Já - História >> A ditadura mostra sua cara

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14,00

A primeira vitima da tortura História

Coronel metralhado no quartel

1964/68

A ditadura

mostra sua cara Castello Branco é empossado na Presidência da República, sob a tutela dos generais

e n t r e v i s ta

Os crimes contra a memória



n esta e dição Entrevista

Jair Krischke

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DITADURA

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PRISÕES

Caça aos vencidos

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VIOLÊNCIA

Metralhado na sala de comando

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RESISTÊNCIA

Ilusões armadas

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TORTURA

Mãos amarradas

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verissimo

Contabilidade tétrica 32 AVENTURA

Guerrilha em Caparaó 33 UNIVERSIDADE

Tempo de expurgo

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ESTUDANTES

Tomada do RU

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CASSAÇÕES

Cai a máscara

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LUTA ARMADA

Descida aos porões

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J

ornalões e revistonas se apresentaram com um discurso unificado nas edições sobre os 50 anos do golpe de 1964. “O golpe foi civil-militar” bradaram quase em uníssono, como se isso fosse novidade. A partir daí, minimizando a conspiração político-empresarial , com respaldo do governo norteamericano, induzem à conclusão de que os militares agiram atendendo à inquietação da sociedade civil que não aguentava mais a bagunça do governo Goulart. A extensão desse “civil” fica implícita, “setores” ou “amplos setores da sociedade”. Emanado do alto, esse conceito desce pelos canais do poder midiático, com versões que vão convergindo para o centro da meta, até chegar a uma pérola como esta, do comentarista político Moacir Pereira, do Diário Catarinense, da RBS: “A tomada do poder não configurou uma quartelada. Os militares depuseram o presidente João Goulart com apoio maciço da Igreja, da sociedade civil, dos parlamentares e dos partidos. Todos indignados com a situação caótica de um governo sem comando e sem rumo, que ameaçava implantar aqui uma república sindicalista ou um regime comunista. Eram as alegações dos pronunciamentos, dos editoriais e colunas dos jornais e manifestos dos meios de comunicação, que apoiaram o movimento militar”.

TRAIÇÃO

O anjo da morte

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história MAIO/JUNHO de 2014 Editor: Elmar Bones Redação: Cleber Dioni, Elmar Bones,

Francisco Ribeiro, Geraldo Hasse, Patricia Marini Imagens: Gerson Schirmer* Capa: Ilustração de Enio Squeff em acrílico sobre papel Editor gráfico: Andres Vince

Av. Borges de Medeiros, 915 cj. 203 Viaduto Otávio Rocha - CEP 90020-025 Porto Alegre/RS

*** Esta é a segunda edição que dedicamos ao tema. Na primeira tratamos da conspiração e do golpe. Nesta abordamos os anos iniciais do regime, quando os generais ainda não haviam rasgado o discurso da “revolução redentora”, que salvara o país do populismo/comunismo, para devolvê-lo à verdadeira democracia. Vamos até o Ato 5, quando, ao contrário do discurso, o país mergulha no terror dos porões. Numa terceira edição, pretendemos abordar os chamados “anos de chumbo” até a anistia, o primeiro passo para a reconciliação do país com a democracia. Nossa pretensão é fornecer, através de relatos jornalísticos, uma primeira leitura de que parecem carecer muitas pessoas bem intencionadas que se deixam levar por simplificações grosseiras e que, assim, constroem uma visão da ditadura a partir do seu discurso justificador e não da sua realidade de violência continuada.

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Falaram as armas

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O Editor

Fone: (51) 3330-7272

www.jornalja.com.br | twitter jornal_ja jornaljaeditora@gmail.com * Reprodução de publicações da época. Acervos: Museus da Brigada, Hipólito da Costa, Joaquim Felizardo, Memorial AL e Arquivo JÁ

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enunciar crimes de Estado e atentados à pessoa é, há meio século, a rotina de Jair Krischke, o incansável presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos. Em sua pequena sede no centro de Porto Alegre, ele abriga um dos acervos mais completos sobre as brutalidades, não só da ditadura brasileira, mas de seus vizinhos. Neste momento quando se registram 50 anos do golpe e 29 anos do fim da ditadura no Brasil, Krischke tem uma outra preocupação: os crimes que se continuam cometendo contra a memória desse período, como forma de apagar ou atenuar os horrores da ditadura. “Sem essa memória estaremos condenados a repetir muito em breve as mesmas barbaridades e os mesmos erros”, disse ele no lançamento do projeto Marcas da Memória, que está colocando uma placa alusiva em cada um dos locais que serviram de prisão e centro de tortura em Porto Alegre. Jair falou ao JÁ sobre a ditadura e os riscos de se perder sua memória.

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Memória

está em risco

JÁ História - Há uma ideia de que a ditadura começou branda... a violência veio depois... Jair Krischke - Esse é um dos mitos fruto do esquecimento, da falta de memória. O golpe não teve enfrentamento armado, mas desde o início ele foi violento. Um caso exemplar ocorreu aqui em Porto Alegre no dia 4 de abril. O coronel Alfeu Monteiro, comandante do 5º Comando Aéreo, foi metralhado por golpistas. Foi chamado ao QG, para ser destituído de um comando. Quando entrou no gabinete foi assassinado pelas costas, era legalista, em 1961 tinha sido um dos líderes, que impediu o bombardeio do Palácio Piratini. É o caso mais grave. Mas fora isso, as prisões, as perseguições, as torturas campearam desde o início. Centenas de oficiais e sargentos foram presos e expurgados apenas por serem acu-

sados de nacionalistas, brizolistas, janguistas ou comunistas... Dizia-se que era um “golpe preventivo”, para impedir o golpe de Jango... A tese do “golpe preventivo” foi tão trabalhada que no dia 31 de março de 1964 muita gente acreditava que era mesmo o Jango quem estava dando um golpe. Por que o Meneghetti foi pra Passo Fundo? Não havia a menor razão para sair... Isso ainda não foi bem investigado, mas eu acho que ele não sabia de que lado vinha o golpe e, na dúvida, se mandou... Acreditas que havia esse plano do Jango? O Jango nunca teve plano de golpe. O plano que houve, e muito bem feito, foi para desestabilizar o governo dele, para diminuir, apequenar a figura do presidente, que na verdade foi dos mais habilidosos líderes políticos que tivemos. Nunca foi golpista. Tanto que, quando lhe foi sugerido pelos militares o Estado

de Sítio, ele mandou a mensagem para o Congresso... e depois retirou. Isso é ser golpista? Ao contrário, ele segurava os golpistas... O problema é que havia uma ação escancarada com muito dinheiro para desestabilizar o seu governo, inclusive com intervenção americana. Na época já se lia nos muros do Rio: “Chega de Intermediários, Lincoln Gordon para presidente”. Hoje está provado e comprovado. Qual foi o fator decisivo na queda? São muitos fatores. Mas um que acho deve ser aprofundado é a traição do general Amaury Kruel, comandante do II Exército. Kruel era compadre de Jango. Quando lhe chamam a atenção para o comportamento ambíguo de Kruel nos primeiros momentos do golpe, ele brincou: Kruel não o trairia. Como ia justificar para o João Vicente, de quem era padrinho? Agora, recentemente, um coronel médico do Exército depondo na Comissão da Verdade em São Paulo contou

Sem essa memória estaremos muito em breve condenados a repetir as mesmas barbaridades, os mesmos erros cometidos na ditadura.

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algo fantástico: que viu duas pastas com dólares entregues por gente da Fiesp para comprar a adesão de Kruel ao golpe. Isso tem que ser melhor apurado, mas independente disso, houve a traição, do compadre! Isso abala moralmente. O golpe, então, seria preventivo, em seguida viriam eleições... Sim, aquele primeiro ato que não tinha número porque seria o único, previa eleições, para dois anos, está escrito. Castello assumiria para reorganizar e seriam convocadas eleições. Logo começa a mudar, uma facção militar começa a sobrepujar a outra. Grupos se formam em torno de duas posições: “Brasil Possível” dos civilistas ou “Brasil Potência” dos militaristas. Aí, começa-se a entender porque o hiato vai se estendendo. As eleições não acontecem, as cassações se prolongam, vai se agravando até explodir em 1968, com o AI5, que foi o golpe dentro do golpe.

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Em 1966, a morte do sargento Raymundo escancara a tortura... Sim, mas há um dado interessante aí, era

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Os códigos militares foram esquecidos... Veja só, no Vale da Ribeira eram 23 pessoas, com o Carlos Lamarca. Uma força com milhares de soldados ( fala-se em cinco mil) cercam a região, os guerrilheiros escapam. Foram massacrados lá na Bahia, já sem condições de resistir. No Araguaia, mandaram os pára-quedistas e nada... e um grupo pequeno, 70 pessoas, foram ficando mais cruéis... Chegaram ao paroxismo.

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Foi feito há pouco um levantamento dos centros de tortura... Pois é, fui surpreendido. No Rio Grande do Sul não foi apontado nenhum. Isto é incrível, porque aqui em Porto Alegre tivemos o primeiro centro clandestino de repressão da América Latina, o Dopinha, na rua Santo Antonio, número 600. Começou a operar em abril de 1964, oficiais do exército comandavam as operações de “polícia política”, com policiais civis subordinados a eles. Contava com um grande número de arapongas e funcionou ativamente até 1966, quando estourou a morte do sargento Manoel Raymundo Soares. Na CPI que investigou a morte do sargento se chegou ao Dopinha. Raymundo passou por lá... Por que o mataram? Porque ele não falou. Queriam sa-

Dan Mitrione, o instrutor americano (de óculos e de branco) pousa para uma foto no Palácio da Polícia,

Se alegam que foi uma guerra, os militares praticaram, no mínimo, crimes de guerra ao torturar e matar pessoas que sequer pegaram em armas, como foi o caso de Wlado Herzog, entre outros mortos na cadeia ber dos sargentos de vários Estados que tinham vindo para cá para aqui montar um núcleo de resistência com armas e munição... O Raymundo foi atraído para um encontro, foi preso e torturado, não falou, não entregou os companheiros que aqui estavam... Ele foi preso pelo Exército, foi torturado no Dops e levado para a Ilha do Presídio. Tenho a planilha onde há a libertação forjada do Dops. Da ilha foi pro Dopinha, daí ele aparece morto. Dizem que foi afogamento, que escapou ao HISTÓRIA A Ditadura

Foto: MJDHRS

outra situação... a imprensa, que até então minimizava a repressão, não havia censura, mas a repercussão foi enorme, até provocou uma CPI na Assembleia, muito bem feita, os deputados foram muito corajosos, mas aí chega-se em 1968 e termina tudo. Após o golpe, tinha um serviço de inteligência montado pelo Golbery e a partir daí vai se montando um sistema de repressão, assimilando a doutrina francesa desenvolvida na Argélia... É um crescendo: fechadas as portas, os jovens partem para a luta armada, isso vai justificar tudo para combater os “terroristas”.

Primeira placa identificando

controle. Acho que não, foi morto na tortura porque não falou. Com este escândalo, revelado na CPI, em agosto de 66 fecha o Dopinha. E o grupo do Raymundo? Esse grupo não desanima, essa é a origem da guerrilha de Caparaó. Saem daqui com armas e bagagens para Caparaó. Eram as guerrilhas brizolistas. É que havia aqui um grande número de militares nacionalistas, brizolis-


matam. Ensinava como obter confissões, inclusive por meio da tortura. Exigia assepsia total na sala de trabalho e não admitia que alguém falasse em espremer os ovos do prisioneiro. “Ovos não... testículos”. A tortura, que sempre existiu, tornou-se mais elaborada, científica... Não é uma barbaridade, é uma técnica. Essa sofisticação não tínhamos.

O “Dopinha”, na rua Santo Antonio: primeiro centro clandestino

centros de tortura foi colocada na frente do extinto quartel da Polícia do Exército

tas, comunistas, e inconformados com o desfecho, sem resistência. Aqui e em Montevidéu, onde estavam Brizola, Jango e centenas, senão milhares de asilados. O caso do Jefferson Cardim Osório, na guerrilha de Três Passos, por exemplo. Com um pequeno grupo, mal armado, ele sai de Montevidéu e atravessa a fronteira para desencadear um levante. Simplesmente, ele não podia aceitar que a ditadura fosse completar um ano sem reação, e partiu pra luta. Foi massacrado.

Aí a tortura foi brutal... A tortura chega aos quartéis quando os militares adotam o conceito da guerra de contrainsurgência, baseada na experiência francesa na Argélia. Isso tem origens na Escola Nacional de Informações. Antes do golpe, o Dan Mitrione esteve bom tempo no Brasil – Minas, Rio de Janeiro, Porto Alegre. Há até uma foto dele na frente do Palácio da Polícia... Daqui ele foi para o Uruguai, depois República Dominicana e voltou para o Uruguai, onde os Tupamaros o capturam e HISTÓRIA A Ditadura

Há um número final, aceitável, para o total de mortos e desaparecidos? Nós trabalhamos com números, a norma é a credibilidade. Quanto aos mortos e desaparecidos, 366 nós provamos. Há um número muito maior (quem sabe o que se matou do povo da selva na repressão ao Araguaia?), mas provados são esses. Mas a violência não está só nisso. Está no número de mandatos cassados, quantas pessoas foram presas, muitas sem saber porque, os processos na Justiça Militar... O clima de insegurança... Lembra da piada da época? Um sujeito pergunta: “Sabe da última?”. Outro responde: “Não sei nada, tinha um amigo que sabia, agora não sabem dele”. Eles eram os donos, não podias prever...Sem falar no terror cultural, apreensão de livros... até o Brás Cubas prenderam.

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em Porto Alegre

A justificativa... A justificativa de que havia grupos armados não serve. Até a guerra tem regras. A Convenção de Genebra condena a tortura, diz que os inimigos mortos em combate têm que ser identificados... No mínimo, foram crimes de guerra, se querem dizer que foi uma guerra... Vítimas que sequer tomaram em armas, o caso do Wladimir Herzog, que não foi isolado... Aqui tivemos o caso do Mirajo Fernandes Simão, recolhido ao xadrez do Dops, também apareceu enforcado com o cinto no trinco da porta.

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Na próxima edição, Jair Krischke fala das conexões entre as ditaduras no Cone Sul Revista


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general Mourão ainda descia de Minas rumo ao Rio de Janeiro, na tarde de 2 de abril, quando Arthur da Costa e Silva entrou no QG do Exército e se declarou o chefe militar da rebelião. “Eu vou assumir essa coisa toda”, teria dito. Foi uma surpresa. Desde o manifesto aos generais, ainda no dia 30 de março, era notório que o líder militar da conspiração era Castello Branco. Tanto que Jango mandou prendê-lo à última hora. Avisado, ele deixou o QG do Estado Maior e se refugiou num apartamento em Ipanema, de onde ainda tentou deter Mourão nos dois dias seguintes. Costa e Silva tangenciara a conspiração. Meses antes, ele até pretendera uma nomeação como adido militar no exterior. Mantinha-se informado no Jockey Club da Gávea pelo senador Daniel Krieger, seu conterrâneo do Rio Grande do Sul, conspirador de primeira hora, seu parceiro de apostas nos parelheiros. Costa e Silva, a rigor, só entrou em ação depois que o comandante do II Exército, Amaury Kruel, aderiu ao golpe, selando a sorte de João Goulart, já no dia 1º de abril. Refugiou-se num apartamento e disparou uma bateria de telefonemas, num dos quais obteve o apoio de Kruel. Soube tirar proveito de antigas rixas que Kruel tinha com Castello. Então, apresentou-se no QG do Estado Maior como o “membro mais antigo do Alto Comando” e auto-nomeou-se Comandante do Exército Nacional, um cargo que não existia. Mourão, que considerava Costa e Silva um militar medíocre, escreveu que ele se intitulava “Comandante Supremo da Revolução”. Segundo Mourão, Costa e Silva alcançara o 3º lugar na escola militar

Falaram

as armas Costa e Silva personifica o poder dos generais e alija as lideranças civis que ajudaram a derrubar João Goulart

HISTÓRIA A Ditadura


Ademar de Barros, Lacerda, Meneghetti e Fernando Correia: a apagada face civil da ditadura

