Já - História >> 1964 Assim começou o golpe

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14,00 História

1964

Assim começou o golpe De pijama e roupão vermelho, o general Olympio Mourão Filho pegou o telefone e anunciou que estava com as tropas na rua

Por que Jango caiu Por que não houve resistência exclusivo

A fuga “estratégica” de Meneghetti


www.al.rs.gov.br

Há cinco décadas, João Goulart foi deposto pelo Golpe Militar de 1964, ato que interrompeu a implantação das Reformas de Base e mudou a história do Brasil. Para marcar essa data, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul preparou uma série de atividades sobre a trajetória de Jango e sobre os anos de chumbo, um dos períodos mais sombrios da democracia brasileira.

Seminário: Jango, as Reformas de Base e o Golpe de 1964. 02/04, a partir das 19h, no Teatro Dante Barone da Assembleia Legislativa, em Porto Alegre. Abertura oficial com a presença do presidente da ALRS, deputado Gilmar Sossella. Painelistas: Waldir Pires, consultor-geral da República durante o governo Jango; e Lícia Peres, socióloga. Mediador: Christopher Goulart, neto de Jango. Relançamento da coletânea A Ditadura de Segurança Nacional. 03/04, a partir das 19h, no Memorial do Legislativo, em Porto Alegre. Painelistas: Paulo Henrique Amorim, jornalista; Silvio Tendler, historiador e cineasta; e Maria Thereza Goulart, viúva de Jango. Mediadora: Denise Goulart, filha de Jango. Relançamento da Série Perfis - Parlamentares Gaúchos - João Goulart Abertura da exposição fotográfica Jango, as Reformas de Base e o golpe de 1964 04/04, a partir das 19h, no Memorial do Legislativo, em Porto Alegre. Painelistas: Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do RS; e Maria Aparecida de Aquino, historiadora da Universidade de São Paulo (USP). Mediador: Juremir Machado, jornalista e escritor.

Informações e inscrições: www.al.rs.gov.br Serão emitidos certificados aos participantes.

Na sua cidade, fazendo a diferença na sua vida.


n esta e dição Entrevista

Flávio Tavares

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legalidade

Vitória de Brizola

12

artigo

As razões da queda

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jango

O herdeiro de Vargas 17 comício da central

O começo do fim

22

capa

Os golpes de Mourão 25 porto alegre

33

resistência

Presidente acuado

34

rs

Meneghetti fugiu

44

anos 60

O carro era o Simca

48

país

Brasil de 70 milhões 50 expurgos

Caça às bruxas

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imprensa

A mídia golpista

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história abril de 2014 Editor: Elmar Bones Redação: Elmar Bones, Geraldo Hasse,

Patricia Marini e Renan A. de Oliveira Imagens: Gerson Schirmer* Capa: Ilustração de Enio Squeff em acrílico sobre papel Editor gráfico: Andres Vince

Av. Borges de Medeiros, 915 cj. 203 Viaduto Otávio Rocha - CEP 90020-025 Porto Alegre/RS

O golpe de 1964 teve como fermento as profundas mudanças sociais ocorridas no Brasil no início da industrialização do país. Brasília, a capital artificial, construída para distanciar o poder político da inquietação das massas populares que afluíam aos grandes centros urbanos, é o símbolo perfeito dessa época. Novos atores sociais, novas demandas, novas perspectivas criavam o ambiente de agitação política que marcou o período. No contexto da Guerra Fria, toda essa ebulição social assumiu um aspecto assustador aos olhos do poder norte-americano, apreensivo com a expansão do comunismo soviético que, com a revolução cubana, colocou um pé nos seus quintais. O Brasil não poderia representar um risco e a essa ideia aderiram as elites internas aliadas aos agentes do poder imperial dos Estados Unidos. As primeiras assustadas com a ousadia das massas que se organizavam, os segundos dispostos a eliminar qualquer surpresa no campo de sua hegemonia. O resultado foi o brutal processo da manipulação da vontade nacional, que culminou com a derrubada do governo constitucional presidido por João Goulart. Como acontece sempre que se abandona o caminho da legalidade, o que foi anunciado como um “golpe preventivo” contra o perigo do comunismo tornou-se uma ditadura que durou duas décadas e cujos efeitos perduram até hoje, 50 anos depois. Esta é nossa primeira edição sobre o tema. Dedicamos aos verdadeiros democratas de ambos os lados, que foram os grandes derrotados em 1964.

Fone: (51) 3330-7272

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O Editor

www.jornalja.com.br | twitter jornal_ja jornaljaeditora@gmail.com * Reprodução de publicações da época. Acervos: Museus da Brigada, Hipólito da Costa, Joaquim Felizardo, Memorial AL e Arquivo JÁ

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Má notícia na festa

HISTÓRIA O Golpe de 1964

Revista


Entrevista Flávio Tavares

“O que fez o golpe foi a ” Guerra Fria

T

rês jornalistas estavam na sessão de emergência do Congresso Nacional, na madrugada de primeiro de abril de 1964. Um deles era Flávio Tavares, um jovem de 29 anos, que assinava a coluna política do jornal Última Hora. Ali, em três minutos, atropelando o bom senso e a legalidade, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declarou vaga a Presidência da República e abriu o caminho político para o golpe que, militarmente, já tinha sido deflagrado pelo general Mourão Filho, em Minas. “Assisti a tudo, mas só agora, 50 anos depois, fui descobrir os elos da conspiração e da articulação do golpe”, diz Tavares no livro 1964, O Golpe, que escreveu para contar essa tenebrosa história.

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JÁ - Como foi aquele dia em Brasília? Flávio Tavares - Estávamos isolados em Brasília, sem telefone, sem telex... O aeroporto estava fechado desde as nove horas da manhã, não sabíamos de nada. A única fonte era a embaixada americana, que tinha comunicação com o Rio. Então, sabíamos alguma coisa indiretamente.

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Da mobilização do Mourão, sabiam? Da mobilização do Mourão se soube vagamente, pois na verdade ela começou dia 30, com um manifesto lançado pelo governador de Minas, Magalhães Pinto. Unindos o PSD juscelinista com a UDN, ele queria

criar um estado de beligerância, para ser reconhecido pelos Estados Unidos. Tanto que antes de divulgá-lo, enviou o texto por telex para a embaixada americana no Rio. A Casa Branca e o presidente Lyndon Johnson conheceram o manifesto antes dos mineiros. Um manifesto ambíguo, no estilo mineiro... Era mineiro a tal ponto que o Jango ainda no Rio recebeu telefonema de um deputado do PTB de Minas se congratulando: ”O Magalhães lançou um manifesto pelas reformas”. É que no final do texto, ele fala nas reformas. Esse manifesto deixou o Mourão furioso, porque ele queria HISTÓRIA O Golpe de 1964


que fosse incisivo, contra o Jango. Mas o Magalhães, como bom mineiro, deixava espaço para um recuo, caso o golpe não desse certo. E quando o Jango chegou a Brasília? Quando o Jango chega em Brasília no fim da tarde, já em fuga, fui de fato o único jornalista a estar com ele. Estávamos no Planalto eu e Fernando Pedreira, do Estadão, mas o Estadão era radical contra o Jango, chamava-o de “presidente totalitário”... o Pedreira logo saiu. Tinha também uma repórter do Correio Brasiliense, era comunista, amiga pessoal do Jango... Ficamos eu e essa moça, Maria da Graça Dutra, entramos no gabinete, o Jango estava arrumando uns papéis e falou: “Vou instalar o governo no Rio Grande do Sul. Nomeei o general Ladário para o III Exército...”

O Jango falou em resistir? Na verdade o Jango já saiu do Rio em fuga, ele queria negociar. O Jango não sabia resistir, ele era um grande negociador. Havia um serviço de rádio e por ele o Jango fala com Porto Alegre, com o Brizola. Havia um serviço de rádio do III Exército, que funcionava muito bem e era operado pelo major Álcio. Só que o major Álcio gravava tudo e depois passava para o pai dele, o general Costa e Silva (risos). Havia também no Planalto um telefone no gabinete presidencial, era uma espécie de “telefone vermelho”, levantava e dava direto com a central telefônica no Rio. Por esse telefone Jango faHISTÓRIA O Golpe de 1964

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Mas o general Ladário Telles ainda nem tinha chegado a Porto Alegre... Sim, ele chegou já na madrugada do dia 1o de abril. Era general-de-divisão, foi comissionado para poder assumir o III Exército e acreditou que o Jango queria resistir.

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Lincoln Gordon (à esquerda na foto) sugeriu a Kennedy levar Jango para conhecer a base miliar de Offutt

lou com o general Moraes Âncora, comandante do I Exército. Era um homem corretíssimo, legalista. Era asmático, estava com uma crise de asma, falava com dificuldade. Ainda não havia tomado providência nenhuma, aguardava ordens... O ministro do Exército estava no Hospital, numa posição dúbia... O ministro da Aeronáutica estava em cima do muro e o ministro da Marinha, que mandava pouco, havia recém-assumido...

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Ele decide então instalar o governo em Porto Alegre? Sim, mas fundamentalmente para negociar enquanto o Congresso votaria o impeachment, o que demoraria uns oito dias...

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Por que ele hesitou em autorizar a resistência? Provavelmente porque, num conflito, como aconteceu em 1961, ele seria o menos importante. Os beligerantes é que seriam importantes, o Ladário Telles ou o Brizola... Na verdade, nada deu certo naquele dia. O Jango havia requisitado um Coronado da Varig, um jato intercontinental. Saiu da Granja do Torto depois de gravar um “Manifesto à Nação” que foi redigido pelo Waldir Pires, pelo Almino Afonso e pelo Tancredo Neves. Só que usaram um gravador caseiro, a gravação ficou péssima, foi impossível reproduzir na rádio. Tínhamos tomado a Rádio Nacional, um grupo de jornalistas liderados pelo deputado José Aparecido, dissidente da UDN. Não adiantou nada. Aí o Jango vai para a Base Áerea... Sai por volta da oito, para a tomar o avião. Só que o Coronado da Varig teve um “mal súbito”. O velho amigo do Jango, o nosso Rubem Berta, o

presidente da Varig, provavelmente se deu conta de que a coisa já tinha virado, ele ia ficar muito mal... Nunca se comprovou, mas foi uma ordem. O Jango embarca e o avião tem uma pane... Dizem que foi sabotagem... Não houve sabotagem. Houve um “mal súbito”, como eu chamo. Então decidem passar para um Avro, porque o Viscount presidencial estava no conserto há 15 dias... e aí não tinha tripulação. Até que o coronel Ernani Fittipaldi, da Casa Militar, assume o comando e decolam. O Avro era um bimotor, lento. Saem às onze e meia da noite de Brasília. O Coronado faria a rota Brasília/ Porto Alegre em duas horas. O Avro demorou quatro horas ou mais. Sem telefone, sem informação, pensávamos que o Jango já estava chegando a Porto Alegre e ele estava ainda saindo de Brasília. Perdeu um tempo precioso... HISTÓRIA O Golpe de 1964

A capacidade de resistência estava minada. Em Brasília, o Mazzili já estava tomando posse como presidente. O Congresso tinha feito uma artimanha: numa sessão de três minutos, sem debate, nem votação, o Auro Moura Andrade declarou vaga a Presidência da República. O Darcy Ribeiro, como chefe da Casa Civil, tinha feito um ofício ao presidente do Congresso, dizendo que em vista dos acontecimentos o presidente da República o havia incumbido de comunicar que deixara Brasília para instalar o governo em Porto Alegre junto com o seu Ministério, “para proteger-se da tentativa de esbulho”. O Auro nem considerou: “A Presidência da República está acéfala... Declaro vaga a Presidência, com base no do artigo 79 da Constituição... está encerrada a sessão”. O Zaire Alves Nunes, deputado do Rio Grande do Sul, avançou para bater no Auro: “Seu filho da puta...” Não havia o que fazer... Na saída passo no gabinete do Tancredo Neves, ele


Jango visita os Estados Unidos, em 1962, e Kennedy foi esperá-lo na escadinha do avião. Tudo programado, tudo para impressioná-lo

No palácio do Planalto, como foi? Naquela caminhada da Câmara dos Deputados até o Planalto, às três da madrugada, me veio à cabeça um consolo... Puxa, isso até é bom, porque o Brizola não vai ter mais incompatibilidade, vai poder ser candidato à Presidência...” Ingenuidade nossa, pois o golpe era, mais do que tudo, para impedir a eleição e, mais do que isso, para impedir o Brizola. Engraçado é que, depois eu conto isso para o Brizola, em Montevidéo, e ele diz: “Tu sabes que tive a mesma ideia naqueles minutos iniciais... fiquei tão decepcionado com o Jango que pensei: ‘Pelo menos, agora posso ser candidato”. Pura ingenuidade... E a posse do Mazzili, também foi a jato, né? Fomos para o Planalto, onde ele ia

A que hora foi dada a posse? Pouco antes das quatro da madrugada... dez pras quatro mais ou menos. O Jango chegou a Porto Alegre às 3h15 minutos... A essa altura o Auro já havia declarado vaga a Presidência... E menos de uma hora depois foi dada a posse. Quer dizer, quando ele chegou ao Rio Grande, estava decidido... O Auro tinha raiva do Jango, não é? Isso foi decisivo. O Auro tinha ódio do Jango e com razão. O Jango tinha feito uma grande sacanagem com ele, coisa da honra pessoal. O Jango achava que tinha feito uma grande jogada política, mas... Foi sacanagem mesmo... Era típico das manobras do Jango. Ele convida o Auro para ser primeiHISTÓRIA O Golpe de 1964

ro-ministro. O Auro aceita, tem o voto de confiança no Congresso e passa a escolher o Ministério, ministros de confiança dele. O Jango queria influir, mas o Auro não o consultou. O Auro, que era inteligente, sagaz, com aquela história de ser primeiro-ministro... Jango pede a ele que assine uma carta de renúncia, alegando que podia surgir algum problema insolúvel entre os dois. Na ânsia de ser primeiro-ministro, ele aceitou. Uma carta de três linhas: “Por esse meio renuncio ao cargo de primeiro-ministro tal e tal...” O Jango guarda na gaveta. Dias depois, o Auro está no Congresso, já tinha convidado alguns ministros, tinha começado a escolher... O Auro está no gabinete dele no Senado... Há um alto-falante que transmite as sessões... de repente o líder trabalhista, deputado Almino Afonso, pede a palavra e anuncia que o primeiro-ministro acaba de renunciar. Auro fica sabendo que renunciou pelo alto falante. Uma manobra do Jango? Ele telefonou para o Almino Afonso. Disse, textualmente: “Me diz... pelo Regimento Interno tu, como líder, podes pedir a palavra a qualquer momento, para uma comunicação?” O Almino diz: “Posso”. “Podes pedir agora?” “Sim...” “Então há uma comunicação urgentíssima... Comunica que o Auro renunciou”. O Almino se espanta: “Como?”. “Pode anunciar, tenho uma carta dele aqui...” Almino vai para a tribuna e anuncia. Revista

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diz: “Está tudo terminado”. Como bom mineiro, o Tancredo não era de resistir, pelo contrário...

tomar posse. Na hora alguém disse: “Falta um general”. Aí saíram para buscar um general... Um grupo de deputados entra no gabinete do Darcy Ribeiro e se deparou com o general Nicolau Fico, que era de Bagé, mas já tinha virado. Darcy estava furioso, expulsa todo o mundo, xingando. Meia hora depois, conseguem o general André Fernandes, chefe do Gabinete do ministro da Guerra, um general apagado, que em seguida vai ser chefe da Casa Civil do Mazzilli, que então toma posse.

