iPOP: A ‘noia’ entre a míngua e a superabundância - Ensaio crítico sobre o espetáculo no tédio cultural e artístico Jorge Augusto dos Santos
e-Working Paper n.º2/2013
ISCTE-IUL – Instituto Universitário de Lisboa | Escola de Sociologia e Políticas Públicas E-mail: jorge.augusto.s@netcabo.pt
“Culture: the cry of men in face of their destiny.” - Albert Camus
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A Pós-Modernidade, que irrompeu a partir de meados dos anos 70 do século XX, trouxe consigo o fim das grandes narrativas e a fragmentação do sujeito na sociedade, que já no início desse século era transversal nas artes (o tema do duplo, por exemplo) e na ciência, nomeadamente na psicologia (Freud). A personalidade do indivíduo desdobrava-se em reconstruções que, paradoxal e simultaneamente, acarretaram a sua hiperindividualização e a (neo) tribalização, perdendo-se no “hipermercado das personalidades” 1. A Modernidade liquidifica-se e gaseifica-se nos emergentes anúncios publicitários que se sucedem vertiginosamente, como os (novos) tempos da Era Pós-Industrial e pós Guerras, em que as marcas (e as culturas) ostentam personalidades não unas. Por sua vez as tecnologias da informação, que emergem na década de 80 desse século, diluem as noções de espaço e de tempo, ao instituirem e facilitarem a instantaneidade e a rapidez comunicacional da rede de pessoas, como sinapses entre os inúmeros neurónios no cérebro humano. A troca de informação, em todo o lado e ao mesmo tempo, provoca exaltação, espalhando-se como vírus e exponenciando a “pluralidade de mundos imaginados”2, criando novas mitografias num mundo cada vez mais interativo, intensificado pela comunicação eletrónica e pelos novos media. As lógicas da sociedade da comunicação de consumo massificam-se, promovendo o surgir de novas formas culturais, mais globais, assim como uma indústria cultural que acarreta a massificação dos próprios objetos artísticos. Mas será que esta homogeneização destrói, por completo, as particularidades culturais e artísticas? Será que o entretenimento provoca, necessariamente, um anestesiamento do sujeito que, passivamente, não participa e deixa de treinar a sua mente para o processo mental de pensar (sobre si próprio e sobre o mundo)? Se por um lado esse treino, como instrumento mental necessário para a avolução do ser humano, enquanto ser pensante, é diminuído e posto em causa – reforçando a lógica da alienação e da unidimensionalidade do Homem -, por outro não se pode concluir que este pessimismo deva tomar conta do futuro do indivíduo. George Steiner em No Castelo do Barba Azul – algumas notas para a redefinição da cultura considera-o um pessimismo “realista e psicologicamente oco”, “neo-estóico ou irónico”3, ao mesmo tempo determinante fator da pós-cultura. Ou de uma contracultura em que já não se acredita na ciência e na milagrosa técnica, “progresso moderno”, enganador que, como Mario Vargas Llosa refere em A Civilização do Espetáculo “tem muitas vezes um preço a pagar”4: o da desumanização das humanidades, “formas secundárias do entretenimento”5. Na melancolia das suas notas finais, este laureado autor deixa evidente a deterioração e banalização da cultura nos tempos paradoxais que se vivem, entre a riqueza do conhecimento (científico e tecnológico) e a desconcertação, atualizando as palavras sábias de T.S. Eliot, que afirmou ter deixado “de ser possível achar consolação no pessimismo profético.” 6
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Professor Pedro Vasconcelos, oratória, aula de Globalização, Arte e Cultura, ISCTE-IUL, 04-03-2013. APPADURAI,2004a:16. 3 STEINER:87. 4 LLOSA:18. 5 LLOSA:193. 6 T. S. Eliot apud STEINER:101. 2
