O fato de Otavio ter sido aprovado como bolsista também no estúdio de dança Allegro, não significava que sua vida seria fácil a partir disso. Muito pelo contrário! Após retornar do Festival de Dança de Joinville, um dos maiores do país, o rapaz decidiu, apoiado por sua namorada, finalmente tomar uma decisão. “Pisei em Campo Grande e falei: quero fazer balé! ”, relata. Instantaneamente, perdeu o apoio do pai. Otavio teria de se virar sozinho para custear todo o material necessário. “Vi que minha vida iria mudar enormemente. Sempre ganhei tudo, meu pai sempre me deu tudo, minha mãe sempre me deu tudo. Tenho certeza que se eu pedisse um par de chuteiras para jogar bola, ganharia, mas queria um par de sapatilhas para dançar”, desabafa. Envolto na situação, Otavio resgatou algumas economias. Foi ao supermercado, comprou bolachas, chocolates, doce de leite e começou a fazer alfajores – doces que comercializaria no dia seguinte na escola em que estuda. “Fiz cerca de 100 alfajores, ofereci para todo mundo, professor, coordenador, vendi tudo”, orgulha-se. Com o dinheiro das vendas, pagou sua primeira mensalidade no estúdio de dança no qual hoje é parcialmente bolsista. O dançarino atribui a Isabella, sua namorada, muito do sucesso alcançado. “Foi uma das principais incentivadoras para que eu iniciasse no balé”, comenta agradecido. Isabela, que inclusive lhe deu a primeira sapatilha, o ajuda a lidar com o preconceito diário, tratado sempre com muito bom humor. Exemplos como o de Otavio refletem o atual cenário do balé no Brasil. Apesar da dificuldade de se levantar estatísticas precisas sobre a presença de bailarinos nas academias no país, professores e pesquisadores da área relatam um aumento gradativo de praticantes e, consequentemente, de apresentações artísticas masculinas.

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História

Otávio atribui à namorada a persistência no balé

Para Juan, se importar ou não com o preconceito, é questão de posicionamento

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Cultura e comportamento

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O ballet clássico surgiu nas cortes italianas por volta do século 15, criado por homens e praticado apenas por eles. Foi na França, contudo, graças ao Rei Luís XIV (conhecido como Rei Sol), que se desenvolveu de forma mais sistemática. Foi nas terras francesas onde se criou, em 30 de março de 1661, a Academia Real de Dança, a primeira escola de balé do mundo. As mulheres só apareceram na dança em 1681. Ainda assim, os homens permaneceram nos papeis principais. Ao longo do romantismo, no século XIX, as mulheres ganharam destaque na dança, em histórias que as colocavam como protagonistas na idealização do amor. Consolidou-se, assim, a figura da bailarina como referencial de delicadeza e suavidade, modificando-se, por conseguinte, a própria ideia do que seria o balé. A partir disso, a dança se desenvolveu na Europa, tornando-se muito popular em países como Reino Unido e Rússia. A afirmação das mulheres na dança teve como contraindicação, respaldada pela construção histórica da masculinidade, a disseminação do preconceito contra os homens. “A construção da masculinidade é algo muito forte. Se nos construímos como homens, com uma masculinidade, se aprendemos que essa calça é de homem, que tem outra calça que é de mulher, que existe um jeito de ficar com a perna aberta que remete ao homem, esses pré-conceitos são formulados ao longo da vida”, argumenta o professor Marcelo Rosa. Para o pesquisador, na constituição da diferença entre masculinidade e feminilidade, a dança, historicamente sedimentada no universo feminino, coloca em cheque a condição do homem. “O inverso, porém, não acontece. Uma mulher que dança está no lugar dela, sendo mais delicada, mas se não é tão feminina, é logo jogada no balé, não é colocada no judô, no futebol, onde o universo é masculino e ela pode se masculinizar ainda mais na concepção do pai. Na família tradicional, há práticas corporais que ajudam mais na construção da masculinidade do que outras”, complementa Marcelo. As dificuldades e preconceitos fizeram com que o balé fosse praticado por homens no Brasil apenas tardiamente. A dança chegou ao país em 1927, com a vinda da bailarina Maria Olenewa para o Rio de Janeiro. A dançarina russa fundou a Escola de Danças Clássicas do Teatro Municipal, que se tornou, na época, o principal centro de formação de bailarinos no Brasil. Outros europeus ajudaram a desenvolver a dança no cenário brasileiro, como o caso do tcheco Vaslav Veltchek, que em 1939, foi coreógrafo do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e organizador da Escola de Bailarinos da Prefeitura Paulistana.

O Bolshoi é aqui Em outubro de 2018, o campo-grandense Emanoel Nascimento, de 11 anos, recebeu uma bolsa de estudos para estudar balé clássico na filial brasileira da Escola de Teatro Bolshoi, localizada em Joinville, Santa Catarina, tornando-se o primeiro sul-mato-grossense a conseguir tal feito. Atualmente, uma das maiores e principais academias de balé no país, a escola catarinense é a única filial no mundo da tradicional academia russa. Emanoel participou de um processo seletivo que abarcou 85% dos estados do país, além do Distrito Federal e da Argentina, contemplando exames médicos fisioterápicos e artísticos. A seletiva contou com 5,8 mil concorrentes e o garoto campo-grandense ingressou na primeira série do balé da organização, juntamente com outras 39 crianças. O menino já está matriculado na escola e, no começo de 2019, se mudará para Joinville com a mãe. A previsão é que permaneça por oito anos na cidade para estudo do balé clássico e aprimoramento da dança. Segundo o site oficial do Bolshoi, o contato com o Brasil teve início em 1996, quando a companhia realizou uma turnê e incluiu a cidade catarinense no roteiro. O espetáculo ocorreu no 14º Festival de Dança de Joinville e os russos ficaram impressionados com a receptividade do público e a reverência da cidade diante da arte. Depois disso, o russo Alexander Bogatyrev, diretor artístico do teatro Bolshoi, esboçou propostas para montar uma unidade da escola no país, levantando questões como a aplicação da metodologia, seleção de professores e alunos, além da estrutura física necessária. Em 1998, o idealizador Bogatyrev faleceu, mas seu legado foi consistente: o esboço do projeto estava concluído e foi apresentado para prefeitos e diretores de instituições de ensino do Brasil. A Prefeitura de Joinville comprometeu-se na época a desenvolver da proposta. Meses depois, em julho de 1999, na abertura do 17º Festival de Dança de Joinville, Alla Mikhalchenko, primeira bailarina do Teatro Bolshoi, assinou o protocolo de intenções com a cidade. Em março de 2000, a filial brasileira teve suas atividades iniciadas. No local, uma equipe de 67 funcionários e 13 bailarinos se dedica à missão de formar artistas cidadãos e divulgar a instituição por meio da arte. A estrutura da escola em Joinville possui seis mil metros quadrados, entre salas de atividades práticas e teóricas. Atualmente, a filial conta com 240 alunos, sendo 45% de meninos.

