Favelinha, Vila Canoas - Contracartografias narradas

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Favelinha,

Vila Canoas

contracartografias narradas



Por João Vitor Ximenes e Luísa Albuquerque



Índice Vila Canoas, a Favelinha (contexto).................................6 Paisagem e Experiência (autores)....................................8 Uma pergunta para a Favelinha.....................................10 A Coleta (processo de pesquisa)....................................12 Contracartografia (definição do produto).......................14


Vila Canoas, a Favelinha


A Favelinha - Contexto Vila Canoas está situada na estrada das canoas e o início da construção das moradias que a originaram se deu nas primeiras décadas do século XX, com protagonismo dos pescadores da praia de São Conrado, os primeiros moradores. Seu crescimento está diretamente relacionado ao Golf Club também que, inaugurado por volta de 1920, quando demitia funcionários, estes perdiam direito à moradia no terreno do clube e partiam, então, para a construção de suas casas nas proximidades, tanto na favela da Pedra Bonita quanto em Vila Canoas. As casas foram sendo posicionadas margeando o Rio das Canoas, mais tarde apelidado pelos moradores de cachoeira, e a relação que se tinha era de lazer e contato com a natureza nas águas limpas e correntes ali. Neste ponto, surge uma das características mais marcantes da Favelinha, relativa ao seu assentamento que começa na altura da estrada e desce até o rio sendo, assim, formada em declive. Os primeiros moradores acompanharam desde a construção do Túnel dois Irmãos e da estrada Lagoa Barra, até a urbanização do bairro que trouxe condomínios luxuosos e hotéis de elite. No passar do tempo, a Favelinha cresceu e com o grande número de casas já não se podia mais ver o rio, e sobre ele foi-se despejando o esgoto local tornando-o impróprio para banho. Houve, dessa forma, um afastamento das relações com a natureza, embora ainda hoje ela esteja imersa na mata, e um crescimento das dinâmicas internas nos becos e praças que se formaram entre as casas.


Paisagem e experiência


O que é paisagem? - Autores Nosso estudo parte da busca inicial pela compreensão do que é paisagem e o que caracteriza nossas formas tanto como indivíduos, tanto como parte do coletivo social de experienciar essa paisagem. Permeando as definições de Solá Morales em Paisajes¹, percebemos que a experiência do habitar no espaço da Favelinha, faz dela completamente diferente e única aos olhos de seus moradores, que constantemente geram novas dinâmicas e formas de se estar efetivamente no lugar onde vivem e criativamente construírem seu próprio modo de vida enlaçando-o com o espaço público que dispõem.

“A cidade atual internaliza sua energia, mas também seus conflitos sociais, geológicos, ambientais, aceitando com fatalismo conviver com eles.” A Favelinha também representa os conflitos internalizados na sociedade carioca quando percebemos grande hostilidade e muros altos para distanciála das mansões na Estrada das Canoas, para além do enorme descaso dos passantes e do próprio governo com a comunidade, seus moradores e suas demandas e necessidades.

“Uma possibilidade de micro-resistência à espetacularização urbana pode ser encontrada no próprio uso cotidiano da cidade, em particular na experiência não planejada ou desviatória dos espaços públicos...” Em seguida, com a leitura de Paola Britto em Zonas de Tensão², iluminouse um interesse pela formação das microrresistências que efetivamente caracterizam a favelinha como uma zona urbana opaca, como o oposto da espetacularização e da cenarização das cidades. Passamos a abrir os sentidos para perceber melhor como os moradores ativamente subverterem o uso do pouco espaço público de que dispõem acomodando suas atividades cotidianas.


Uma pergunta para a Favelinha


Direcionamento - A Questão Trabalhada Partindo dos conceitos aprendidos com as leituras mencionadas chegamos à questão principal a ser trabalhada no nosso local de estudo:

Como se constrói a experiência da paisagem da favelinha para quem a habita? A pergunta vem da percepção de que Vila Canoas, a Favelinha não aparece de forma óbvia para quem passa no asfalto e essa série de dinâmicas efervescentes que a compõem, foram o que nos atraiu a atenção, num chamado para explorar e adentrar no que os mapas não mostram. Dessa forma, voltamos nossa pesquisa para a construção da imagem da Favelinha segundo seus moradores, enlaçando as microrresistências² que lá ocorrem diariamente como objetos de estudo. No decorrer da nossa coleta de materiais percebemos, no entanto, que não é possível dissociar uma ou duas formas de microrresistências do todo que é Vila Canoas, entendendo que trata-se de uma simultaneidade de acontecimentos no espaço público que constrói a vivência do lugar.