HISTÓRIA A Ditadura

porque tirava 10 nas provas práticas, graças ao seu bom físico. Seu porte impressionava: “Perfila-se, estufa o peito. É um soldado”, como disse Carlos Chagas ao vê-lo, já velho. Mas, segundo Mourão, “Costa e Silva não tinha a menor orientação filosófica para suas ideias”. Ele mesmo dizia que só lia palavras cruzadas. Naquele dia 2 de abril, Costa e Silva encarnava o poder real no Brasil, em paralelo ao poder formal de Rainieri Mazzilli, presidente da Câmara, precariamente instalado na Presidência da República pelo presidente do Senado, Auro de Andrade, numa sessão de três minutos durante a madrugada, na qual declarou vaga a Presidência, embora Jango ainda estivesse no país. “Mazzili era um presidente sem futuro, Costa e Silva, um revolucionário sem passado”, resume o jornalista Elio Gaspari. Mazzilli bem que tentou dar consistência ao seu mandato. Propôs nomear Costa e Silva ministro da Guerra e chamar políticos para formar um governo. “Tive que impedi-lo. Queria evidentemente me afastar do Comando Supremo da Revolução”, disse Costa e Silva a Mourão, que anotou. “Deste momento em diante desconfiei do Costa e Silva: queria ele fazer-se ditador?” . Mas no dia seguinte, numa reunião de 17 generais descontentes com os modos ditatoriais de Costa e Silva, Mourão minimizou a questão e ele seguiu dando as cartas. Os governadores vão ao QG. Carlos Lacerda, que se considerava o “líder civil da Revolução”, fala na necessidade de eleição imediata. Insiste, Costa e Silva reage: “Alto lá, governador. Assim, não”. Lacerda se exalta. “Foi sonoramente mandado a um certo lugar”, conta Carlos Chagas. A carta que Lacerda mandou a Revista

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Costa e Silva se impõe como ministro da Guerra e depois como sucessor de Castello

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Lacerda rompe logo depois com Castello e fica ainda mais isolado

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Costa e Silva no dia seguinte é reveladora. Acusava o general de tornar-se ditador e renunciava ao governo da Guanabara. Costa e Silva, informado do conteúdo, não quis receber a carta, alegando que renúncia de governador tinha que ser encaminhada à Assembleia. Três anos depois, ao rememorar sua conversa com Costa e Silva, logo depois do golpe, Mourão se penitenciou: “Eu tirara a nação de um abismo e a empurrara para outro”. Dia 7 de abril o jurista Francisco Campos estava no gabinete do General. Costa e Silva tinha sobre a mesa um telegrama do general Adalberto Pereira dos Santos, comandante da 6ª DI, um dos líderes do golpe no Rio Grande do Sul, propondo: “Será medida de autodefesa e da mais elementar profilaxia a deportação dos principais líderes do governo deposto, civis e militares”. No dia 9 de abril, o Alto Comando Revolucionário (além de Costa e Silva, ministro do Exército, os ministros da Marinha e da Aeronáutica ) baixou o primeiro ato com as novas regras para dar aos detentores do “poder revolucionário” os instrumentos para “expurgar a vida brasileira dos subversivos e corruptos”. Em onze artigos abria prazo de dois meses para cassar mandatos e direitos políticos por dez anos, e seis meses para punir funcionários civis e militares comprometidos com a situação anterior. E tornava indireta a eleição para presidente da República. Para evitar que Costa e Silva se consolidasse como ditador, generais e governadores chegaram a um entendimento e, quatro dias depois do ato, elegeram o general Humberto de Alencar Castello Branco presidente da República. Castello Branco

governou até 1967, dentro de um quadro de “ditadura temporária”. Mantido ministro da Guerra, Costa e Silva tutelou o mandato de Castello, que ainda teve que engoli-lo como candidato à Presidência. Castello fazia, a cada passo, confissão de fé na democracia, mas ao fim do mandato teve que entregar o cargo a Costa e Silva, que representava o poder da caserna. Mais impetuoso líder do poder civil, Carlos Lacerda trombaria também com Castello logo depois, quando foram adiadas as eleições presidenciais previstas para 1965, às quais pretendia concorrer. “Se não houver eleição agora, não haverá mais eleição por muito tempo”, sentenciou. Foram vinte e um anos sem eleições diretas. Costa e Silva, na presidência em 1967, também falava na “volta à normalidade democrática”, mas era a personificação da continuidade do regime dos generais. “A ditadura veio para ficar”, era o que se dizia. Contra isso levantou-se um novo ciclo de resistência armada, que levou ao endurecimento total do regime com o AI5, em dezembro de 1968. História A Ditadura


Lacerda (de metralhadora nos dias do golpe) rompeu na primeira reunião com Costa e Silva

“Não o aceito como ditador” Sr. General Costa e Silva Saudações A sugestão que esta noite os governadores lhe foram levar era inspirada nos melhores propósitos: eleições, já, de um general à Presidência da República. V. Excia. recebeu-a com hostilidade, considerando-a capaz de dividir o Exército, e julga que a presidência como está, e como ficará daqui a vinte e poucos dias, quando o Congresso eleger outro, é melhor para o Exército. Numa palavra, V. Exca. prefere ser ditador por intermédio do Dr. Mazzili a ter o comando revolucionário na Presidência da República. Creio na sinceridade e patriotismo de sua intenção, ainda que V. Excia, pelo visto, não creia no meu, pois tratou-me como se eu fosse um político visando fins particulares e não os mesmos que motivaram o movimento militar. Preciso lembrar a V. Excia. que, enquanto o Exército não podia agir, suportei a responsabilidade e o peso da corrupção e do comunismo, e às vezes quase só. Eleito presidente, Costa e Silva se apoiou na linha dura, assumindo a “cara da ditadura” naquele período

Não desejo dividir o Exército. Muito ao contrário. E pelo visto, neste ponto, V. Excia

tem razão. Mas quem vai dividir e Exército é V. Excia, e, com ele, a Nação. Mas também não quero participar de uma ditadura não-declarada, exercida por V. Excia, por intermédio do Presidente Mazzili. Esta fórmula, Sr. General, é bem pior e nem sequer é original. Amanhã, tão logo haja comunicado esta decisão ao meu secretariado, retirar-me-ei do governo da Guanabara e da vida pública. Peço a Deus que V. Excia. tenha razão e leve a bom termo a tarefa a que se propôs de limpar o Brasil do comunismo e da corrupção. Não há de ser com políticos que se prestam a ser mandados, para ficar no poder, simulando poder, que V.Excia conseguirá atingir esse objetivo. Poderíamos consegui-lo sem ditadura. V.Excia, sem dizer à nação, tornou-se ditador. Não o aceito como ditador. Fui falar ao libertador, não ao usurpador. Mas não serei eu a dividir o Exército e desgraçar a Pátria, levando a desilusão e o desespero a milhões de brasileiros. V. Excia assuma essa responsabilidade. Eu saio, amanhã, para nunca mais. Afinal, tenho o direito de me afastar sem que me chamem desertor. Basta que me chamem vencido. Com os votos por sua felicidade pessoal. Carlos Lacerda

Mesmo não tendo chegado às mãos de Costa e Silva, a carta teve influência. Os governadores foram à presença de Castello, que aceitou ser presidente. Costa e Silva se preservou para depois... A carta de Lacerda foi guardada por Juracy Magalhães por muitos anos e só divulgada no seu livro, “ O último tenente”. (Carlos Fehlberg, repórter politico)

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Rio, 5 de abril de 1964

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Caça aos

vencidos Já no primeiro dia, sete mortes em manifestações contra o golpe em todo o país. Em seguida começam as prisões em massa.

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onsumado o golpe, o pais tinha um poder real, representado pelos chefes militares, e um poder formal encarnado pelo presidente do Congresso, Rainieri Mazzilli, que dava aparência de normalidade política ao processo. As “instituições” seguiam funcionando. Os generais insistiam no discurso do “golpe preventivo” e, por algum momento, acreditou-se que eles voltariam aos quartéis. “Todos nós achávamos que era uma questão de dias”, diz o ex-prefeito Sereno Chaise. “Brizola, escondido num apartamento no centro de Porto Alegre, na primeira semana ainda fazia planos para voltar a ocupar sua cadeira de deputado em Brasília”. O primeiro “ato institucional”, estabelecendo punições aos inimigos da “revolução”, deveria ser o único e inicialmente foi cogitado como uma medida do Congresso, uma “quebra momentânea da normalidade” para poder afastar os indesejados – subversivos e corruptos. Foi editado no dia 9 de abril de 1964. Eleição indireta para presidente, prazo para cassação de político e exoneração de funcionários. No dia seguinte sai a lista com os

primeiros cem cassados políticos, começando por Luiz Carlos Prestes, João Goulart, Jãnio Quadros, Miguel Arraes, Darcy Ribeiro e encerrando com José Anselmo dos Santos, o controvertido “Cabo Anselmo”. Em seguida começaram as prisões e cassações em todo o país.

Violência continuada As tropas que marcharam de Minas não precisaram dar um tiro para derrubar o presidente. Mas as tentativas de prisão e a repressão a manifestações populares resultaram em sete mortes no país, já no dia primeiro de abril. No dia 4, um crime hediondo foi encoberto: um coronel legalista foi metralhado na Base Aérea de Canoas. Em Recife, o líder comunista Gregório Bezerra foi amarrado a um jipe e arrastado, só de calção, pelas ruas. Em 6 de maio, um memorando do Departamento de Estado Dos EUA à Casa Branca calcula que os presos naquela data eram “pouco mais de cinco mil”. Nas embaixadas havia filas de pedidos de asilo. Os jornais publicam listas de “políticos cassados”, “funcionários exonerados”. Milhares de militares são expurgados das Forças Armadas. HISTÓRIA A Ditadura

Casos de morte são encobertos. Eduardo Barreto Leite, sargento do Exército, pulou do sétimo andar de um prédio no Rio, no mês de abril de 1964. A família nunca aceitou a tese de suicídio. O zelador disse que ele foi arremessado por cinco homens que invadiram o seu apartamento.


Alguns números Uma estatística coligida por Elio Gaspari, entre 1964 e 1966: Cerca de 2 mil funcionários públicos foram demitidos ou aposentados compulsóriamente 86 políticos tiveram seus mandatos 3 cassados por dez anos 21 oficiais foram punidos com passagem 4 compulsória para a reserva, transformando-se em mortos vivos, com pagamento de pensão aos familiares Outros 200 oficiais se retiraram, 24 generais foram expurgados Nos sindicatos e associações foram expurgadas um total de 10 mil pessoas

• • • • •

Ao encerrar suas atividades, em novembro de 1964, a Comisão Geral de Investigações divulga os seguintes números: .110 processos envolvendo 2.176 1 pessoas.

• IPM sobre a Rebelião dos Marinheiros, • Oindiciou 839, levou 284 a julgamento e

terminou com 249 condenados, “todos com penas superiores a cinco anos de prisão”.

torial”, com o AI5 , a violência dos primeiros eventos de 1964 foi sendo esquecida, como se fossem casos pontuais, acidentes de trabalho. Na verdade, a violência contra os vencidos era intrínseca e continuada, desde o início: “As torturas foram o molho dos inqúeritos levados a efeito nos desvãos do DOPS ou dos quartéis... Castello foi fraco,” registra o general Mourão ao tempo em que era ministro do STM.

O capitão Darcy José dos Santos Mariante apoiava o PTB de Jango e Brizola. Preso e torturado no 1º.Batalhao da PM em Porto Alegre em 1965. Em 1966 suicidou-se com um tiro na frente da família. O jornalista Elio Gaspari anota 13 mortes ao longo de 1964, entre elas a do sargento Bernardino Sarai-

va que se matou com um tiro na cabeça depois de ferir um soldado da escolta que fora prendê-lo em São Leopoldo”no dia 14 de abril. A lista de militares cuja morte não foi esclarecida tem 27 nomes, cinco do Rio Grande do Sul. A partir de 1968, quando “o regime assumiu sua natureza ditaHISTÓRIA A Ditadura

Era pouco Castello Branco ficou 32 meses na presidência. Assinou três atos institucionais, 37 atos complementares, cassou cerca de 500 pessoas e demitiu 2 mil. Era pouco. Quando já estava fora do poder, Castello confidenciou a seu ex-lider no Senado, Daniel Krieger: “Um grupo dentro do atual governo deseja partir para a exceção e a ditadura”. Revista

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Gregório Bezerra foi arrastado por um jipe e espancado numo quartel do Recife

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Em pé: Justino Quintana, Wilson Vargas, Rubem Porciúncula, Lamaison Porto, Antonio Visintainer. Sentados: Sereno Chaise, João Caruso Scuderi, Ajadil de Lemos

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Primeiros cassados

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Foram três levas de cassações de mandatos e direitos políticos. Primeiro os notórios “subversivos” e “corruptos”. Não ficava claro quem era quem. Preso nos primeiros dias, o deputado Wilson Vargas ainda tinha humor para brincar com quem ia visitá-lo na prisão: “Aqui tem corruptos e subversivos, eu sou subversivo”. Depois foram cassados os grupos submetidos a inquéritos policiais militares, depois as cassações puramente políticas, em que os punidos não sabiam de que eram acusados. Nesse ciclo se inserem as oito cassações de 1966, feitas exclusiva-

mente para dar maioria ao governo na Assembléia Legislativa, que acabou elegendo o coronel Peracchi Barcelos ao governo do Rio Grande do Sul. No Rio Grande do Sul, a primeira lista de cassados saiu a oito de maio, com o nome de cinco prefeitos do PTB. Estava no Diário Oficial, ato do presidente, e ninguém sabia o que fazer. “Fui para a prefeitura fiquei esperando, não veio ninguém”, conta Sereno Chaise, recém eleito prefeito de Porto Alegre. Dias depois foi preso por um mês sem que lhe acusassem de nada. HISTÓRIA A Ditadura

Os cassados no RS Em 8 de maio de 1964, além dos cinco prefeitos, também foram presos e tiveram seus mandatos cassados oito deputados estaduais e 12 suplentes, todos do PTB: José Lamaison Porto João Caruso Scuderi Wilson Vargas da Silveira Justino Costa Quintana Antonio Simão Visintainer Breno Orlando Burmann Rubem Dario Porciuncula Suplentes: Hélio Carlomagno, Edson Medeiros, Jair de Mora Calixto, Nelson Amorelli Viana, Guilherme do Vale Tonniges, Bruno Segala, Fulvio Celso Petracco, Vicente Martins Real, Carlos Lima Aveline, Alberto Schroetter, Jorge Alberto Campezatto e Otomar Ataliba Dillenburg.

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A escola que foi presídio

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escola que serviu de prisão nos primeiros meses do regime militar, foi assinalada com uma placa e uma inscrição. O ato ocorreu no exato dia 23 de abril de 2014, quando há 50 anos entraram ali os primeiros sargentos da Brigada Militar, removidos das prisões nos quartéis, onde se temia uma reação dos nacionalistas/brizolistas. A escola, recém-construída, por falta de equipamento estava sem uso. Foi transformado temporáriamente em Presídio Militar Especial. Funcionou oito meses como prisão política. Atualmente é o Grupo Escolar Paulo da Gama, onde estudam 1.400 alunos em dois turnos. Sete sobreviventes e três viúvas, dos 86 militares que ali estiveram encarcerados, compareceram ao ato simbólico, dirigido pelo presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, Jair Kritschke, e com a presença do prefeito José Fortunati. A placa foi decerrada na calçada à frente do prédio, número 555 da rua Silvado, no bairro Partenon. O intenso tráfego de veículos no lo-