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O Julião fazia agitação. Pegou as Ligas Camponeses, articuladas pelo Pedro Teixeira, assassinado em 1962, e fazia demagogia pura... Só que ninguém sabia

Foi o Almino quem me contou isso, tempos depois... Então, o Auro tinha um ódio visceral do Jango... Em 1961, quando os militares tentaram impedir Jango de assumir, o Auro foi a favor da posse. Então, do ponto de vista da honra pessoal, o Auro tinha razão.

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O Jango não era dado a deslealdades, não é? Não, mas essas coisas eram bem do estilo da época. Era uma coisa getuliana, só que o Getúlio Vargas fazia as coisas de uma forma mais astuta. O Getúlio faria com que o próprio Auro se visse na contingência da renunciar... O Getúlio era o grande espelho de Jango, só que ele não era o Getúlio. Não tinha a experiência do Getúlio, que tinha sido presidente do Rio Grande do Sul, ministro da Fazenda, chefe da Revolução de 30... A experiência do Jango era parlamentar. Sua passagem pelo Ministério do Trabalho foi curta... O Jango era muito moço, tinha quarenta e poucos... Ele morreu com 57 anos, muito novo.

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Agora, os erros da esquerda... Faço essa revisão há muito tempo. O Francisco Julião, por exemplo, foi um dos maiores embustes que este país conheceu. Mantinha uma aparência de simplicidade e humildade absoluta, coisa que ele não era. Era um farsante, um místico de esquerda, convencido de que ia

ser o Fidel Castro do Brasil. Isso naquele contexto em que o Fidel era a grande figura não só da esquerda mundial, era a grande figura heróica e humana daqueles tempos. Ele havia vencido uma ditadura odiosa e vencido mesmo, pelas armas. Para ter uma ideia, o Fidel foi aplaudido nos Estados Unidos quando visitou o país. Foi aclamado pela multidão em Buenos Aires. Quando veio ao Brasil foi elogiado até pelo Carlos Lacerda. O Julião queria ser o Fidel brasileiro e foi o grande provocador daqueles anos. O homem das Ligas Camponesas... Vou contar um detalhe: em 1969, eu saí do país no grupo dos 15 presos políticos que foram trocados pelo embaixador americano Burke Elbrick, junto estava o Gregório Bezerra, o grande dirigente comunista que organizava os sindicatos rurais no Nordeste. Era pernambucano como o Julião. Quando chegamos ao México, eu digo para o Gregório: “Vamos visitar o Julião”. O Julião estava asilado lá. Aí, noto que o Gregório não quer aparecer do lado do Julião. Ele me diz: “Camarada Flávio, não tenho nenhum interesse em falar com Julião”. Gregório era um homem respeitabilíssimo, era o Velho, tinha sessenta e tantos anos. Depois é que fui saber: o Gregório tinha feito um trabalho sério no Nordeste de organização dos sindicatos rurais. HISTÓRIA O Golpe de 1964

O Julião fazia agitação. Pegou as Ligas Camponeses, articuladas pelo Pedro Teixeira, um grande líder, assassinado em 1962, e fazia demagogia pura. Só que ninguém sabia... Ele foi eleito deputado federal por Pernambuco, mas foi comparecer pela primeira vez na Câmara no dia 30 de março de 1964, para não perder o mandato por faltas continuadas. Não era conhecido nem pelos guardas da Câmara, que não queriam deixar ele entrar. Chega à tribuna, no meio daquela crise, e fala como um general... Anuncia que 60 mil homens das Ligas Camponesas, armados, estão prontos para se rebelar no Brasil inteiro... Cinco mil só no distrito federal... Na verdade, não tinha nada... Mas figuras respeitáveis, como o Prestes, erraram também... É, tem a célebre reunião em Moscou em que ele diz que não havia a mínima chance de golpe, pouco antes do golpe... Depois se soube também que Prestes disse nesta reunião que no Comitê Central do Partido Comunista do Brasil tinha um monte de generais... Essas coisas davam um vigor falso para a esquerda. Eu tenho muito respeito pelo Prestes, pela figura íntegra dele, mas ele foi sempre um sonhador, sempre acreditou nas coisas sem penetrar no âmago das coisas. Na revolução de 30, o Prestes recebeu uma proposta do Getúlio aqui no Palácio Piratini, ele mesmo conta isso... Ele vivia na Argentina e veio clandestino falar com o Getúlio, que oferece a ele a chefia militar da revolução, ele era o grande herói, o capitão Luiz Carlos Prestes, da Coluna. Ele começa a falar, diz que só acredita na revolução socialista, proletária, que não acredita naquela revolução burguesa... Getúlio só ouvindo... No fim, segundo o próprio Prestes, Getúlio diz mais ou menos o seguinte: “Sua dialética é bela, profunda e convincente, mas a mim não convenceu...”. O Prestes queria outra revolução...


“Julião queria ser o Fidel Castro do Brasil. Fidel era a grande figura heróica”

preparar o proletariado... nem havia o proletariado, no sentido sociológico. Havia pobres, sem cultura urbana, sem organização... Então, esses otimismos do Prestes... O Brizola também foi um pouco irrealista, em 1962, por exemplo... Aí, é outra coisa. O Brizola ia ser deputado pelo Paraná, foi convencido... que tinha que ser candidato pelo Rio de Janeiro, para enfrentar o Carlos Lacerda, governador do Rio de Janeiro. O problema do Brizola é outro. O Brizola nunca preparou herdeiros. Ou tu achas que o Carlos Lupi é herdeiro do Brizola? O Brizola nunca foi corrupto... Foi investigado de todo jeito nunca acharam nada... Nem herdeiros, nem concorrentes... Terminou com todos os concorrentes aqui no Rio Grande do Sul: José Diogo Brochado da Rocha, Fernando Ferrari, Loureiro da Silva... a consequência é que na eleição para governador em 1962 não havia um candidato, então o trabalhismo no Rio Grande do Sul foi escolher Egydio Michaelsen, diretor jurídico do Banco Agrícola Mercantil (que depois veio a ser o Unibanco), nada representativo do trabalhismo.

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E então sofreu uma derrota que foi decisiva em 1964... As melhores e as piores recordações da minha vida foram com o Brizola... Quando cheguei do exílio, por exemplo, tive uma recepção calorosa no Rio. Quando desembarquei o Galeão, um funcionário me disse: “O Brizola chegou de manhã cedo e está no aeroporto à sua espera”. Ele tinha chegado do México, de uma reunião da Internacional Socialista. Chego e estão lá umas 50 pessoas, a tevê Globo vem me entrevistar. Estou junto ao Brizola e a Neusa. Uma das perguntas que me fazem: “para qual partido vai entrar?” Respondi com uma expressão que ele usava:

9 História O Golpe de 1964

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A “ noite do esbulho”: numa sessão de três minutos, Auro de Moura Andrade declara vaga a Presidência embora Jango ainda esteja no país

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“Na camisa de força do regime militar, partido nenhum. Meu partido é o jornalismo”. No que digo isso, o Brizola se retira. À noite, vou ao Hotel Everest, onde o Brizola estava hospedado. Havia uma reunião do PTB, ele me diz: ”Fica aí, é só o pessoal do Rio...”, e me dá um chá-de-banco. Quarenta minutos depois, ele sai: “Flávio, vem aqui. Tu fizeste nessa manhã algo terrível, tomei como uma agressão. Eu estava ao teu lado, e disseste que não vais te filiar a partido nenhum. Isso é uma afronta...” Não admitia posições discordantes...

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Os erros da esquerda alimentaram o discurso golpista. Isso é muito esquemático. Não foi o discurso da esquerda que alimentou ou deu pretexto à conspiração e ao golpe. O que fez o golpe foi a Guerra Fria. Isso hoje está provado. No dia 30 de julho de 1962, na Casa Branca, Lincoln Gordon convence o Kennedy que o Brasil está sendo

As tropas estavam nas ruas, mas o que selou o golpe foi a manobra no Congresso. Almino Afonso foi um dos que protestaram em vão na madrugada em que o Rainieri Mazzilli é escalado para o lugar de Jango

comunizado e eles têm que intervir, para evitar uma outra Cuba. Transcrevo todo o diálogo no meu livro. Mas o discurso da esquerda radical assustou... Sem dúvida, o discurso do Julião... e do Brizola, também. Agora, quem atiçou o golpe foi a Guerra Fria. Em 1962, quando Vernon Walters vem ao Brasil como adido militar para preparar o golpe, quem o recebe no aeroporto é o general Ulhoa Cintra, que não se conformou com a solução que levou Jango ao poder. Quem atua como contato com o coronel Vernon Walters e os militares da conspiração é o Ulhoa Cintra. São os derrotados de 1961, engajados na Guerra Fria. O general Golbery dizia que o Jango não poderia ser presidente porque era homem dos interesses da União Soviética no Brasil. O IPES foi criado três meses depois da posse de Jango... HISTÓRIA O Golpe de 1964

Foi antes, já em setembro de 1962 ele está em gestação. O general Golbery pede a reforma ainda em setembro e já está conspirando. Em novembro formaliza, se instala no Rio. O IPES foi o grande instrumento na guerra psicológica. O Golbery auxiliado por um sujeito que hoje é um romancista conhecido, o Rubem Fonseca... Começou a fazer ficção ali, nos filmes que ele fazia para o IPES, que são muito bem-feitos, maravilhosos, tecnicamente falando. O IPES foi o “grande contubérnio”. Até panfletos com listas de pessoas a serem eliminadas eram forjados... Tudo inventado, falsificado, para assustar. O IPES foi a grande arma ideológica. Antes, já no governo do Juscelino, funcionava o IBAD, que fazia o trabalho sujo. Uma comissão de inquérito da Câmara de Deputados provou isso. Bancava os caras, isso está mostrado no filme “O Dia que Durou 21 Anos”. Os Estados Unidos,


Auro Moura Andrade (esq.) tinha contas a ajustar com Jango, aproveitou a crise e se apressou a dar posse ao presidente do Congresso, Rainieri Mazzili

O IPES foi o grande instrumento na guerra psicológica. O Golbery auxiliado pelo Rubem Fonseca, hoje um romancista conhecido... imediatamente, reconheceram os golpistas e estavam prontos a intervir, se necessário.

uma nota sobre o livro de Phyllis Parker que revelou isso. Jango ficou sabendo aí, no exílio.

Foi por saber disso que Jango não quis resistir? Jango nunca soube. O que San Thiago Dantas disse a Jango é que Minas Gerais seria reconhecida como Estado beligerante... Mas da movimentação da esquadra americana, ele só foi saber em 1976, quando liberaram os papéis reservados. La Nación, de Buenos Aires, publicou

Mas ele havia sofrido pressões... Sim, muitas pressões... Quando o Jango visita os Estados Unidos, em 1962, o John Kennedy foi esperá-lo na escadinha do avião. Já no helicóptero que transporta os dois até a Casa Branca, Kennedy o questiona sobre a reforma agrária. Jango desfilou em Nova York sob chuva de papel picado, tudo programado, para impressioná-lo. O HISTÓRIA O Golpe de 1964

Lincoln Gordon sugeriu outra coisa: uma visita do Jango à Base Militar de Offutt. Ele foi o primeiro chefe de Estado a ser recebido lá. Um general chamado Thomas Powell começa a mostrar num computador... Ninguém tinha visto antes... mostrava na tela a rota dos B52 com bomba atômica, voando 24 horas... Em seguida disse: ”Vou lhe mostrar uma outra coisa”, e levou Jango para ver o silo subterrâneo onde está o foguete intercontinental Atlas, a mais poderosa arma do planeta, capaz de eliminar 500 mil pessoas em Moscou, Pequim, ou São Paulo. Jango, com o general Kruel, chega à base sorridente e sai completamente acabrunhado... Lincoln Gordon foi o grande artífice... Sim, isso hoje está provado. Reproduzo no meu livro os documentos e gravações que foram liberados depois de 30 anos. Ele e Vernon Walters alimentaram a conspiração, com muito dinheiro inclusive. Revista

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Vernon Walters, o adido militar dos EUA, com Castello Branco: suporte logístico, bélico e financeiro

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LEGALIDADE

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J

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ango ainda dormia quando o telefone tocou no quarto do Hotel Raffles, em Singapura, no amanhecer do dia 26 de agosto de 1961. Era um repórter da Associated Press, agência de notícias norte-americana. Ligava de Nova Iorque para ouvi-lo sobre a renúncia do presidente Jânio Quadros, no dia anterior. Jango, na condição de vice-presidente, dirigia uma missão comercial que percorria o Extremo Oriente, em busca de negócios e investimentos para o Brasil. Estivera na República Popular da China, o maior país comunista do mundo e, na véspera, chegara a Singapura, “a esquina do mundo”. Jantara com parlamentares integrantes da missão num restaurante malaio, perto do hotel, e se recolheu. Acordou com o pedido do repórter da AP. Disse que ia se informar para depois falar.

Vitória de

Brizola Resistência organizada pelo governador gaúcho levou o povo às ruas e frustrou a primeira tentativa de golpe, em 1961 derrubou o parlamentariamo. Até abraçar as reformas... À hora do café, o senador Barros de Carvalho pediu uma garrafa de champanhe para “brindar ao novo presidente do Brasil”. Jango atalhou: “Vamos brindar ao imprevisível”. Jango sabia que para assumir a Presidência, como mandava a ConsHISTÓRIA O Golpe de 1964

tituição, teria que vencer “antigas e arraigadas resistências”. Logo chegou a informação que de que os três ministros militares – Exército, Marinha e Aeronáutica – tinham divulgado uma nota conjunta dizendo que ele não poderia tomar posse.


O apoio popular foi decisivo para a adesão do comando do III Exército

Brizola e Jango no Palácio Piratini, aplaudidos pelo coronel Neme. O golpe estava derrotado

Em seguida chegou o telegrama com a íntegra da mensagem lida em sessão extraordinária do Congresso Nacional, pelo deputado Rainieri Mazzilli, presidente da Câmara: “Exmo. Sr. Presidente do Congresso Nacional Tenho a honra de comunicar a V. Exca. que na apreciação da atual situação política criada pela renúncia do presidente Jânio Quadros, os ministros Militares, na qualidade de chefes das Forças Armadas, responsáveis pela ordem interna, me manifestaram a absoluta inconveniência, por motivos de segurança nacional, do regresso do vice-presidente João Goulart. Brasília, 28 de agosto de 1961”. Acontecera o que era bem previsível. Desde que um manifesto de coronéis o derrubara do Ministério HISTÓRIA O Golpe de 1964

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Com a Cadeia da Legalidade, Brizola botou o povo na rua pela rádio

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Com a Brigada Militar sob seu comando, Brizola deu início à reação ao golpe dos ministros militares

do Trabalho, em 1953, Jango não era bem visto por certos setores militares. Aqueles coronéis, que estavam entre os que levaram Vargas ao suicídio em 1954, eram agora generais e não toleravam ver o “herdeiro de Vargas” no poder. Por algumas horas Jango ficou ao telefone tentando saber o que fazer. Até que chegou o chamado do governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que avaliava “as possibilidades de resistir ao golpe”. Combinaram que Jango se deslocaria para Montevidéu e aí aguardaria os acontecimentos. Aconteceu o que se sabe: com o apoio do comandante do III Exército (hoje Comando Militar do Sul) e da Brigada Militar, Brizola levantou o movimento da Legalidade e garantiu a posse de Jango, ainda que com poderes limitados por uma emenda parlamentarista. Raul Riff, secretário de imprensa do presidente, registrou a frase de um entusiasmado parlamentar udenista: “Vamos fazer de Jango uma Rainha da Inglaterra. Sentará no trono mas não governará”.