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educação

Indiferença ou despreparo? Há quase três décadas, orientação de gênero não é mais tratada como uma questão de saúde; ainda assim, pesquisas mostram que constrangimentos contra LGBTQ+ são cenas comuns nas escolas Texto: Wesley Wallace Fotos: Mariana Moreira embro-me de uma colega de turma no ensino médio que se mutilava. Quando a questionei sobre o assunto, ela justificou que era a única forma de eliminar uma dor em seu interior. Quando perguntei qual era essa dor, disse-me que se cortava por ser lésbica, que isso não iria orgulhar a família dela. Eu me vi naquela menina, pois não me amava, não me aceitava, não me sentia parte do que é considerado normal”. O desabafo da publicitária Lariane Eliziário, de 21 anos, ao relembrar a época em que frequentava o ensino médio numa escola pública de Campo Grande (MS) revela o drama de uma parcela significativa dos alunos da comunidade de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros e Queers (LGBTQ+) no Brasil e no mundo. Segundo a Pesquisa Nacional Sobre o Ambiente Educacional promovida em 2015 pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), 73% dos entrevistados depararam-se com agressões verbais por conta de sua orientação sexual e 60% disseram-se inseguros no último ano da escola pelo mesmo motivo. O levantamento, feito em parceria com a Universidade Federal do Paraná (UFPR) e outras organizações internacionais, ouviu 1.016 estudantes com idades entre 13 e 21 anos de 26 estados brasileiros e do Distrito Federal. Frequentemente, situações como as descritas nas pesquisas podem deixar marcas profundas nos adolescentes. É o caso do acadêmico de Farmácia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Samuel Lopes, de 20 anos, que guarda na memória situações que passou vexame na época em que cursava o ensino médio. “Lembro-me de ter ido mal em uma

A B C D E F HIJKLM NOPQRST UVWXYZ+

prova de Física e todos os meus colegas de turma na época diziam: ‘Ah, todo mundo com nota alta e você ficou com essa nota vermelha porque é bichinha, mas fica tranquilo, boiola é burro mesmo’ ”, recorda.

Despreparo

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Para Aparecido Francisco Dos Reis, coordenador do Laboratório de Estudos de Violência, Gênero e Sexualidade (LEVS) da UFMS, há carências na formação dos professores para a compreensão da grande diversidade dos alunos. Segundo o pesquisador, que estuda o assunto no âmbito universitário, a escola, além de ser o primeiro grupo social de formação do ser humano, funciona como um retrato da sociedade. “Por isso, a dificuldade maior é lidar com aquilo que não faz parte do ser igual. A educação atual passa a impressão de que foi feita para o branco, o cristão e o heterossexual, os que diferem da norma sofrem no ambiente escolar”, problematiza. O preconceito e a intolerância com o aluno LGBTQ+ não é algo dos dias atuais. Sem o devido preparo, a escola pode representar um ambiente hostil e fechado à compreensão do diferente “Há uma falta de empatia e de abertura por parte do professor em querer entender cada aluno. E essa falta cria uma generalização que torna cada vez mais difícil a relação de aluno e professor e o aprendizado em si”, opina Mariana Due-

nha, professora de História da rede pública estadual. Em contraponto, Cristhiane Ferreira, também professora de ensino médio da rede estadual, é assertiva quanto ao despreparo dos educadores em relação aos alunos LGBTQ+, mas ressalva que a escola onde leciona consegue vencer esse fator negativo com ênfase no respeito. “O colégio onde trabalho é acolhedor, realmente abraça o aluno LGBTQ+, eles se sentem acolhidos. A coordenação acolhe, as antigas gestões também e, quando entra algum educador novo para o corpo docente, acaba tendo que acolher, pois não são apenas orientações de como lidar com o aluno ou formas de tratamento, mas projetos sociais e intervenções artísticas nas quais o estudante LGBTQ+ ganha o seu espaço e respeito através da arte”, defende.

Homofobia

Mesmo 28 anos depois que a homossexualidade foi excluída da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), xingamentos, agressões, assédio sexual e moral ainda são algumas das situações enfrentadas cotidianamente por jovens LGBTQ+ nas escolas de todo mundo. Não é à toa que a homofobia é apontada como uma das principais violências dentro da escola de acordo com um estudo “Juventudes na escola, sentidos e buscas: Por que frequentam?”, publicado em 2015, pela


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educação

Pesquisas mostram que a discriminação e os constrangimentos sofridos por estudantes LGBTQ+ afetam o desempenho e o bem-estar dos jovens nas escolas.

Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso-Brasil), pela Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) para a Educação, a Ciência e a Cultura e pelo Ministério da Educação (MEC). A pesquisa ouviu mais de oito mil estudantes na faixa de 15 a 29 anos e traçou um panorama sobre como os próprios alunos veem suas escolas. Um dos dados obtidos pelo estudo, inclusive, aponta que os estudantes responderam de maneira muito similar, no espaço de dez anos, à pergunta: “quem você não gostaria de ter como colega”. Segundo o texto do levantamento, “homossexuais, transexuais, transgêneros e travestis são indicados como pessoas que não se queria ter como colega de classe por 19,3% dos alunos, sendo os jovens do ensino médio os que mais se rejeitam essas pessoas”. Este é o caso da estudante universitária Mariane Cárceres, mulher transexual, que relata a forma como seus antigos colegas de ensino médio a tratavam antes de sua transição. “Nos retiros do colégio católico onde eu estudava, era frequente os comentários tóxicos sobre a minha sexualidade. Lembro-me de quando chegávamos ao local onde seria realizado o retiro e éramos separados em duplas para ficar nos dormitórios. Os meninos torciam para não ter que dividir quarto comigo, pois, segundo eles, não era legal ter uma afeminada no mesmo ambiente. Alguns até insinuavam que eu poderia me aproveitar deles a noite”, desabafa.

Desempenho Escolar Pesquisas internacionais trazem mais evidências sobre como a discriminação afeta o desempenho e o bem-estar dos estudantes na escola. Em 2009, pesquisadores da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, divulgaram um estudo feito com cerca de 10 mil estudantes norte-americanos que revelou que jovens gays, lésbicas e bissexuais eram as principais vítimas de agressões físicas e verbais. O levantamento também revelou que esses grupos, por conta da discriminação, estavam mais sujeitos a faltarem às aulas, a usarem drogas, a se sentirem deprimidos e a adotarem comportamentos suicidas em comparação com os demais estudantes. O estudo constata ainda que a escola pode desempenhar um papel importante para a diminuição desses efeitos negativos, criando um clima positivo e reduzindo o assédio homofóbico. No Brasil, na entrada do século 21, a inclusão desses temas ainda não parecem ser uma realidade na maioria das instituições de ensino. Prova disso é o fato de que dados do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) terem revelado em 2011 que mais da metade das escolas brasileiras que oferecem ensino médio não desenvolvem projetos sobre machismo e homofobia. Há ainda o agravante de crescer no país um movimento de pressão por omissão desses

temas no ambiente escolar, a exemplo do Projeto Escola Sem Partido, que ganhou evidência nas discussões eleitorais de 2018. Com objetivo de promover a igualdade de oportunidades e de melhorar a qualidade da aprendizagem, investiu-se nos últimos anos, no âmbito do Governo Federal, na produção de ações e materiais didáticos e voltados à formação docente com enfoque nas questões de gênero e de diversidade sexual. A iniciativa gerou polêmica em torno da forma de se tratar esses temas no ambiente escolar, em alguns casos sob o argumento de que os materiais seriam peças de propaganda em favor de uma determinada orientação sexual. Esta reação levou à suspensão, em 2011, da decisão de se distribuir um material produzido com este fim específico pelo MEC. “Este debate foi mal colocado, pois em nenhum momento o material produzido pelo MEC seria direcionado aos alunos, mas aos professores como material formativo para educadores que lidavam com alunos acima de 11 anos. Contudo, acredito que houve uma politização do debate no sentido de desacredita-lo a partir de um viés moral, religioso que não era o objetivo da cartilha, que depois foi de apelidada de kit gay”, opina o pesquisador Guilherme Passamani, docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFMS. *As fotografias desta reportagem são ilustrativas.