Ex-militares voltaram à escola onde estiveram presos. Na foto, com representantes do MJDH

após sua prisão, cal perturbou a ainda carrega rápida cerimôcicatrizes de nia, mas não baioneta em tirou a emoção suas costas. dos relatos e a Lembrou seu veemência dos tio Danilo Elidiscursos de fé zeu Gonçaldemocrática. ves, já faleciAos 86 anos, MARCAS MARCAS MARCAS MARCAS MARCAS MARCAS MARCAS DA DA DA DA DA DADA MEMÓRIA MEMÓRIA MEMÓRIA MEMÓRIA MEMÓRIA MEMÓRIA MEMÓRIA do, preso junto o coronel Emilio GOLPE GOLPE GOLPE GOLPE GOLPE GOLPE GOLPE DE DE DE DE DE DEDE 1964 1964 1964 1964 1964 1964 1964 TRANSFORMA TRANSFORMA TRANSFORMA TRANSFORMA TRANSFORMA TRANSFORMA TRANSFORMA com ele. Sua fiNeme, ex-chefe ESCOLA ESCOLA ESCOLA ESCOLA ESCOLA ESCOLA ESCOLA EM EM EM EM EM EM EM PRISÃO PRISÃO PRISÃO PRISÃO PRISÃO PRISÃO PRISÃO lha, Dalila Gonda Casa Militar Construído Construído Construído Construído Construído Construído Construído para para para para para para para ser ser ser ser ser serser escola, escola, escola, escola, escola, escola, escola, este este este este este este este çalves, presente de Brizola, era o prédio prédio prédio prédio prédio prédio prédio foi foi foi foi foi foirequisitado foi requisitado requisitado requisitado requisitado requisitado requisitado ààààààPrefeitura Prefeitura Prefeitura Prefeitura Prefeitura àPrefeitura Prefeitura ao ato, chorou. centro das atenMunicipal Municipal Municipal Municipal Municipal Municipal Municipal pelo pelo pelo pelo pelo pelo pelo Comando Comando Comando Comando Comando Comando Comando da da da da da da6ª da 6ª 6ª 6ª 6ª 6ª6ª DI DI DI DI DI DIDI A diretora da ções. Amparado Brasileiro Brasileiro Brasileiro Brasileiro Brasileiro Brasileiro Brasileiro com com com com com com com oooooofim fim fim fim fim ofimfim do do do do do doExército do Exército Exército Exército Exército Exército Exército Escola, Nilse por um andador, exclusivo exclusivo exclusivo exclusivo exclusivo exclusivo exclusivo de de de de de deservir de servir servir servir servir servir servir como como como como como como como “Presídio “Presídio “Presídio “Presídio “Presídio “Presídio “Presídio Militar Militar Militar Militar Militar Militar Militar Especial” Especial” Especial” Especial” Especial” Especial” Especial” administrado administrado administrado administrado administrado administrado administrado Christ Trenneera abraçado com pela pela pela pela pela pela pela Brigada Brigada Brigada Brigada Brigada Brigada Brigada Militar, Militar, Militar, Militar, Militar, Militar, Militar, de de de de de deabril de abril abril abril abril abril abril aaaaaa a tohl, ficou emoemoção pelos novembro novembro novembro novembro novembro novembro novembro de de de de de de1964. de 1964. 1964. 1964. 1964. 1964. 1964. cionada duranantigos comanSalas Salas Salas Salas Salas Salas Salas de de de de de deaula de aula aula aula aula aula aula viraram viraram viraram viraram viraram viraram viraram “celas” “celas” “celas” “celas” “celas” “celas” “celas” para para para para para para para te a cerimônia. dados. "Tudo o cerca cerca cerca cerca cerca cerca cerca de de de de de de80 de 80 80 80 80 8080 brigadianos, brigadianos, brigadianos, brigadianos, brigadianos, brigadianos, brigadianos, presos presos presos presos presos presos presos "É difícil, mas que nós fizemos políticos políticos políticos políticos políticos políticos políticos do do do do do doGolpe do Golpe Golpe Golpe Golpe Golpe Golpe de de de de de de1964 de 1964 1964 1964 1964 1964 1964 um lado se alefoi defendendo gra, pois é muinosso país. Nós to bom que agora se possa falar”. arriscamos a nossa vida!", explicou o A placa identificando a antiga coronel. prisão é parte do projeto Marcas da Ao seu lado o filho, Sérgio, que Memória, do Movimento Justiça e com dez anos o visitava na prisão, Direitos Humanos com a prefeitura lembrou: “Eu via ele aqui, ficava de Porto Alegre, para identificar tocom medo, não sabia o que estava dos os locais que serviram para priacontecendo”. são e tortura durante a ditadura. Em entrevista ao Jornal do Comércio, o capitão Reginaldo Ives da Rosa Barbosa contou que 50 anos

Fotos:

MJDH R

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Nela foram presos os primeiros militares punidos

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Alfeu Monteiro, o coronel Alcântara

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Meio século depois, o crime ocorrido na Base Aérea de Canoas, em abril de 1964, vai ter novo julgamento

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o dia 31 de março de 1964 o coronel Alfeu de Alcântara Monteiro festejou seu aniversário no quartel, de prontidão. Fez 42 anos. Tinha 21 quando ingressou na Escola Militar do Realengo, no Rio de Janeiro. Longa distância havia percorrido desde Itaqui, onde nascera. Fez a Escola da Aeronáutica e quando o país voltou à democracia, em 1946, ele foi promovido a tenente aviador. Serviu nas bases de Fortaleza, São Paulo, Rio de Janeiro.

Metra na sala do Era capitão, na Base Aérea de Natal, quando chegaram ao Brasil os primeiros bombardeiros B-25, remanescentes de II Guerra Mundial. Tornou-se um dos primeiros instrutores para esses aviões na aeronáutica brasileira. Era considerado um exemplo de militar dedicado e ciente de suas responsabilidades. Sua folha de serviços era “repleta de elogios”, com registros em boletins. HISTÓRIA A Ditadura

Em agosto 1961, quando se deu a Campanha da Legalidade, servia no QG da 5ª. Zona Aérea, em Canoas (RS). Era coronel. Legalista, posicionou-se a favor da posse de João Goulart, o vice que deveria assumir com a renúncia do presidente Jânio Quadros. Quando o general Orlando Geisel mandou bombardear o Palácio Piratini, para calar o governador


lhado comando Leonel Brizola, Alfeu colocou-se à frente dos tenentes e sargento, que impediram a decolagem dos aviões com as bombas. Ficou marcado para sempre. No 31 de março de 1964 ele não pode fazer mais que um brinde com seus colegas no cassino dos oficiais. A Base Aérea estava em prontidão desde cedo. Quando se confirmou que era mesmo um golpe contra o

governo, novamente os sub-oficiais e sargentos tomaram a Base Aérea. O comandante se retirou e o coronel Alfeu assumiu o comando disposto a defender a constituição. Na noite de 1º de abril, uma informação chegou à base: um comando golpista ia sequestrar o presidente na pista do aeroporto Salgado Filho, onde ele iria desembarcar de madrugada. HISTÓRIA A Ditadura

Alfeu convocou voluntários, trinta se apresentaram. “Fomos em jipes, percorremos a pista de ponta a ponta e, depois, ficamos posicionados nas cabeceiras, armados de metralhadoras”, lembra o então tenente-coronel Avelino Iost, hoje com 88 anos, que comandou a operação. Avelino escreveu um livro sobre “a guerra de 1961” na Base Aérea de Canoas e diz que ali foi selada a sorte de Alfeu. “Ele ficou assinalado de morte, todos nós, mas ele é o que não podia escapar”. Na manhã do dia 2 de abril, em 1964, quando o presidente Goulart decidiu não resistir, o coronel Alfeu mandou recolher o armamento do arsenal, relaxou a prontidão e ficou à espera de novo comando. Na tarde de 4 de abril, Goulart desembarcava na base aérea de Pando, no Uruguai, onde se asilou, Revista

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Alfeu com o governador Leonel Brizola e um de seus filhos

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O brigadeiro Lavenère, que assumiu a base aérea em nome dos golpistas

dotes como atirador: enfiou uma lata na cabeça do sargento Eneas de Oliveira Filho e atirou, furando a lata pouco acima do cranio do sargento. Avelino Iost conhecia um dos oficiais que vieram com o coronel Hipólito: “Ele me disse que, na saída do Rio, ouviu que disseram ao Hipólito: Você vai para segurar o Alcântara... Segurar na bala.”, conta Avelino Iost.

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Alfeu Monteiro na Base Aérea de Canoas (com o espadim)

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quando pousou na Base Aérea de Canoas, o avião com o novo comandante, brigadeiro Nelson Lavanére Wanderley, e uma escolta de oficiais chefiados pelo coronel-aviador Roberto Hipólito da Costa, todos armados de metralhadoras. O coronel Hipólito era um “linha dura”, autor de um plano frustrado para derrubar o avião de João Gou-

lart meses antes do golpe. “Já em 1952, o coronel Hipólito fora denunciado por torturar presos políticos. Sargentos da Base Aérea de Natal levaram um dossiê ao general Arthur Carnaúba”, registra Avelino Iost numa compilação que fez dos fatos daquele período. No relatório dos sargentos consta a demonstração que Hipólito da Costa fez de seus HISTÓRIA A Ditadura

Avelino acabara de fazer um lanche no cassino dos oficiais, quando Alfeu Alcântara Monteiro entrou, por volta das oito horas da noite de 4 de abril de 1964. “Estava com o uniforme de passeio completo, quepe inclusive, me disse que tinha sido chamado ao QG”. No cafezinho, conversaram sobre o que poderia acontecer com todos eles, os vencidos. “Ele me disse que estava tranquilo... O máximo que poderia nos acontecer era uma transferência para Belém ou outro lugar remoto... Defendemos a lei, ele disse.” Se despediram na saída do cassino. Avelino ainda ficou um tempo por ali. Pouco depois, quando atravessava o pátio, ouviu os estampidos vindos do QG. “Primeiro, vários disparos de arma pesada, provavelmente metralhadora. Em seguida, dois de calibre menor, 32 certamente”, lembra Avelino. Ele estava a menos de 100 metros do local do crime, no primeiro andar do prédio do QG da 5ª Zona Aérea, na sala do comandante. Viu, em seguida, correrias e ouviu o coronel Pirro de Andrade gritar de uma sacada: “O Hipólito arrancou o fígado do Alfeu à bala, agora vamos fuzilar os comunistas”. Em seguida, Avelino foi cercado por cinco oficiais e levado ao alojamento. Os sub-oficiais e sargentos considerados comunistas, desarmados, estavam confinados. Na manhã


Com a reação do Alfeu, o Hipólito saiu da sala atirando. O Alfeu, mesmo ferido, ainda sacou o revólver e deu dois tiros atingindo de raspão o brigadeiro. Nei Moura Calixto, também preso no dia seguinte e levado para o Rio. Segundo Calixto, quando o comandante disse a Alfeu que ele e todos os rebelados estavam presos, ele reagiu gritando: “Retira essa ordem. Retira essa ordem. É ilegal! Eu estava defendendo a autoridade legítima, eleito pelo povo. Tu não podes me prender”. Avelino: “Com a reação do Alfeu, o Hipólito saiu da sala atirando. O Alceu, mesmo ferido, ainda sacou o revólver e deu dois tiros atingindo de raspão o brigadeiro. Foram os últimos estampidos que ouvi, de pequeno calibre. O enfermeiro me disse que as balas arrancaram um pedaço assim do lado do Alfeu”. HISTÓRIA A Ditadura

O Inquérito Policial Militar que investigou a morte do coronel concluiu um mês depois que “foi abatido com dois tiros, morto no ato de atentar contra a vida de um superior”. Encaminhado à Justiça Militar em 15 de junho, teve sentença em novembro de 1964. O coronel Hipólito foi absolvido e pouco depois promovido a general. O brigadeiro Lavenére tornou-se ministro da Aeronáutica 16 dias depois do crime. Morreu em 1985, aos 78 anos, e no ano seguinte passou a ser o patrono do Correio Aéreo Nacional. Alfeu de Alcântara Monteiro é nome de rua no bairro de Tremembé, em São Paulo. Revista

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seguinte sairiam todos presos para o Rio de Janeiro. O que se passou na sala do comando da 5ª zona Aérea naquela noite até hoje não foi esclarecido. Alfeu foi atingido por trás, por bala de grosso calibre. Nunca ficou claro se foram dois, seis ou 16 balas de calibre 45 que o atingiram. A nota oficial emitida dois dias depois, fala em dois tiros e dá a entender que ele atirou primeiro. Diz que a “lamentável ocorrência que se deu devido à indisciplina do tenente-coronel, que não acatou a voz de prisão. Houve troca de tiros. Os ferimentos recebidos pelo Excelentíssimo Brigadeiro Comandante são de natureza leve, encontrando-se hospitalizado, em pleno exercício do comando. O mesmo não aconteceu entretanto com o tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro, cujo falecimento lamentamos informar”. Na sala do comando, na hora do crime, além dos envolvidos, havia só o coronel Pereira Pinto, escolhido por Lavanére para assumir o comando e que confirmou a versão oficial. Todas as demais pessoas que não estavam diretamente na cena do crime, mas estavam próximas dos fatos, discordam dessa versão. Nenhuma delas foi ouvida no inquérito. Avelino, pelo que ouviu e pelo que averiguou conversando com outros colegas, entre eles o enfermeiro Onéas Rech, que recolheu Alfeu agonizante, reconstituiu a seguinte cena: “O coronel Hipólito, armado de metralhadora, ficou na sala do ajudante de ordens, junto ao gabinete do comandante. Ele ficou com a porta entreaberta, Alfeu entrou e se postou diante da mesa do comandante, de costas para essa porta. Assim que se apresentou recebeu voz de prisão e aí...”. A discussão que se seguiu foi ouvida por outras pessoas que estavam no prédio. “Muitos militares presentes no prédio do comando ouviram os gritos”, diz o ex-sargento

Foto: Gerson Schirmer

Avelino Iost foi o último a falar com Alfeu e ouviu os tiros que o assassinaram

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Brizola com Che Guevera, em 1960: ainda longe da guerrilha

Ilusões

armadas Incorformados com o golpe sem resistência, muitos militares brizolistas sonharam com um levante dos quartéis para derrubar a ditadura

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eonel Brizola era o único líder civil em condições de organizar uma resistência. Tinha demonstrado em 1961, ao brecar os generais que queriam impedir Goulart, quando Janio renunciou. Tinha sob sua influência grande número de militares, principalmente, sargentos e sub-oficiais do Exército e da Brigada Militar. Tinha interlocutores influentes nos quartéis, como o tenente Wilson Jose da Silva, no Exército, o coronel Emilio Neme, na Brigada Militar, o coronel Alfeu Monteiro e o capitão Alfredo Daudt, na Base Aérea de Canoas. O coronel

Pedro Alvarez disse em suas memórias que tinha 800 homens dispostos a pegar em armas no dia do golpe. Brizola tinha também os Grupos de Onze, organização civil ainda embrionária, mas que segundo ele mesmo já tinha mais de 20 mil núcleos pelo país. Mas, quando Jango desistiu na manhã de 2 de abril e partiu de Porto Alegre, Brizola ficou sem chão. A bandeira da legalidade perdeu sentido. Lutar em nome de quê depois que Jango dera o fora?. O país tinha um outro presidente, Mazzilli, inclusive já reconhecido pelos Estados Unidos. HISTÓRIA A Ditadura

Brizola em 1961: ensaio de resistência armada que não se repetiu

Governadores de Minas, Rio de Janeiro, São Paulo , Rio Grande do Sul, Paraná apoiavam o golpe. Miguel Arraes, de Pernambuco, e Seixas Dória, do Sergipe,estavam presos na Ilha de Fernando Noronha.


José Wilson, o “Tenente Vermelho”, era assessor militar de Brizola

Pedro Alvarez, o “Capitão doPovo”

Mesmo assim, enquanto Brizola permaneceu em Porto Alegre, muitos sargentos e sub-oficiais do Exercito e da Brigada Militar acreditaram que era possível reverter o golpe. Àquela altura, porém,

Brizola era um homem acossado. Numero um na lista de procurados pela polícia e o Exercito, viveu um mês escondido num apartamento no centro de Porto Alegre, antes de se asilar no Uruguai. Fardado de brigadiano, foi retirado num carro até a Praia de Capão da Canoa onde um avião de Jango o levou para Montevideo. No Rio Grande do Sul, uma legião de militares ficou sem rumo. Eram, na maioria, sargentos e sub-oficiais do Exército e da Brigada História A Ditadura

Militar, que se haviam colocado na defesa do governo deposto e ficaram órfãos assim que João Goulart desistiu de lutar. Muitos foram presos, outros cairam na clandestinidade, escondiam-se na casa de amigos, tentavam alcançar a fronteira. “Lá na Base Aerea de Canoas diziam abertamente que iriam fuzilar os comunistas”, relata o ex-tenente Avelino Iost. “Quando o golpe se consumou muitos não se conformaram com a falta de resistência, PrincipalmenRevista

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Capitão Alfredo Daudt,homem de Brizola na Aeronáutica

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Jefferson Cardim Osório, quando ganhou seus galões de oficial

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te entre sargentos e sub oficiais que estavam alinhados com o movimento nacionalista/brizolista. Acreditavam que teriam o controle de muitas guarnições militares no exército e na Brigada Militar.” Inconformidade com a derrota sem luta e falta de horizonte para quem discordava dos vencedores. Esses seriam os ingredientes dos primeiros planos de resistência. Acreditavam num levante, com a sublevação dos sargentos e sub oficiais que tomariam os quartéis em cadeia. Quando o movimento alcançasse a capital, Brizola assumiria o comando. Essa fase culminou com o desastre do coronel Jefferson Cardim Osório. Inconformado que o golpe ia completar um ano sem ter merecido uma resposta, ele reuniu 22 homens mal armados e tentou deflagrar o levante, em abril de 1965. Em três dias foram presos e massacrados. Uma nova fase dos movimentos de resistência começa no início de 1966, quando Brizola, em Montevidéo, cria o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR). Nacionalistas, getulistas, janguistas, brizolistas, comunistas – esquerdistas em geral, civis e militares. Brizola conhecia o Che Guevara desde 1962, quando se encontraram numa reunião da OEA, em Montevidéo. Não foi difícil conseguir apoio cubano para uma ação de guerrilhas no campo, articulada com um movimento urbano. Depois do primeiro fracasso, em Caparaó, o MNR desmoronou. Brizola encerrou suas aventuras guerrilheiras. De 1967 em diante, os remanescentes desses movimentos se ligam a grupos universitários, dos grandes centros urbanos. A referência não e mais Montevidéo. É Cuba. O líder não é mais Brizola, é Marighella e não está no exílio, está no centro dos acontecimentos. A ditadura também não é mais a mesma, como se verá adiante.