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Armadilha levou Jango à Presidência

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A posse de Jango na Presidência configurou um aleijão político. Foram 5,6 milhões de votos em Jânio Quadros na eleição de 1960, rejeitando a plataforma reformista e populista de Lott. Um ano depois, o presidente era Jango, eleito vice com 4 milhões de votos, com a bandeira reformista e populista. Uma armadilha do sistema eleitoral brasileiro, que estabelecia o voto em separado, no presidente e no vice. O marechal Lott perdeu. Seu vice, Jango, ganhou. Com a renúncia HISTÓRIA O Golpe de 1964


de Jânio, o vencedor, assumiu Goulart, o vice da chapa perdedora. Pior: com um programa de reformas de base embaixo do braço, Jango presidente foi obrigado a engolir o parlamentarismo, um arranjo para imobilizá-lo. Resultou que o período parlamentarista foi uma sucessão de crises, que paralisou o governo. Quando um plebiscito retomou o presidencialismo e restituiu todos os poderes a João Goulart, já era tarde. Equilibrou-se numa corda bamba por dois anos, sete meses e 24 dias, dos quais apenas um ano e três meses de presidencialismo. Entre o plebiscito, em 3 de janeiro de 1963, em que a volta do presidencialismo ganhou 80% dos votos, até o comício de 13 de março de 1964, quando iniciou as reformas de base, consumou-se sua vertiginosa queda. HISTÓRIA O Golpe de 1964

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Em 1961, o povo saiu às ruas para respaldar a resistência militar organizada por Brizola

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ARTIG Elmar Bones

Por que Jango Caiu Cinquenta anos depois da partida do presidente João Goulart e seus aliados para o exílio no Uruguai, a frase de Darcy Ribeiro ainda ecoa: “Jango não caiu por seus erros, mas por suas virtudes”. Ela paira sobre as cinzas do governo deposto, quando se abriu a porta para uma ditadura militar que, formalmente, durou 21 anos, mas cujos efeitos os brasileiros ainda sentem, cinquenta anos depois. Personalidade maleável, perfil de estancieiro abonado, hábitos mundanos, gosto pelo jogo e o estilo bonachão de quem preferia convencer a mandar- tudo isso contribuiu para que seus adversários e inimigos pudessem minar seu governo. “João Goulart era um homem sem inimigos. Os ódios que despertou vieram todos da política”, diz Elio Gaspari, autor de uma minuciosa obra sobre os eventos de 31 de março de 1964.

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A lista das causas da queda de Jango pode ser longa. Duas delas seriam suficientes: sua inabilidade para lidar com os militares e sua ousadia em querer tocar na propriedade da terra.

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O programa de reformas de base, apesar das resistências, não mobilizava ódios ostensivos. Os projetos de reformas estavam quase todos no Congresso, travados por uma maioria conservadora, mas na pauta do parlamento.

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Mesmo que muitos, como Leonel Brizola, falassem em fechar o Congresso para aprovar as reformas, isso não era fora do jogo de pressões políticas. Em março de 1964, as pesquisas de opinião pública mostram o amplo apoio da população às reformas, coisa de 80%. A reforma agrária, porém, era um capitulo à parte, um nervo sensível. Assim como a lei que limitava a remessa de lucros para o exterior. Juntos, uniam interesses concretos - dos latifundiários e das multinacionais- dando lastro material à guerra ideológica. No final de 1963, Jango pediu ao amigo João Pinheiro Neto, superintendente da Superintendência da Política Agrária, que pedisse calma aos seus amigos esquerdistas. “Eles querem 100%, vamos conseguir 20%, depois a gente avança”, disse ele a seu exchefe de gabinete, o então prefeito de Porto Alegre, Sereno Chaise, numa audiência no Palácio Rio Negro. A pressão sobre o Congresso, para que mudasse a lei, permitindo indenizar com títulos públicos de longo prazo as terras desapropiadas para reforma agrária, encheu o copo. Comprovada por diversas decisões (como não ter substituido o ministro da Guerra, que se hospitalizou dias antes do golpe), a inabilidade de Jango na área militar fez entornar o caldo.


O herdeiro de

Vargas HISTÓRIA O Golpe de 1964

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Charmoso, bem criado, Jango herdou o espólio político, mas também os inimigos que levaram Getulio Vargas ao suicídio

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Cumprimentando oficiais do ExĂŠrcito

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Com Brizola, triunfante ao final da Campanha da Legalidade HISTĂ“RIA O Golpe de 1964


Presidente Jango em São Borja. Em primeiro plano, Manoel Leães, o piloto que o levaria para o exílio

Vice de Juscelino, Jango recebera muito mais votos que o presidente

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ascido e criado numa estância, na fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina, João Belchior Goulart foi um fenômeno político. Aos 15 anos, segundo a lenda, ouviu de Getúlio Vargas a frase que torceu seu destino de próspero estancieiro. “Esse guri vai longe” sentenciou o presidente depois de ouvi-lo. Foi longe e rápido. Em 1947, aos 28 anos, elegeu-se deputado estadual sem fazer campanha. Foi um deputado relapso, mas se tornou o chefe regional do partido. Quando Vargas voltou ao poder, em 1950, levou-o para o Ministério do Trabalho. Ele deu força às centrais sindicais, dominadas por comunistas e “pelegos”, tornou-se o alvo preferido da oposição a Vargas. Quando propôs aumento de 100% para o salário mínimo, em 1952, um manifesto militar ameaçou o governo. Vargas demitiu o ministro, mas manteve o aumento. Na manhã de 24 de agosto de 1954, quando Getulio Vargas deu um tiro no peito, Jango tinha no bolso a carta testamento que o presidente lhe entregara num envelope lacrado. Tornou-se o “herdeiro político de Vargas” e nessa condição elegeu-se vice-presidente, tendo mais votos do que Juscelino Kubitscheck, o presidente eleito. Na eleição seguinte, em 1960, foi novamente candidato a vice na chapa do marechal Henrique Teixeira Lott . O marechal perdeu, mas ele ganhou, como vice de Jânio Quadros, o primeiro grande fenômento eleitoral da era pós-Vargas. Sete meses depois, Jânio Quadros renunciou e, após muita resistência e até a ameaça de guerra civil, João Goulart chegou a pre-

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No Planalto, com o primeiro-ministro Tancredo Neves, no início do período parlamentarista. Um presidente sem poder

No papel de chefe das Forças Armadas, sem nunca ter se candidatado a Presidente

de. Equilibrou-se numa corda bamba por 7 meses e 24 dias. Entre o plebiscito, em 3 de janeiro de 1963, que ganhou com 80% dos votos até o comício de 13 de março de 1964, quando iniciou as reformas de base, consumou-se sua vertiginosa queda.

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sidência em setembro de 1961, 14 anos depois da primeira eleição. A posse de Jango na presidência configurou um oxímoro político. Foram 5,6 milhões de votos em Jânio Quadros na eleição de 1960, rejeitando a plataforma reformista e populista de Lott. Um ano depois, o presidente era Jango, eleito vice com 4 milhões de votos, com a bandeira reformista e populista. Uma armadilha do sistema eleitoral brasileiro, que estabelecia o voto em separado, no presidente e no vice. O marechal Lott perdeu. Seu vice, Jango, ganhou. Com a renúncia de Jânio, o vencedor, assumiu Goulart, o vice da chapa perdedora. Pior: com um programa de reformas de base embaixo do braço, Jango presidente foi obrigado a engolir o parlamentarismo,um arranjo para imobilizá-lo. Resultou que o período parlamentarista foi uma sucessão de crises, que paralisou o governo. Quando um plebiscito retomou o presidencialismo e restituiu todos os poderes a João Goulart, já era tar-

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Jango, Magalhães Pinto e Tancredo Neves: equilíbrio precário

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Com Jânio Quadros, o presidente


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Com Vargas, na fazenda, em São Borja

que renunciou achando que iria voltar

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Na Granja do Torto, observa o filho na piscina. Em pé, o amigo e piloto Manuel Leães

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COMÍCIO DA CENTRAL

Jango abraça as

reformas Se havia alguma chance do presidente João Goulart concluir seu governo, ele a perdeu na noite de 13 de março de 1964, no comício que reuniu 200 mil pessoas em frente à Central do Brasil, no Rio de Janeiro.

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s fatos - daí até o dia 2 de abril, quando ele abandonou o país e se exilou no Uruguai - foram desdobramentos do que se deflagrou nessa noite. Era uma manifestação promovida pelas centrais sindicais. Era sexta-feira, final de uma semana tensa e era o primeiro grande comício pelas reformas a que o presidente comparecia. Ele fez um discurso agressivo que indicava uma mudança de estratégia: o presidente conciliador partia para o ataque. Quinze dias antes, Jango recebera o prefeito de Porto Alegre, Sereno Chaise, na ala residencial do Palácio Rio Negro, o palácio de verão da presidência. Conheciam-se desde que Jango era deputado estadual e ele, Chaise, era da “ala moça” do PTB em Porto Alegre. Sereno Chaise fez um relato da situação política no Rio Grande do Sul e revelou sua preocupação com os movimentos do general Adalberto Pereira dos Santos e outros que

conspiravam abertamente para derrubar o governo. Jango chamou o general Assis Brasil, chefe do seu “dispositivo militar” para ouvir o que o prefeito estava dizendo. “Nós sabemos isso e mais do que o prefeito está falando. Mas temos o controle...”, disse Assis Brasil. Quando o general se retirou, seguiram falando de política, da agitação que se intensificava e, então, Jango disse uma frase que Sereno não esqueceu: “Brizola pensa que é líder de massas, vou mostrar quem é líder de massas nesse país...” Seguro, talvez, de seu respaldo militar, é possível que ele tenha considerado que naquele momento seu maior risco era outro: se não avançasse, aliados à esquerda lhe arrebatariam a bandeira das reformas, que mobilizava as massas populares. Tancredo Neves, que fora seu primeiro-ministro e que preferia avaliar os riscos que se anunciavam à direita, previu o pior quando soube que o presidente decidira ir ao comício da Central e radicalizar o discurso pelas reformas. HISTÓRIA O Golpe de 1964


Enquanto Jango faz seu discurso mais radical, a tensão está estampada no rosto de sua mulher, Maria Tereza

Abelardo Jurema, ministro da Justiça de Jango registrou a frase de Tancredo: “Deus faça com que eu esteja enganado, mas creio ser este o passo do presidente que irá provocar o inevitável, a motivação final para a luta armada”. O comício durou quatro horas. Jango, acompanhado da mulher, Maria Thereza, foi o último a falar. Treze oradores falaram antes dele. Ele não deixou por menos: anunciou a desapropriação das terras ociosas às margens de rodovias e açudes federais e a encampação das HISTÓRIA O Golpe de 1964

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Bandeiras e slogans nacionalistas no comício que durou mais de quatro horas

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Os comunistas também foram ao comício na Central do Brasil

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refinarias particulares de petróleo, para incorporá-las à Petrobras. Fez um apelo ao Congresso “para que votasse sem mais delongas as reformas de base” e convocou o povo a se mobilizar para pressionar o parlamento. “No reiterado esforço pelo cumprimento da missão que me impus de presidir a luta pela renovação da sociedade brasileira, com o propósito de conduzi-la, mediante convocação e o congraçamento de todas as forças políticas progressistas, permito-me encarecer, mais uma vez, ao Congresso Nacional, a necessidade imperiosa de atendermos aos anseios e reclamos da Nação pelas reformas de base”. Defendeu com veemência a necessidade de reformas estruturais: reforma eleitoral, administrativa, agrária, urbana, bancária, cambial, universitária. Deu ênfase para a reforma agrária. Era necessário mudar a Constituição para permitir que o governo pudesse desapropriar terras de interesse público sem ter que pagar em dinheiro. Jango transferia a responsabilidade para o Congresso e convocava o povo a pressioná-lo. Muitos dos

que estavam ao seu lado naquele palanque defendiam as reformas “na lei ou na marra”. Alguns oradores que o antecederam, Brizola principalmente, chegaram a pedir que ele dissolvesse o Congresso para impor as reformas. Para demonstrar sua verdadeira disposição de fazer a reforma agrária, Jango anunciou o decreto desapropriando por interesse social terras improdutivas situadas numa faixa de 10 quilômetros ao longo das rodovias federais e outras beneficiadas com investimentos da União. “Espero que em menos de 60 dias já comecem a ser divididos os latifúndios de beira de estrada, os latifúndios ao lado das ferrovias e rodovias, dos açudes construídos com o dinheiro do povo, ao lado de obras de saneamento realizadas com o sacrifício da Nação.” “O Brasil de nossos dias não mais admite que se prolongue o doloroso processo da espoliação que durante mais de quatro séculos reduziu e condenou milhões de brasileiros a condições subumanas de existência”. Carlos Lacerda escreveu na Tribuna da Imprensa: “A guerra revolucionária está desencadeada. Seu chefe HISTÓRIA O Golpe de 1964

ostensivo é o sr. João Goulart, até que os comunistas lhe dêem outro”. O decreto de desapropriação de terras e as ameaças de invasão para forçar a reforma agrária alarmaram o meio rural. Os estancieiros gaúchos começaram a se armar. “O governo do Rio Grande do Sul garantirá a ordem, a tranquilidade e os direitos de propriedade em todo o Estado”, dizia uma nota alarmista do governador Ildo Meneghetti, lançada nos dia seguintes ao comício. Em São Paulo, a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” levou 200 mil pessoas às ruas, numa gigantesca manifestação em que cartazes pediam a saída do presidente. Era o respaldo da opinião pública que os conspiradores precisavam. Uma semana depois do comício da Central do Brasil, a crise brasileira é tema de uma reunião na Casa Branca, no gabinete do presidente Lyndon Johnson. Estão presentes: Dean Rusk, secretário de Estado, Lincoln Gordon, embaixador no Brasil, John McCone, chefe da Central Intelligence Agency e homens do Departamento de Defesa. Aí foi decidida a formação de uma força naval para intervir na crise brasileira, “caso fosse necessário”.


Um golpe de

pijama Um general delirante, em quem ninguém acreditava, abriu o caminho que lançou o pais na ditadura

Juiz de Fora, 31 de março de 1964

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ma e meia da madrugada, o general Olympio Mourão Filho desiste de tentar dormir e retoma as anotações em seu diário. Há quase uma semana se considera pronto para um golpe, mas desconfia que o estão traindo. Esperava um manifesto do governador de Minas, que seria a senha para colocar as tropas na rua. Em vez de mandar o texto antes, para ele, o governador entregou o manifesto à imprensa. E o conteúdo não era o que haviam combinado! “Eu estava uma verdadeira fúria”, anotou. “Meu peito doía de rachar. Tive que por uma pílula de trinitrina embaixo da língua” Mourão Filho, general de três estrelas, comandante da 4ª Região Militar, uma das principais forças terrestres do Exército brasileiro, estava mesmo descontrolado.