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Crônica

Sem despedida Texto: Giovanni Dorival | Ilustrações: Maria | Natalia Hirata

enti-me preso à emoção vinda do conhecimento involuntário daquela fatalidade. Mais um!, pensava naquele dia quente de sol, derramando no ocaso os últimos raios de luz sobre a cidade. Como pode tingir de cores tão flamejantes e alegres uma tarde assim? – indaguei ao fitar o panorama: a Praça Ari Coelho. Tinha saído do Mercado Municipal quando, caminhando pela Quinze de Novembro, encontrei a mole de curiosos em meio aos bombeiros e a perícia que, muito premente, terminavam a análise do espaço isolado e recolhiam o cadáver estirado na calçada de um edifício. Não cheguei a vê-lo, sequer tentara. Apenas forcei passagem entre a gente compacta e segui para a praça. Mas, se por um lado, agira com indiferença, por outro, já não pudera furtar-me da moção tristonha daquele fato social. Ali, na Praça Ari Coelho, qual passara por um longo tempo de reforma, enfeitada nos rútilos das lâmpadas de lead, entre a cavatina de temas da MPB ao piano e adornos natalícios, tive a meditação sobredita. De fato, toda aquela roupagem nova, imbuída no natural espetáculo crepuscular, qual encanto edênico, não desqualificavam a índole capitalista do motivo festeiro, vez que, não pude dissociar os ledos sorrisos das crianças e adultos daquelas diversas sacolas de compras em tamanhos e marcas variadas. Apesar disso, decerto que não vinha dali, mas do aludido funesto, a lembrança e aquele estado melancólico qual penetrarame, de roldão, num assomo incontido de frases soltas. Frases da derradeira carta de Jacinto. “Eu sei que riem de mim pelas costas... Sei que ninguém me ama... Só não sei porque nasci”, escrevera, quiçá, volvido num pranto oculto. Insuspeito. “Todos me viam dando risada, sem nunca imaginar como eu chorava por dentro. Ninguém nunca me perguntou como eu me sentia, estavam ocupados demais rindo de mim”, anotara, ainda, numa lacerante observação que, a todos zurziu, marcando como ferro, cada alma que se lhe pretendia amiga. Ou assim julgara-se. Também eu. Vi-me presa dessas acusações, sem qualquer instância a recorrer. Que tribunal seria superior à própria morte? – inquiri, olhando ao derredor. Avistava-se um grupo de adolescentes que faziam

fotografias, nos celulares, sorvendo tereré de permeio a um interculóquio alegre e irreverente, aos casais que se abrochavam num romântico ato de cuidados. As famílias. Crianças vestidas com delicado apuro, num frejo de extremo júbilo. Enfim, os solitários esparsos e taciturnos. Não. Nenhum. Ao longo de meses, quiçá, de todos aqueles anos, onde reuníamo-nos em tantos eventos jubilosos, presos num aparente abraço de afetos, de felicidades, Jacinto recorria, solitário, a todas as instâncias possíveis, na tentativa oculta, de fazer valer seu estado de direito. Existir e dar liberdade à própria essência. Suplantar o diabo. “Mas se os outros me condenam, simplesmente pelo que sou, se até Deus me rejeita, como posso viver? Estou cansado. Cansado de tudo. Do fingimento. Do desprezo. Eu queria ser feliz. Me libertar. E é isso que vou fazer”. Libertar-se. Por quê? Por quê tão extremadamente? indagava-me, novamente, como há alguns anos. A pergunta sem resposta. Arguição de várias hipóteses. Nem todas tão humanas quais aquelas dadas pelos transeuntes. Covardia? Fraqueza de espírito e falta de fé? Ausência de Deus? Mas quê Deus? O exterminador do Egito? Ciumento e vingativo? Ou Deus de amor nazareno? “Só peço que doem meus órgãos. Assim não vou partir como um total inútil. E também espero que outras pessoas não sofram mais, como eu. Que a minha partida sirva para que as pessoas comecem a refletir e se amem mais. De verdade”, terminara. Não. Absolutamente! Quiçá. A verdade é que ninguém deseja se matar, as pessoas só querem livrar-se de seus sofrimentos – conclui, enfim, tomado a seguir por aquela inspiração textual, anotando as ideias assinadas no celular enquanto as pessoas seguiam indiferentes com suas compras na companhia de familiares e amigos.

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O preço da transcendência Garantia de cidadania à comunidade trans, como o acesso digno a espaços públicos, é desafio para as políticas de Direitos Humanos no Brasil; preconceito e violência agravam a situação Texto: Felipe Dias | Jenifer Alves | João Vitor Marques Ilustração: Guilherme Correia Fotos: Victória Lacerda

O

que era para ser um passeio de lazer se tornou um constrangimento. Alexandre*, estudante do ensino médio, 14 anos na época, saiu para dar uma volta no shopping e aproveitou para fazer compras. Andou pela loja de roupas, escolheu as peças que lhe agradavam e dirigiu-se ao vestiário. Foi aí que vivenciou a humilhação: ao tentar entrar no provador masculino, um funcionário do estabelecimento analisou sua fisionomia, deixando-o desconfortável enquanto olhava para seus seios. O motivo? Alexandre é homem trans, o que levou o vendedor a analisar, segundo

os parâmetros da sociedade, ser um homem ou uma mulher. Ao decidir que se tratava de uma mulher, barrou sua entrada, orientando-lhe a se dirigir às cabines femininas. Um caso semelhante aconteceu com Emanuelle Fernandes, 29 anos. Mulher trans, Manu, como é conhecida, saiu com suas amigas para se divertir na noite campo-grandense e, ao chegar à casa noturna, descobriu que o preço do ingresso era segmentado por gêneros: homens pagavam R$ 20 e mulheres a metade. A funcionária da portaria exigiu, então, que as meninas – todas mulhe-

res trans – pagassem o valor da entrada masculina. “Tentei explicar que ela era uma pessoa leiga no assunto, pois a entrada falava de gênero e não de genitália. Se fosse assim, eu pagaria os vinte e não os dez, porém era entrada feminina e masculina”, desabafa a jovem. Uma discussão foi iniciada, mas devido ao constrangimento, o grupo desistiu de entrar na boate. Constrangimentos assim fazem parte do cotidiano de pessoas transgêneros, transexuais e travestis no Brasil. Para o advogado Welington Oliveira de Souza dos Anjos Costa, que desenvolveu pes-

quisa sobre a realidade jurídico-registral de transexuais no Mestrado em Direito na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), esse grupo social não é excluído e violentado por causa de sua orientação sexual, mas devido à leitura preconceituosa quanto a sua identidade de gênero. O pesquisador explica que, para a sociedade, o “natural” é que o gênero atribuído ao nascimento seja aquele com o qual as pessoas se identificam e, portanto, qualquer desvio dessa norma merece repúdio ou mesmo agressão, em um nível ainda mais grave que a homofobia.