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O semiólogo Umberto Eco disse, na Universidade de Burgos, depois de receber o seu 39º doutoramento honoris causa em História Medieval, no dia 22 de maio de 2013, que “a cultura não está em crise; é crise.”1 A diferença entre a conjugação no presente dos dois verbos (estar e ser) não é diminuta. Não os separam apenas algumas letras mas toda uma verdade intelectual, implícita no pensamento deste reconhecido filósofo da atualidade, que encontra a verdadeira felicidade na inquietude pelo saber e conhecer. “Crise do Modernismo”, chamou-lhe também Alexandre Melo na sua análise sobre o processo de globalização cultural e sobre a época que se seguiu e a que depois se chamou “pós-modernismo, individualismo, pluralismo, ecleticismo, relativismo, globalização e multiculturalismo.”2 Quatro das cinco teses que Vargas Llosa apresenta têm como denominador comum a “crise profunda” da cultura3. T. S. Eliot fala em “decadência” e “falta de cultura”; Steiner do fim da cultura e início da pós-cultura ou “contracultura” (originada e potenciada pelo Holocausto); Guy Debord do “empobrecimento do humano” pela alienação, promovida pela artificial e falsa “civilização do espetáculo”, que o Homem consome, ávido de ilusão; Gilles Lipovestsky e Jean Serroy da desorientação da sociedade que se vira para uma «cultura de massas» com o objetivo da diversão e “evasão fácil” através dos ecrãs da “revolução cibernética”, que restringe a independência do indivíduo, que procura apenas distrair-se. A este mundo ‘moderno’ em que se vive atualmente, refere-se Arjun Appadurai4 como rizomático, esquizofrénico, de alienação, macdonaldização, macdonaldização, americanização e como um sistema de interações, em que a imaginação na vida social tem novo papel. Este autor aponta5 a “tensão entre a homogeneização cultural e heterogeneização cultural” como “o problema no centro das interacções globais de hoje” e que “a complexidade da economia global actual tem a ver com certas disjunturas fundamentais entre economia, cultura, cultura e política”, propondo, para explorar essas disjunturas,
o esquema das cinco paisagens ou dimensões dos atuais fluxos culturais e globais
(SCAPES): etnopaisagens, mediapaisagens, tecnopaisagens, financiopaisagens e ideiopaisagens. Appadurai refere, ainda, a desterritorialização ou o deslocamento como “uma das forças fulcrais do mundo moderno”, “terreno fértil” que aproxima o mundo da ideia de aldeia global, de que falava McLuhan. Mas a globalização pode significar não um processo de uniformização e “supressão das diferenças – segmentação, hierarquização – mas sim de reprodução, reestruturação e sobredeterminação dessas mesmas diferenças”, como refere Alexandre Melo6, para quem o sistema está segmentado entre a geografia física e a geografia da «percepção», afirmando que “a informação sobredetermina a geografia” e que “ao lado dos tradicionais centros e das respectivas áreas de influência, vão emergindo continentes inteiros em que, por sua vez, se revelam novos centros.” O estudo de Lipovestsky e Serroy é apontado, por Llosa, pela perspicácia com que se tenta definir a cultura atual como uma cultura global, “cultura mundo”, que “no contexto da globalização, da mundialização do 1
in http://cultura.elpais.com/cultura/2013/05/23/actualidad/1369333134_264650.html. [Consult. 27-05-2013] MELO,2002:68. 3 LLOSA:12 e ss. 4 APPADURAI,2004b:45 e ss. 5 APPADURAI,2004b:49 e ss. 6 MELO,2001b:124 e ss. 2
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capitalismo e dos mercados e da extraordinária revolução tecnológica”1 se converteu numa “cultura de massas”, sem elitismos, erudições ou exclusividades. Esta redefinição da cultura, com intenção de divertimento, de prazer, é acompanhada pela fácil acessibilidade e evasão que os ecrãs proporcionam, com a ajuda da acelerada revolução e universalização tecnológica e da informação, numa sociedade cada vez mais enleada na rede e na segurança psicológica do indivíduo que se ‘refugia’ nas redes sociais. Porque é que “não se pode conceber uma cultura idêntica para a aristocracia e para o campesinato” e porque é que a alta cultura deve ser “património de uma elite”, como preconiza Vargas Llosa 2, na sua reflexão sobre a definição de alta cultura de T. S. Eliot? Ainda que defenda que a ideia de classe não é rígida mas permeável, por outro lado considera que a literacia educativa