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Os recrutas de Mourão começam a se deslocar em direção ao Rio de Janeiro

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-“Idiotas. O Chefe Militar sou eu. Magalhães não terá desculpa perante a história... E o Guedes, um falastrão vaidoso que aceitou o papel triste... Fizeram isto, bancando os heróis, porque sabiam que eu era a própria revolução. Do contrário não se atreveriam a dar um passo. Irresponsáveis! Arriscando uma revolução tão bem planejada num momento de vaidade!” Depois da explosão, acalma-se: “Acendi o cachimbo e pensei: não estou sentindo nada e, no entanto, em poucas horas deflagrarei um movimento que poderá ser vencido porque sai pela madrugada e terá que parar no caminho. Não faz mal...” Em seu plano original, Mourão previa sair de Juiz de Fora, no início da noite, com 2.300 mil homens. Cobriria os 200 quilômetros até o Rio de Janeiro em cinco ou seis horas. Antes de clarear o dia, tomaria de surpresa o prédio do Ministério da Guerra e o Palácio das Laranjeiras, onde estaria ainda dormindo o presidente João Goulart. Depois começava a caçar os comunistas. Há uma semana “estava pronto”, mas vinha sendo retardado por artimanhas do governador Magalhães Pinto que, mineiramente, temia “se envolver numa aventura”. Agora está decidido: “Vou partir para a luta às cinco da manhã... Ninguém me deterá. Morrerei lutando. Nosso sangue impedirá a escravização do Brasil”. Depois se acalma novamente: “E o mais curioso de tudo isto é que, passada a raiva (já estou normal, bebi água e café) não sinto nada, nem medo, nem coragem, nem entusiasmo, nem tristeza, nem alegria. Estou neutro.” Anotou alguns nomes num papel e, quando o relógio marcou cinco horas, chamou a única telefonista de plantão na central de Juiz da Fora: “Quero prioridade absoluta e rápida para as ligações que vou pedir. Estou mandando a PM ocupar a

Estação e a senhorita não diga palavra a ninguém”. Considerou-se em ação: “Eu já havia desencadeado a Operação Silêncio”, anotou. No primeiro telefonema, tentou alcançar o tenente coronel Everaldo Silva, que estava de prontidão no QG, “o telefone estava enguiçado”. Tocou, então, para o major Curcio e mandou desencadear a “Operação Popeye”, o plano militar que ele, Mourão, havia traçado e ao qual batizara com o apelido que lhe haviam dado no quartel pelo uso constante do cachimbo. Em seguida, convocou os coronéis Jaime Portela e Ramiro Gonçalves para que se apresentassem imediatamente no quartel (nenhum dos HISTÓRIA O Golpe de 1964

dois apareceu). A seguir, ligou para o almirante Silvio Heck, comandante da Marinha, golpista de primeira hora: disse que estava partindo em direção ao Rio, para depor Goulart. O próximo foi o deputado Armando Falcão, para que avisasse Carlos Lacerda, governador da Guanabara, o mais notório inimigo do presidente. Falcão, assustado, ligou para o general Castello Branco, que era o líder militar de uma outra conspiração e que evitara sempre se envolver com Mourão. Castello, que não tinha tropas, tentou falar com Amaury Kruel, o comandante do II Exército, a maior força militar do país. “Isso não passa de uma quartelada do


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Guedes, em suas memórias, tentou associar-se à ousadia de Mourão, dizendo que àquela hora também já estava rebelado, mas a verdade é que até aquele momento Mourão estava sozinho. Mourão registra, desde o primeiro encontro entre ambos, a frase que Gedes repetia: “Quem levantar a cabeça primeiro, leva pau”. O governador Magalhães Pinto, a quem Guedes seguia, desenvolvia um plano que permitisse recuos. Sua intenção era declarar Minas Gerais em “estado de beligerância”, contra o governo federal. Esperava obter o reconhecimento dos Estados Unidos e, então, forçar João Goulart a renunciar. Seria instalado um mandato tampão até as eleições de 1965 , quando ele, Magalhães, seria o candidato imbatível - o libertador que afastara o perigo comunista. O manifesto que lançou no dia 30 de março, escrito pelo mineiríssimo Milton Campos, defendia reformas de base e era tão cauteloso que o deputado federal Wilson Modesto, do PTB de Minas, leu a integra por telefone para Jango e o presidente respondeu: “Diga a Magalhães que está muito bom estou de acordo com ele”. As ações do general Guedes, àquelas alturas, se limitavam à Prontidão da Polícia Militar, força estadual, e a consultas ao cônsul dos Estados Unidos em Belo Horizonte, para saber se os americanos estavam dispostos a ajudar com “blindados, armamentos leves e pesados, munições, combustíveis, aparelhagens de comunicações...”. Para “mais tarde”, precisaria de “equipamento para 50 mil homens”.

*** Enquanto isso, Mourão enfrentava dificuldades para levar as tropas à rua. O comandante do 10º Regimento de Infantaria, coronel Clóvis Calvão não apoiava o levante. Mourão contornou o impasse dando férias ao coronel. Revista

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Mourão, não entro nessa”, disse Kruel, quando foi alcançado por emissários. Kruel ainda era amigo de João Goulart. Nesse meio tempo, Castello recebeu uma ligação do general Antonio Carlos Muricy, outro conspirador sem comando. Muricy diz que foi chamado a Minas por Mourão, “que está rebelado”. Castello aconselha que vá “para prevenir qualquer bobagem”. Enquanto isso, Mourão segue anunciando o golpe por telefone. Ao final de sua rajada de chamadas, fez questão de registrar que “estava de pijama e roupão de seda vermelho”. E não esconde o “orgulho pela originalidade”: “Creio ter sido o único homem no mundo (pelo menos no

Brasil) que desencadeou uma revolução de pijama”. Subiu um lance de escada até o quarto onde estava seu hóspede e cumplice, o desembargador Antonio Neder, “que dormia como um santo”. Gritou: “Acabo de revoltar a 4a. Divisão de Infantaria e a 4ª. Região Militar”. O amigo “entre espantado e incrédulo”, perguntou: “Você agiu certo? Tem elementos seguros?”. Mourão desdenha : “Vocês, paisanos, não entendem disso”. Eu estou certo, pode crer”. Na verdade não tinha certeza de nada, nem mesmo se conseguiria tirar suas tropas do quartel. Entrou no banheiro, fez a barba e leu alguns salmos da Biblia, como fazia todos os dias. “Eu era um homem realizado e feliz. Não pude deixar de ajoelhar-me no banheiro e agradeci a Deus a minha felicidade, havia chegado a hora de jogar a carreira e a vida pelo Brasil!” Abriu o chuveiro, banhou-se calmamente. Só então vestiu o uniforme de campanha e foi tomar café com Maria, sua mulher (“Não consigo me lembrar se o Neder tomou café conosco”, diz ele nos registros que fez dias depois). A notícia de um golpe militar se espalhava rapidamente pelo país, mas o comandante do levante ainda não saíra de casa. “A insurreição estava envolta numa nuvem que se parecia ora com uma quartelada sem futuro ora com uma tempestade de boatos”, registra Elio Gaspari. Por volta das dez horas, ainda sem saber direito o que realmente estava acontecendo, o general Castello Branco saiu de seu apartamento, em Ipanema. Foi para o Ministério da Guerra, no centro, onde tinha seu gabinete de trabalho, no sexto andar. De lá ainda insistiu com o general Luiz Guedes, comandante da 4a. Divisãode Infantaria em Belo Horizonte, e o governador Magalhães Pinto para que detivessem Mourão. “Senão voltarem agora serão esmagados”.

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Creio ter sido o único homem no mundo (pelo menos no Brasil) que desencadeou uma revolução de pijama

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Dois outros coronéis e o comandante da Escola de Sargento de Três Corações, também rechaçaram a ordem de botar a tropa na rua e foram para casa. Nada disso influiu no apetite do general. A uma da tarde, ele foi para casa almoçar e não dispensou sequer a sesta. Nessa hora, já se movimentavam forças para atacá-lo a meio caminho do Rio. “Na avenida Brasil principal saída do Rio e caminho para Juiz de Fora, marchavam duas colunas de caminhões. Numa iam 25 carros cheios de soldados, rebocando canhões de 120 mm... Noutra,em 22 carros ia o Regimento Sampaio, o melhor contingente de infantaria da Vila Militar. De Petrópolis, a meio caminho entre o Rio e Mourão, partira o 1º.Batalhão de Caçadores” (Gaspari). “Tinham-se passado oito horas desde o momento em que se considerara insurreto. Salvo os disparos telefônicos e a movimentação de um pequeno esquadrão de reconhecimento que avançara algumas dezenas de quilômetros, sua tropa continuava onde sempre estivera: em Juiz de Fora.” (Gaspari) Fardado, de capacete, Mourão, auto-intitulado Comandante em Chefe das Forças Revolucionárias foi fotografado no meio da tarde, no QG da 4ª. DI. Mas aos jornalistas ainda negava que estivesse rebelado. O general Antonio Carlos Muricy, que Mourão chamou para che-

fiar a vanguarda da tropa que desceria em direção ao Rio, só foi chegar à Juiz de Fora às 18 horas. Ao inspecionar as forças de que dispunha, Muricy comprovou que mais da metade eram recrutas mal preparados e a munição dava para poucas horas.

*** “Ele não é bem visto no Exército e provavelmente não liderará uma conspiração contra o governo, em parte porque não tem muitos seguidores. É visto como uma pessoa que fala mais do que pode fazer”, dizia um informe da embaixada americana. A maioria dos 60 generais em atividade naquele momento, achava que Mourão não conseguiria tirar os soldados do quartel. Lacerda lhe disse isso diretamente. O general Murici, que ele convidou para comandar a vanguarda de suas forças em direção ao Rio, disse-lhe: “Você está louco? Acha que pode fazer uma operação dessas com soldados meninos com um mês de treinamento!” Quando ele chegou a Minas, em setembro de 1963 para assumir o comando da 4ª.Região Militar, o governador Magalhães Pinto declarou depois da primeira conversa que tiveram, comentou: “Este general que veio comandar a Região ou é agente provocador do governo ou é louco, quer fazer uma revolução logo!” O general Costa e Silva a quem procuHISTÓRIA O Golpe de 1964

rou várias vezes, sempre esquivou-se. “Não temos nada”. Para o historiador Hélio Silva, Mourão era um “homem bom, sofredor, pitoresco, capaz de assomos de cólera”.

*** O embaixador americano soube da rebelião por volta do meio dia do dia 31 de março. Imediatamente avisou Dean Rusk, chefe do Departamento de Estado. Ele não tinha Mourão em boa conta, mas ponderou: “(...) pode ser a última boa


Mourão em março de 1965, no Superior Tribunal Militar: : o general linha de frente acabou na burocracia.

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em seu ombro: “Mourão foi tudo resolvido na base da hierarquia ( ...) Não se preocupe velho, isso vai dar certo”. E recomendou-lhe ficar mais uns dias no Rio antes de regressar com as tropas. “Achei razoável , de vez que Costa e Silva não contava com quase nada, não dispunha de tropa. Minha obrigação era ficar e garanti-lo”. Ele já era carta fora do baralho.

oportunidade para apoiar uma ação contra Goulart”. A segunda vitória de Mourão aconteceu já na madrugada do dia primeiro de abril, quando o Regimento Sampaio, a mais bem treinada e equipada força militar do Rio, que saiu para atacá-lo. Ao alcançar a dianteira das tropas rebeladas, em vez de atirar, os oficiais simplesmente aderiram ao golpe. Os calejados “tarimbeiros” do Regimento Sampaio abraçaram os “sodadinhos meninos” de Mourão. “Eles passaram-se quando tudo parecia indicar

nossa derrota”, anotou o general em seu diário. Pouco depois, quando se deslocava para assumir a vanguarda das tropas que se dirigiam ao Rio soube pelo rádio do carro que não havia mais resistência. O golpe vencera e o general Costa e Silva havia assumido o Comando Supremo da Revolução, por ser o general mais velho em atividade. Não lhe restou mais que ir ao QG e apresentar-se ao novo comandante. Costa e Silva dormia e atendeu-o de cuecas. Ele quis reclamar, Costa colocou a mão HISTÓRIA O Golpe de 1964

Mourão diz em suas memórias que “acordou para o perigo comunista” em janeiro de 1962. Ele recém chegara a Santa Maria para assumir a 6ª Divisão de Infantaria. Num jantar, testemunhou uma conversa do governador Leonel Brizola, com o general Osvino Ferreira Alves, comandante do I Exército, brizolista, que passava suas férias em Santa Maria... “Ficamos conversando no jardim interno. Foi aí que percebi que os dois acreditavam que eu pertencia ao lado político deles. Abriram o papo. Fiquei horrorizado com o que ouvi”. Brizola falou de seus planos para apressar o plesbiscito para voltar ao presidencialismo, da campanha pelas reformas de base, elegibildade dos sargentos, extensão do voto aos soldados e analfabetos... Nada mais do que a plataforma publicamente defendida por Brizola. Para Mourão foi a explanação de “um vasto plano de subversão em todo o Brasil”. Em casa ele anotou em seu diário: “Nada tenho contra João Goulart. Acho-o até um homem bom e simpático. Mas ele não porá fogo no Brasil”. A partir daí ele entra num processo de conspiração delirante, movido por uma ideia fixa: Jango e Brizola, aliados aos comunistas preparavam um golpe para implantar uma república sindicalista. Revista

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Conspiração começou em Santa Maria

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A saída era um golpe antes. Além de aliciar adeptos entre a oficialidade, procura também lideranças do meio civil. ”Em Santa Maria articulei-me com o prefeito da cidade, médico Sevi Vieira e com o bispo Dom José Sartori “que era um revolucionário entusiasmado”. No dia 15 de janeiro de 1962 , foi a Porto Alegre e falar com o presidente da poderosa Farsul, Antônio Saint Pastous, que o apoiu. Em setembro de 1962 foi convidado para um encontro na casa do bispo para expor suas ideias e planos a um seleto grupo de líderes políticos: o governador Ildo Meneghetti, o senador Daniel Krieger, o deputado Peracchi Barcelos e o secretário de Meneghetti, João Dêntice. Krieger anota em seu livro de memórias que “aquele foi o primeiro contato de civis com militares”, para uma conspiração anti-Jango. Em Porto Alegre teve um colaborador entusiasta no jornalista Tadeu Onar, que o colocou em contado com lideranças e autoridades. Conseguiu até um audiência com o arcebisbo, D. Vicente Scherer, que o ouviu mas evitou se comprometer. Em março de 1963 foi para a 2ª.Região Militar, em São Paulo “primeiro comando de prestígio.” Logo tinha um grupo, com o qual conspirava: “Reuníamos, em geral nas quartas-feiras, depois que eu vinha do meu passeio na Praça da Sé. Fazia isto muitas vezes nos dias quentes sem paletó, com um terno surrado, sem gravata e uns sapatos velhos... Sumia no meio do povo...” Filho de um advogado, que foi deputado e líder político em Diamantina e na região Norte de Minas, Mourão era uma figura polêmica desde os temos da Escola Militar, quando era um cadete magrinho (49 quilos) e se sentia marginalizado pelos colegas, os quais invariavelmente desprezava. “Eu fui sempre desHISTÓRIA O Golpe de 1964


Tanques e jipes do II Exército descem para o Vale do Paraíba. O golpe venceu

conhecido, vivia entocado, ninguém me dava a menor importância”. Tinha desprezo também pelos políticos: “Vil raça danada que vem desgraçando este país.Se pudesse metia-os todos na cadeia”. Era igualmente inimigo da Escola Superior de Guerra, “escola onde se estuda uma doutrina totalitária importada dos EUA”. Achava os homens da ESG (Cordeiro de Faria, Golbery do Couto e Silva, Castelo Branco) “uns cérebros doentios”. Obcecado, Mourão Filho fez pelo menos três planejamentos para o golpe, desde que começou a conspirar. Quando ainda estava na 3ª. DI, em Santa Maria, tinha um plano pronto (“Operação Junção”) para atacar Porto Alegre e prender Brizola, que ainda era governador. Em março de 63, pouco depois de assumir a 2ª Região Militar em São Paulo, escreveu outro plano, com direito a “Departamento de Preparação Psicológica das”, “Seção de Espionagem e Contra-espionagem”, “Serviço de Sabotagem e contra-sabotagem”.