Operação Três Passos Vinte e três homens tomam uma pequena cidade e anunciam a revolução

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a madrugada de 26 de março de 1965, 23 homens armados tomaram Três Passos, de cinco mil habitantes na região Norte do Rio Grande do Sul. Queriam iniciar a derrubada da ditadura, “antes que ela completasse um ano”. Renderam os oito soldados do destacamento da Brigada Militar, os oito guardas do presídio (tiveram dificuldade com o cabo, que roncava e nem a tapas acordava), o plantão na delegacia, em seguida tomaram a central telefônica e a rádio. Foi a primeira inciativa de resistência armada ao golpe de 1964. HISTÓRIA A Ditadura

Quase ninguém ficou sabendo. O manifesto que lançaram ao povo brasileiro às duas da madrugada, pelas ondas da rádio Três Passos, que mal alcançavam o município, teve audiência próxima de zero. Jefferson Cardim Osório, coronel do Exercito, era o mentor e comandante da guerrilha. Ela seria a espoleta que iria detonar a insurreição nos quartéis e, em sequência, o levante popular, para por fim à ditadura. Num primeiro momento pareceu que tudo daria certo. Sem dar um tiro, prenderam 35 pessoas ( a maioria soldados de cuecas), recolheram todas as armas que podiam e deixaram Três Passos num caminhão Mercedez novo. As três da tarde repetiram a operação em Tenente Portela, outra cidadezinha da região. No fim daquele dia, com menos de 24 horas de guerrilha, estavam em Itaporã, na


1 O assalto a guarnição, em Tres Passos: “Acorda , rapaz, Brizola vem aí”.

Desenhos: Edgar Vasques, no Coojornal

2 Cercados, os guerrilheiros tentam tomar um caminhão do Exército

3 Preso,o coronel Jeffeson Cardim Osório foi humilhado e depois barbaramente torturado

HISTÓRIA A Ditadura

fronteira com a Argentina. Tinham amealhado 60 fuzis, uma metralhadora tcheca de tripé, 30 revólveres e muita munição. Pensavam em recrutar e armar mais gente. Mas não houve adesão nem dos quartéis, nem das ruas, apesar do noticiário que já circulava nas rádios, exagerando o porte do movimento, estimando em até 400 homens armados. O Exercito movimentou cinco mil homens e, em três dias, cercou os guerrilheiros, que seguiam num caminhão no rumo ao Mato Grosso. Na refrega que se ensaiou, quando Jefferson tentou romper o cerco, morreu o sargento Carlos Argemiro Camargo, das forças do Exército. Isso valeu a Jefferson e a seu braço direito, o sargento Alberi dos Santos um tratamento como até então nenhum militar havia merecido num quartel – barbaramente torturados, o coronel ainda foi chutado e cuspido por vários oficiais. “Deixava de existir imunidade dos oficiais à tortura, respeitada nas sublevações anteriores”. Jefferson tentou envolver Brizola com seu projeto, mas há testemunhos de que, ao contrário, Brizola tentou detê-lo. Quando percebeu que Jefferson ia mesmo partir, mandou avisar os seus contatos em todo o Rio Grande do Sul que nada tinha a ver com ele. O então tenente José Wilson, aos 83 anos, lembra bem dos fatos: “Vim clandestino, entrei em contato com nossos companheiros nas principais guarnições no Estado, avisando que era uma aventura, o Brizola era contra”. Brizola estava realmente se envolvendo com projetos de guerrilhas, mas não confiava em Jefferson, que embora fosse corajoso, era muito voluntarioso, muito falante, precipitado. Nem por isso Brizola foi bem sucedido. A outra tentativa, Caparaó, em 1966/67, onde comprovadamente se envolveu, foi igualmente um rotundo fracasso. Revista

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Um flagrante num momenhto em que a guerrilha ainda era vitoriosa

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Mãos

amarradas

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notícia estourou no Dia do Soldado, 25 de agosto de 1966: dois moradores da Ilha das Flores acharam um cadáver que boiava entre taquarais da margem esquerda do rio Jacuí, a 50 metros dos pilares da maior das pontes do Guaíba. Avisado, o posto policial da Ilha da Pintada mandou um funcionário numa lancha. Sem desembarcar, ele amarrou uma corda nos pés do morto e o rebocou até o posto. Anoitecia na cidade que, horas antes, havia chorado os 12 anos da morte do presidente Vargas. Era quase meia-noite quando chegaram à Ilha Pintada o inspetor Carlos Castilhos Leites e o delegado Arnóbio Falcão da Motta, da Delegacia de Segurança Pessoal. Examinando o corpo, concluíram que era de um homem branco de 1,70 m de altura e cerca de 30 anos de idade. Vestia calça escura, mas só possuía um sapato nos pés. Por um detalhe misterioso se via que a morte não fora acidental: o cadáver tinha as mãos amarradas às costas por tiras de pano feitas com sua própria camisa Volta ao Mundo, aquela que dispensava o ferro de passar. O corpo foi encaminhado para o Instituto Médico Legal. O laudo da necrópsia ofereceu três pistas:

“morte violenta”, “afogamento” e “embriaguez”. Coube ao delegado Falcão da Motta conduzir o inquérito policial sobre a ocorrência, logo batizada pela imprensa como o Caso das Mãos Amarradas, anos depois reconhecido como o primeiro assassinato praticado a sangue frio por funcionários públicos civis e/ou militares em dependências prisionais, à revelia das normas legais vigentes. Sem citar fontes, a imprensa passou a dar notícias diárias sobre o caso, mas as novidades eram escassas. Por exemplo, no dia 26 de agosto a Folha da Tarde informou que, segundo um telefonema anônimo recebido pela polícia, o cadáver era de um preso político, ex-militar. A mesma informação chegou às redações dos jornais Correio do Povo e Zero Hora. A um dos jornalistas chamados a depor, o policial inquiridor perguntou se o informante anônimo não teria sido Pedro Simon, então deputado estadual pelo PTB. O jornalista negou alegando que conhecia muito bem a voz do deputado. HISTÓRIA A Ditadura

Arquivo JÁ

Agosto de 1966. Um cadáver é recolhido no rio Jacuí. Era um ex-sargento do Exercito. Estava manietado e tinha sinais de tortura.

Polícia tenta reconstituir a trajetória de Raymundo, des

No dia seguinte, a Folha da Tarde informou que a identificação estava dificultada pela impossibilidade de colher as impressões digitais do corpo já meio decomposto (um exame posterior diria que a morte havia ocorrido cerca de dez dias antes de o corpo ser achado). Mas no dia 30 de agosto a mesma FT deu um passo à frente ao revelar que o morto “poderia ser” o


sde a Ilha Presídio-Foto.jpg

ex-sargento Manoel Raymundo Soares, “desertor do Exército no Mato Grosso”. Era mesmo: naquela mesma tarde, sua identidade foi confirmada por Elisabeth Chalupp Soares, sua esposa, recém-chegada do Rio, onde residia. Cercada por repórteres, advogados e policiais, a viúva ficou em Porto Alegre à espera de esclarecimentos para o caso. O advogado

Cândido Norberto, radialista e ex-deputado estadual do MTR (cassado semanas depois), assumiu a defesa. Logo depois, o caso passou para o advogado Carlos Crespo, cuja peça inicial levada a juízo era um libelo contra a manutenção em dependências públicas de “presos sem culpa formada, sem inquérito regular, sem prisão decretada...”. Era assim, aos poucos, que os leitores tomavam conhecimento das mudanças que começavam a ocorrer nos bastidores da administração da Segurança e da Justiça. Uma das novidades trazidas por Elisabete é que, enquanto estava em sua casa no Rio, havia recebido quatro cartas do marido, por quem ficou sabendo que ele havia sido preso no dia 11 de março pela Polícia do Exército e entregue ao DOPS, que o recolheu ao presídio da Ilha das Flores, no lago Guaíba, depois de submetê-lo a interrogatório “pesado”, ou seja, foi torturado para confessar o que andava fazendo em Porto Alegre e com quem. Segundo a PE, que o capturounos arredores do Auditório Araújo HISTÓRIA A Ditadura

Vianna, no Parque da Redenção, Manoel Raymundo Soares foi preso com panfletos contra a visita que o presidente da República, general Castello Branco, faria naqueles dias ao Rio Grande do Sul. A história da panfletagem era uma piada diversionista da PE, que tinha Raymundo na conta de um peixe graúdo do movimento de resistência nacionalista-brizolista. Ele era suspeito de ter se mudado para o Rio Grande do Sul a fim de articular uma insurreição armada contra o recém-instalado regime. Duas dezenas de tenentes e sargentos de diversos pontos do país convergiram para Porto Alegre para organizar o levante. Um delator o atraiu para uma cilada. A PE queria saber quem eram os demais e quais as ligações que tinham nas guarnições da capital. Como não disse nada aos torturadores e ainda denunciou alguns deles nas cartas à esposa, Manoel Raymundo foi provavelmente vítima de um acerto de contas. Como para se justificar, no dia 30 de agosto, as autoridades poliRevista

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Desenho: Edgar Vasques, no Coojornal

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Restauro do processo do Caso das Mãos Amarradas identificou tentativas de destruição

Tentaram destruir o processo

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Costa e Silva elegeu Peracchi governador

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ciais-militares do Rio Grande do Sul divulgaram nota – assinada por Cícero Castello Branco, chefe do gabinete de imprensa da Secretaria da Segurança Pública –, afirmando que Raymundo fazia parte de um complô matar o governador Ildo Meneghetti e o general Justino Alves Bastos, comandante do III Exército. Descoberto numa casa do bairro portoalegrense de Ipanema, o complô teria sido desmantelado após a prisão dos seguintes integrantes, conforme ocorrência registrada em 19/04/66 na Delegacia de Policia do 2º Distrito: Araquém Vaz Galvão (o chefe), Capitulino Cordeiro de Melo, Nabor Costa Melo, Hilton Rodrigues Veleda, Euclides Resende Flores, Rafael Peres Borges, Almoré Zoch Cavalheiro, Argos Mesquita de Aragon, Amadeu Felix da Luz Ferreira, Dirceu Jacques Dornelles, Luiz Carlos dos Prazeres, Kardec Leme, Leoni Lopez, Gelci Rodrigues Correa, Américo Patrocínio e Dulce de Oliveira Fabrício. Todos sub-oficiais e sargentos expurgados do Exército liminarmente, sem processos, nem justificativas ou direito de defesa. O inconformismo levaria parte deste grupo para a guerrilha de Caparaó.

Com 355 páginas e cinco volumes, o inquérito policial feito pelo delegado Arnóbio Falcão da Motta ouviu mais de 30 pessoas e foi encaminhado à Justiça em 29 de dezembro de 1966. Não indiciou ninguém. Os interrogatórios conduzidos pelos policiais contêm apenas perguntas óbvias e redundantes, sugerindo que o objetivo era mais cumprir um ritual do que descobrir o(s) matador(es) do ex-sargento. No seu relatório, o promotor Paulo Cláudio Tovo, que acompanhou a maior parte do inquérito por ordem do Procurador Geral do Estado, elogiou a dedicação do delegado Falcão da Motta e do inspetor Leites, mas deixou claro que o inquérito sofreu obstrução da cadeia policial-militar.

História A Ditadura

O processo do Caso das Mãos Amarradas está arquivado em cinco volumes no Palácio da Justiça, na Praça da Matriz de Porto Alegre, mas não pode ser consultado senão por via digital porque parte da papelada deteriorou-se ao ficar exposta a “uma goteira”, segundo informação fornecida pelo Memorial do Judiciário ao presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, Miguel do Espírito Santo. Na realidade, a documentação foi alvo de depredação criminosa, conforme laudo técnico assinado em agosto de 2005 pelas restauradoras Vera Lucia Zugno e Raquel Zanetto, que trabalharam nove meses para recuperar o material e relataram “inúmeras tentativas de destruição”:


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O corisco do desassossego Promotor aposentado, hoje com 83 anos, Rosa Flores admite que o relatório da CPI virou uma colcha de retalhos trazidos por vários deputados. O documento foi anexado ao relató-

CPI desafia a

repressão Seis dias depois da notícia, a Assembleia estadual criou uma comissão parlamentar de inquérito, para apurar a morte do sargento Marcos Eifler/AL

CPI é fraco, mas polirio do promotor Paulo ticamente é uma peça Cláudio Tovo, que em forte para aquela época”, nome da Procuradoria recorda Rosa Flores, um Geral do Estado acomconservador que se aliou panhou o inquérito aos que lutavam contra policial. Em seu texto, a opressão emergente. Tovo dedica um paráCoube à CPI do Caso das grafo ao temido gerente Mãos Amarradas tornar operacional da represpúblico, oficialmente, são: “...quando o maque no DOPS gaúcho hajor Luiz Carlos Menna via salas e equipamentos Barreto pisa no portal para a prática de tortudo edifício da DPC, há Rosa Flores em 2012 ras. Os interrogatórios um desassossego que se começavam com tapas, socos e caspropaga num vaivém de corisco, exsetadas. Os métodos mais violentos e presso na frase ‘O Menna Barreto está cruéis eram o afogamento, penduro, aí... Ele chegou!...’” Por sua denúncia, queimaduras e pau-de-arara. Quem Tovo ficou na “geladeira”. encaminhava os presos para interroQuando correu a informação de gatório, abrindo e fechando as portas que o relatório da CPI estava pronto das celas, era o delegado José Morsch, para ser publicado no Diário Oficial, na época com 32 anos. o presidente da Assembleia, Carlos Paralelamente ao caso das mãos Santos, recebeu dois oficiais do III amarradas, vieram à tona na mesma Exército. Eles queriam uma cópia época denúncias de torturas a Eni antecipada do documento. Primeiro Talma Tosca Freitas, funcionária púnegro a presidir o parlamento gaública federal que acusou dois policiais cho, Santos negou-se a atendê-los e do DOPS de estuprá-la durante o temdisse: “Esperem a publicação no Diápo em que esteve presa. Em conse­ rio Oficial”. quência do estupro, ela teve um filho. “Literariamente, o relatório da História A Ditadura

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ão foi fácil. Os membros da CPI travaram uma longa peleia com o major Lauro Rieth, que se negou a depor. Alegou exercer “atividades na área de segurança”. A mesma alegação foi apresentada pelo delegado Arnóbio e o inspetor Leites, os dois encarregados do inquérito policial sobre o caso. Autorizados pelo secretário de Se­ gurança, ambos compareceram à Assembleia Legislativa, mas nada revelaram além do que constava nos autos por eles elaborado. Somente em fins de outubro de 1966 o major Rieth acatou ordem judicial e compareceu à CPI – mas só para “não” e “não”, repetindo o refrão de um sucesso do cantor Teixeirinha, na época. Aparentando boa vontade, mas sem nada informar, depôs também o secretário estadual João Dêntice, que mais tarde seria citado como “candidato” ao Palácio Piratini pela via indireta. O esforço governista para esfriar a CPI conseguiu retardá-la com manobras de gabinete, mas a oposição tinha maioria na Casa e tocou a investigação em frente. No final de 1966, quando já vigorava o bipartidarismo, houve uma disputa de mando entre deputados da Arena e do MDB. Os arenistas ameaçaram deixar a CPI caso seu partido não tivesse a maioria. O majoritário MDB não aceitou a chantagem, mas a CPI parou de funcionar durante todo o verão, só voltando em abril de 1967. No relatório final publicado no Diário Oficial em 19 de junho de 1967, o relator Antonio Carlos da Rosa Flores, deputado do MDB, menciona pela primeira vez publicamente a existência do Dopinha. Instalado num casarão da Rua Santo Antônio, esse organismo clandestino teria sido o primeiro depósito ilegal de presos políticos submetidos a torturas sob o comando do major Luiz Carlos Menna Barreto.