destrói a alta cultura e que ao democratizar a própria cultura torna-a mais pobre e “mais superficial”. Ao falar em lealdade para com as classes, as geografias ou a família, relega-se para elas a responsabilidade de construção cultural da personalidade de um indivíduo, esquecendo a sua individualidade. Não querendo diminuir a importância que essas instâncias têm no desenvolvimento do conhecimento de uma pessoa, incluindo o cultural, não se pode ignorar a identidade distintiva. Norbert Elias lembrava3, no final da década de ’80 do século XX - quando 5 mil milhões de indivíduos formavam a humanidade (hoje, no século XXI, são já mais de 7 mil milhões) - que apenas no século anterior se tinham formado os termos «individualismo», «socialismo» e «colectivismo», para separar o inseparável: o indivído da sociedade. Os homens singulares são impotentes em relação à Humanidade e “não existem em sociedade, nem em grupos soltos” mas sim “organizados em associações mais ou menos estáveis”, onde se tem de construir um equilíbrio harmonioso entre o Eu, do Homem e o nós, da Humanidade-Sociedade, a “unidade de sobrevivência englobante”4. Ter-se-á a sociedade do cibermundo, dos tempos «hipermodernos» e «hipermediáticos», rendido à «hiperindividualização» e hiperatrofiada pelo «hipercapitalismo», com a “superabundância de informação e de imagens”, conforme preconizam Lipovetsky e Serroy5? Passará a evolução cultural por subordinar o texto à imagem? A rendição atravessa as novas formas de tribalização da comunicação, em que triunfam e imperam o som e a imagem, em permanente “orgia visual” em que se mergulha, como adverte Alexandre Melo6. Ou como constata Steiner7, ao falar no recuo da palavra, que consequentemente se deteriora progressivamente e se se torna “cada vez mais legenda da imagem”, invertendo-se as “proporções de outrora entre imagem e coluna impressa”. Para satisfazer a procura em massa, a imagem banaliza-se e perde o seu valor ganhando um preço fixado pelo mercado global. Deteriora-se e consome-se, assim, a cultura, conforme teme Llosa, como se esta fosse uma happy meal artística, cuja compra oferece diversão e entretenimento. Ao matar a ‘fome’ de uns, deixa esfomeados outros. Tudo o que a cultura – e consequentemente, a arte - (não) deve ser? 1
LLOSA:24. LLOSA:13. 3 ELIAS: 184. 4 ELIAS: 257. 5 LIPOVETSKI e SERROY:11 e ss. 6 MELO,2002ª:60 e ss. 7 STEINER:115. 2
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“Antes a barbárie do que o tédio!” 1 foi o brado de Théophile Gautier no século XIX. Tédio, ou ennui, no original francês, e que Charles Baudelaire também refere em As Flores do Mal como “fruto de um desinteresse lasso”2, ‘incuriosidade’, inação, entropia, aborrecimento, “ennui corrosivo”, “letargia febril”, noia3, que Steiner evoca nas suas notas. Nelas apresenta a tese de que “certas origens da inumanidade, da crise que obriga hoje a uma redefinição da cultura, devem ser procuradas na longa paz do século XIX e no nó mais denso do tecido complexo da civilização” 4, embora admita numa retrospeção que a tentativa de compreensão é é “parcial e limitada” que “não há resposta adequada para a questão da fragilidade da cultura”5. O filósofo do século XX e XXI aponta para os sintomas que distinguem esses tempos do atual “novo nivelamento”, em que domina “a ideologia do happening e dos artefactos que se autodestroem, com a sua tónica no imediato, na irrepetibilidade e nas condições efémeras de existência da obra” e em que “o público já não é um eco esclarecido do talento do artista, uma entidade que responde à sua actividade singular e a transmite; transformou-se em co-criador num agregado confuso de forças avulsas e participantes” 6. Debord afirmou um dia7 que “o espetáculo é o mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que finalmente não exprime senão o seu desejo de dormir.” Mas quererá a Humanidade ser uma bela adormecida do seu próprio conto de fadas da vida real, num palco mundial em que os atores são a sociedade? Qualquer espetáculo é criado para combater a frustração, alienar