Mourão, ainda embuído da Operação Popoye, ouve o governador mineiro Magalhães Pinto, “chefe-civil da revolução”. Com eles, o general Carlos Muricy HISTÓRIA O Golpe de 1964

“Já pensei vagamente no que farei ao chegar ao Rio. Tomo o QG no peito e mando buscar o Cordeiro de Farias em casa, passo-lhe o Comando Geral e assumo o Comando das Forças em Operações (...) daremos ordem para que Mazzilli assuma a Presidencia da República e formamos uma junta à parte, para tratar dos seguintes assuntos: a)escolher o candidato que será civil para completar o quinquênio; b) traçar diretrizes gerais para modificar a Constituição, a fim de evitar no futuro o acesso de políticos corruptos e subversivos”. Revista

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Via-se no poder

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Brasília, 3 de abril: tanques ainda estacionados perto do Congresso Nacional

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Tinha um plano para mudar o Brasil.. Sua reforma tinha oito pontos, entre eles a “inelegibilidade dos atuais políticos, de seus ascendentes e descendentes e colaterais até o segundo grau”, e a criação de uma “Camara de Planificação”, à base de concurso rigoroso de provas e títulos. “Camara vitalícia à base dos mais altos salários da República”. “O movimento se for vitorioso elegerá um presidente civil para completar o quinquênio, ao passo que um Conselho Militar por mim presidido estudará e apresentará as reformas à constituição com mudança da forma de governo”. Até o fim ignorou a grande trama que envolveu chefes militares, empresários, a CIA e a embaixada norte-americana e preparou o terreno para a derrubada do governo reformista de Goulart. Achava que tinha feito tudo sozinho. “A maior conspiração do Brasil foi feita por mim”, dizia.

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A maldição do Plano Cohen Planejar golpes parecia uma obcessão do general Olympio Mourão Filho. Quando era capitão ficou conhecido como autor do célebre

“Plano Cohen”, uma das maiores farsas da história brasileiras. Era o plano de um golpe comunista, que previa atentados, sequestros e assassinato de autoridades para o assalto ao poder. Com grande estardalhaço, o governo divulgou o plano terrorista, “descoberto” pelos serviços de segurança. Ante a ameaça, o presidente Getúlio Vargas pediu “Estado de Guerra” e o Congresso, atemorizado, aprovou. Os comunistas foram caçados e encarcerados e Vargas aproveitou o apoio político e popular e impôs uma nova constituição, que eliminava o parlamento. Foi ditador por oito anos, com todo o apoio das Forças Armadas. Em 1945, quando o ditador já estava em desgraça, o general Góes Monteiro, chefe do Estado Maior, ex-ministro da Guerra de Vargas, denunciou a farsa e acusou então capitão Mourão Filho de ser o autor. Segundo a versão de Góes Monteiro, num dia sem expediente no QG do Estado Maior do Exército, no Rio, Mourão foi flagrado por um colega datilografando o texto do que viria a ser o Plano Cohen. Mourão não negava a autoria, mas insistiu sempre que se tratava HISTÓRIA O Golpe de 1964

Mourão já tinha morrido quando foi publicada a sua versão do golpe, em 1978

de um texto para estudo, que foi usado sem o seu consentimento. Na época, Mourão era chefe do Serviço Secreto da Ação Integralista e os integralistas ( fascistas) aproximavam-se de Vargas. O plano, feito a pedido de Plinio Salgado, teria sido uma contribuição para que o presidente pudesse golpear os comunistas, que lhe atazanavam a vida. Em seguida, depois de se livrar dos comunistas Vargas acertou os integralistas também.


Manifestação na Prefeitura. Ninguém sabia o que acontecia

A

Má notícia, no meio da festa Iam servir o churrasco, quando um assessor avisa o prefeito: “O golpe militar começou” num apartamento da Santos, líder da rua Duque de Caxias, conspiração miaté conseguir fugir litar, devia ser para o exílio). preso e embarEnquanto as ruas cado para o Rio eram tomadas por como conspisoldados da Brigada rador. Só mais Militar e do Exércitarde ele ficou to reprimindo durasabendo que o mente as manifestageneral Telles ções de estudantes e não teve tempo trabalhadores, Sereno de organizar a Chaise foi preso e fidefesa militar do cou isolado por 24 homandato presiras numa sala do Dedencial. A maio- Sereno Chaise, em depoimento ao JÁ tran. Solto no sábado, ria dos generais dia 4 de abril, voltou à Prefeitura na do III Exército estava fechada com o segunda-feira e se manteve em ativigolpe. dade “normal” até meados de maio, Na tarde daquela quinta-feira, quando foi preso novamente e teve enquanto Jango chegava a São Borja, os direitos políticos suspensos. os petebistas procuravam tomar um No seu lugar assumiu Célio Marrumo. Brizola, que morava na rua ques Fernandes, presidente da CâTobias da Silva, 66, no bairro Moimara. As prisões estavam cheias. A nhos de Vento, sumiu para não ser saída era o Uruguai. preso. (Ficaria um mês escondido HISTÓRIA O Golpe de 1964

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noitecia quando o prefeito Sereno Chaise (PTB) deixou a sede da Prefeitura e foi a pé até o prédio vizinho, na terça-feira 31 de março de 1964. Ali, na sede do Sindicato dos Bancários, presidiu a cerimônia de diplomação de 80 instrutores da Campanha de Alfabetização de Adultos pelo método Paulo Freire, um programa prioritário do Ministério da Educação. Foram entregues 150 projetores de slides, vindos da Polônia, que os instrutores usariam na alfabetização de adultos nos bairros de Porto Alegre e em cidades do interior. Era o último compromisso de sua agenda. Dali, o prefeito foi para a sede do Grêmio Náutico Gaúcho, local da festa do seu aniversário. Naquele dia ele completava 36 anos e o PTB gaúcho, sem maiores inquietações em r elação à conjuntura política nacional, aproveitava para comemorar a estrondosa vitória que havia recuperado a auto-estima do partido. A festa reuniu cerca de 500 pessoas. Tudo parecia bem quando, por volta das 22 horas, Sereno foi avisado por um assessor: havia mesmo movimentação de tropa contra o governo, partindo de Juiz de Fora. O boato se espalhara durante o dia e agora se confirmava. Na dúvida, Sereno convocou imediatamente uma reunião na Prefeitura. O quadro era de desconcerto. Faltavam informações. Parecia não haver articulação entre os níveis municipal, estadual e federal do trabalhismo. Foram todos para a prefeitura, que foi toda iluminada, mas como já era tarde e não havia maiores informações, a maiaoria foi para casa. Às duas da manhã, já primeiro de abril, Sereno integra o grupo de políticos que vai ao aeroporto Salgado Filho receber o general Ladário Telles, novo comandante do III Exército, nomeado à última hora. Pelas informações que tinha até então, o general Adalberto Pereira

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Um presidente Há dois dias João Goulart via seu governo desabar. Quando chegou a Porto Alegre era tarde para a resistência

acuado

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O

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presidente João Goulart chegou a Porto Alegre às 3h15 da madrugada de dois de abril. Desceu do avião fumando e tenso, mas procurou mostrar-se sorridente ao chegar ao saguão do aeroporto, onde o esperavam o comandante do III Exército, general Ladário Telles, o deputado Leonel Brizola, o prefeito Sereno Chaise, o deputado Pedro Simon e outros. No carro, a caminho da casa do general Ladário Telles,quase não falou. Descansou um pouco e às 8h da manhã saiu na porta da casa onde falou rapidamente aos jornalistas. Disse que iria resistir. Em seguida reuniu-se com os chefes das unidades do Exército no Rio Grande do Sul para avaliar as chances de resistência. Há dois dias, ele via seu governo desmoronar. Primeiro no Rio, depois em Brasília

Tarde de primeiro de abril: inseguro, Jango sai do Rio para Brasília

e, finalmente, em Porto Alegre. Em Brasilia,inclusive, àquela hora já tinha outro na sua cadeira, o deputado Rainieri Mazzili, entronizado na madrugada pelos golpistas. HISTÓRIA O Golpe de 1964

O general Telles foi o primeiro a falar e se mostrou disposto a seguir as instruções do presidente, inclusive partindo para o contra-ataque aos golpistas. Jango quis ouvir os


outros generais. O primeiro deles, Floriano Machado, disse que “qualquer resistência seria uma aventura”. Os outros seguiram no mesmo tom. Apenas Leonel Brizola insistia

em resistir, propondo a formação de corpos de voluntários que seriam apoiados por unidades que se mantinham fiéis ao presidente em São Leopoldo, Vacaria, São Borja e Bagé. Jango atalhou: “Não quero derramamento de sangue em defesa do meu mandato”. E ordenou ao general Ladário: “Tome providências para me dirigir ao aeroporto”. Jango voou para São Borja, onde se deslocou entre suas fazendas enquanto aguardava concessão de asilo pelo governo uruguaio. Dois dias HISTÓRIA O Golpe de 1964

depois, desembarcava na base aérea de Pando, próximo a Montevidéu. O golpe estava vitorioso. O clima em Porto Alegre - a cidade que resistiu ao golpe dois anos antes - está resumido no depoimento de Olympio Tabajara, ex-secretário do governador Meneghetti: “Eu saí da repartição, no centro, ao meio-dia do dia 2. Quando fui atravessar a praça da Alfândega, encontrei um amigo que me disse: ‘tudo acabado, Jango fugiu. Fui para casa almoçar, no bairro Partenon”. Revista

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Quando Jango chegou a Porto Alegre, na madrugada de dois de abril, o Congresso já estava dando posse a outro presidente.

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Porto Alegre, primeiro de abril: quem saiu para saber o que estava acontecendo, viu a repressão

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“Está tudo sob controle”

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Nas primeiras horas da manhã de 31 de março, quando chegou ao Palácio Laranjeiras, o general Argemiro Assis Brasil, chefe da Casa Militar da presidência da Republica, foi informado que havia “um levante na guarnição de Minas Gerais”. Ele passou a informação ao presidente João Goulart, que indagou: “Você acha que isso é verdade?”. O general respondeu: “Acho, porque o general Mourão Filho e o general Guedes estão conspirando há muito tempo”. Dias antes, o general havia dito ao presidente que Mourão era “um velhinho que não é de nada”. Jango ficou fechado em seu gabinete. Saiu pouco depois das nove para visitar o ministro da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro, que estava hospitalizado. O ministro apontou o telefone na mesinha ao lado e tranquilizou o presidente. Estava acompanhando tudo, situação sob controle. Jango mencionou Policia Militar na mão de Lacerda. já em movimentos ostensivos pelas ruas do Rio. O general, impassível: “Deste telefone eu resolvo tudo, presidente”. Manoel Leães, o Maneco, que foi piloto de Jango trinta anos assistiu à conversa e em seu livro “Meu Amigo Jango” registra: “Até hoje acredito que o ministro Jair Dantas Ribeiro estava mancomunado com outros generais golpistas, ao menos para facilitar a deposição do presidente. A intenção de Jango, segundo diversos testemunhos era substituir o ministro pelo marechal Henrique Teixeira Lott. Por que Jango não trocou o ministro? “Acho que ele não

quis desmoralizar o general, talvez em consideração a sua doença”, diz Maneco. “O presidente João Goulart não quis substituir seu ministro para não desgostá-lo”, diz Hélio Silva. O outro homem do dispositivo militar de Goulart era o general Assis Brasil. Costumava dizer: “Não tem perigo. Comigo é na ponta da faca. Nosso dispositivo é o melhor já armado neste país”. Assis Brasil disse depois do golpe “que nunca houve tal dispositivo militar” Eram três da tarde, quando Jango chamou o general Ladário Telles, que estava de férias em Friburgo. A mudança do comando no III Exército estava decidida há vários dias, mas só agora o presidente iria efetivá-la. Seu plano era colocar o gaúcho Ladário Telles no Rio Grande do Sul, substituindo Benjamin Galhardo, que deveria voltar para o Rio e ocupar o lugar de Castello Branco, na chefia do Estado Maior das Forças Armadas. Castello era um dos líderes ostensivos do movimento contra o governo. A caminho do palácio para a reunião com o presidente, o general Telles notou o “movimento desusado” no prédio do Ministério da Guerra: “Dizia-se que, no quinto e sexto andares, 200 oficiais armados preparavam-se para atacar o QG da 1ª Região Militar do I Exército, no terceiro e segundo andares”. Hoje se sabe que eram sessenta oficiais da Escola Militar da Praia Vermelha, que tinham ocupado quatro andares no prédio, para imHistória O Golpe de 1964


História O Golpe de 1964

pedir a prisão de Castello Branco, o líder dos conspiradores. A audiência com o presidente durou poucos minutos. Um avião já estava à disposição para transportar Telles a Porto Alegre. Jango determinou também que, antes de embarcar, ele providenciasse a prisão de Castello Branco. Pela hierarquia, cabia ao comandante do I Exército, general Armando de Moraes Âncora, executar a ordem. Ladário, então, transmitiu a ele a ordem do presidente. “Senti hesitação no general Âncora. Várias vezes fiz-lhe ver que o tempo passava e o general CasRevista

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No centro da cidade, qualquer aglomeração era dispersada com violência

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Brigada Militar, Exército e Polícia Civil saíram às ruas para reprimir qualquer tentativa de manifestação

tello se retiraria do Ministério sem ser preso. Somente às 18 horas Âncora chamou Castello. Me pareceu que a prisão seria efetuada...” Àquela hora Castello Branco não estava mais no prédio do ministério. Saíra em companhia de Ernesto Geisel e estava escondido num apartamento na avenida Atlântica. Acreditando que a prisão seria efetuada, Ladário Telles foi para casa arrumar as malas. Eram 22h55min quando partiu. A bordo ouviu a declaração de Adhemar de Barros, o governador de São Paulo, aderindo ao golpe. Chegou em Porto Alegre a 1h20min, mas só na madrugada conseguiu assumir o comando. Já era tarde demais.