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Oito militares

acusados Cartas enviadas do Presídio da Ilha à esposa no Rio forneceram as pistas que levaram à identificação dos torturadores de Raymundo

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ete anos após o crime, em agosto de 1973, Elisabeth Challub Soares entrou na 5ª Vara da Justiça Federal do Rio Grande do Sul com um pedido de indenização contra a União. Arrolava oito militares do Exército apontados pelo assassinato de seu marido, Manoel Raymundo Soares: o capitão Luiz Alberto Nunes de Souza e os sargentos Joaquim Ramos Pedroso, Rudimar de Mattos Bones, Theobaldo Eugenio Behrens, Enio Cardoso da Silva, Enio Castello Ibanhes, Carlos Otto Beck e Nilton Aguaidas – os dois últimos, responsáveis pela prisão do ex-sargento na tarde de 11 de março de 1966. São mencionados como responsáveis por torturas aplicadas ao preso ao longo da primeira semana de prisão os delegados do DOPS Enir Barcellos da Silva, Itamar Fernandes de Souza e José Morsch. Segundo a queixa, os policiais queriam que Raymundo confessasse “coisas impossíveis”. Os mesmos funcionários civis aparecem ao lado de vários militares numa lista de homens apontados como autores de sevícias e torturas no dia 13 de agosto, quando Raymundo teria sido colocado em liberdade. Depois do “tratamento” no DOPS, Raymundo foi encaminhado ao presídio da Ilha das Pedras Brancas, onde permaneceu por quase cinco meses, sem formalização de

culpa ou qualquer procedimento judicial normal. Na ilha, ele tomava sol com os outros presos, que lhe emprestavam revistas, mas era obrigado a dormir numa cela solitária. Quando a sola dos seus sapatos furou, ele aproveitou o couro da parte de cima para fazer um par de tamancos com madeira achada dentro da cadeia. Apesar do isolamento, Raymundo conseguiu se comunicar com a esposa, a quem escreveu uma dezena de cartas – só quatro chegaram ao endereço dela no Rio. Datadas do Presídio da Ilha, as cartas começavam evocando “Minha querida Betinha”. A última carta recebida fora escrita em junho de 1966. Foi com base nas informações e instruções passadas pelo marido que Elisabete procurou no Rio de Janeiro o doutor Sobral Pinto, advogado humanitário que, sem cobrar honorários, assumiu a defesa de inúmeros perseguidos políticos pela ditadura. Ele entrou no Superior Tribunal Militar com um pedido de habeas corpus para Raymundo. O STM solicitou informações sobre o preso aos órgãos policiais-militares de Porto Alegre. Sinal dos tempos, o Comando do III Exército e o DOPS responderam que não conheciam nenhuma pessoa com esse nome. O tribunal não engoliu a desculpa. Enquanto o ministro Alcides Carneiro acusou a polícia gaúcha de esconder informações das autoHISTÓRIA A Ditadura

ridades judiciais, o general Olympio Mourão Filho – deflagador do golpe militar em 31 de março de 1964, agora ministro do STM – mandou instaurar um IPM sobre o que estaria acontecendo em Porto Alegre. Para Mourão, trancafiar um preso sem lhe dar direito de defesa era “um crime medieval”. A indignação dos juízes parecia autêntica, mas podia ser também um jogo de cena para salvar as aparências junto à imprensa, que ainda não fora alcançada pela censura, mas já colaborava mais ou menos abertamente com o regime militar, autoproclamado redentor da democracia. O fato é que a correspondência (clandestina) à sua mulher foi decisiva para que a prisão de Raymundo fosse reconhecida oficialmente. Em compensação, nos bastidores da repressão, ele ficou marcado para


receber um castigo exemplar. Primeiro, por não “colaborar” com os interrogadores; segundo, por acusá-los de praticar a tortura no DOPS e na Policia do Exército. No final das contas, o STM concedeu o habeas corpus solicitado. A ordem de soltura chegou ao DOPS na tarde do dia 12 de agosto, uma sexta-feira, um dia impróprio para qualquer iniciativa no serviço público. Além disso, navegar no Guaíba numa tarde de inverno, nem pensar. Por falta de transporte hidroviário para a ilha (lancha avariada, foi a desculpa), a libertação ficou para o dia seguinte. No sábado pela manhã, escoltado por um grupo de guardas, o ex-sargento embarcou na lancha do DAER que fazia rotineiramente o trajeto Ilha das Flores-Vila Assunção para transporte de pessoas e mercadorias. Em seguida, foi levado

em camburão para a sede do DOPS, na Avenida João Pessoa, 2050. Segundo o inquérito policial, Raymundo foi libertado às 13h30 do mesmo dia, após receber suas coisas, guardadas desde 11 de março num envelope: eram um relógio, um chaveiro, 4 860 cruzeiros (menos de 10% de um salário mínimo da época, 56 mil) e documentos pessoais. “Ele pegou os seus pertences, desceu as escadarias e desapareceu, não sendo mais visto”, disse no inquérito o delegado Domingos Fernandes de Souza, que o libertou. Nada se sabe sobre o que teria feito, com quem teria falado e onde teria andado o ex-preso até a tardinha do dia 24 de agosto, quando foi encontrado boiando no rio Jacuí, com as mãos amarradas às costas. Na exposição de motivos encaminhada à 5ª Vara Federal em 1973, o advogado Cláudio Schuch revela HISTÓRIA A Ditadura

que Manoel Raymundo, ao chegar ao DOPS, no sábado 13 de agosto, foi recebido por militares e policiais, sob a chefia do tenente-coronel Luiz Carlos Menna Barreto. No mesmo documento, o advogado de Elisabeth Soares menciona notícia do jornal Última Hora de 13 de setembro de 1966, segundo a qual o delegado Theobaldo Neumann explicou o caso com a seguinte declaração à imprensa: “Os soldados incumbidos de dar um caldo no ex-sargento Manoel Raymundo Soares perderam o controle do corpo e disto resultou a morte por afogamento”. Depois de ser reconhecida como viúva de um militar que como sub-oficial não tinha o direito de casar, Elisabeth Soares viveu de uma pensão de dois salários mínimos até morrer, em 2009. Sem descendentes, tinha uma filha de criação. Revista

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Elisabeth à frente do enterro de Raymundo. O povo cantou o Hino Nacional nas ruas de Porto Alegre

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Quartel da Polícia do Exército, em Porto Alegre, na década de 1960

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A chamada Ilha do Presídio, no meio do Guaíba, foi um dos primeiros depósitos de presos políticos no Rio Grande do Sul. Um autêntico porão mantido pelo DOPS a mando do III Exército, que havia assumido o controle da Secretaria da Segurança, impondo uma subordinação militar não apenas aos órgãos policiais, mas a outras instâncias do governo estadual. Na época do Caso das Mãos Amarradas, o secretário da Segurança era o coronel Washington Bermudez, mas quem mandava no DOPS era o tenente-coronel Luiz Carlos Menna Barreto, chefe de gabinete do secretário que inaugurou para uso clandestino o chamado Dopinha, mantido por anos num casarão da rua Santo Antônio, no centro de Porto Alegre. Jair Kritschke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, diz que muito provavelmente os últimos suplícios de Manoel Raymundo, antes de ser levado ao rio, tenham ocorrido no Dopinha. “Essa é uma parte importante da História, que ainda precisamos levantar”, diz Kritchske. Além destes locais, o

Fotos: Paulo Dias

Os primeiros porões

O Presídio da Ilha das Pedras Brancas, hoje

MJDH aponta como centros de torturas e prisões ilegais no Rio Grande do Sul, o Palácio da Polícia, que tinha as celas do DOPS no segundo andar, e o extinto quartel da PE, em Porto Alegre. História A Ditadura


Almoré Cavalheiro formou-se em direito em Passo Fundo em 1969

O sargento que

disse não

Foto: Gerson Schirmer

Primeiro sargento eleito deputado, Almoré Cavalheiro foi perseguido mesmo fora da política: para trabalhar como vendedor, tinha que usar o nome de outra pessoa

D

epois de um ano na prisão, o ex-sargento de infantaria Almoré Zoch Cavalheiro, gaúcho de São Gabriel, filho de tropeiro, foi expulso do Exército e teve que ganhar a vida vendendo planos de aposentadoria do Gremio Beneficente do Exército, em Porto Alegre. Era campeão de vendas, quando foi convidado para uma guerrilha, “único caminho para derrubar a ditadura militar”. “Foi no final de 1965 ou início de 1966 e quem me fez o convite foi o ex-sargento Manoel Raymundo Soares”,

lembra Almoré. Foi o último encontro de ambos. Encontraram-se na Avenida João Pessoa e por cerca de duas horas conversaram enquanto passeavam por ruas próximas e pelo Parque da Redenção. Ganhando “tanto quanto um general”, o vendedor Almoré descartou a hipótese de retomar qualquer atividade relacionada com a vida militar, menos ainda na clandestinidade, em aventuras lideradas por exilados ou estrangeiros. Além de não acreditar na viabilidade de qualquer movimento armado contra as Forças Armadas, ele sabia que era vigiado - isso desde que fora eleito deputado estadual do PTB gaúcho em 1962 com mais de sete mil votos. Sem poder assumir o cargo, foi um dos líderes do movimento dos sargentos pelos direitos civis e políticos da categoria. Quando o Supremo Tribunal Federal negou definitivamente a demanda dos sargentos, em setembro de 1963, o movimento desandou numa rebelião em Brasília, gerando grande desgaste político para o governo de João Goulart. “A rebelião escapou ao nosso controle; o movimento já estava infiltrado pela direita”, afirma Almoré, que até hoje se mantém fiel às ideias nacionalistas e trabalhistas. Na virada de 1965/66, mesmo levando uma vida limpa como vendedor, a vigilância continuava, tanto que Almoré foi “demitido” do GBOEx História A Ditadura

a pedido do general Adalberto Pereira dos Santos, comandante militar no Sul, depois vice-presidente no governo do general Emilio Médici. Ainda bem que seu chefe no GBOEx, um general aposentado, acomodou as coisas de tal forma que ele continuou vendendo mas, oficialmente, quem recebia as comissões era uma moça chamada Lenir, com quem acabou se casando. A lua de mel em Santana do Livramento-Rivera foi um transtorno: detido para averiguações, Almoré passou várias horas no quartel, ficando impedido de comparecer à ceia nupcial. O casal teve cinco filhos. Alguns meses antes da morte de Raymundo, Almoré foi preso e interrogado sem violência na sede da Polícia do Exército, na esquina da avenida João Pessoa com a rua Duque de Caxias. Depois, foi remetido para a Ilha do Presídio,onde ficou de molho por 70 dias, sem mandado judicial. Ligando os fatos, concluiu que era acusado de participar de um suposto movimento guerrilheiro liderado pelo ex-sargento Araquém Vaz Galvão, cuja “guerrilha de Ipanema” (bairro da zona sul de Porto Alegre) levara à prisão quase 20 pessoas acusadas de planejar o assassinato do governador Ildo Meneghetti e outras autoridades. O ex-sargento Almoré, que não conseguiu exercer o mandato de deputado mas se descobriu um grande vendedor, tem certeza de que teria poucas chances de sobrevivência se insistisse na vida política. Revista

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à guerrilha

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Quem defende as barbaridades cometidas pelo regime militar no Brasil costuma invocar os mortos pela ação dos que contestavam o regime.

repressão, por exemplo. Mas a cumplicidade da maioria com um Estado assassino só existiu porque o cidadão comum pouco sabia do que estava acontecendo.

Assim, reduz-se tudo a uma contabilidade tétrica: meus mortos contra os seus. Pode-se discutir se a luta armada contra o poder ilegítimo foi uma opção correta ou não, mas não há equivalência possível entre os mortos de um lado e de outro.

A contabilidade tétrica visa a nivelar o campo dessa batalha retroativa pela memória do País e igualar os dois arcos de cumplicidade. Não distingue os mortos nem como morreram.

Não apenas porque houve mais mortes de um só lado, mas por uma diferença essencial entre o que se pode chamar, com alguma literatice, de os arcos de cumplicidade. O arco de cumplicidade dos atentados contra o regime era limitado à iniciativa, errada ou não, de grupos ou indivíduos clandestinos. Já o arco de cumplicidade na morte de contestadores do regime era enorme, era o Estado brasileiro.

Todas as mortes foram lamentáveis, mas os mortos nas salas de martírio do Estado ou num confronto com as forças do Estado na selva em que ninguém sobreviveu ou teve direito a uma sepultura significam mais, para qualquer consciência civilizada, do que os outros. O que se quer saber, hoje, é exatamente do que fomos cúmplices involuntários.

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Quando falamos nos "porões da ditadura" em que pessoas eram seviciadas e mortas, nem sempre nos lembramos que as salas de tortura eram em prédios públicos, ou pagas pelo poder público - quer dizer, por todos nós.

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A cumplicidade com o que acontecia nos "porões", em muitos casos, foi consentida, mesmo que disfarçada. Ainda está para ser investigada a participação de empresários e outros civis na chamada Operação Bandeirantes durante o pior período da História A Ditadura

ARTIG

Contabilidade tétrica

Luis Fernando Verissimo


A guerrilha

que não houve

o segundo semestre de 1966, um pequeno grupo chegou à Serra do Caparaó, entre Minas Gerais e Espírito Santo, região onde fica o Pico da Bandeira, um dos pontos mais altos do território brasileiro. Ex-sargentos, na maioria, eram os primeiros a tentar levar à prática o sonho que embalava aqueles que ainda não se conformavam com o golpe – o foco de guerrilha rural que seria a alavanca para levantar a população contra a ditadura. Não chegaram a disparar um único tiro. As ações restringiram-se ao treinamento e reconhecimento do local. Eles não chegaram nem a fazer trabalho político junto aos moradores da região, embora, mais tarde, alguns rurais tenham sido acusados de colaborar com os guerrilheiros. Milton de Castro Soares, gaúcho de Pelotas, operário, foi o único mili-

tante morto. Mas não em combate, e sim na prisão de Linhares, Juiz de Fora, Minas Gerais, onde, junto com o resto do grupo, estava preso para interrogatório. Oficialmente, cometeu suicídio, mas há suspeita de que foi assassinado. Também é impreciso o número de participantes da guerrilha de Caparaó. Não passou de vinte, com certeza. A inspiração vinha de Cuba, do iate Granma, dos 12 guerrilheiros que sobreviveram ao desembarque e que, liderados por Fidel Castro e Che Guevara, subiram a Sierra Maestra e deflagraram o processo revolucionário que derrubaria o ditador Fulgêncio Baptista. HISTÓRIA A Ditadura

A teoria do foco guerrilheiro, vulgarizada por Regis Debray no livro A Revolução na Revolução, tinha seus limites, e o próprio Che Guevara, ídolo e inspirador dos revolucionários brasileiros, seria morto pelo exército boliviano, seis meses após a queda de Caparaó. Um erro de interpretação da realidade, mas que correspondia ao ideário revolucionário dos anos 60 do século passado. Correspondia, principalmente, a um sentimento generalizado entre os militares expurgados e punidos – a maioria apenas por serem legalistas – de que alguma resposta precisava ser dada antes que a ditadura se consolidasse. Revista

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Francisco Ribeiro

Inspirados na guerrilha de Cuba, nacionalistas brasileiros fracassaram ao tentar implantar um foco revolucionário nas montanhas entre o Rio e Vitória

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Charles, o anjo 45

O ex-marinheiro Capitani em foto de Francisco Ribeiro

Perto de completar 74 anos, a aparência de Avelino Bioen Capitani em nada difere do tradicional colono gaúcho de origem europeia, sorvendo tranquilamente seu chimarrão na varandinha de uma casa simples. Mas a vida de Capitani – um filho de agricultores da região de Lajeado, que deixou a roça e ingressou na Marinha de Guerra – foi de aventuras e de riscos. Era um dos líderes da rebelião dos marinheiros, no 25

de março de 1964. Foi um dos primeiros exilados no Uruguai quando se consumou o golpe e foi aprender guerrilha em Cuba, onde conheceu Che Guevara. Foi para Caparaó, mas não parou aí. Atuou na guerrilha urbana até 1969, quando foi ferido numa desastrada ação de “desapropriação bancária” e escapou por uma favela do Rio de Janeiro. Fato que inspirou a música Charles Anjo 45, de Jorge Ben, depois Benjor.

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Criando cabras na montanha...