o Homem da sua desocupação e da sua ociosidade, com toda a artificialidade e falsidade. Ilusão que conduz à futilização, como preconiza Debord, embora Vargas Llosa o acuse de ser tangente8, relativamente à definição de cultura, encontrando, no entanto, coincidências com a sua própria tese, ou seja, a ideia de que “substituir o viver pelo representar, fazer da vida espectadora de si mesma, implica um empobrecimento do humano” 9. Das teses apresentadas, Vargas Llosa olha para a de Frédéric Martel com um misto de terror e fascínio por ser a única que encara com simpatia a “mutação” da cultura para uma «cultura do entretenimento», ou seja, a substituição da cultura do passado pelo divertimento do grande público, mainstream, cujo fabrico e consumo dos produtos culturais gozam da globalidade mas também da efemeridade. A velocidade de ascensão ao sucesso, dessa produção e/ou dos seus autores, é proporcional àquela com que vertiginosamente descende e desaparece. A menos que o percurso e o reconhecimento do artista e da obra sejam feitos com alguma constância e qualidade, como o da artista plástica Joana Vasconcelos, que vive uma fase ascendente, mas 1
“Plutôt la barbarie que l’ennui”, no original francês, apud STEINER,1992[1971]:21. “[...] L’ennui, fruit de la morne incuriosité”, no original francês, Les Fleurs du Mal, apud STEINER,1992[1971]:20. 3 Tédio, em italiano: “Sensazione di inerzia malinconica e di invincibile fastidio, dovuta perlopiù a insoddisfazione per la monotonia e la mancanza d'interesse della situazione in cui ci si trova” (http://dizionari.corriere.it/dizionario_italiano/N/noia.shtml). [Consult. 27-05-2013] 4 STEINER:19. 5 STEINER:92-93. 6 STEINER:97 e ss. 7 Apud PEIXOTO:106. 8 LLOSA:22. 9 Debord Apud LLOSA:23. 2
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constante, de grande sucesso nacional e internacional, com eventos cujos públicos e agentes já reconheceram. Torna-se, por isso, uma arte globalizante pela dimensão na promoção de uma arte nacional distribuída descentradamente e sem periferias, mas participando em diversos centros artísticos, como Paris ou Veneza. Goza de fama porque, como refere Melo, “um artista contemporâneo famoso é aquele cujos trabalhos, vendedores, compradores, exibidores e comentadores actuam necessariamente num quadro internacional.” 1 Joana Vasconcelos é o exemplo ideal para aqui mostrar uma visão menos negativa ou pessimista do que aquelas apresentadas por Vargas Llosa. Movimentou, por exemplo, milhões de visitantes na exposição em Versailhes (2012), apresenta uma exposição com número recorde de visitantes num palácio nacional (na Ajuda, com mais de 76.000 visitantes em dois meses, desde a estreia a 23 de março de 2013) e com um navio/cacilheiro, o Trafaria Praia, que representa Portugal na Bienal de Veneza (2013), servindo ao mesmo tempo de pavilhão nacional e de obra de arte. Tornou-se, assim, numa vedeta ou star das artes plásticas, através de um percurso exímio, batalhador, tendo conseguido criar uma marca e um culto, fruto também de toda a mediatização em torno desses acontecimentos. A mesma que valoriza e legitima a obra de arte, a artista e, consequentemente, uma faceta mais eclética da arte contemporânea que provavelmente contradiz o elitismo que habitualmente envolve este tipo de objetos e instalações artísticos. Porque, afinal, conseguiu uma comunicação com o público, criando novos segmentos, imaginários, horizontes e gostos no cenário cultural, promovendo o “encontro entre a obra de arte e o consumidor”, como preconizou Pierre Bourdieu 2, sem ignorar ignorar a relação do produtor com outros artistas e agentes culturais envolvidos na produção de uma obra. Bourdieu afima ainda que, por isso, não se pode falar em “estética pura, como o pobre Hauser” uma vez que “o sujeito da obra de arte não é nem um artista singular, causa aparente, nem um grupo social” e que “a sociologia ou a história social nada pode compreender da obra de arte e sobretudo aquilo que faz a sua singularidade, quando toma por objeto um autor e uma obra em estado isolado.” 