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Ninguém acreditava no golpe

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No dia 31, uma terça-feira, Porto Alegre amanheceu fria e com chuvisqueiro. O governador despachava no Palácio como se nada estivesse acontecendo. Desde cedo corriam boatos de golpe, mas isso não era novidade. O noticiário mor-

no dos jornais do dia não indicava qualquer anormalidade. O Correio do Povo trazia na capa um terremoto no Alasca, com manchetes para Camboja, Hungria, Espanha e Rússia. Um destaque local era a crise de atendimento na agência dos Correios, em Santa Rosa. Outra notícia importante foi o casamento de dona Vanisa Melo com o senhor Theodoro Medeiros, lá em Santa Maria. O único texto sobre o Brasil era do presidente americano Lyndon Johnson acusando Jango de ter muitos comunistas no governo. Os jornais da época desinformavam tanto assim porque ou estavam alinhados com os conspiradores, ou totalmente contra, como no caso do tablóide Última Hora – sendo o único da esquerda, cometia o mesmo pecado dos demais de defender apenas um lado. Anos depois, Breno Caldas, dono do Correio do Povo, admitiria a parcialidade: “A posição do Correio foi favorável diante dos acontecimentos de 64. Cooperamos para sua eclosão. Aqui havia um foco dinâmico da esHISTÓRIA O Golpe de 1964

querda manobrado pelo governador Brizola. Nós estávamos contra a situação que ele representava. Desta maneira, a revolução de 64 foi para nós bemvinda, desejada e saudada”. O resultado óbvio da parcialidade generalizada é que o povão pouco sabia das coisas. Naquele 31, os jornais traziam apenas algumas dicas da tempestade que desabaria sobre a vida política. Na primeira página do Diário de Notícias a manchete era quase uma mensagem em código do golpe: “Em Minas Gerais, Exército e FAB em rigorosa prontidão”, sem nenhum explicação do contexto. O mais lido cronista social da época, Ibrahim Sued, deu em sua coluna do Diário apenas uma notinha de política: “O novo ministro da Marinha é um gagá que será joguete nas mãos de Leonel Brizola e sua troupe de comunistas”. Ele fechou a coluna com uma frase romântica, “quem nunca amou, nunca viveu”. O mesmo Diário trazia uma mensagem de Páscoa do arcebispo Dom Vicente Scherer. Ela sim vinha carregada de política: “Cabe-nos, di-


Dia 2 de abril: tropas ocupam pontos estratégicos no centro de Porto Alegre

constava que “o general Humberto de Alencar Castello Branco vai deixar a chefia do Estado-Maior do Exército” – ele, Castello, deixou sim, mas para assumir, quase duas semanas depois, a cadeira de Jango. Como 31 era terça e segunda os jornais não circulavam, eles traziam notícias do domingo anterior, de Páscoa. Alguns foram cordiais com o prefeito Sereno Chaise, que passara aquele dia visitando obras, e à primeira-dama Terezinha, por entregar 25 mil barras de chocolate Neugebauer para crianças carentes nos bairros da periferia.

Jornais saúdam o golpe As narrativas daqueles dias variam: muita gente viu muita gente nas ruas, mas a maioria viu só algumas escaramuças no centro. A tal massa, que já começava a se sentir órfã, ainda tentou agitar, com protestos no eixo Borges de Medeiros, rua da Praia, Largo da Prefeitura e Praça da Alfândega nos dias primeiro e dois de abril. Houve repressão e correrias. Alguém deu tiros numa HISTÓRIA O Golpe de 1964

das janelas da CEEE, não houve vítimas. O Correio do Povo descreveu os protestos do dia primeiro como “atos de desatino de moradores de vilas e estudantes, sentindo-se abandonados à própria sorte”. O jornal saudou o golpe contra “o pólo infeccioso que tem em seu agente o ex-governador Leonel Brizola”.

Legislativo em parafuso A Assembleia Legislativa entrou em parafuso no dia primeiro. Os deputados trabalhistas queriam instalar uma sessão permanente no teatro São Pedro, porque temiam que com o golpe a casa fosse fechada “pelos esbirros do governador Meneghetti”, como diziam. No plenário, o deputado Paulo Brossard de Souza Pinto, mais tarde um formidável opositor da ditadura, fez um discurso a favor do golpe: “Felizmente para nós, as Forças Armadas encontraram em seu íntimo a defesa das instituições democráticas e a ordem constitucional que as exprime”. A resposta veio de Pedro Simon, Revista

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letos fiéis, render graças a Deus haver preservado em nosso país a paz pública e a capacidade de resistir às adversidades econômicas e sociais”. Lendo hoje as declarações dos luminares da política gaúcha da época, seria possível perceber que alguma coisa grave iria mesmo acontecer. Por exemplo, o ex-prefeito José Loureiro da Silva, deu uma entrevista na sede da Ação Democrática Feminina (ADF), reproduzida naquele dia pelo Correio, criticando “a ocupação de cargos da administração pública por comunistas”. Ainda no fatídico dia 31, os jornais anunciaram uma possível reunião secreta que deveria acontecer no dia 2, no Palácio Piratini, entre os governadores Meneghetti, Carlos Lacerda (RJ) e Adhemar de Barros (SP), três conspiradores da primeira hora. O Diário trazia uma nota interessante. Nela até se poderia identificar um dos golpistas – coisa que naquela hora poucos sabiam. Ao pé de uma lista de associados da Caixa de Assistência Social dos Oficiais,

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num duro protesto contra a deposição do presidente. Na Câmara de Vereadores, o presidente Célio Marques Fernandes, mais tarde prefeito nomeado pela ditadura, convocou uma sessão extraordinária – apressava-se para assumir o cargo vago com prisão de Sereno Chaise, horas depois. Apesar do feriado bancário e escolar, que esvaziou a cidade, uma massa descrita como “janguista-esquerdista-brizolista-comunista” saiu às ruas, mas não chegou a reunir mais de três mil pessoas. Policiais do Dops e soldados da Brigada e do Exército dissolviam com violência as aglomerações. A Folha da Tarde saiu pouco depois do meio-dia, já trombeteando a vitória e elogiando o rigor das tropas na manutenção da ordem.

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Brizola: “Tomem os quartéis a unha”

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O ponto alto da resistência foi o comício da noite do dia primeiro no Largo da Prefeitura. Brizola falou por volta das oito, para duas mil pessoas. Brizola vinha botando fogo na massa todo dia pelo rádio e repetiu no comício seu mantra: “Quero iniciar a derrubada destes chefes militares golpistas e traidores. Atenção, sargentos do III Exército. Atenção, sargentos das unidades chefiadas por esses militares golpistas. Atenção, oficiais nacionalistas... O povo pede que os sargentos se levantem, tomem os quartéis e prendam os gorilas... tomem a iniciativa, a unha mesmo, com o que tiverem na mão, tomem as armas desses gorilas, tomem conta dos quartéis e prendam os traidores...” Dali ele foi para o QG do III Exército usar o rádio para falar com Jango. O presidente estava voando para Porto Alegre e os dois teriam concordado que nenhuma reação HISTÓRIA O Golpe de 1964


No Parque da Redenção, o canhão desperta curiosidade

seria organizada enquanto ele não chegasse. Mas Jango só chegaria na madrugada do dia 2 de abril, quando já era tarde para a resistência,

“A noite em que chegaram os tanques” A casa que foi cenário do último ato de Jango no governo ainda está lá, intocada, 50 anos depois. Ainda serve à mesma função, ser a residência do general que estiver no comandante do III Exército. Foi ali, na esquina da Cristóvão Colombo com a Carlos von Koseritz, que o general Ladário Telles hospedou Jango nas suas últimas nove horas como presidente do Brasil, em 2 de abril. A casa já foi mais elegante, na HISTÓRIA O Golpe de 1964

época em que o bairro era mais nobre – hoje ela está numa esquina barulhenta, vizinha de um hotel e de um restaurante japonês. Os vizinhos amam sua presença porque um destacamento 24 horas guarda o pedaço. A tropa se esmera para cuidar do pequeno jardim da frente, com uma burocrática roseira no centro, uma cerca viva de metro e meio de altura e uma discreta guarita. Naquele dia 2 de abril, a calma das noites da Cristóvão foi quebrada às 4 horas. O professor Francisco Outeiro, vizinho, lembrou anos mais tarde: “Acordei com aquele barulho enorme, estranho e assustador. Meu pai disse ‘são as lagartas dos tanques nos paralelepípedos’. Abrimos a janela e eram mesmo tanques”. A barulheira também incomodou seu Albino Neitcke, dono da padaria Vitória, na esquina oposta da Koseritz. Mais tarde, às 7 da manhã, quando abriu a loja, soldados apareceram ordenando que ele afastasse mulheres e crianças. “Eles ocuparam todas as esquinas com seus tanques”, lembrou seu Albino. “Um deles ficou estacionado no meu jardim”. Outra lembrança: “Minha mulher não deu bola para a ordem e ficou trabalhando, aquele foi um dia de muito movimento”. A marquise da padaria ficou tomada por fotógrafos. “Deputados e outros políticos entravam toda hora na loja para tomar café, comer sanduíches, foi mesmo uma loucura”. Seu Albino contou que os mordomos da casa do general vieram buscar quantidades extras de pão, manteiga, queijo e salame. “De repente, vi o Brizola sair da casa pela porta da frente, entrar num Fusca clarinho que estava estacionado no portão e descer a rua, ele mesmo dirigindo”. Revista

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Dia 3 de abril: já não há mais protestos, mas tanques continuavam estacionados nas ruas

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Avenida São João, São Paulo, dia 3: a vida volta ao normal

História O Golpe de 1964

Os jornalistas e os tanques sumiram para sempre. A padaria Vitória cresceu, continua firme na esquina. Mordomos do general ainda fazem compras ali. No jardim, um pé de cinamomo cresceu onde antes o tanque ficara estacionado.


Zona Sul do Rio: os tanques ainda não voltaram aos quartéis

te um novo comandante para o III Exército, o mais poderoso dos quatro exércitos brasileiros, com jurisdição sobre Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina. A lembrança da Legalidade, menos de três anos antes, fazia do Rio Grande do Sul um ponto estratégico, onde certamente os defensores de Jango tentariam resistir. Mas agora a situação era outra. A começar pela vitória da oposição a Jango e Brizola, que conseguira ganhar a eleição de 1962 e colocar o conservador Meneghetti, da UDN, no governo do Estado. Brizola estava em Porto Alegre no dia 31 de março. Só que agora ele era um deputado federal, não podia dar ordens à Brigada Militar nem requisitar emissoras de rádio para mobilizar a população em defesa do governo. Além disso, ao contrário dos seus adversários, que há muito se preparavam para impedir que se organizasse uma resistência ao golpe no Rio Grande do Sul, os aliados de Brizola estavam completamente despreparados.

4 de abril: Jango desembarca em Pando, no Uruguai. Começava o exílio

Legalidade não se repetiu No início da noite de 31 de março, o governador Ildo Meneghetti tentava saber a exata extensão da rebelião militar, quando foram cortadas as linhas telefônicas do Palácio Piratini.

O governador convocou seus auxiliares para uma reunião. Havia chegado uma notícia alarmante: os sargentos haviam tomado um quartel em Bagé, obrigando o comandante a se refugiar em outra unidade. O governador ficou também sabendo que ia chegar naquela noiHistória O Golpe de 1964

No dia 2, depois do meio dia, Jango decidiu partir para o exílio. Não havia mais como resistir. Foi aí que começaram as trevas. Os golpistas soltaram as rédeas do Dops para prender seus adversários. Houve um pequeno atraso no cronograma das prisões porque a turma estava com os salários atrasados. Os zelosos policiais se recusavam a prender antes de receber. “De repente, uma mala de dinheiro apareceu no Palácio da Polícia e todos foram pagos”, lembrou anos mais tarde o então delegado Cláudio Barbedo. Com tal estímulo, um dos primeiros presos foi o prefeito Sereno Chaise – entrou no xadrez vestindo um impecável sobretudo cor de camelo. Revista

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Mala de dinheiro para pagar a polícia

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Aquartelado no 2º Batalhão de Polícia, o governador passa a tropa em revista

E Meneghetti

se foi pra Passo Fundo Para impedir que a Brigada caísse na mão de Brizola, o governador fugiu num fusca

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Patrícia Marini

laro que não foi uma fuga. Foi uma estratégia militar. Foi meu pai que sugeriu ao governador Meneghetti irem para Passo Fundo”, afirma o coronel José Carlos Riccardi Guimarães. Ele tinha 11 anos, era aluno do colégio Paula Soares. As aulas foram suspensas às dez horas do dia primeiro de abril de 1964, quando circulou a notícia de que tropas se movimentavam para derrubar o governo.

Em Passo Fundo, Meneghetti fala na rádio HISTÓRIA O Golpe de 1964


Fotos: Museu da Brigada Militar

Chegou em casa e dona Carmen, sua mãe, “não deixou sentar no sofá, porque o governador ia lá”. Em seguida chegou o pai, o capitão Jesus Linares Guimarães, ajudante de ordens do Secretário de Segurança, com uma pequena comitiva e o governador”. Um protesto popular, açulado por sindicalistas, na frente do Palácio, fez o governador sair pelos fundos. Ele atravessou os jardins, e desceu por uma passagem reservada que ligava o palácio à residência do chefe da Casa Militar, que estava provisoriamente ocupada pelo capitão Linares. Chegaram apressados, o governador tenso, de chapéu, que ele habitualmente não usava. “Não deu tempo nem de tomarem o cafezinho que eu preparei”, lamenta dona Carmen. “Eles logo saíram no nosso fusca verde.” Um emissário já havia saído na frente para avisar, que o governador estava a caminho. Estava em andamento o que se chamou depois “Operação Farroupilha”, na verdade uma saída improvisada diante da ameaça de intervenção federal. O novo comandante do III Exército, general Ladário Telles, havia requisitado a Brigada Militar para que ficasse sob suas ordens.