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As tentativas de sublevar os quartéis haviam fracassado. Amadeu Ferreira foi um dos que passaram a acreditar que o caminho para derrubar a ditadura seria a guerrilha. “Voltei a Montevidéu e disse a Brizola: agora não tem jeito. Você vai ter que cumprir a palavra e nos ajudar a montar a guerrilha rural”. (Caparaó, documetário, 2007, Flavio Frederico). O dinheiro viria de Cuba, mas seria distribuído em doses homeopáticas. Segundo Ferreira, “Brizola nunca falhou nos compromissos. Só que sempre foi muito a conta-gotas. Ele mandava de vez em quando, em torno de cinco mil dólares de cada vez. No máximo, o que foi gasto conosco chegou uns 75 mil dólares”. (CAPARAO, documentário, 2007). A ideia inicial era estabelecer um foco na região de Criciúma (SC). Mas foi escolhida Caparaó. Um militante da POLOP (Política Operária), nascido na região, sugeriu o local. Segundo Ferreira: Analisamos a região e achamos que era o local ideal: não tinha grandes corporações militares, e era perto das duas maiores cidades brasilei-

ras, o que permitiria o entrosamento entre a organização que ficasse na cidade com a do campo. (CAPARAÓ, documentário, 2007). Ferreira se instalou num sítio, em São João do Príncipe, distrito de Iúna, Espírito Santo. Apresentava-se como criador de cabras. Tinha que trazer o pessoal e o armamento que estava em Porto Alegre para o Rio de Janeiro, e de lá para Caparaó. Armas e demais equipamentos, uma carga de duas toneladas e meia, desmontados, seguiam diversas rotas: Pegávamos um ônibus fora da rodoviária de Porto Alegre, e descíamos antes da rodoviária do Rio. De lá veio muita coisa: de trem, de ônibus, de jipe, e na kombi (que transportava produtos da Kellogg’s) de um companheiro nosso. Ele colocava aquele sucrilho por cima e por baixo vinha arma, uniforme. Viemos aos poucos... Quando tínhamos 17 começamos o deslocamento aqui em Caparaó. (CAPARAÓ, documentário, 2007). Na Serra do Caparaó, montanhas elevam-se a quase três mil metros de altitude, cobertas por nuvens, vales profundos envoltos na neblina. HISTÓRIA A Ditadura

Prisioneiros em Caparaó

Viver ali não é fácil: “Tecnicamente, para iniciar uma ação militar, a região era perfeita, mas do ponto de vista político, um desastre, estávamos muito isolados”, avalia Capitani, quase 50 anos depois.


Tramas em Montevidéu

Em seu Diário, Amaranto Moreira arrolou o equipamento distribuído a cada guerrilheiro: uma mochila, um toldo de nylon, uma rede de nylon, um cobertor, um macacão de lã, um gorro, um par de luvas, um

Assim, Ferreira, Galvão e outros militares expulsos das Forças Armadas vieram para Porto Alegre naquele ano para organizar a sublevação dos quartéis. Entre eles, estava o ex-sargento do Exército Manoel Raymundo Soares, cujo corpo foi encontrado boiando no rio Jacuí em agosto de 1966, no crime que ficou conhecido como “o caso das mãos amarradas”. Como Manoel Raymundo morreu sem falar, muitos dos seus companheiros puderam seguir com o plano.

abrigo de nylon, um conjunto (calça e blusa) de meia, um par de coturnos, dois pares de meias, um cinto cartucheira de nylon, um cinto de lona, uma marmita, um jogo de talheres, um par de tênis. A base da alimentação era a farinha de fubá, e usavam leite condensado como energético. Às vésperas do Natal de 1966, o Diário retrata o sentimento reinante: “[...] uma chuva de tristeza, uma densa cerração de saudade e melancolia, que se abatia sobre nosso acampamento, ferindo nossa moral em seu ponto mais sensível”. Os problemas de adaptação eram vários: frio à noite, sol escaldante durante o dia, umidade, chuva, altitude, exaustão física provocada pelas grandes marchas de treinamento na serra, alguns homens chegando a carregar mais de quarenta quilos: O grupo de companheiros não estava preparado física e politicamente para uma guerra popular de longa duração, e muito menos para iniciá-la. A maioria tinha boa vontade, mas estavam despreparados para enfrentar o que nos esperava. ( CAPITANI, Avelino Bioen. A rebelião dos marinheiros.Artes e Ofícios, 1997). HISTÓRIA A Ditadura

Brizola, depois, fez autocritica e reconheceu que foi um erro

O abastecimento dependia de um apoio urbano. Era difícil e arriscado. Chegou a faltar comida, em novembro de 1966. Tiveram que comer ovos chocos. Como não entravam em ação, o ânimo revolucionário se ressentia. Ferreira explica: A maior dificuldade... foi na discussão política sobre a permanência ou não aqui em cima. Eu tinha vida clandestina, mas muitos não tinham. Então, pra manter-se... tinha que entrar-se em ação. Por que se não entra em ação... e têm pessoas que não têm vida clandestina ainda, estas pessoas começam a criar, desenvolver a necessidade de voltar à cidade. (CAPARAO, documentário, 2007). Planos para a ação não faltaram. Ferreira: O Parque Nacional do Caparaó seria a nossa reserva estratégica para recuo... tínhamos um planejamento pronto da tomada de Presidente Soares (atual Alto Jequitibá), que era uma cidade pequena, mas que tinha banco. [...] Tomaríamos a prefeitura e a delegacia, assumiríamos o governo da cidade. Lançaríamos um manifesto, tomaríamos os Correios e Telégrafos, passaríamos telegramas para tudo quanto fosse lugar que desse

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Caparaó teve origem em Montevidéu, entre os exilados, em torno de Leonel Brizola. Lá, Capitani se integrou a um grupo de militares expurgados, entre eles os ex-sargentos Amadeu Felipe da Luz Ferreira (bisneto de Hercílio Luz, ex-governador de Santa Catarina) e Araken Vaz Galvão, e o ex-marinheiro Amaranto Jorge Rodrigues Moreira. Em 1965, a cúpula do MNR (da qual fazia parte o jornalista Flávio Tavares), sob a liderança do ex-governador, tramava um levante a partir do Rio Grande do Sul.

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Arte: Andres Vince

Belo Horizonte

Arte com mapinha ES mostrando a RJ localização estratégica m

MG

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para passar. Havia uma pessoa responsável para cada uma dessas atribuições. (COSTA, José Caldas. “Caparaó: a primeira guerrilha contra a ditadura”, Boitempo, 2007.). Feita a primeira ação, e a subsequente intervenção do Exército, era só seguir a cartilha clássica da guerrilha: se o inimigo ataca, você recua. Se ele para, você fustiga, provoca. Se ele foge você ataca. Ou, como explicita Ferreira: [...] “sabíamos que, depois dessa primeira ação, o Exército iria cercar aquilo tudo e não haveria mais como tomar cidades. O nosso papel, então, seria fugir do Exército, evitar confronto. Só atacaríamos sentinelas, um comboio em movimento para tomar armas, virar notícia”. (COSTA, 2007). Mas cadê a ação? Ao contrário, a inação, o desconforto e a fome, a saudade dos familiares, conflitos, começaram a desarticular a unidade do grupo... e muitos começaram a ter vontade de ir embora.

Parque Nacional Vitória do Pacaraó 320 km 265 km

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SP

Rio de Janeiro

Distâncias estimadas via rodoviária

São Paulo

As relações começaram a se deteriorar, surgiram críticas e desconfianças mútuas. O reforço que chegou a Caparaó, o ex-bancário Hermes Machado Neto (havia feito treinamento em Cuba), na verdade era um espião. Ele relatou que tivera a impressão de “um grande piquenique na serra” As desistências começaram a ocorrer já no final de 1966, por diversos motivos: problemas familiares (como Daltro Dornelas, que desceu para acompanhar a gravidez da mulher); a falta de resistência física, ou, simplesmente, descrença no projeto. Este foi o caso de Gelcy Rodrigues Correa, ex-sub-tenente

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“Tem café aí?”

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Na serra, restavam oito guerrilheiros: Amadeu Felipe da Luz Ferreira, comandante, Araken Vaz Galvão, sub-comandante, e Edival Melo. Mais os marinheiros Amaranto Moreira, Avelino Capitani, João Gerônimo da Silva (único negro a participar de Caparaó), Jorge Silva. E Milton Soares, operário gaúcho, único civil do grupo, reduzidíssimo e desanimado pelas desistências. Para agravar, Capitani contraiu peste bubônica, transmitida pelos ratos. Tinha febre alta, à beira da morte. Moreira desce para comprar antibióticos e salvar o companheiro. Foi preso em Alto Caparaó, Minas Gerais, a 30 de março de 1967, denunciado pelo dono da

farmácia que lhe vendeu o remédio. Disse que era turista e que os remédios eram preventivos, caso precisasse. Foi autuado por porte ilegal de arma, um revólver calibre 38, e detido para averiguação. O restante do grupo cairia dois dias depois. Era primeiro de abril de 1967 e amanhecia no acampamento, no morro do Capim. A água fervia para o café, e não havia sentinela. Um grupo de homens se aproximou e um deles gritou: “Tem café aí?”. Ao que Ferreira responde: “Tem, pode vir”. E Araken Galvão completou: “... e tem bala pra todo mundo”. Não houve resistência, todos se renderam. E assim acabou a guerrilha do Caparaó, a que não houve. HISTÓRIA A Ditadura

Local estratégico, porém isolado

Amadeu Felipe

paraquedista do Exército, codinome Cláudio, subcomandante da guerrilha do Caparaó: “[...] comecei a me dar conta que estávamos no lugar errado... era fácil de ser isolado. E o povo em volta nos era hostil até porque o governo, naquela fase, iniciou um programa para dar dinheiro àquela gente, erradicando os cafezais velhos”. (COSTA, 2007) Gelcy Correa abandonou a guerrilha em 23 de março de 1967, com o ex-sargento Josué Cerejo. Foram presos no dia seguinte, em Espera Feliz, Minas Gerais, numa barbearia, enquanto aguardavam o ônibus para o Rio de Janeiro.


Policia reprime passeata com violênca, encurralando os estudantes naentrada da Catedral de Porto Alegre

O

golpe mal completara um mês e já estavam criadas as “Comissões Especiais de Investigação Sumária” para averiguação de atos de subversão nas universidades brasileiras. O país tivera um período de grande expansão do ensino superior, uma juventude oriunda das classes médias afluía às universidades federais, gratuitas. A reforma universitária era a grande discussão, mas o movimento estudantil estava inteiramente

Tempo de

expurgo na linha de frente na luta pelas reformas de base. Por trás de toda a agitação, estariam professores comunistas que corrompiam ideologicamente a juventude. Esses eram os que as CEIS queriam pegar. A Universidade de Brasília, onde já se implantava uma reforma que seria modelo para todo o país, foi a mais visada: teve 13 professores deHISTÓRIA A Ditadura

mitidos em abril de 1964 sem qualquer investigação, processo ou acusação tornados públicos. Em outubro de 1965, mais 15 de seus professores sofreram punição igual. Além disso, o campus foi ocupado militarmente em pelo menos três oportunidades: 1964, 1965, 1968. O maior número de expurgos, no entanto, ocorreu na Universidade Federal do Rio Grande do Sul: 30 Revista

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O meio universitário foi um dos primeiros alvos da repressão em 1964

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Professor arquiteto Carlos Fayet

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Professor Pinheiro Machado.

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Professor expurgado Gerd Bornheim.

professores foram expurgados em duas levas. A Comissão Especial de Investigação Sumária da UFRGS foi instalada em maio de 1964, tinha 16 membros, entre eles um general, nomeado pelo Ministro do Exército, general Costa e Silva. Na primeira leva, em agosto do mesmo ano, foram expurgados 17 professores: onze catedráticos, três instrutores de ensino superior, e três contratados. As acusações eram genéricas, como “controla a situação comunista na Faculdade de Arquitetura” ou “exerce influência comunizante na mentalidade dos alunos” ou, ainda, “é um líder esquerdizante”, História A Ditadura

“instrui os alunos de esquerda para fazerem perguntas ideológicas nos seminários”, “participação marcante na greve dos estudantes”, “dá tratamento preferencial a alunos esquerdistas”, “compõe a célula máter do PC na Universidade”, “estimula o desencaminhamento moral dos alunos”, “participou de um banquete oferecido ao escritor comunista Jorge Amado” etc. O professor Luiz Carlos Pinheiro Machado, por exemplo, foi acusado de ter falado numa rádio no dia 1º de abril, defendendo Goulart. O arquiteto Carlos Maximiliano Fayet, por ter presidido uma delegação de arquitetos numa viagem a Cuba, para o VII Congresso da


Foto: Roberto Santos/Correio do Povo

Policia prende alunos na frente da Faculdade de Filosofia da UFRGS

União Internacional de Arquitetos, organização ligada à Unesco. Mas foi inclusão, na primeira lista, do nome do professor Ernani Maria Fiori, que causou a maior repercussão nos meios intelectuais. Notável educador e filósofo, Fiori era um homem de formação católica e sem qualquer envolvimento político partidário. Ao ser exonerado da UFRGS, onde era catedrático, perdeu também a docência que exercia na Universidade de Brasília. Os professores eram exonerados sem nenhum ato ou medida que formalizasse a decisão. Eram apenas comunicados que seus serviços não eram mais necessários. “Todos os professores expurgados ficaram, de

fato e por longos anos, impedidos de exercerem qualquer atividade docente no país”. Chocado com o “terrorismo cultural”, o escritor católico Alceu Amoroso Lima escreveu um artigo no Jornal do Brasil, que Erico Verissimo mandou reproduzir no Correio do Povo, em Porto Alegre. Dizia: “Essas medidas punitivas, especialmente quando tocam no domínio das ideias, da consciência, são odiosas e contraproducentes (...) Um fato como esse provoca uma revolta de consciências que vai minando cada vez mais, especialmente na mocidade e nos meios intelectuais, a já escassa popularidade da Revolução de abril” História A Ditadura

Os expurgos, muitos motivados por questões pessoais ou vinditas paroquiais, de fato minaram a popularidade do regime, mas também (e isso era o importante para os novos donos do poder) abriram caminho para uma guinada nos rumos do ensino universitário no país. Em 1966, o MEC estabeleceu um conjunto de convênios com a United States Agency for Development (USAID), para “remodelar as universidades brasileiras de acordo com que os planejadores pensam ser a melhor parte do sistema universitário americano – basicamente incrementar a educação técnica”. Na esteira das agitações estudantis de 1968, uma nova leva de 19 expurgados atingiu os quadros da UFRGS, incluindo nomes de professores renomados como o filósofo Gerd Bornheim, o catedrático de Ciências Políticas Leônidas Xausa, entre outros. Desta vez não houve peças acusatórias, nem processos, nem comissões investigativas, nem indiciamento. “Os professores expurgados souberam de suas demissões pela voz anônima de um locutor da Voz do Brasil”. Revista

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Professor Ernani Maria Fiori em 1979 na volta do exílio

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Movimento estudantil recrudesce a partir de 1966

“Naquele tempo, até paqueras e namoros eram regulados pela política”

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Uirapuru Mendes*

asseatas contra a ditadura, confrontos com a polícia, cacetadas, mesmo dentro da Catedral, ameaça permanente do Dops, grupos políticos (Partidão, PCdoB, AP, Quarta) em acirrada disputa da liderança no campus, discursos sobre discursos – neguinho não podia ver um caixote ou escadaria sem subir e soltar o palavreado – contestações à Reitoria, assembleias e paquera. Não era fácil ser calouro da Filosofia em 1966. Até paqueras e namoros eram regulados pela cor política. Lembro de uma bela “burguesa” convertida à Quarta que teve de fazer autocrítica perante o grupo por estar aceitando o arrastar de asas de um alienado de Letras. Melhor era ser do grupo dos “independentes”, à parte a exposição permanente ao assédio político de algum militante, de uma ou outra facção, encarregado das “ampliações”. As aulas serviam de mero intervalo para a atividade política. Menos as do Gerd Bornheim, do Britto Velho e do Ernildo Stein, es-

Passeatas e manifestações desafiam as forças de

tomada A

do RU

tas ninguém perdia. Perdia, de bom grado, a Lógica, de Hugo di Primio Paz, a quem logo se declarou guerra. Era do “time do expurgo”, que afastou professores como Ernani Maria Fiori. Pior eram os adversários desconhecidos, os dedos–duros infiltrados nas salas de aula. Na nossa tinha um capaz de incríveis perfídias, insidioso, perigosíssimo. Um dia o pessoal se distraiu, numa assembleia, e o sujeito tascou a mão no microfone e fez um discurso inesperado e desconexo, em que afinal se ficava sabendo que ele não passava de um mero motorista do Dops disposto a subir na vida. Logo na Filosofia? Dava para desconfiar. No Centro Acadêmico, rolava o Chico da Banda e da Rita, os garotos de Liverpool e, sei lá por quais obscuros motivos, o Charles Aznavour lamentoso de “Que a c´est triste l´amour”. Batida de maracujá. Bailinhos no centro acadêmico... HISTÓRIA A Ditadura

A Filosofia era o centro da esquerda, o pessoal das outras faculdades costumava transitar por ali em suas missões cotidianas. Como teóricos e gurus, destacavam-se Flávio Koutzii, Pilla Vares, Marcão, Marco Aurélio Garcia, fina flor do marxismo e adjacências. Entre os intelectuais sem carteirinha de político, como o Ruy Ostermann, já professor da Pedagogia, brilhavam Paulo Guedes, Cassal, Moreno, João Carlos Caçapava, Gastão, Aurélio, Pedrinho, Flávio Aguiar, Yole. Por sinal, Yole também pertencia ao time das musas, composto por Mariazinha Lopes de Almeida, Sônia Pilla, Verena, Fernanda Marques Fernandes (a filha do prefeito!) e Lorena, entre muitas outras. A vanguarda da Filosofia, turma da Floresta Negra, era preparadíssima, lia Heidegger no original. Grego e latim era com o Gastão Eberle, com quem fui morar numa casa da Rua Garibaldi, logo transformada em re-