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Expressão de gênero

Para especialistas, os espaços públicos ainda não estão adaptados à complexidade das questões que envolvem os direitos das pessoas transexuais, o que pode resultar em desrespeito e constrangimentos

Identidade de gênero é o modo como o indivíduo se reconhece e é reconhecido na sociedade a partir da dicotomia homem x mulher. Trata-se de um processo de construção, e desconstrução, que envolve o comportamento social ao longo da vida. Segundo orientações da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), não se deve classificar ou objetificar as pessoas, dizer o que elas são e como se identificar, uma vez que é algo pessoal e que deve sempre ser respeitado. A partir de sua experiência de vida, Manu Fernandes acredita que quando alguém se diferencia em qualquer aspecto ou que não se encaixa no padrão pré-estabelecido pela sociedade, tende a chamar atenção em qualquer lugar. “Quando o preconceito está só no olhar, o controle tem que ser da pessoa, mas quando ele é exteriorizado, aí temos que procurar os nossos direitos”, alerta. O cientista social Tiago Duque, docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFMS, cita o autor trans espanhol Paul B. Preciado para explicar a concepção de prótese de gênero. As reflexões de Preciado tratam da arquitetura e do vestuário relacionados ao gênero e à divisão binária quanto às roupas e aos locais, principalmente públicos, como banheiros e vestuários, além da importância dos espaços e vestimentas para que as pessoas trans se identifiquem. “O corpo é generificado não só pela performance, mas também pela prótese. Roupas, sapatos e acessórios são próteses, banheiro também, porque é binário”, problematiza Duque. De acordo com o pesquisador, as instituições são produzidas como dispositivo de sexualidade. O banheiro, por exemplo, é um dispositivo de sexualidade, tanto que os homens não vão juntos ao banheiro, pois tendem a evitar qualquer referência à possibilidade de sexo. Supõe-se, por outro lado, que as mulheres têm de ir juntas, uma vez que há a compreensão social de que estarão protegidas se estiverem juntas. “Isso é sexualidade, isso é dispositivo histórico de po-


der, não está no corpo, mas produz um corpo, produz um desejo, produz uma prática, produz uma subjetividade”, esclarece o cientista social.

Aparência

A sociedade contemporânea valoriza a aparência, enaltecendo quem se encaixa nos moldes previamente estabelecidos pela população. Segundo Manu Fernandes, são estereótipos que ditam o comportamento considerado “comum”. “Existem mulheres diferentes, algumas gostam de se arrumar mais, outras gostam de se arrumar menos, e tem mulher que não se importa com os padrões. Então, por se tratar de uma trans, às vezes a que não pôde, ou não quis investir tanto em sua aparência, acaba sofrendo mais”, lamenta a jovem.

A sociedade contemporânea valoriza a aparência, enaltecendo quem se encaixa nos moldes previamente estabelecidos pela população. Um exemplo disso é o caso de Alexandre, que afirma sobrepor várias peças de roupa para esconder seus seios e poder utilizar o banheiro masculino. “Tento sempre notar como estou visualmente para ninguém implicar. Sempre uso vários tops para apertar os seios, tento dar uma encobrida e me curvar um pouco para não acentuar muito, também evito encarar as pessoas, pois posso ficar magoado”, conta. Entre os homens trans, principalmente no momento inicial da transição, o uso do banheiro masculino se torna impossibilitado pela reação dos usuários, como as violências sexual, física ou verbal. Para Wellington Costa, o uso do banheiro de acordo com a identidade de gênero é uma questão de respeito à intimidade. O advogado adverte que é irreal o argumento de que a utilização do mesmo banheiro

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Uma pessoa trans morre a cada 48 horas no Brasil, aponta pesquisa O mapa dos assassinatos de travestis e transexuais de 2017, realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), aponta que a cada 48 horas uma pessoa trans é assassinada no Brasil. A pesquisa também revela que, no ano passado, 179 transexuais morreram no país. De acordo com a coordenadora de Políticas Públicas Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros (LGBT) de Campo Grande (MS), Cris Stefanny, a violência é generalizada: familiar, escolar, social e estatal. “Dados da Secretária Especial dos Direitos Humanos, segundo o disque 100, canal de denúncia, mostram que entre 2011 e 2012 a violência contra LGBT cresceu de 3 mil denúncias para 11 mil. De cada 100 casos denunciados apenas 1% era de pessoas trans e travestis, mas quando traçado os assassinatos essa categoria soma 52% do total de LGBT mortos no Brasil, e mais de 70% são negras e pardas”, alerta. A Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal, por meio do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos LGBT, editou a resolução 12/2015 que garante o direito das pessoas transexuais e travestis utilizarem do nome social no âmbito das instituições de ensino, bem como respeito à identidade de gênero para o uso dos banheiros e vestuários. Caso uma pessoa trans atualmente tenha sua identidade de gênero desrespeitada, pode comparecer a uma Delegacia de Polícia e pedir o registro de um boletim de ocorrência. Porém, não se trata de um crime tipificado, uma vez que não há em Mato Grosso do Sul legislação que puna especificamente atos de ofensa contra as identidades de gênero. “Vamos supor que a pessoa transexual esteja andando pela rua e receba um xingamento em razão de sua identidade, ela pode ingressar com essa medida junto a uma delegacia, vai ser feito o registro de uma ocorrência. No entanto, será apurado como crime de injúria, de acordo com o artigo 140 do Código Penal, que se aplica a todas as pessoas, de uma forma igual”, esclarece o advogado Wellington Costa. No Estado de São Paulo, existe a lei 10.948, de 5 de novembro de 2001, que trata especificamente de atos de preconceito, agressão verbal e física. A legislação paulista pune atos atentatórios contra a identidade dos gays, lésbicas, trans e travestis.

Serviço Em Campo Grande, vítimas de agressão podem procurar ajuda no Centro de Referência em Direitos Humanos, Prevenção e Combate a LGBTfobia, localizado na Avenida Fernando Correa da Costa, 559 – Sala 4. Também há a Subsecretária de Políticas Públicas LGBT, o Centro de Referência em Direitos Humanos e Prevenção, o Conselho Estadual LGBT e de Combate a LGBTfobia e a Coordenadoria Municipal de Políticas Públicas LGBT, que prestam assessoria jurídica, psicossocial e atendimento ao público, através de intercâmbio e de forma transversal nas respectivas esferas.

por travestis e transexuais consista numa preocupação com a violência contra as mulheres. “O uso do banheiro constitui o auge da intimidade de cada um e normalmente abusos sexuais ocorrem fora desse local público e são perpetrados por pessoas completamente distintas”, afirma em sua dissertação de mestrado.

Inclusão ou preconceito?

Considerada uma solução de inclusão por muitos, a criação de um terceiro banheiro para a comunidade trans ainda é uma incógnita. Disfarçada como uma questão de segurança, a ideia representa, na posição de pesquisadores que se debruçam sobre o tema, de preconceito velado, uma forma de excluir esses grupos. O pesquisador Thiago Duque salienta que o terceiro banheiro é uma falsa ideia

de inclusão, pois ao diferenciar essa parcela da população, criando um banheiro só para ela, automaticamente a exclui. Estabelece o pensamento de que as pessoas trans só podem usar aquele banheiro: homens trans, mulheres trans e travestis, cada um com sua própria performance, mas no mesmo sanitário. “Outra questão ocorre no caso de a identidade de gênero ser feminina. O uso do banheiro é essencial, porque ela vai se sentir como ela é, no banheiro feminino. A criação de um terceiro banheiro é visto como preconceituoso, porque é um banheiro só para ela”, exemplifica o professor. Para o cientista social, a questão do terceiro banheiro deve ser vista com cuidado, pois depende de como será sua aplicação, uma vez que há casos que esse terceiro banheiro é unissex. “Ou

seja, tanto menino, menina, travesti ou não, pode usar aquele banheiro, mas para travesti vai parecer que só pode usar este sanitário, e isso é um problema”, complementa Duque. A opinião é semelhante à de Emanuelle. A jovem acredita que a partir do momento em que um terceiro banheiro for criado, haverá a exclusão de um determinado grupo, explicitando que essas pessoas são diferentes. *As fotografias desta reportagem são ilustrativas.