O governador Meneghetti deu uma resposta evasiva e ganhou um prazo até as 14 horas do dia 1o de abril. O controle da Brigada Militar era decisivo para qualquer resistência ao golpe, que o govnernador apoiava. Antes do meio-dia Meneghetti decidu sair. O próprio capitão Linares dirigia o Wolkswagen 61, de uso as família. Na saída de Porto Alegre, na avenida Farrapos, um carro bateu atrás do fusca verde. Foi só um susto. “O pai era meio barbeiro”, conta o coronel Riccardi. Em Estrela trocaram de carro. Passaram para um Aero Willis preto colocado à disposição pelo prefeito. “Graças a Deus o prefeito era dos nossos”, diz dona Carmen. Ela, com os três filhos pequenos, foi para a casa de seus pais. “Lembro de mim com as crianças em frente ao Cine Capitólio, sem saber o que estava acontecendo.” Linares sugeriu Passo Fundo porque a guarnição da Brigada Militar, além de ser uma das maiores e mais bem equipadas do Estado, era comandada pelo major Victor Hugo Martins, que apoiava o golpe. Ao receber o emissário do governador, o major baixou uma ordem de serviço: HISTÓRIA O Golpe de 1964

“O Batalhão deverá estar alerta e vigilante, a partir das 12h30 de hoje, para qualquer emergência.” A ordem é dormir no quartel, controlar chamadas telefônicas, recolher às 21 horas, abastecer as viaturas... ficam proibidos “comentários com civis”. O comando da companhia (três pelotões de fuzileiros e um de “petrechos leves”) ficou com o capitão Onofre Rodrigues, também “solidário com a revolução”. No relatório reservado da BM (“Crise político-militar de 31 de março”), o capitão registra que reuniu os oficiais, declarou sua posição no conflito e disse: “Quem discordar que se pronuncie agora”. Só depois de constatar que podia contar com toda a oficialidade, autorizou o coronel Gonçalino, o emissário de Meneghetti “a trazer S. Exa. Sr Governador para este Quartel”. Meneghetti, esperado às 19 horas, só chegou às 21 horas. Alojou-se no quartel com seus assessores imediatos Poty Medeiros, secretário de Segurança Pública; José Antônio Aranha, da Fazenda; coronel Orlando Pacheco, chefe da Casa Militar; jornalista Plínio Cabral, chefe da Casa Civil; e outros auxiliares. Às 22 horas, despachou uma Ordem do Dia: “Soldados! (...) Não sei Revista

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Da sacada, o comandante Victor Hugo Martins mostra a Meneghetti o aparato militar

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Fotos: Museu da Brigada Militar

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qual destino nos aguarda, nem o sacrifício que teremos de fazer (...) Não falharemos ao Brasil nesta hora de angústia mas também de glória, porque a Pátria se ergue para libertar-se da demagogia, da opressão, da mentira e da corrupção (...) juntamente com bravos companheiros de Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Goiás, do Norte e de tantos outros lugares. Não estamos sós”. O primeiro de abril amanhecera com a Viação Férrea em greve. As aulas foram suspensas às dez horas. As emissoras de rádio locais, juntamente com a Rádio Farroupilha, noticiavam que a Brigada Militar havia sido requisitada pelo governo federal. Brizola, falando na Farroupilha, já requisitada pelo III Exército, “agitava o povo e insuflava os sargentos das Forças Armadas a prenderem seus oficiais”. Por volta das 9 horas o comandante ordena a apreensão de todos os aparelhos de rádio do quartel, para “evitar tumulto e revolta no seio da tropa”. Soldados ocupam pontos estratégicos: hidráulica, companhia elétrica e viação férrea. O comandante da guarnição do Exército em Passo Fundo, capitão Grey Belles, diz que aguarda ordens de seus superiores e que não tomaria nenhuma medida imediata. Postos de gasolina controlados, requisição de um caminhão-tanque com cinco mil litros de gasolina. Mário Menegaz, prefeito de Passo Fundo, “mui gentilmente colocou 12 viaturas pesadas à disposição”, com os motoristas. Durante a madrugada de 2 de abril, chega de Porto Alegre um reforço sob o comando do capitão Nilo Silva Ferreira. Às oito da manhã, Meneghetti requisita os veículos do DAER e da CEEE, as reservas de combustível, convoca os oficiais da reserva da região e destitui do cargo o delegado de polícia da cidade vizinha de Lagoa Vermelha, Armindo Atílio Raimundi, que seria brizolista. O feriado escolar é suspenso e é dado ponto facultativo ao funcionalismo na região.

Em frente ao ginásio da Brigada, em Porto Alegre, um contingente de reforço aguarda condução para Pa

Almoço no quartel, dia 2. De batina, o bispo Dom Cláudio Colling

Meneghetti e o major da Brigada visitam os oficiais do regimento de cavalaria do I Exército

HISTÓRIA O Golpe de 1964


Meneghetti posa com os oficiais do batalhão que o recebeu

Na noite de 2 de abril, Jango já fora do país, Meneghetti faz um comício em Passo Fundo

O governador deixa Passo Fundo na sexta-feira, dia 3

HISTÓRIA O Golpe de 1964

Meneghetti recebe visitas de magistrados, políticos e do bispo diocesano Dom Cláudio Colling. À noite, faz um comício e depois vai jantar com os aliados no restaurante do Turis Hotel. Na noite da sexta, 3, o governador Ildo Meneghetti retornou ao Piratini, acompanhado do novo comandante do III Exército, general Galhardo. Às 19h30, Meneghetti apareceu triunfante no Salão Nobre e foi logo ao ponto: “Povo de Porto Alegre, minha terra natal, o vosso governador não fugiu!”. Anos depois, num depoimento na Assembléia gaúcha, ele diria: “Nós fugimos, eu fugi, sim”. Revista

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asso Fundo

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Naquele ano, a revelação no futebol se chamava Alcindo. As revistas falavam de Liz Taylor. Os anúncios recomendavam fumar e engordar

Renan Antunes de Oliveira

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N

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a Porto Alegre do golpe o carro da hora era o Simca Tufão V8. Marca de TV era Franklin, nada de Sony, Panasonic ou Sharp. Não existiam bandas de rock. Quem animava os salões dançantes da sociedade local era o conjunto de Norberto Baldauf, com destaque para o seu contrabaixo. No futebol, nascia uma estrela, um certo Alcindo. Ele “deixou marca nas malhas do Aymoré” – marca na malha é como se dizia gol naquela época, o Aymoré era de São Leopoldo e o garoto seria um dos grandes centro-avantes gremistas de todos os tempos. O Inter, com menos sorte naqueles dias, estava negociando um tal de Croaré. No teatro São Pedro estava tudo certo para a estréia de “O Inoportuno”, de Harold Pinter, com direção de Antônio Abujamra. Estréia no Cinema Cacique: “Carícias de Luxo”, com Doris Day. A celebridade de 64 era Sofia Loren. A notícia de que ela queria ser mamãe estava na capa da revista O Cruzeiro, a Caras daqueles dias. Outra estrela era Liz Taylor e seus amores tumultuados. Mesmo no meio da confusão daqueles três dias de abril, a Secretaria Municipal da Fazenda anunciou que continuaria uma blitz contra camelôs na Voluntários da Pátria. A Casa Coates, na

Porto Alegre, 1964

Carro era o

HISTÓRIA O Golpe de 1964


rua da Praia, estava aberta e oferecendo promoções. No dia primeiro de abril, uma comissão de vereadores de Pelotas passou por Porto Alegre, parou no aeroporto para entrevistas e anunciou que seguiria para o Rio, onde tinha audiência marcada com Jango para tratar de assuntos urgentes de sua cidade. Em Porto Alegre, A Revista do Globo só daria a notícia do golpe duas semanas depois. HISTÓRIA O Golpe de 1964

Revista

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Simca Tufão

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Um Brasil de

70 milhões

O país começava a se urbanizar. No campo, a concentração de terras era escandalosa

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Geraldo Hasse

om 70 milhões de habitantes, o Brasil de 1964 ainda era governado do Rio, capital colonial desde 1763, sede da corte portuguesa desde 1808 e centro político nacional da independência (1822) em diante. Com uma grande concentração de tropas e armamentos em torno do I Exército, da Marinha e da Aeronáutica, a “cidade maravilhosa” tinha um porto fundamental e, às vésperas do quarto centenário de fundação, seguia olhando de cima para o resto do país, embora tivesse perdido a condição de capital administrativa.

Brasília, a capital inaugurada em 1960, não deixara de ser pouco mais do que um acampamento, pouco menos do que uma forma de exílio. Era a capital oficial mas, como Jânio Quadros, o presidente João Goulart não gostava daquele deserto. Para ele, Brasília era uma ficção que ainda não se encaixara na realidade nacional. Na maior parte do tempo, Jango ficava no Rio, onde tinha sua residência familiar. O Brasil era um arquipélago carente de integração. Havia uma malha rodoviária em implantação (cascalho, macadame ou asfalto, dependendo da fase das empreitadas), mas ainda se contavam nos dedos das mãos as instituições de envergadura nacional. Eram o Banco do Brasil, os Correios, o Exército, a Igreja Católica, a Voz do Brasil, o Repórter Esso, a Varig, a praia de Copacabana, o BioHISTÓRIA O Golpe de 1964

tônico Fontoura e o sabonete Gessy Lever. Quem tiver mais de 50 anos que acrescente os seus ícones, mas observe: a maior parte dos “patrimônios nacionais” acima tinha origem ou sede no Rio. Mesmo consciente de que a Estrada de Ferro Central do Brasil, a Via Dutra e a Ponte Aérea serviam para ligar o Rio a São Paulo, a soberba carioca não tirava o chapéu nem para a flamante locomotiva paulista. “São Paulo é o túmulo do samba”, dizia o poeta Vinícius de Moraes. Para os eternos habitantes da corte do Rio, a Pauliceia desvairada era tão somente café e garoa. No entanto, a cidade quatrocentona já era um híbrido vigoroso da cultura caipira originária de Sorocaba, Piracicaba, Bauru, Araraquara e Pindamonhangaba – cruzada com a indústria automobilística implantada no ABC paulista pelo mineiro JK,


Os trabalhadores rurais se organizavam e suas foices assustavam

o “presidente bossa nova” cantado por Juca Chaves, compositor paulista em voga naquele tempo. Ah, sim, havia também a Via Anchieta ligando a capital ao porto-balneário de Santos, onde despontava (mero acaso, diriam cronistas esportivos de outros centros) uma máquina de fazer gols pilotada por Pelé. Por um lado, os brasileiros estavam com a autoestima lá em cima graças à construção de Brasília, à implantação das indústrias automobilística, ferroviária

e naval; e havia a Palma de Ouro conquistada em Cannes pelo filme O Pagador de Promessas, a conquista de duas Copas do Mundo e o Miss Universo ganho em meados de 1963 pela gaúcha Ieda Maria Vargas... Contribuindo para o baixo astral, havia a inflação galopante, um pipocar de greves e uma crescente inquietação gerada pelos debates sobre as reformas que prometiam mundos e fundos: a distribuição de terras improdutivas, o 13º salário ao funcionalismo, a extensão da leHISTÓRIA O Golpe de 1964

gislação trabalhista ao campo, o direito do voto aos analfabetos e aos cabos, soldados e sargentos, o fim da cátedra vitalícia na universidade e outros itens com que o governo Goulart praticamente encampou todas as demandas acumuladas em anos de atraso. A concentração fundiária era um escândalo. Com 3,3 milhões de propriedades rurais, o território nacional estava majoritariamente concentrado nas mãos de apenas 70 mil latifundiários (2% do total) que detinham 58% das terras. Revista

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Anos 60 em Copacabana,.Um banquinho, um violão, um amor e uma canção...

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Em três dias,

o golpe estava

vitorioso Os vencedores festejam enquanto o novo regime prende os inimigos e cria tribunais de excessão

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inda no dia 3 de abril, registravam-se tumultos no centro de Porto Alegre, mas a situação geral era de controle. O golpe estava vitorioso. O governador Meneghetti foi ao Rio para uma reunião com os governadores e os comandantes militares do movimento vitorioso. No dia 5, o general Humberto de Alencar Castello Branco é indicado para substituir Rainieri Mazzilli na Presidência da República. Em todo o país, uma caça às bruxas se espalhou. Na Brigada Militar, na Assembleia, nas Prefeituras, nas Câmaras, no Judiciário e em todas as repartições públicas perseguem-se os partidários do brizolismo ou identificados com a esquerda. A sede do Partido Socialista Brasileiro foi invadida pela polícia. Logo vieram as comissões de expurgo, os IPMs e as cassações. As lideranças do levante festejavam o “restabelecimento da democracia no Brasil”.

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Castello Branco HISTÓRIA O Golpe de 1964


Um assalto

Rio de Janeiro, 3 de abril de 1964: O povo indiferente ao papel picado dos vencedores

Imprensa encobriu a conspiração e deu apoio total ao golpe

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Luiz Cláudio Cunha*

as origens da conspiração que levou ao golpe de 1964, está a digital da mídia que ajudou, por atos, fatos e versões, na criação do clima político que lançou o país num abismo autoritário de 21 anos. E ajudou, depois, na consolidação do regime, com seu apoio explícito. Ninguém dissecou isso melhor do que o professor uruguaio René Armand Dreifuss (1945-2003). Em 1981, aos 36 anos, ele publicou no Brasil

sua tese de doutorado produzida nos cinco anos anteriores na Escócia. Nas 814 páginas de seu livro* (1964: A conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Ed. Vozes) Dreifuss confirma: 1964 não foi uma simples quartelada, ou ato improvisado de um general impulsivo que de repente botou os tanques nas ruas. Em novembro de 1961, três meses após a posse de Goulart, nasceu no Rio o IPES, Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais. Reunia a nata do empresariado, nacional e multinacional, com todos os nomes, sobrenomes e siglas que ainda hoje enfeitam as listas das maiores empresas do país. Parecia um inocente clube de homens de negócios. Mas, na sua face oculta, sob siglas e codinomes, o IPES concentrava a execução meHISTÓRIA O Golpe de 1964

tódica de um pensado plano para combater, de forma clandestina, três principais inimigos: o Governo Jango, a aliança nacionalista do PTB e o comunismo, que aparentemente resumia tudo aquilo. O braço político ostensivo do IPES era o IBAD, Instituto Brasileiro de Ação Democrática, que apesar do nome tinha ligações com o MAC, Movimento Anticomunista, e com a organização da direita católica Opus Dei. O fundador do IBAD em 1959 foi o integralista Ivan Hasslocher, dono da Promotion, agência de publicidade que promovia o lobby do instituto e seu braço parlamentar, a ADP – Ação Democrática Popular, um núcleo conservador de 160 parlamentares da centro-direita no Congresso. Revista

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à opinião pública

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No furor golpista, O Globo atropela os fatos, Jango ainda estava no Brasil

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Segundo Dreifuss, a ADP tinha sua ação política patrocinada pela secção carioca da CIA, a agência de inteligência americana. A partir de 1962, jutaram-se as duas entidades: nascia o complexo IPES/IBAD, matriz ideológica e operacional da conspiração que daria o golpe e, depois, forneceria os quadros e dirigentes do aparato estatal que sustentou o regime militar. Em 1963, os 80 membros originais do IPES pularam para 500. Eram sócios 26 dos 36 líderes da FIESP, a maior federação industrial do país. Em Porto Alegre, a versão local tinha o nome de IPESUL e sobrenomes ilustres como o lojista Fábio Araújo Santos, da rede JH Santos, José Zamprogna e Ary Burger, diretor do Grupo Gerdau, Antonio Saint Pastous, presidente da Farsul, entre muitos outros. A articulação dos empresários com os militares era feita pelo Grupo de Levantamento da Conjuntura (GLC) do IPES, comandado pelo general Golbery do Couto e Silva. A equipe de Golbery distribuía nos quartéis uma circular bimestral mimeografada, sem citação da fonte, avaliando a atividade “comunista” no país, apontando o dedo para “subversivos infiltrados no governo” e mapeando suas ações. Só no Rio de Janeiro o GLC de Golbery tinha três mil telefones grampeados . O grupo do general ocupava quatro das 13 salas que o IPES havia alugado no 27° andar do Ed. Avenida Central, na av. Rio Branco. A conta do telefone era faturada em nome

do general da reserva Henrique Geisel, irmão de Ernesto. Em Porto Alegre, o IPESUL operava no quarto andar do Ed. Palácio do Comércio, no centro.