“Abaixo a repressão” é a palavra de ordem

duto da Quarta. Ali sofri os maiores assédios para me engajar, mas resisti sempre. Vi que tinha razão um dia em que tive de sair de casa porque uma reunião ia discutir qual a posição a tomar no conflito do Oriente Médio. Ao voltar, no final da tarde, encontrei os militantes transformados em “árabes”, com turbantes feitos com todas as toalhas de banho, de rosto, e panos-de-prato da casa. Fui muito criticado por ter contado essa história na faculdade. Alegaram até “questões de segurança”. A maior ação política em que me vi envolvido foi a tomada do Restaurante Universitário, que era administrado pela direita. O objetivo era chamar a atenção para as reivindicações e posições dos universitários. Reuniões e mais reuniões prepararam o plano. Depois de dominadas as posições nas catracas e na administração, Carlos Alberto Vieira subiria numa mesa e faria um discurso. Tentaram me agrupar entre os seguranças de Vieira nesse momento crucial, mas escapei da tarefa para fazer a cobertura do episódio para o Diário de Notícias, onde era repórter. Nosso fotógrafo pegou o Vieira em pé sobre a mesa, de punho cerrado, e no dia seguinte o Diário, que vivia seus últimos momentos, esgotou a edição com a foto na primeira página. Anda voltei à noite ao RU para acompanhar o desenvolvimento das

Uma última e dramática assembleia rejeitou a proposta de resistir até a morte, e iniciou-se a retirada (...) negociações com a Reitoria e depois com a Brigada Militar. As assembleias aconteciam a todo o momento. E a mais importante delas foi de madrugada, quando o comandante da Brigada, coronel Pedro Américo Leal, que gostava de parecer aberto ao diálogo, munido de um mega fone, com a tropa formada diante do RU, chamou Vieira à sacada do primeiro piso para negociar. Vieira pediu tempo para as deliberações dos grupos, e lá pelas tantas o coronel cansou de tantas concessões e avisou que ia invadir o RU. Uma última e dramática assembleia rejeitou a proposta de resistir até a morte, e iniciou-se a retirada, depois que os líderes deixaram o prédio por uma construção dos fundos. De minha parte, já que havia um acordo de não agressão, fui para casa atalhando tranquilamente entre as fileiras de uma tropa paramentada até com escudos. Todos os jornais e rádios haviam passado por lá. Vitória! E histórias para muitas horas de voo nas mesas da cantina. Mais adiante, Vieira, ajudado por Trajano, Jacozinho e uma frente de esquerda, viveu seus momentos de HISTÓRIA A Ditadura

glória ao desbancar por via do voto a direita que dominava o DCE, turma da Engenharia, uns loirões de cabelos curtos e aparência de nazista. Nunca tínhamos visto um nazista, mas só podia ser aquilo. Estávamos cheios de planos, e um deles, conduzido por Paulo Guedes, era trazer intelectuais de outras regiões para fazer um seminário. Que decepção! Uma auditoria da Reitoria descobriu um desvio de verba e Vieira teve seu mandato sumariamente cassado. Isso tudo ainda era na fase light, ainda não haviam começado a matar. E como fui em 68 para o Rio, não acompanhei os momentos sinistros, de desmantelamento das organizações, de prisões e torturas. O que vi, era como se fosse um jogo juvenil de tomar o poder e inaugurar uma nova sociedade. Tudo feito com desprendimento e algum heroísmo, respingado de quixotismo. Ninguém tomou o poder, mas todos ajudaram a restaurar a democracia. Doce pássaro da juventude. *Escrito em 1994, para o livro “UFRGS: Identidade e Memórias”

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segurança

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Cai a

máscara

Quarta-feira 4 de julho de 1966.

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A

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to do presidente da República cassa o mandato de quatro deputados da oposição no Rio Grande do Sul: Darcy Von Hoonholtz, Hélio Fontoura, Álvaro Petraco e Carlos Moraes Rodrigues. Foi tensa a sessão da Assembleia no dia seguinte às cassações. O primeiro orador foi o deputado Pedro Simon, líder do MDB. Mencionou os colegas cassados logo depois do golpe, “contra os quais nenhuma acusação concreta foi feita”. Lembrou que, em alguns casos, eram tão flagrantes as injustiças que até deputados governistas se solidarizaram com os cassados. “Argumentava-se, então, que toda a revolução está sujeita a erros e injustiças... mas hoje, 27 meses após a vitória desse movimento, o governo, sem precipitação, serena e tranquilamente, afasta desta casa três deputados sem dizer nem do que estariam acusados”. O segundo a falar foi Paulo Brossard, que não se filiara a nenhum dos novos partidos. Ele disse que Peracchi Barcellos, o governador que o regime queria impor com as cassações, tomaria posse por cima “do cadáver dos mandatos de seus conterrâneos” e sobre “os restos de uma assembleia mutilada”. Nas cassações anteriores, foram atingidos os parlamentares, mas a Assembleia foi recomposta com a posse dos suplentes, o que agora estava proibi-

Governo que se dizia democrático cassa oito deputados para impor seu candidato no Rio Grande do Sul

do. “Agora, a Assembleia é ferida, sua composição alterada”, gritou. Cinco dias depois, mais quatro cassações: Candido Norberto, Osmar Lauthenschleiger, Wilmar Taborda e Seno Ludwig, todos da oposição. No dia seguinte, outro ato: votos dados a candidatos de outro partido serão nulos. Com essas medidas ditatoriais, o governo garantiu a eleição de seu candidato ao governo do Rio Grande do Sul, mas feriu de morte a credibilidade do discurso democrático que fazia. “Ali eles foram desmascarados”, diz Brossard aos 85 anos, lembrando o episódio.

“Ali perderam a honra”

Quando se deu o golpe militar, em 1964, Brossard cumpria seu terceiro mandato na Assembleia Estadual, pelo Partido Libertador, o velho PL. Tornara-se um dos mais contundentes críticos de Jango e Brizola. Apoiou a intervenção dos militares, chegou História A Ditadura


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a integrar o governo Meneghetti, como secretário de Interior e Justiça. Assumiu em junho de 1964, logo depois das primeiras cassações, deixou o cargo em dezembro. Quando foram extintos os partidos, para dar lugar ao bipartidarismo da Arena e do MDB, Brossard decidiu que não se filiaria a nenhuma das novas agremiações e não concorreria mais. Cumprido aquele mandato, iria “para casa”. Seu amigo e companheiro de bancada, Honório Severo, seguiu-o na decisão. O venerável líder dos libertadores, Raul Pilla, também se retirou da vida pública, declarando-se “decepcionado”. Os outros deputados da bancada do PL, com alguma relutância, integraram-se à Arena. Brossard, gradativamente, foi se tornando mais crítico, a cobrar dos novos donos do poder a normalização prometida. O que ocorria, ao contrário, era uma gradual descida em direção à ditadura. Até que chegou o ano de 1966 com eleições previstas em onze Estados. No ano anterior, as eleições estaduais haviam sido decepcionantes para os novos donos do poder. Em

Minas e Rio de Janeiro, os maiores colégios, o povo votou em candidatos identificados com a oposição. Agora, entre outros estariam em jogo os governos de São Paulo, Pernambuco e Rio Grande do Sul. O Rio Grande do Sul era o caso mais delicado. Terra de Jango e Brizola, a poucos quilômetros da “República de Montevidéu”, onde estavam todos asilados. Castello Branco decidiu não correr riscos. Em fevereiro, baixou um Ato Institucional mudando as regras para as eleições de outubro. O governador seria eleito indiretamente pelos deputados. Os prefeitos das capitais passam a ser nomeados pelos governadores. A estas alturas já era evidente o candidato que o regime queria no governo do Rio Grande do Sul: o coronel Peracchi Barcellos, levado a ministro do Trabalho de Castello Branco para ganhar projeção e impor-se ao partido. HISTÓRIA A Ditadura

Porém, na Assembleia que ia eleger o novo governador gaúcho, formada por 55 deputados, a maioria seriam 28 votos. A bancada eleita pelo PTB, toda ela filiada ao MDB, tinha a maioria, 23 votos. Somados aos dissidentes do PL (Brossard, Honório Severo e Dario Beltrão), faltavam dois votos para a maioria, que poderiam ser colhidos junto à bancada do PDC, em situação incômoda dentro da Arena. “Honório Severo foi o primeiro a quem falei: nós temos a faculdade, temos o poder de eleger o governador”. A partir daí, se intensificaram as conversas. Brossard procurou o pessoal do PTB, agora no MDB: “Comecei pelo Marcírio Goulart Loureiro, primo irmão do Jango, pouco atuante, mas respeitado no partido... se a bancada do PTB vier, nós elegemos o governador...” Marcírio levou o assunto a Siegfried Heuser, presidente do MDB no Rio Grande do Sul. “Heuser me


perguntou: quem será o candidato?” Não podia ser da oposição. Heuser mencionou Raul Pilla e uma consulta foi feita. Pilla que vivia recluso, abatido com a morte recente de sua mulher, respondeu numa carta datada de 18 de junho de 1966: “Não me sinto em condições psíquicas nem físicas para assumir as responsabilidades do cargo. A velhice chegou realmente. Do ponto de vista psíquico, esclareço porém, ser mais um total desencanto do que alguma falha de julgamento”.

E indicou: “Se o plano é viável, por que não tentar com outro candidato, como o Cirne Lima que, sob o aspecto administrativo, ofereceria muito mais seguras perspectivas?”. Segundo Brossard, ele e Honório Severo foram sondar o professor Ruy Cirne Lima, emérito jurista, homem acima de partidarismos. “Ele topou, não fez objeção alguma”. Iniciou-se então a conspiração para obter as assinaturas. Entre o início da “conspiração” e a formalização do convite a Cirne HISTÓRIA A Ditadura

Lima, foram 23 dias. Todas as conversas foram a portas fechadas, sem a presença da imprensa. Era um sábado quando os deputados foram à casa de Ruy Cirne Lima e lhe entregaram um documento com 31 assinaturas que garantiam a maioria absoluta na eleição já marcada. Se concordasse, o jurista, catedrático da Faculdade de Direito, estaria antecipadamente eleito. Ruy Cirne Lima tem a resposta preparada: “Só uma resposta pode caber a um convite desta natureza vindo a um riograndense, da maioria dos representantes do povo gaúcho: estar à disposição do meu Estado”. O fato, até então tratado em sigilo, ganhou manchete em todos os jornais. Imediatamente, propagou-se uma onda de apoios sem precedentes – da imprensa ao arcebispo, das federações de empresários aos grêmios estudantis, da Associação dos Pais de Família do RS (18 mil sócios) ao Círculo Militar de Porto Alegre e aos “formandos da PUC”. Discursos e manifestações lembram momentos em que os gaúchos deixaram de lado suas históricas rivalidades e se uniram em torno de grandes objetivos - o “Pacto de Pedras Altas”, que pôs fim à Revolução de 1923; a “Revolução de 30”, que culminou com Vargas no Palácio do Catete; a “Legalidade”, quando Brizola sustentou a posse de João Goulart em 1961. “União pelo Rio Grande”, foi o nome que se deu ao movimento em torno da candidatura Cirne Lima. “Empolgou como se fosse uma campanha em eleição direta”, diz Pedro Simon. No jantar que reuniu os 31 signatários do manifesto, dias depois, ainda era possível perceber o quanto era inusitada aquela campanha: enquanto os maridos discutiam descontraidamente como velhos correligionários, as esposas se mantinham arredias, como se não entendessem bem o que estava acontecendo. “Uma reunião como aquela seria Revista

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Raul Pilla, venerável chefe dos Libertadores, abandonou a política desiludido com a militarização

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Pedro Flores

Pedro Simon fala em nome dos 31 deputados que apoiam a candidatura Cirne Lima.

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inimaginável meses antes, reunindo petebistas e libertadores” Na manhã seguinte ao lançamento de Cirne Lima, o presidente Castello Branco convoca uma reunião de urgência e descarta qualquer chance de conciliação. E começa a preparar o caminho para garantir a maioria na eleição gaúcha. Peracchi, o escolhido pelo regime, desembarca em Porto Alegre dizendo que “a candidatura Cirne Lima obedece ordens de Montevidéu”, onde estão exilados Jango e Brizola. Cirne Lima fala ao Jornal do Brasil. Foi lacônico, disse que ao aceitar o convite da maioria da Assembleia teve o único propósito “de não me recusar a servir o meu Estado”. “Eu não tenho passado político, mas o passado político do meu Estado

não permitiria, nas atuais circunstâncias, outra atitude”. Aceitou o convite “como forma de união e não de separação, como expressão de congraçamento, não de conflito”. O repórter provocou: “Seus adversários propalam que sua candidatura está vinculada a Montevidéu”. “Não acredito que tenha adversários. Nunca participei antes de contendas políticas. As referências, partidas não sei de onde, a vinculações minhas com Montevidéu são fantasias gratuitas”. Concluiu elogiando a revolução que “trouxe ao Brasil um sopro de renovação, com resultados imediatos que a ninguém é lícito negar. Houve erros, certamente, mas o saldo geral é, ainda, amplamente favorável à Revolução”. Ruy Cirne Lima não era, nunca fora, nem pretendera ser um políHISTÓRIA A Ditadura

tico. Foi colocado no centro dos acontecimentos sem ter feito um gesto. Foi alijado em seguida por forças que nunca se revelaram inteiramente. Sua condição de “governador eleito” durou um mês e pouco. O tempo suficiente para a máquina burocrática da ditadura se refazer da surpresa e agir implacavelmente. Numa carta que enviou a Castello Branco, o venerável Raul Pilla qualificou sua candidatura como “supra-revolucionária”. Mas o governo não cede e sucedem-se as cassações. Cirne Lima, então, pede ao MDB que não registre sua candidatura. Uma semana antes da eleição, o ambiente político, já sombrio, se torna assustador: o corpo de um homem foi encontrado no Jacuí. Estava manietado e apresentava sinais de tortura. Identificado, era Manoel Raymundo Soares, sargento do exército, ligado ao movimento nacionalista. Descobriu-se que havia sido preso em março, pelo DOPS, suspeito de ligações com os esquemas militares atribuídos a Brizola. Morto numa sessão de tortura, fora lançado ao rio, com as mãos amarradas. Ficou claro: a ditadura não estava só cassando mandatos. Estava matando seus adversários. Nesse clima se chegou à eleição. Depois das cassações, a Assembleia Legislativa estava reduzida a 48 deputados, e os 23 votos em Peracchi não alcançaram maioria. Como previa o Ato 3, houve um segundo escrutínio, no qual Peracchi já não precisa de maioria absoluta. Foram 23 a favor, 3 brancos, 22 ausentes, 7 cassados. Entre os que votaram em Peracchi, dois seriam governadores depois: Amaral de Souza e Sinval Guazzelli. “Ali, a chamada revolução perdeu sua honra”, diz Paulo Brossard.