O esquema acima e a colagem foram fruto de um brainstorming de percepções e entendimentos iniciais.


A Coleta


Processo de pesquisa Para responder à pergunta, iniciamos um processo de coleta constituído por fotografias realizadas no local, e pela conversa com os moradores por meio de uma entrevista via Whatsapp e respondida pelos participantes em formato de áudio.

1.O que compõe a paisagem de Vila Canoas para você? 2.O que faz nas praças em Vila Canoas? 3.Qual lugar você mais frequenta em Vila Canoas? Por quê? 4.Como você se sente morando próximo a um rio? 5.Quais são as vantagens de viver em Vila Canoas? E as desvantagens? 6.O que você mudaria? Um total de 12 moradores colaboraram com o trabalho e 6 deles responderam às perguntas propostas pela entrevista. Com o conjunto de contribuições recebidas, obtivemos a perspectiva dos moradores sobre pontos e locais diversos na comunidade que modificaram as nossas próprias impressões e até mesmo nossas ideias de materialização de um produto final. Diante disso, percebemos que os áudios construíam narrativas sobre a favelinha, sobre o que mais marca quem vive ali e como quem mora marca o lugar. Isso nos fez perceber que os moradores de Vila Canoas ativamente intervêm no seu entorno, construindo e concedendo um caráter de constante mutabilidade à paisagem de lá.


Contracartografia


Definição do produto Assim, trouxemos a prática de Contracartografias, definida por David Sperling³ como norteador da união dos resultados da coleta.

“Dentro da diversa gama de manifestações cartográficas, nos chamam atenção as que disputam criticamente a produção de narrativas, as “contracartografias”. “a aparição das contracartografias, por sua vez, tem contribuído para intervenções estético-políticas, sendo caracterizadas, principalmente, por colocar em disputa estratégias de poder e os próprios sujeitos participantes dessa produção cartográfica.” Buscamos, então, construir um mapa de Vila Canoas através das narrativas dos moradores, unindo o material fruto da coleta com os áudios das entrevistas, as imagens e a utilização de formas de representação diferenciadas para gerar um grande painel cartográfico, realizando, assim, uma subversão dos mapas, indo além, da mesma forma que a favelinha subverte seu espaço. Para isso trabalhamos em dois pontos principais: a construção de narrativas com os áudios dos moradores e a transformação destas narrativas em elementos gráficos por meio de fotografias e desenhos manuais.


Narrativas e peças gráficas

As narrativas foram fruto da união dos áudios resultantes das entrevistas e da nossa própria percepção da favelinha de acordo com as histórias contadas pelos moradores e os elementos gráficos que as acompanham foram feitos manualmente enlaçando as palavras com as fotografias (todas tiradas por moradores) e com desenhos ilustrativos.


[//01] A favelinha fica ali ó, subindo aquela ladeira. Depois de umas três ou quatro curvas É perto // mas parece uma eternidade Até lá são muros infinitos… E tem a natureza que ecoa no fundo São uns respiros para os olhos. (sons de carros - simulando o movimento da estrada) [//02 audio 1 sidinei rodrigues]Mas o que é paisagem exatamente? subindo aqui não vejo muita coisa além dos muros das mansões, a paisagem nessa hora é mais o barulho dos carros passando, do vento nas árvores...[//02.B audio 1 sidinei rodrigues]isso é paisagem? (sons simulando o verde) [//03 - audio1 livia nunes]“Sempre que eu subo a estrada das canoas e reparo na imagem, assim, total, completa, eu observo as montanhas - não montanhas que a gente não tem montanhas aqui- mas os morros, enquanto eu to subindo eu observo a floresta se movimentando atrás, sabe?Com os meus passos.” [//04]A favelinha não se revela. Não é o que você vê no asfalto. Vai além. É tudo que tá por trás. Pode ser como outra favela qualquer pro mundo, Mas a favelinha cresce ao contrário. [//05 - audio1 leandro lima]ela é bem diferente com que o bairro mostra, apesar que estamos próximo a uma praia, próximo a floesta da tijuca, e tudo... mas.... ela meio que se esconde do centro urbano e eu vejo queeee ela meio que se mistura[?] com o natural e o artificial mas de uma forma bem... uma forma bem discreta.