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educação

A lição da tolerância Embora a Constituição garanta a liberdade religiosa nas escolas, estudantes praticantes de religiões minoritárias, como o Candomblé e a Umbanda, ainda são vítimas de humilhações; para especialistas, a tolerância deve estar no foco do ensino escolar Texto: Raíssa Quinhonez | Letícia Schiavon Fotos: Letícia Schiavon

Deus te salve deste inferno!”. A ofensa feita anos atrás por uma professora ao estudante Edmilson Ribeiro, quando cursava o sétimo ano do ensino fundamental, não lhe sai da memória, embora o adolescente, de 15 anos, negue que isso seja um incômodo. A melhor resposta ao ultraje está no orgulho que Edmilson sente de sua religião. “O Candomblé para mim significa muitas coisas, como magia e axé, acho tudo muito bonito e me sinto ansioso para chegar janeiro e talvez fazer o meu santo e me tornar um Iyawô”, ressalta. O caso de Edmilson não é isolado. O Candomblé é uma das religiões mais antigas do Brasil, país predominantemente cristão, com 64% de católicos e 22% de evangélicos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A religião de matriz africana foi introduzida no cotidiano brasileiro no século 18 junto com os escravos e, por ser minoritária, assim como a Umbanda, costuma ser alvo de práticas de preconceito e perseguição religiosa. Segundo dados de 2016 da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar, levantamento realizado pelo IBGE em parceria com o Ministério da Educação, 4,2% dos estudantes de 13 a 17 anos que disseram ter sido vítimas de humilhação na escola apontaram sua religião como motivo.

Aprendizagem e orgulho

Quarta-feira, 10 de outubro de 2018, antevéspera de feriado, coincidentemente uma das principais datas religiosas do Brasil, o dia de Nossa Senhora Aparecida. Edimilson era um dos sete jovens candomblecistas – com idade entre seis a quinze anos – que, naquela noite, aguardavam ansiosas para mais uma aula sobre a religião no terreiro Ilê Dará, no bairro Santa Luzia, em Campo Grande. A aula era justamente sobre intolerância religiosa. Trazidas nas mãos como exercício da semana anterior, as lições de casa eram redações sobre suas experiências com o tema. “Pessoas pararam de

ser meus amigos porque descobriram que sou candomblecista e começaram a me xingar de macumbeiro”, relata Kauã de Oliveira “Acho que todos deveriam respeitar a nossa religião”. A mensagem simples, quase óbvia para a maioria cristã dos brasileiros, repetia-se na maior parte dos textos. Para aqueles pequenos candomblecistas, a frase apresentava um signi-

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ficado peculiar pela dor do preconceito vivenciado no dia a dia. “Sofro bullying sim, todos falam que sou macumbeiro, que aqui é do diabo, falam mal de mim, que eu sou chato”, desabafa em prantos o adolescente Brenno Cristaldo, 11, enquanto lê sua redação para os demais colegas. “Pessoas pararam de ser meus amigos porque descobriram que sou candomblecista e começaram a me xingar de macumbeiro”, relata Kauã de Oliveira, 12, filho do jornalista Lucas Junot, Pai de Santo com atuação no terreiro Ilê Dará. Kauã é iniciado no Candomblé e, por ter mais vivência religiosa que os colegas, não se abala com as dificuldades que passa na escola. “Na religião quero ser um Ebomi muito prendado, um Ebomi que ajuda todos e todas que precisarem de mim”, afirma. Ebomi é uma das muitas hierarquias presentes no Candomblé. “Significa ‘meu irmão mais velho’, aquela pessoa que já detém os conhecimentos, os valores, a sabedoria da comunidade terreira e passa a ajudar o pai e a mãe a orientar os mais novos”, explica Junot. Já o Iyawô, sonho do adolescente Edmilson, representa a pessoa que se inicia no candomblé e “renasce”, deixando de lado a vida pregressa à religião. As hierarquias no Candomblé incentivam as crianças a crescerem dentro da religião e muitas delas carregam os ensinamentos passados dentro do terreiro, traçando objetivos claros. Como contraponto, Kauã relata o outro lado de sua história: as crianças que não deixaram de ser seus amigos pela questão religiosa. “Disseram que era só uma religião como todas as outras, fiquei feliz em ter amigos assim”, reconhece. Amor, compaixão e respeito pelo próximo são virtudes que o pai de Kauã, na posição de Pai de Santo, incentiva nas crianças mesmo em momentos de intolerância. “Quando falamos em ódio, estamos também agredindo um Deus no qual acreditamos. Acreditamos em um Deus que fala de amor, de união, de respeito, de cooperação, de comunitarismo”, enfatiza Lucas Junot, após as crianças relatarem suas experiências fora do terreiro.

Ataques e agressões

O Pai de Santo relata que já sofreu ataques mais sérios por motivações religiosas. “Uma vez, quando chegava em casa, ouvi de repente um barulho no telhado. Saí para ver do que se tratava e havia uma pedra imensa caída, tinha telha quebrada. Quando abri o portão, havia uma bíblia aberta”, recorda. Outro caso vivenciado por Junot, desta vez numa experiência profissional, foi a saída forçada de um emprego após sofrer pressões de alguns colegas de trabalho. Na ocasião, explica o jornalista, apesar de nunca ter proposto nenhuma discussão ou desrespeitado alguém em razão da religião, costumava ser muito criticado por ir ao trabalho usando o seu “fio” (colar com significado especial para o Candomblé).

Marisa de Souza, frequentadora do terreiro Ilê Dará, relata que suas filhas também enfrentaram situações extremas de violência por conta da religião da família. “Eram apedrejadas no caminho de casa. Chegavam e quando não estavam com a cabeça cortada, estavam chorando, em desespero”, recorda a mãe.

Na opinião de Junot, se situações semelhantes a essas causam grandes constrangimentos para os adultos, as dificuldades podem ser ainda maiores para as crianças. “Eles não têm voz [em relação à intolerância] e nem nos contam tudo, pois têm vergonha ou porque dói, entristece”, lamenta. Marisa de Souza, frequentadora do terreiro Ilê Dará, relata que suas filhas também enfrentaram situações extremas de violência por conta da religião da família. “Eram apedrejadas no caminho de casa. Chegavam e quando não


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Kauã (na foto, ao lado da mãe Luciana de Oliveira Morisson) sonha em ser Ebomi, e hierarquia de destaque no Candomblé

estavam com a cabeça cortada, estavam chorando, em desespero”, recorda a mãe. Sem muito sucesso, Marisa afirma ter tentado resolver a situação por conta própria: “Aí você vai atrás para saber por que que a criança fez aquilo e os pais fecham a porta na nossa cara, quando não te maltratam e te xingam. Em todas as três vezes que recorri à polícia, foi feito pouco caso do meu boletim de ocorrência, foi muito complicado”, denuncia Marisa.