Descendo aos

porões

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Por meio de atos arbitrários e repressão constante, o regime gera reações cada vez mais violentas e vai aos poucos afundando na noite da ditadura

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Costa e Silva em desenho de Ronaldo

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a manhã de 25 de julho de 1966, o ministro da Guerra, general Costa e Silva, já candidato a presidente, era esperado no aeroporto dos Guararapes, em Recife. Seu avião deveria pousar às 8h30, mas uma pane o atrasou. Um aviso informou que o ministro chegaria mais tarde, de carro. Vinte minutos depois,uma bomba sacudiu o aeroporto. Morreram na hora um almirante da reserva e um jornalista. Um guarda teve a perna amputada, o secretário de segurança perdeu quatro dedos, treze pessoas foram feridas. Naquele dia , mais dois artefatos explodiram. Chegava-se assim, só naquele meio ano de 1966, ao impressionante número de cinco atentados. Descobriu-se que essas ações erampraticadas por estudantes ligados à AP, Ação Popular, de origem católica que vinha se radicalizando e adotando o terrorismo como tática para desestabilizar o regime. Tratava-se de algo novo enquanto forma de combate à ditadura. A perspectiva de luta também mudara: não se pensava mais em restaurar a ordem derrubada, mas de construir a revolução socialista. Formavam quadros em Cuba e recebiam apoio de Fidel Castro, mas já não passavam por Montevidéo, onde Brizola se recolhera às suas atividades de empresário rural. Ainda em 1966, Carlos Marighella completara 54 anos, 37 deles militando no PCB, o Partidão,e já com várias passagens pela cadeia. Estava cansado da política conciliatória do partido, convencido de que era preciso recorrer às armas para enfrentar a ditadura, a essa altura já escancarada. Essa era outra


novidade no campo da oposição à ditadura. Uma eleição indireta consagrou Costa e Silva que tomou posse no dia 15 de março de 1967. Castello deixou o cargo preocupado com a tendência “de romper com a legalidade”, que percebia no interior do governo. A “tigrada” - majores, capitães, coronéis da linha dura, que ele a custo conseguira conter - estava cada vez mais inquieta. Castello sabia que Costa e Silva não tinha pulso para segurá-la. Fora isso, quebrara-se no círculo do poder o segredo médico sobre a saúde do presidente. Ele tivera um enfarte há pouco tempo, tinha as artérias entupidas, dois ou três anos de vida. (Costa e Silva morreu em 17 de dezembro de 1969) À crise interna, somava-se a ameaça externa. Em julho daquele ano, Marighela já rompido com o Partidão, obtém apoio de Fidel Cas-

tro para um plano de luta armada no Brasil. No início do ano seguinte, militantes marighelistas marcam sua presença lançando uma bomba contra o consulado americano em São Paulo. Apesar da intenção de não atingir pessoas, foram três feridos, um com a perna amputada. Apesar dos sinais - assaltos a carros-forte e a bancos -a polícia custou a perceber que não eram marginais comuns mas por organizações armadas. Eram resultado de alianças entre as dissidências comunistas e os ex-sargentos do fanado MNR. Eram diversos grupos com táticas próprias, mas complementares dentro de uma estratégia mais ampla para derrubar a ditadura. Buscavam bases para instalação de guerrilha no campo, assaltavam para custear as operações, trabalhavam nas fábricas para “conscientizar” os operários. O outro lado também se moHistória A Ditadura

vimenta. Um sequestro de dois irmãos no Rio revela outra ponta do enredo. Ronaldo e Rogério Duarte eram figuras notórias da “esquerda festiva” carioca. Ficaram 14 dias em poder dos sequestradores, um deles viu as instalações de um quartel. Descobre-se que foram militares agindo na clandestinidade, fora da linha de comando. A denúncia é feita, nada é apurado, ninguém é punido - sinal verde para a linha dura. A tensão social que se acumula vai explodir no dia 28 de março de 1968, quando a tropa da PM no Rio atacou estudantes que protestavam por melhores instalações no Calabouço, o restaurante onde milhares de secundaristas e universitários comiam diariamente a preço subsidiado. Manifestantes reagem com pedras, um soldado atira. Cai morto o estudante Edson Luis de Lima Souto, “primeiro cadáver entre os estudantes e o regime”. Os colegas carregam o cadáver Revista

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Soldados nas ruas para reprimir manifestações pacíficas

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para a Assembléia Legislativa. A foto sai na primeira página, com a manchete: “Assassinato”. O velório atrai uma multidão: 50 mil levam o caixão da Cinelândia até o cemitério São João Batista. Artistas retraídos, como a atriz Tonia Carrero e o pintor Di Cavalcanti caminham de braços dados com a massa. O enterro na sexta foi o assunto do fim de semana. Segunda-feira, casualmente o dia 1º. de abril, aniversário da então proclamada “Revolução Redentora” nova manifestação no centro do Rio, novo enfrentamento, um dia inteiro de pancadaria. A situação só voltou ao controle no fim da tarde quando 1.200 soldados do 2º. Batalhão de Infantaria Blindada ocuparam a Cinelândia. Mais um estudante e um marinheiro mortos. Entre os 56 feridos, 30 eram policiais. Um sinal claro da nova realidade da luta política seria dado no 1º. de Maio. Sindicatos controlados pelo PCB, o Partidão, que ainda segue na linha conciliatória, organizam um comício na Praça da Sé, em São Paulo. Obtiveram apoio até do governador de São Paulo, Abreu Sodré, que tinha pretensões à presidência e compareceu ao comício. Mal sabiam que havia uma armadilha ali. Grupos da esquerda radical, já comprometidos com a luta armada, tumultuaram o evento, invadiram com barras de ferro, destruiram e incendiaram o palanque. O governador foi ferido com uma pedrada. As chances de conciliação estavam se esgotando. Greves em todo o pais marcam as semanas seguintes e no dia 19 de junho 1.500 jovens invadem a reitoria da Universidade do Rio de Janeiro. Enfrentam a força policial, três estudantes e um policial mortos. Homens com farda do Exercito tomam um hospital militar em São Paulo. Rendem a guarda e levam nove fuzis FAL numa camioneta. O comandante os chama de covardes,

desafia que ataquem o quartel. Dois dias depois, um carro bomba é lançado contra o quartel no Ibirapuera. Morre o soldado Mario Kozel Filho, seis feridos. O impacto do atentado é abafado por uma passeata que reúne mais de 100 mil pessoas no Rio de Janeiro. Muita gente que apoiou os militares estava nela, a começar pelo bispo auxiliar, o Cardeal Jaime Camara que benzera a Marcha da Vitória em 2 de abril. Clarice Lispector, Norma Benguel, Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Nara Leão, papel picado e um refrão destoante: “Povo armado, derruba a ditadura”. O “terrorismo militar”, que mostrou sua cara com o sequestro dos os irmãos Duarte, era obra de majores, capitães, tenentes. Tinham conexões com grupos civis e mantinham inclusive centros para treinamento de grupos paramilitares anti-comunistas. O meio teatral mereceu atenção especial. No Rio, uma bomba destruiu o teatro Opinião, em São Paulo, no dia 17 de julho de 1968, um grupo invadiu o teatro Ruth Escobar para agredir o elenco da peça Roda Viva. A atriz Marilia Pêra foi retirada nua dos camarins. São creditados a esses grupos, naquele ano, 20 atentados com explosivos, dois sequestros duplos, atentado à Representação da União Soviética e Embaixada da Polônia. Em julho havia dez organizações clandestinas arroladas na lista dos órgãos de segurança, todas empenhadas em promover a revolução popular, socialista. Eram pequenas células que no total somariam pouco mais de 100 militantes. Estavam na fase de acumular forças: roubam dinamite, assaltam bancos para financiar suas operações, tratam dos preparativos para as guerrilhas e praticam atentados punitivos – como o major alemão morto por engano. Confundiram-no com o coronel boliviano que matara Che Guevara. A estas alturas já se contabiliHISTÓRIA A Ditadura

Artistas e intelectuais aderem às manifestações no Rio

zam mais de 50 ações nos últimos dois anos, 29 só naquele ano: atentados a bombas, assaltos a banco, supermercados e casas de armas. Nas manifestações de rua, que se multiplicam, fica cada vez mais claro que o regime está perdendo o apoio de uma parcela importante da classe média. A candidatura prematura de um general da linha dura, Albuquerque Lima, sinaliza a insatisfação interna. No dia 2 de julho, Costa e Silva


Morte de um estudante desencadeou verdadeira guerra nas ruas do Rio

reúne o Conselho de Segurança Nacional. A conclusão é de que o país vive um “quadro bem adiantado de guerra revolucionária”, cogita-se a decretação do Estado de Sítio, mas o governo ainda hesita. Nas semanas seguintes, um novo ciclo de greves no ABC paulista. Dez mil metalúrgicos param as fábricas, a polícia reprime os piquetes, 400 prisões, denúncias de tortura. Em São Paulo, onde já se contabilizam 29 assaltos e atentados no

ano, em agosto o grupo de Marighela patrocina um espetacular assalto ao trem pagador da Estrada Santos Jundiaí. Em discurso na tribuna da Camara Federal, o deputado Márcio Moreira Alves pergunta até quando o “exército será um valhacouto de torturadores”. O governo pede licença ao congresso para punir o deputa por ofensa às Forças Armadas. No início de outubro vem a público um tenebroso episódio - um HISTÓRIA A Ditadura

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Protesto no Rio por melhores instalações no restaurante dos estudantes

plano para utilizar comandos do Parasar, o Serviço de Salvamento da Aeronáutica, para atentados e eliminação de comunistas. O brigadeiro João Paulo Burnier é apontado como o mentor da operação terrorista. No Maracanazinho, vinte mil pessoas cantam: “Há soldados armados, amados ou não (...) Quem sabe faz a hora não espera acontecer... Um relatório do Exército registra depoimento de militares inibidos de usar a farda, alvo de provocações quando fardados. A União Nacional de Estudantes (UNE) desafia o governo que a colocou na ilegalidade e convoca um congresso clandestino. No Dia da Criança, 12 de outubro, a polícia prende mais de 300 estudantes reunidos num sítio em Ibiuna. O Comando de Caça aos Comunistas incendeia o prédio da Faculdade de Filosofia, na rua Maria Antônia. Nessa mesma hora sargento Onofre Pires, egresso do MNR, executa com uma rajada de metralhadora o capitão americano Charles Chandler, adido militar considerado agente da CIA. Atribui-se ao grupo de Marighela 32 atentados naquele ano. O ano terrível se aproxima do fim, mas ainda tem aquele pedido de licença para punir o deputado Moreira Alves por ter ofendido as Forças Armadas. O governo pede à Câmara que suspenda as garantias parlamentares do deputado, para que ele possa ser processado (cassado com certeza) pela Justiça Militar. No dia 12 de dezembro, a Câmara nega o pedido por 216 votos contra 138. No dia seguinte, o governo baixa o Ato Institucional nº 5 que fecha o Congresso, permite demissões sumárias, cassações, suspensão de direitos e das franquias individuais: habeas corpus, liberdade de expressão e de reunião. Como disse o cronista: “Estava montado o cenário para os crimes da ditadura.”

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Anselmo reaparece com a luta armada, na qual vai ser algoz

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O anjo

da morte História A Ditadura

pernambucano José Anselmo dos Santos era um simples marinheiro no Rio quando sua foto apareceu na imprensa brasileira como o orador mais inflamado da célebre assembleia dos sargentos de março de 1964, um dos estopins da queda do presidente João Goulart. Preso por indisciplina, foi anistiado por Goulart e menos de um mês depois, com o golpe, foi expulso da Marinha junto com centenas de outros militares considerados subversivos. Aos 23 anos tornou-se clandestino, engajado na militância política contra o regime militar, na verdade como informante do DOPS de São Paulo. Que foi dedo-duro ele mesmo admite, mas até hoje permanece a dúvida sobre o ano em que passou a entregar esquerdistas à repressão. O verdadeiro papel de Anselmo durante a ditadura militar ainda não foi esclarecido. O historiador Muniz Bandeira, autor de um livro sobre o governo Goulart, afirma que a assessoria militar de Jango advertiu o governo: Anselmo era um “agente provocador”, a serviço da CIA. Mas a esquerda acreditava nele: o discurso que leu na Assembleia dos Sargentos foi escrito por Carlos Marighella, um dos principais quadros do PCB, na época. Quando se deu o golpe, asilou-se na embaixada do México, no Rio, de onde saiu no dia 9 de abril de 1964, para esconder-se num apartamento no bairro Laranjeiras, de onde lançou um manifesto conclamando os marinheiros à revolta. Foi preso quinze dias depois. Fugiu saindo pela porta principal do Comissariado da Quinta da Boa Vista, dois anos depois. Mais tarde o inquérito sobre a fuga revelaria que ele gozava de situação privilegiada


Marinheiros em assembleia no Rio em 1964

Anselmo ao microfone, na assembleia dos sargentos, em 1964. Ao fundo, José Raimundo da Costa, o Moisés, que seria morto após denúncia de Anselmo

Começa que ele não era cabo, mas marinheiro de primeira classe, em cujo uniforme apareciam duas divisas, como na manga dos cabos do Exército. Como militar, era favorável às reivindicações dos sargentos e suboficiais, que queriam o direito de casar e de estudar para subir ao oficialato. Na festa de segundo aniversário da Associação dos Marinheiros, que depois se transformou em motim, ele disse: “Quem tenta subverter a ordem não são os marinheiros, os História A Ditadura

soldados, os fuzileiros navais, os sargentos e os oficiais nacionalistas, como também não são os operários, os camponeses e os estudantes. A verdade deve ser dita: quem tenta subverter a ordem são os aliados das forças ocultas, que levaram um presidente ao suicídio, outro à renúncia e tentaram impedir a posse de Jango e agora impedem a realização das reformas de base”. Há quem acredite que ele era um “inocente útil” e que passou a trabalhar como “cachorro” do DOPS Revista

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na prisão, onde exercia funções de escrivão e atendia telefones. Saiu do pais, passou pelo Uruguai, onde teve encontros com Leonel Brizola, e foi reaparecer em Havana, na I Conferência da OLAS (Organização Latinoamericana de Solidariedade), onde condenou a União Soviética por não ter rompido relações diplomáticas com o governo brasileiro e pregou “a luta armada, como forma superior de luta”. “Vaidoso, narcisista”, disseram os amigos que o conheceram quando gozava fama de menino-prodígio, que se submetia a testes de conhecimento em programas de rádio no Rio. Recém-chegado do Nordeste, teria pouco mais de dez anos. Reapareceu quinze anos depois, como presidente da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros navais. Teria sido recrutado pela CIA nesse ínterim? As dúvidas são compreensíveis porque o próprio Anselmo, a partir de certo momento, instruído por seus chefes policiais, passou a alimentar contradições sobre sua figura. E a própria imprensa entrou no jogo de versões, fazendo do ex-cabo uma lenda viva.

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depois de ser preso e torturado na primeira metade da década de 1970, após voltar de Cuba (em outubro de 1970) como membro da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), uma das principais organizações da luta armada contra a ditadura. Atribui-se a ele a “entrega” de um aparelho da VPR em Recife, em 1973, quando morreram seis pessoas, inclusive sua mulher, Soledad Barret Viedma, uma paraguaia que conhecera em Cuba. Na polícia paulista passou a fazer parte de um grupo de alcaguetes administrado por um agente chamado Carlos Alberto, que fazia parte da equipe operacional do delegado Sergio Fleury, o qual trabalhava em comunhão com o delegado Romeu Tuma, chefe do setor de informação. Nessa função Anselmo ficou pelo menos dez anos. A partir de meados da década de 1980, não havendo mais militantes armados para dedurar, foi trabalhar numa empresa de corte de madeira para fabricação de papel, no interior paulista. O resto é nebuloso. O primeiro livro sobre ele saiu em 1981, escrito pelo jornalist Marco Aurélio Borba. Em 1984, ele deu uma entrevista ao repórter policial Otávio Ribeiro, o Pena Branca, que a publicou na revista Istoé. Foi quando admitiu que, sem sofrer tortura, tinha decidido trabalhar para o delegado Fleury. Quinze anos depois, em depoimento à revista Época, declarou que foi submetido ao pau-de-arara, por isso aderiu ao trabalho como informante. Numa entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura de 17 de outubro de 2011 – a última de que se tem notícia –, Anselmo apareceu de cabelos brancos e barba de um mês. Bem articulado, não parecia nervoso e apresentava um gestual bastante rico. Alguém o definiu como “um ator”. Outro emendou: “Um ator desde 1964”. Ele riu, bem à vontade e aparentemente seguro.

Anselmo no programa Roda Viva, em 2011: surpreendentemente vivo e falante

Soledad Barret Viedma, assassinada pela repressão, denunciada por Anselmo

A bancada de entrevistadores o alvejou com dezenas de perguntas que ele mal tinha tempo de responder, pois antes de concluir já era cutucado por outra questão. É verdade que ele se esforçava para esticar algumas respostas, sem nunca falar mal de repressores ou esquerdistas. No meio do tiroteio, disse que aderiu à repressão por um misto de conveniência pessoal e convicção política: “Eu queria contribuir para abreviar a insanidade da luta armada”. Foi a frase mais cínica da entrevista, que trouxe à tona outras revelações. No aspecto pessoal, Anselmo revelou que tinha mil páginas escritas sobre sua carreira, e que vivia da “colaboração” de três pessoas que lhe garantem uma vida sossegada, no interior. Não revelou seus nomes, mas deu a entender que uma de suas fontes de HISTÓRIA A Ditadura

renda vem dos direitos autorais do livro escrito em seu nome pelo repórter Percival de Souza. Livro de cujo conteúdo discorda, pois acredita que o jornalista e a editora omanipularam. O importante é que, passado dos 70 anos, ele reivindica o direito à aposentadoria. Aí está o maior problema de José Anselmo dos Santos: embora a Justiça tenha determinado que o Estado de São Paulo emita uma cédula de identidade, o órgão responsável exige que ele apresente sua certidão de nascimento, que não foi encontrada em nenhum lugar, nem na Marinha. Ou, seja, ainda que o Cabo Anselmo seja uma das personagens mais citadas da história da ditadura militar do Brasil, o cidadão José Anselmo dos Santos não tem existência legal.


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