[//03 - audio 1 livia nunes] a favelinha, ela não é um morro éé que fica muito aparente, você não conhece a favelinha no mapa. Pra você conhecer a favelinha você tem que ESTAR na favelinha, você tem que descer a favelinha, é o que difere ela da Rocinha, dos outros morros, das outras comunidades. Então o que compõe a favelinha pra mim é o morro, a natureza, a floresta e a estrada - as estradas - as ruas...e as escadas...pra descer.” [//06]A praça, aquela do postinho de saúde, ela é o lugar mais rico daqui A primeira coisa que vejo. Mais vibrante na subida. É ponto de encontro. Ponto de ônibus. De descanso. De espera. De lazer. Ou já foi Mas vai desbotando. Com o tempo desbota. Com a pandemia desbota. [//07 - audio 2 livia nunes]“era lá que eu me reunia com os meus amigos, com a minha prima, e a gente brincava. Hoje em dia não é tão seguro pra criança e quando eu cresci também o que eu mais faço lá é aguardar a minha vez de entrar no posto de saúde hahaha, quando eu preciso de assistência médica.” [//08 - audio 2 yanne barros]“Bom é em relação às praças eu costumava utilizá-las mais pra lazer, pra - pra lazer mesmo né, pra ficar ali sentada... conversando, maiiiiss...agora eu não tenho usado né, por causa da pandemia e...também porque eu



[//09]A paisagem que transita. Que não é nunca a mesma. O espaço cheio, com grito de criança jogando bola os senhores no baralho a sirene da viatura, o carrinho de picolé às vezes míngua. [//02.B]isso é paisagem? (ecoando) [//10]Por aqui passa tudo que chega e tudo que sai. E tudo que fica, um dia passou. E ela é, tudo que as pessoas fazem ser. [//11 - audio 5 livia nunes]“Eu vejo muitos adultos - muitos homens adultos...e mulheres também usando a pracinha, que deveria ser um espaço para as crianças brincarem - que já foi um espaço para as crianças brincarem - de local pra fazer festinha , sabe. É...pegam um carro de som, estacionam ali e é isso. Usam aquele espaço que deveria ser público pra fazer festas no final de semana.” [//12 - audio 2 claudia souza]“a gente nunca tem muito tempo né, então já é unir o útil ao agradável, de ir dar uma caminhada, de ir sentá lá um pouquinho, de respirá, de vê a paisagem, de vê o movimento.” [//13 - audio 1 victoria cordeiro]pra mim, os gatos e os cachorros fazem parte dali, eles ativam a minha memória da praça, da rua….as crianças daqui usam os negócios de malhar que tem ali mais do que os adultos né… é a diversão delas [//02.B audio 1 sidinei rodrigues]isso é paisagem? (ecoando)



[//14]Depois é assim, descendo, que você vai entender Uma energia velada nos becos Essa efervescência que multiplica São coisas do dia a dia mesmo Um varal cheio de roupas Ou aquele churrasquinho de domingo Gente que abre a janela pra pegar um ar Criança na escada correndo Sem aquele medo de se ralar [//15 - audio 4 claudia souza] eu acho que a gente tem pouco espaço, tipo assim, é...espaço em geral, tanto pra morá - porque tem casas muito pequenininha - quanto pra...a gente poderia ter mais um tipo de comércio, é...alguma coisa amais mais o...a comunidade é pequena né.” [//16 - audio 2 victoria cordeiro]A gente tem muita sorte, esse contato com a floresta, com o ar puro, é uma delicia, vira e mexe uns macacos entram aqui, roubam minhas bananas, meus pão tudo… mas pra mim é um privilégio. [//02.B - audio 1 sidinei rodrigues]isso é paisagem? (ecoando) [//17 - audio 4 livia nunes] “Além da paisagem linda - de tirar o fôlego - a gente mora bem perto da praia, então...apesar de as moradias não serem exatamente… boas, grandes e confortáveis, a gente tem essa facilidade no acesso à praia - o que é algo muito bom, então...a vantagem é essa - a paisagem e o acesso à praia. A desvantagem é a qualidade de moradia, segurança...e é isso.”