Três frentes O GLC escrutinava a produção diária da imprensa do país e produzia mensalmente cerca de 500 artigos, disseminados pelos jornais ou divulgados em forma de palestras. O Grupo de Atuação Parlamentar (GAP) do IPES proibia qualquer menção à sigla, que era camuflada como “Escritório de Brasília”. O plano era simples e mortal: o IPES, através do IBAD e da ADP, emparedava o governo no Congresso, criando um beco sem saída parlamentar e um ponto morto do Executivo. Era fundamental manipular a expressão da sociedade. O objetivo central do Grupo de Opinião Pública (GOP) do IPES era disseminar seus objetivos na imprensa falada e escrita. Dissimulado, o grupo evitava o nome “opinião pública”, preferindo as expressões “divulgação” e “promoção”. O GOP era “a base de toda a engrenagem”. “Conquistar a opinião pública” era a essência da ação política do grupo. O principal articulador do GOP o ex-comissário de Polícia, José Rubem Fonseca, que se tornou, depois, um dos escritores mais festejados do pais. Outros destaques do GOP no Rio eram os jornalistas Glauco Carneiro e Wilson Figueiredo, este do corpo editorial do Jornal do BraHISTÓRIA O Golpe de 1964

sil. Em São Paulo, o GOP atuava com Geraldo Alonso, dono da Norton Propaganda, e nomes ilustres de O Estado de S.Paulo, como Ênio Pesce e Flávio Galvão. Contava ainda com Jorge Sampaio e Alves de Castro, os dois nomes centrais do “Repórter Esso” da TV Tupi, o equivalente ao Jornal Nacional de hoje. O GOP se valia da tecnologia da época: enviava milhares de cartas e telegramas e fazia chamadas telefônicas, antecipando em décadas o advento telemarketing. Em novembro de 1962 chegava a três mil nomes a lista de organizações de rádio e TV mobilizadas pelo GOP. Aliado a ele funcionava o GPE, Grupo de Publicações/Editorial, que disseminava material impresso pelo país. Esta campanha de guerra psicológica era tarefa do ex-comissário e contista Rubem Fonseca, que mobilizava intelectuais respeitados como Augusto Frederico Schmidt, Odylo Costa Filho e Rachel de Queiroz. Atuavam em três frentes: artigos para jornais e revistas, panfletos para circular entre estudantes, militares e operários, e livros que comparavam a democracia com a empresa privada. Nomes fortes do mercado editorial, como Saraiva, Cia. Editora Nacional e GRD Editora, colaboravam


Com o clima de vitória criado pelos jornais, até Lacerda saiu para rua

na publicação da chamada “literatura democrática”.

Sinal verde

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Em janeiro de 1963 a demanda por recursos era tão grande que o comando do IPES decidiu aprovar uma contribuição anual padrão de meio por cento do capital de cada sócio. O caixa 2 ou “contabilidade paralela” da entidade já somava US$ 4 milhões. O orçamento oficial do ano anterior estabelecia despesas mensais de 10 milhões de cruzeiros (US$ 300 mil na época) só no IPES carioca. A projeção do novo ano previa o dobro das despesas, sem contar o gasto com atividades encobertas e sigilosas. A CPI que investigou a ligação do IPES com o IBAD apurou que, nas eleições gerais de outubro de 1962,

foram injetados entre 5 bilhões e 20 bilhões de cruzeiros (em termos atuais, entre 260 milhões a 1 bilhão de reais) para financiar 250 candidatos. Foram eleitos 110. O embaixador americano no Brasil Lincoln Gordon, bem mais modesto, disse que o valor investido não superou 5 milhões de dólares (cerca de 10 milhões de reais hoje). No Rio Grande do Sul, a aliança de centro-direita da ADP era integrada por PSD, UDN, PL, PDC e PRP. O vitorioso Ildo Meneghetti, um dos oito governadores apoiados pelo esquema, enfatizou que a indústria e o comércio locais – “sob a égide do IPESUL” – garantiram o resultado das urnas. Dois dos deputados eleitos pelo IPESUL eram Peracchi Barcellos (PSD) e Euclides Triches (PDC), mais tarde nomeados governadores do Rio Grande, pela ditadura. Quem se habilitava a integrar a lista de “democratas convictos e anticomunistas de primeira ordem” passava pelo crivo dos analistas do IPES/ IBAD. Tinha que assinar um “ato de compromisso ideológico”, pelo qual prometia lealdade ao IBAD, lutar contra o comunismo e defender o investimento estrangeiro. O chefe do GAP (Grupo de Ação Parlamentar) do IPES, o banqueiro Jorge Oscar de Mello Flores, avaliava os candidatos pelo coeficiente eleitoral. De início, ele calculava que cada deputado “custaria” cerca de 6 milhões de cruzeiros (cotação atual: R$ 317 mil) nos Estados menores. “Os candidatos de Rio e São Paulo eram muito mais caros”, explicou

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O Correio do Povo nos dias do golpe: nenhuma palavra sobre o golpe militar

HISTÓRIA O Golpe de 1964

Revista


A classe média doutrinada sai às ruas para comemorar o fim da baderna

Mello Flores, ao avaliar a conta per capita dos deputados no balcão do IPES: 15 milhões de cruzeiros (cotação atual: R$ 792 mil). O orçamento de um candidato “apagado”, isto é, pouco conhecido e de limitada agressividade eleitoral, incluía despesas com equipamento de som, 40 mil cartazes, 600 faixas, fotografias, espaço em jornais, mensagens no rádio e TV, discos de jingle, gasolina, correspondência e pessoal de apoio… Outras empresas ligadas ao IPES colaboravam com seus serviços, como no caso das passagens aéreas gratuitas liberadas pela Panair, Cruzeiro do Sul e Varig. Uma única empresa estrangeira, a Deltec, do americano David Beaty III, sócio do IPES, abriu uma “caixinha” de US$ 7 milhões. O IPES recebeu apoio financeiro de 297 corporações americanas. Passavam o chapéu entre empresas britânicas, suecas, alemãs.

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Rezas e cânticos

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A palavra “golpe” continua ausente dos jornais

Na véspera da eleição de 1962, a Promotion, empresa de Ivan Hasslocher, líder do IBAD, arrendou o jornal carioca A Noite por 90 dias, ao custo mensal de 2 milhões de cruzeiros (cerca de R$ 100 mil no câmbio atual) para propaganda direta. A revista Repórter Sindical também era operada pela entidade. HISTÓRIA O Golpe de 1964

O órgão oficial do IBAD, Ação Democrática, circulava mensalmente com 250 mil exemplares e textos de gente como o economista Eugênio Gudin e o líder udenista Aliomar Baleeiro. No início de 1963, um manifesto de 500 profissionais de prestígio, organizados pelo Centro Democrático de Engenheiros, ligado ao IPES, foi publicado no Jornal do Brasil e em O Estado de S.Paulo. Manifestos variados, todos “democráticos”, proliferavam na imprensa e eram retransmitidos pela dupla IPES/IBAD. Eles tinham uma agência de notícias, a Planalto, que redistribuía o material a 800 emissoras de rádio e jornais do país. Um milhão de cópias da “Cartilha para o Progresso”, feita pelo IPES, exaltando os benefícios da Aliança para o Progresso do governo americano, foi encartada como suplemento da Fatos&Fotos, revista de grande circulação da Editora Bloch. O IPES gastou 10 milhões de cruzeiros para produzir 15 programas de TV para três canais diferentes. Eram entrevistas de questionários preparados pela entidade, com jornalistas de confiança e gente selecionada para responder sobre reforma agrária, custo de vida, democracia. Estavam escaladas neste time algumas personalidades gaúchas como o senador Mem de Sá, os


deputados Daniel Faraco, Egydio Michaelsen, Paulo Brossard e Raul Pilla, o prefeito Loureiro da Silva e o arcebispo dom Vicente Scherer. Em 1962, o IBAD operava diariamente mais de 300 programas de rádio no horário nobre das principais cidades do país. A rede de mais de 100 estações ligadas a ele formava a “Cadeia da Democracia”, sob o comando do senador João Calmon, dos Diários Associados. O maior produtor de filmes comerciais do país, Jean Manzon, foi contratado pelo IPES para produzir filmes como “Que é a democracia”, “Deixem o estudante estudar”, “Uma economia estrangulada”, “Criando homens livres”. Eram filmetes de 10 minutos, projetados antes do vibrante faroeste nas matinês do interior do país, em três mil salas de cinema. As cópias ficavam sob guarda de Luiz Severiano Ribeiro, o maior distribuidor e proprietário de salas do Brasil. Quando a platéia não aparecia, o cinema ia até o público. O IPES montou o projeto do “cinema ambulante” em caminhões abertos e ônibus com chassis especiais, que percorriam favelas, bairros populares e cidades distantes. Era um mutirão democrático: a Mesbla fornecia os projetores, a Mercedes Benz emprestava os caminhões e a CAIO montava a carroceria dos ônibus.

O IPES jogava seu charme também sobre as mulheres. Custeava, organizava e orientava politicamente as duas organizações femininas mais importantes do país: a CAMDE ( Campanha da Mulher pela Democracia), no Rio de Janeiro, e a UCF (União Cívica Feminina, de São Paulo). O MAF, Movimento de Arregimentação Feminina, na capital paulista, tinha 6 mil filiadas em São Paulo e era presidido por Antonieta Pellegrini, irmã de Júlio de Mesquita Filho, dono de O Estado de S.Paulo e um dos principais patronos do IPES. Com um rosário nas mãos e um afiado discurso anticomunista, as donas de casa foram à luta para mobilizar as esposas de militares, sindicalistas e funcionários públicos. Mais de 50 mil cartas atulharam o correio dos parlamentares no Congresso, em Brasília. A primeira reunião da Camde no Rio realizou-se no auditório de O Globo, que garantia espaço no jornal e na rádio para a agitação das mulheres. Em janeiro de 1964, ao saber de um iminente congresso da CUT da América Latina em Belo Horizonte, a LIMDE ( Liga da Mulher Democrata) ameaçou invadir o aeroporto da Pampulha e deitar as militantes na pista para impedir a reunião subversiva. O encontro foi transferido para Brasília. Em fevereiro, quando Leonel Brizola passou por lá para defender as reformas, o auditório da Secretaria da HISTÓRIA O Golpe de 1964

Saúde na capital mineira foi invadido por um pelotão de mulheres, com o terço nas mãos, gritando slogans contra o belzebu vermelho. Brizola teve que se calar, diante do tumulto e dos objetos voando pelo salão, num episódio conhecido como a “Noite das Cadeiradas”. No comício da Central do Brasil no Rio de Janeiro, em 13 de março, duas semanas antes do golpe, Jango mirou nas mulheres: “Não podem ser levantados os rosários da fé contra o povo, que tem fé numa justiça social mais humana e na dignidade das suas esperanças”. O IPES interpretou o ato como uma bofetada nas mulheres e em Nossa Senhora. Uma semana depois, 19 de março, a UCF paulista reagiu no dia de São José, santo protetor da família, com uma marcha na Praça da Sé com cerca de 500 mil pessoas, uma multidão cinco vezes maior do que o comício da Central. Eram puxadas pela reza fervorosa do padre americano Patrick Peyton, financiado pelo IPES, e bradavam sua graciosa palavra de ordem: “Vermelho bom, só batom”. O sucesso da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, que originalmente deveria se chamar “Desagravo ao Santo Rosário”, inflamou o movimento. Marcaram outra, maior ainda, para o Rio de Janeiro em 2 de abril. Mas o general Olympio Mourão Filho Revista

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As manchetes não podiam ser mais capciosas: “Minas se levanta contra Jango”. Que Minas?

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Alunos da Mackenzie, núcleo anti-comunista em São Paulo comemoram a vitória

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sacou primeiro em Juiz de Fora, 48 horas antes da marcha do Rio. E o ato de protesto virou a “Marcha da Vitória”: quase um milhão de pessoas, lideradas pelo Camde e pelo IPES. Na medida em que avançava a conspiração, crescia a presença militar sobre a base parlamentar. Era hora de sair do discurso para a prática. O IBAD cede seu lugar de destaque para outra sigla – a ESG, da Escola Superior de Guerra, de onde provinha o núcleo fardado do golpe. O novo complexo IPES/ESG alinhava 330 oficiais, de majores a generais de Exército, fazendo a ligação do mundo empresarial com os quartéis. No Rio Grande do Sul, foco principal da resistência de Brizola na “Campanha da Legalidade”, dois terços da oficialidade já estavam engajados na conspiração. O deputado Peracchi Barcelos (PSD), coronel da Brigada Militar, eleito pela lista do IPESUL, tratava de sublevar a força pública do Estado. O general da reserva Armando Cattani organizava grandes fazendeiros no interior em unidades paramilitares que seriam acionadas na hora precisa. Na dura expressão de René Dreifuss, “o IPES conseguiu estabelecer um sincronizado assalto à opinião pública” pela relação especial com os principais veículos da mídia nacional. Com exceção da Última Hora de Samuel Wainer, fiel até o fim a Jango e ao PTB que financiou seu jornal, todos os grandes veículos foram ostensivamente partidários do golpe, antes e depois. Pelo menos até a ruptura violenta do AI-5, que transformou velhos

companheiros da conspiração em vítimas da truculência da ditadura. No Rio Grande do Sul, o alinhamento dos jornais com a conspiração e com o regime militar era natural. O Diário de Notícias, de Chateaubriand, tinha orientação do dono para bater no governo e apoiar a oposição empresarial e militar. Zero Hora já nasceu depurada e lavada ideologicamente em 4 de maio de 1964, um mês e quatro dias depois do levantamento militar do general Olympio Mourão.

Nota discreta Nos idos de 1962, o líder do IPES carioca José Luiz Moreira de Souza, dono da Denison Propaganda, viajou a Porto Alegre para botar a Caldas Júnior (Correio do Povo, Folha da Tarde e Rádio Guaiba) no balaio da conspiração. Ganhou as graças de Arlindo Pasqualini, irmão de Alberto, ideólogo do trabalhismo que o IPES combatia. Arlindo, diretor da Folha da Tarde e o sucessor natural do dono da empresa, Breno Caldas, recebeu a missão de produzir uma série de artigos contra Leonel Brizola. No editorial da primeira edição do jornal, no longínquo ano de 1895, Caldas Jr. tinha definido um lema e uma linha para o jornal que se tornaria centenário: “Independente, nobre e forte – procurará sempre sê-lo o Correio do Povo, que não é órgão de nenhuma facção partidária, que não se escraviza a cogitações de ordem subalterna.” Nos primeiros editoriais após o golpe de 1964, o jornal abandonou HISTÓRIA O Golpe de 1964

Fatos & Fotos: matérias pagas a favor do regime

Manchete do JB: Que regime?

sua histórica divisa, aderiu à facção vitoriosa e adotou uma postura subalterna à nova ordem militar. E escancarou seu apoio em editoriais didáticos para explicar por que os revolucionários de 31 de março estavam certos: “Aquele era o único caminho para salvar o Brasil”, dizia o jornal, fazendo coro com a grande imprensa golpista do centro do país. * Resumo do ensaio “Máximas e Mínimas: os ventos errantes da mídia na tormenta de 1964”. Integra no jornalja.com.br




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