Valores velados

Motivada por uma experiência de imersão em sala de aula de alfabetização para jovens e adultos, onde verificou discursos sutis de intolerância contra religiões afro-brasileiras, a assistente social Rachel de Souza da Costa e Oliveira desenvolveu uma pesquisa de mestrado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) sobre o assunto. Seu enfoque voltou-se a adultos adeptos da Umban-

da que sofreram casos de intolerância religiosa na escola. “Muitos desses sujeitos que estavam colocados em um espaço de grupo coletivo militavam pela questão, ressignificando essa memória do passado, que era sempre de sofrimento, de exclusão, discriminação e racismo, em luta para o futuro. Foi interessante discutir como que o espaço social do terreiro forma pessoas para militarem na sociedade sobre as discriminações que lhes cercam”, explica a assistente social. Na pesquisa de pós-graduação, realizada no contexto da capital carioca, Rachel coletou relatos que são similares aos das crianças do terreiro Ilê Dará, em Campo Grande: a maior parte das agressões são de natureza verbal. O artigo 208 do Código Penal brasileiro define crime contra o sentimento religioso como “ultraje ao culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo”. Mais especificamente, são atos de escárnio público a alguém devido a sua crença, perturbação ou

depredação de objeto de culto. Em linhas gerais, as situações são muito específicas e dificilmente incluem os casos que ocorrem velados nos espaços nos quais as crianças deveriam se sentir incluídas e seguras, isto é, o ambiente escolar. A prática de ensino religioso no Brasil, que foi aplicada em parte das escolas, escancara algumas dessas falhas. A pesquisa de Rachel apontou que dois terços do total de escolas públicas adotam o Ensino Religioso. Destas, 50% dos diretores admitem que a presença na disciplina é obrigatória e 79% das unidades escolares não apresentam atividades alternativas aos alunos que não querem participar das aulas. O Pai de Santo Lucas Junot ressalta que a legislação brasileira também prevê que o ensino da cultura afro-brasileira seja obrigatório nas escolas. “Mas está atrelada a professores que têm outros valores, que não


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Intolerância tem origens históricas

A melhor resposta ao ultraje está no orgulho que Edmilson sente de sua religião. “O Candomblé para mim significa muitas coisas, como magia e axé, acho tudo muito bonito e me sinto ansioso para chegar janeiro e talvez fazer o meu santo e me tornar um Iyawô”, ressalta.

dominam aquilo, e que simplesmente passam as páginas quando chega o momento, a oportunidade de ensinar para as pessoas que os rótulos que colocaram na fé dos outros não procedem”, lastima.

Ensino pela tolerância

A professora Jacira Helena Pereira, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), desenvolve pesquisas sobre religiosidade e educação e confirma a proposição de Junot acerca do Ensino Religioso. “Quem ministra, normalmente, é alguém ligado a uma religião, principalmente ao Cristianismo. O professor geralmente é um catequista ou alguém vinculado às Igrejas Protestantes, e ali faz proselitismo: olha a questão partir do seu lugar, da sua religião. Isso gera preconceito, gera discriminação. Quando estamos trabalhando em escolas, ensinamos aquilo que é universal para a humanidade”, explica a pesquisadora. De acordo com Jacira, situações nas quais as crianças reproduzem preconceitos adquiri-

dos previamente em outros ambientes devem ser sim combatidas na escola com outros tipos de intervenção. “Ao mesmo tempo em que não deve existir uma disciplina de Ensino Religioso, no momento que o professor percebe situações de discriminação, de preconceito, de xenofobia, de perseguição, tem que criar a prática da tolerância. Tem que parar o seu conteúdo para fazer uma discussão sobre a pluralidade. Nós educamos para gerar autonomia, para gerar pessoas que tem respeito pelo outro e no momento que você tem alguma coisa que fere esse respeito tem que criar uma ação para isso. Uma das vias de fazer isso é discutindo a nossa Constituição, os grupos que formam a nossa identidade e as diferenças de perspectivas religiosas que existem na nossa sociedade”, conclui a pesquisadora.

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Tanto Rachel da Costa e Oliveira quanto Lucas Junot explicam as origens da intolerância religiosa com base na História do Brasil. Para eles, no período que remete à escravidão, as religiões de matrizes africanas eram cultuadas por pessoas marginalizadas. Além disso, afirma Junot, os cultos não cristãos eram desprezados pelas elites políticas e econômicas. O jornalista explica que a Umbanda nasceu de uma associação dos orixás do Candomblé com os santos da Igreja Católica como resistência dos negros que não tinham liberdade de culto. Junot também esclarece a origem histórica da vinculação no Brasil entre a prática do Candomblé e a ideia de maldade. “Orixás são apenas variadas formas de representação de um único Deus para os candomblecistas. Deus está representado em tudo o que há na natureza, tudo aquilo que nos mantém vivos, do alimento à água”, exemplifica. O jornalista argumenta que a relação entre a religião e a concepção de diabo remete historicamente a uma compreensão equivocada da figura do Exú – orixá que no Candomblé rege a comunicação entre os homens e Deus, representado nas imagens com uma haste central subdividida em três, que remete à multiplicidade de caminhos. Segudno Junot, contraditoriamente, no Candomblé, não se acredita em figuras que representam o mal, o oposto de Deus, tampouco em condenação ou salvação. “Todos nós temos a oportunidade de nos aprimorar como pessoas”, afirma. Portanto, as insinuações de que o Candomblé cultua o diabo não fazem sentido para os próprios seguidores da religião, conclui o jornalista.


SAÚDE

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Diferenças em comum

OMS estima em 70 milhões o número de pessoas com autismo em todo o mundo e 2 milhões somente no Brasil; carente de informação a respeito, sociedade ainda resiste à compreensão dos autistas, sobretudo na fase adulta Texto: Raquel Eschiletti | Rúbia Pedra Infografia: Fábio Faria

I

As respostas surgem tímidas, objetivas, confusas e o foco de atenção varia muito. Entre os seis adultos presentes na sala, é possível perceber pontos em comum, como a ansiedade, e suas diferenças, principalmente em relação ao desenvolvimento da fala e da socialização. Situações como essas se repetem semanalmente na sede da Associação de Pais e Amigos do Autista de Campo Grande, a AMA-CG, organização filantrópica que desenvolve atendimentos voltados à melhora das condições de vida dos autistas. “As pessoas ensinam as crianças autistas desde pequenas a

Victória Lacerdaa

nquietação. As pernas balançam rapidamente, os corpos se movem quase involuntariamente enquanto as mãos não sabem onde ficar durante quase uma hora, tempo de duração das atividades do grupo. No início, a professora precisa estimular a participação de todos. Na medida do possível, busca manter o controle sobre os assuntos para seguir a atividade. Alguns têm mais facilidade em planejar os próximos passos, outros nem tanto.