[//18 - audio 1 karina dias]Ah eu moro muito bem graças a deus, é apertadinho mas é tranquilo, não tem do que reclamar, essa praça aqui da frente já é tipo…. tipo uma varanda nossa né, minha e das vizinha aqui, as pessoas já até sabem, essa é nossa área de serviço, como a gente chama, (risadas) tem nosso tanque de todo mundo pra lavar as roupas, a gente bota nossos varal e seca tudo rapidinho, bate um sol bom aqui de tardinha (risadas) [//02.B audio 1 sidinei rodrigues]isso é paisagem? (ecoando) [//19]Nasceu dos pescadores da praia de São Conrado. E os funcionários do golf club fizeram crescer Entre a mata e o rio. Um rio que era chamado cachoeira. Um rio de memórias que hora é paz hora é medo. [//20 - audio 1 yanne barros]“O que compõe a paisagem de Vila Canoas pra mim é a mata e a cachoeira né, porque...da minha janela eu só vejo a mata e a cachoeira, então acho que a maior parte de Vila Canoas foi construída em cima dela né é...as casas são muito próximas à cachoeira e à mata e a gente tenta preservar ao máximo isso né.” [//21 - audio 5 claudia souza]quando eu era criança é...esse rio era cachoeira limpa, dava pa tomá banho era muito legal e...tipo assim, hoje ele tem que ser preservado num tê que tê lixo porque senão causas é...com as chuvas de verão enchente e isso preocupa muito toda a comunidade. Mesmo eu não morando perto é...eu me sinto ameaçada quando vêm as chuvas de verão.”



[//22 - audio 4 yanne barros]“ minha casa - tá em cima do rio né - eeee assim, confesso que tenho medo mais em dia de chuva porque como enche muito acaba…afetando nessa parte. as casas dos vizinhos alagaram, anos atrás a casa de uma vizinha alagou aqui, ela perdeu tudo e, então, são coisas que marca a gente né, que a gente fica meio inseguro - será que dessa vez vai ser na minha casa? ou será que vai ser na casa de qual vizinho? [//23]E o Medo do rio? [//02.B audio 1 sidinei rodrigues] ...isso é paisagem? (ecoando) [//24]e o que é paisagem? A Favelinha é a ladeira? as escadas dos becos? A insegurança? [//02.B audio 1 sidinei rodrigues] ...isso é paisagem? (ecoando) [//25]as praças? [//02.B audio 1 sidinei rodrigues] ...isso é paisagem? (ecoando) [//26]O barulho dos carros? a natureza? [//02.B audio 1 sidinei rodrigues] ...isso é paisagem? (ecoando) [//27]A Favela Vila Canoas é a gente que habita que enche, que esvazia é a gente que ocupa, que muda. gente que ressignifica Ela é tudo que as pessoas fazem ser Isso é paisagem


O painel, apresentado em formato de vídeo, conseguiu trazer também movimento na utilização de gifs e na sincronização com as vozes dos moradores. Assim, conseguimos trazer alguns dos infinitos aspectos que fazem de Vila Canoas uma comunidade única, ilustrada com a percepção de quem habita, gerando uma contracartografia narrada e que explora recursos técnicos para trazer uma aproximação interativa da Favelinha. Nosso resultado final fala que a experência da paisagem para quem ali habita é construída pelo conjunto de intervenções e subversões criativas dos moradores no espaço público, mantendo-o inusitado e sempre em movimento. A resposta são as pessoas, suas necessidades que as impulsionam a terem ideias diferentes e extremamente interessantes, que constroem e reconstroem a Favelinha. Isso é paisagem.




Agradecemos e dedicamos este trabalho aos moradores que foram essenciais para a construção deste trabalho: LIVIA MARTINS KARINA DIAS VICTORIA CORDEIRO LEANDRO LIMA YANNE BARROS CLAUDIA SOUZA MARIA FÁTIMA RODRIGUES HENRIQUE NUNES SIDNEI ANSELMINI ANA ALMEIDA KARLA DIAS NEUZA ARAÚJO


BIBLIOGRAFIA: 1. SOLÀ-MORALES, Ignasi. Paisajes; Annals, 200 PTA, JULIOL 2001 2. JACQUES, P. B. Zonas de Tensão; Corpocidade: debates, ações e articulações 3. AKEMI, Cristina.; KIMINAMI, G.; SPERLING, D.M.; Artistic countercartographic practices and the destabilization of maps


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