Um dos pilares das dificuldades no autismo é a socialização, principal fator que a professora Shirley Nunes trabalha

trabalhar a rotina, como seguir, aprender a se limpar, a comer, a pegar tal coisa, ir para a escola, a rotina de vida. Elas aprendem, só que chega uma hora em que a criança já não é mais criança”, explica a pedagoga Shirley Nunes, especializada em psicopedagogia, responsável pelo grupo de atendimento de adultos autistas na associação. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), há cerca de 70 milhões de pessoas com autismo em todo o mundo e 2 milhões somente no Brasil. O Transtorno do Espectro Autista (TEA), popularmente conhecido como autismo, não é uma doença. Estudos científicos mostram que o transtorno decorre de um desenvolvimento genético que remete a uma percepção única do indivíduo sobre o mundo ao seu redor. Como não constitui uma doença, não existe cura para o autismo, mas tratamentos que amenizam as dificuldades na sociedade de inserção dos diagnosticados. “A pessoa tem um problema no desenvolvimento que pode gerar algumas características, como perceber o mundo dela de uma maneira diferente, ter mais dificuldade de interagir socialmente ou de iniciar as interações sociais, fazer amizades, manter relacionamentos”, esclarece André Varella, doutor

em Psicologia e coordenador do Laboratório de Pesquisa em Autismo e Comportamento (LAPAC) da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Tecnicamente, o termo “espectro” é adotado para abranger a dimensão do transtorno, pois apesar dos traços gerais, cada caso é singular. Os níveis variam entre leve, moderado e severo. A vida adulta, como toda fase nova, propõe novos obstáculos a todas as pessoas. Para os autistas, as barreiras surgem com dimensões diferentes. Para alguns, o desafio é conseguir ser aprovado e se formar no ensino superior. Para outros, as dificuldades são mais elementares, como a realização de tarefas diárias simples, a exemplo de escovar os dentes ou pentear o cabelo sozinho. No caso do acadêmico do primeiro ano de Artes Visuais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Akim Ferreira, 20 anos, o nível do transtorno é considerado leve no interior do espectro. Dificuldades comuns para outros estratos de autismo são quase imperceptíveis no universitário. Ele não se cansa de provar que o diagnóstico não o impede de realizar as mesmas atividades de seus colegas de curso. Seu foco principal, como futuro artista plástico, é poder viver da confecção de bonecos conhecidos como “ball jointed dolls” (bonecos com articulações esféricas, em português). Ou seja, como qualquer outro jovem, sonha em ganhar a vida com o que gosta. “Fiquei com vontade de fazer isso depois de assistir Toy Story 2”, vislumbra ao fazer referência ao filme do qual é fã.


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SAÚDE

O hiperfoco é outra característica básica do transtorno, objetos transparentes,

Entre 2006 e 2014, uma em cada 59 crianças foi diagnosticada com o transtorno de autismo de acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças.

como caixas de “tictac”, compõem de interesse de Fabiana.

‘Ritual é tudo’

Fabiana Rodrigues de Queiroz, 28, levanta cedo todos os dias, faz xixi, toma café, banha-se e veste o uniforme que vai para a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE). Com chuva ou sol, tempestade ou tsunami, como brinca a mãe Elenir Rodrigues de Queiroz, mantém impecavelmente o ritual. Depois da aula, almoça, tira um cochilo, acorda e toma um café preto. Mesmo aos sábados e domingos, a rotina se mantém, mas é necessário explicar que o uniforme é dispensável, pois não é dia de aula. “O ritual é tudo”, esclarece Elenir. “A rotina pode até ser quebrada, mas tem que ser pactuada antes, ela precisa entender o porquê”, enfatiza a mãe.

“O ritual é tudo. A rotina pode até ser quebrada, mas tem que ser pactuada antes, ela precisa entender o porquê” diz Elenir

A fixação pelo ritual não é uma característica exclusiva de Fabiana. Autistas em geral tem dificuldade de se desvincular da ordem das atividades cotidianas e, por isso, qualquer mudança deve ser planejada com antecedência. Fabiana foi diagnosticada como uma autista “pura”, conforme explica Elenir, já que não possui nenhum outro transtorno associado. Ainda assim, na APAE convive com pessoas com diversas modalidades de transtornos e deficiências. Apesar de todo o avanço conquistado através de anos de tratamentos e cuidados especiais, Fabiana não possui uma boa articulação da fala, por isso se comunica com sons e expressões corporais. Todos os dias a jovem frequenta a instituição. As aulas convencionais, porém, ocorrem apenas nas segundas, quartas e sextas-feiras, com atividades complementares nos dias restantes. Introduzir novas atividades na rotina das pessoas diagnosticadas com autismo é um desafio constante. No caso da AMA-CG, a professora Shirley

trabalha com atividades externas, levando os alunos para conhecer a cidade e aprender a realizar atividades práticas do dia a dia, como fazer compras. O processo é feito em etapas, evitando mudanças bruscas. Semanas antes, é realizado um estudo exploratório a partir de fotos e vídeos do local. Depois deste intervalo, os alunos visitam o lugar pela primeira vez, com um planejamento exato de cada detalhe do passeio. Por último, retornam sem planejamento, buscando a maior naturalidade possível. Outro exemplo é a maneira como a própria Elenir, no interior da rotina caseira, ensinou Fabiana a lidar com a menstruação. “Trocava o modess [absorvente] na frente dela, tomávamos banho juntas e já ensinava, disponibilizava os modess pela casa e, às vezes, ela brincava, pegava e colocava na própria calcinha. Fui a acostumando com essa ‘coisa’ da menstruação, até que quando chegou a adolescência e ela menstruou, concretizou-se”, relata a naturalidade do processo.

O Centro também afirma que o autismo é quatro vezes mais frequente em meninos do que em meninas.

O transtorno ocorre em todas as raças, etnias e grupos econômicos.

OMS estima em 70 milhões o número de pessoas com autismo em todo o mundo.

Estima-se 2 milhões de autistas somente no Brasil.

Victória Lacerdaa

um dos focos

Arthur é um dos alunos do grupo da AMA e possui o hiperfoco em aranhas


Fabiana foi adotada aos dois anos e meio de idade. A menina era filha de moradores de rua e não teve os cuidados primordiais nos primeiros anos de vida. Ela ficou oito meses em abrigo e mais quatro meses hospitalizada antes de chegar ao acolhimento da então assistente social, Elenir. Em 1992, era mais difícil o acesso à informação sobre o autismo. A mãe conseguiu contato com uma organização não-governamental e recebeu o diagnóstico de uma psiquiatra. “Escuta, sua filha é autista”, conta ao recordar a fala da médica. “O que é isso?”, retrucou a mãe, antes de ouvir a ríspida advertência: “Você tem nível superior, então se vira, procure, pesquise”, conclui. O diagnóstico tardio ou falho de adultos autistas se justifica também pela falta de conhecimento sobre o transtorno, lapso que diminuiu no Brasil na última década. “Antes não sabíamos classificar, não conseguíamos dar nome, até então se achava que era muito raro, somente aqueles casos muito graves. No entanto, como o autismo engloba casos leves também, começaram a ser diagnosticados e muitos deles tardiamente”, elucida André Varella. Atualmente, o foco é diagnosticar as crianças para aplicar o tratamento desde cedo e adquirir melhores resultados, o que não significa que os adultos são menos importantes. Varella defende a necessidade de conjugar o tratamento profissional com a inserção social. “O autista tem que passar por um tratamento, sim, tem que ser assistido para conseguir entender como o mundo funciona e aprender cada vez melhor a lidar com ele, mas o mundo também precisa aprender a lidar com a

pessoa com autismo, é uma via de mão dupla”, enfatiza o psicólogo. Ao ter o diagnóstico de Fabiana, Elenir foi em busca de respostas e de formas para ajudar a filha a se desenvolver. Com muita observação e cuidado, procurou compreender as características do transtorno. “Procurava anotar as experiências com ela. Os médicos, terapeutas e professores me ajudaram muito”, rememora. Elenir relembra, por exemplo, de quando ensinou a menina andar em linha reta. “Soltava na quadra do condomínio e ela saia sem rumo, ensinei a andar nas linhas pintadas no chão”. Quando Fabiana completou 7 anos, a mãe tentou matriculá-la na escola, mas recebeu várias respostas negativas. “As diretoras davam gargalhadas na minha cara. Toma teu rumo, tua filha aqui não”, lamenta. Segundo especialistas, a reação da sociedade em relação aos indivíduos do espectro remete a um preconceito gerado pela falta de conhecimento. A informação é uma grande aliada do respeito e o convívio é a melhor forma de aprendizagem. Os autistas, nesse contexto, conseguem perceber os olhares indelicados no cotidiano. De acordo com os professores, alunos da APAE até evitam usar o uniforme nos transportes públicos, pois alegam que já foram alvos de chacota. Para o psicólogo André Varella, outro fator que contribui para o preconceito é o fato do autismo “não ter cara”. “Não tem como fazer um diagnóstico de autismo apenas olhando para a pessoa, não há nenhum indício físico e isso é uma questão difícil”, alerta. O especialista complementa que existe falta de compreensão com crianças que apresentam sintomas, pois pode

Mariana Moreira

Diagnóstico

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SAÚDE

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Sem ajuda da mãe, Fabiana se recusa a atravessar a rua; a jovem foi ensinada desde pequena a esperar Elenir para realizar a travessia com segurança

ser confundido com birra ou falta de limites dos pais. Por sua vez, Shirley pontua que muitos casos de autismo são descobertos após crises em locais com grande aglomeração de pessoas, como mercados e shoppings.

Hiperfoco

O grupo de adultos autistas começa com a apresentação de um tema geral para a discussão as férias - e todos têm que contar como está o planejamento. Arthur Ramos, 16 anos, diz que vai para praia do Brasil. De sua parte, a professora questiona qual praia do país o garoto irá visitar. O garoto reafirma que quer conhecer “a praia do Brasil”. Demora um pouco até que ele entenda a dimensão do litoral brasileiro e que existem várias praias. Lembra-se, então, de quais já foi. A aparente incompreensão de alguns assuntos, que para a maioria são simples, é decorrente de uma característica básica do autismo: o hiperfoco. O autista costuma se interessar por poucas coisas, mas aquelas pelas quais interessam são exploradas

minuciosamente. “Cabe aceitarmos, mas também ajudá-los a ter interesse em outras coisas”, afirma o psicólogo André Varella. O foco de interesse de Arthur, por exemplo, são as aranhas. O garoto é hiperfocado no tema e garante não ter medo. Admite que até adota algumas em sua casa, matando insetos para alimentá-las. Já o foco de Fabiana são papéis de bombom, caixinhas de bala e artefatos transparentes. Elenir conta que já passou por várias situações em que teve que pedir para as pessoas não darem este tipo de presentes à jovem - o que pode soar como deselegância para quem observa de fora. “Quando você introduz uma coisa, nunca mais consegue tirar dela, por isso que não posso ensinar coisa errada”, relata. Elenir reclama do tratamento infantil que a sociedade insiste em ter com os autistas adultos. “Não é uma bebê, ela é uma pessoa adulta, a roupa é de adulta, a bolsa é de adulta, o sapato é de adulta. Não posso deixar tratá-la como criança, ela tem 28 anos”, desabafa.

“Não é uma bebê, ela é uma pessoa adulta, a roupa é de adulta, a bolsa é de adulta, o sapato é de adulta. Não posso deixar tratá-la como criança, ela tem 28 anos” diz Elenir

Muitos familiares preferem esconder a condição dos filhos e os deixam presos em casa. O apoio das instituições nem sempre se estende para a rotina familiar, o que pode resultar em retrocesso no tratamento. É indispensável não subestimar os autistas e suas capacidades, e sempre acreditar em suas evoluções. “A gente não tem uma escola, isso não se aprende em lugar nenhum, e é muito dolorida a caminhada. Eu redimensionei a minha vida, e vi que eu tenho um grande tesouro, que é a minha filha”, conclui a mãe de Fabiana.

raquel.eschiletti@gmail.com rubiapedra@gmail.com


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extramuros

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Incluir para transformar

Texto: Equipe da Escola Estadual Amélio de Carvalho Baís | Ilustração: Accacio Mota e Natalia Hirata abemos hoje por meio de estudos que a inteligência apresenta muitas faces e que todos nós as possuímos de maneira integral. Será? A partir de dúvidas e indagações, surge a busca pelo saber e fazer da ciência. O percurso para a compreensão de um mesmo conteúdo atravessa caminhos diferentes nos indivíduos? Tais fatores são diferentes quando nos referimos a diversidade no ambiente escolar? Partimos da premissa de que o processo de inclusão não está aliado com a educação tradicional, uma vez que a inadequação de métodos que utilizam a simples transmissão de conhecimento e individualização de tarefas, homogeneização de respostas e comportamentos esperados, não fazem do aluno o sujeito protagonista de sua aprendizagem. Portanto é necessário que a escola mude suas concepções sobre as suas metodologias de ensino. Todos os alunos, independentemente de suas dificuldades e incapacidades reais ou circunstanciais, têm a mesma necessidade de aceitação, compreensão e respeito. Assim, é necessário levar em consideração a individualidade dos alunos no processo de aprendizagem. Com base nesta perspectiva, a educação inclusiva possui destaque na Escola Estadual Amélio de Carvalho Baís. A nossa concepção de ensino objetiva garantir a todos o direito de uma educação de qualidade. Lutamos pela igualdade de oportunidades, onde valorizamos as diferenças, contemplando as diversidades étnicas, sociais, culturais, intelectuais, físicas, sensoriais e de gênero dos seres humanos.

A equipe da unidade escolar acredita que o êxito nesta perspectiva se deve à uma transformação cultural de práticas e políticas no âmbito escolar. A inclusão gera mudanças e isso interfere diretamente nas práticas pedagógicas. Dessa forma, os professores tendem a buscar inovações e reestruturações de suas estratégias em sala de aula.

Como característica dessa proposta educacional, destaca-se a inserção da pesquisa como fator primordial, pois somente por meio desta mudamos as concepções e inserimos a escola em um histórico de diferencial na busca pelo saber cientifico e mediamos a construção de um processo de metodologias ativas na didática docente. Uma parte significativa dos trabalhos científicos desenvolvidos durante o ano de 2018 – a exemplo do desenvolvimento de um sistema de condução para deficientes visuais, do incentivo do empoderamento feminino no ambiente escolar, da criação de um jogo de química para compreensão da tabela periódica integrando um aluno surdo com os demais colegas e da conscientização a respeito do transtorno de personalidade bordeline abordaram a inclusão, uma vez que lidamos com as diversidades por intermédio da pesquisa. O conhecimento e a busca pelo saber possuem função libertadora no ser humano. A diversidade do ambiente escolar torna-se um contexto propício para aquisição do saber e gera a busca constante pelo conhecimento, uma vez que somos movidos pelas nossas dúvidas e indagações. Lutar pela inclusão é transformar mentes e concepções e propiciar uma aprendizagem significativa para a vida dos alunos. *A Escola Estadual Amélio de Carvalho Baís serviu de laboratório para o levantamento dos temas da Edição 91 do jornal Projétil.

eeacb@sed.ms.gov.br


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