3 A questão da obra (ou artista) singular levanta, necessariamente, a da reprodutibilidade e raridade, razão que leva Maria de Lurdes Lima dos Santos a refletir especificamente sobre a pop art, a reprodução, a profissionalização do criador, o desenvolvimento de formas de organização dos produtores e a afirmar que “a novidade é uma repetição, um recomeço que se vai reproduzindo.”4 Não se pretende tomar partido desta visão pessimista sobre uma degradação cultural, que condena a autenticidade pela produção e difusão em grande escala (global ou globalizada), partilhada por Llosa e a maior parte dos autores que apresenta no exórdio em análise, da referida obra. Porquê tentar fazer-se, continuamente, distinções entre cultura de massas ou popular e alta cultura ou cultura cultivada, entre a mainstream e a marginal, entre a dominante e a dominada 5, quando, afinal, as linhas de definição de cultura são ténues e estão constantemente em metamorfose? Note-se que não se utilizou o termo evolução, por não estarmos certos disso. 1
MELO,2001b:124. BOURDIEU,2003a:171. 3 BOURDIEU,2003b:220 e ss. 4 SANTOS,1994b:127 e ss. 5 MELO,2002a:62. 2
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A questão pode ser analisada tendo em conta os diversos ângulos que se podem tomar sobre ela. Perante uma observação macro, toda a obra de arte parece uma coisa uniforme. Uma aproximação permitirá ver outras formas. Os detalhes podem distinguir um Seurat de um Ofili1. No entanto, o que realmente distingue estes artistas (e muitos outros) é a ideia, a conceptualização, que se encontra por detrás da obra que se vê. Indepententemente da matéria prima, interessa o que se sente ao longe ou ao perto, com ou sem cheiro. Pode lamentar-se o facto de Vargas Llosa fechar as portas de sua casa a muitas das obras que o aborreceram na última Bienal de Veneza que visitou. Não caberão nessa casa mas provavelmente noutras, uma vez que os critérios sobre a qualificação de uma obra de arte não podeiam ser mais subjetivos. O que não quer dizer, necessariamente, que não seja. Talvez se tenha de esperar alguns anos ou séculos até que se compreenda! A ‘caca’, na obra de arte, não é sempre a mesma nem o serão, com certeza, as moscas que gravitam à sua volta, com ou sem centros ou periferias neste mundo tão complexo. Seja qual for o menu, mais a la carte ou mais fast, o aumento de diversidade, apenas será mau quando se verifica uma perda, por exemplo no/do património cultural. Numa época em que tudo aparentemente pode ser arte e em que tudo é ou pode ser questionado, é urgente a contínua reflexão sobre as incertezas que pairam e assombram o universo cultural, com o cuidado de nunca se concluir ou aprisionar a questão em conceitos estanques. O fácil e o divertido não têm necessariamente de estar dissociados da cultura. Partindo do pressuposto generalizado de que nada se cria, antes se recria ou transforma o que já se criou, as novas ou renovadas interpretações não deixam de ser, elas próprias, novas linguagens e formas de comunicação através da arte. Stneiner afirmava que “a democratização da alta cultura – causada por uma crise interna à própria cultura e por transformações revolucionárias da sociedade – engendrou um híbrido absurdo. Lançados no mercado, os produtos da formação cultural clássica diluem-se e degradam-se. No extremo oposto do espectro, esses mesmos produtos são arrancados à vida e postos ao abrido das paredes dos museus.”2
Por outro lado tem de se ter em conta que o ser humano gosta e/ou precisa de seguir as modas. As redes sociais, como o Facebook, por exemplo, embora seja um sucesso de sociabilização, como tudo verá o seu fim ou, mais propriamente, a sua substituição por outras formas que melhor se adaptem às necessidades de se comunicar com o(s) outro(s). Embora por vezes pareça que este processo evolua no sentido inverso, ou seja, as tecnologias guiam – não seguem - as comunicações. A publicidade e a propaganda nem sempre se assumem como tal, mas como uma difusão (viral) que ganha vida própria e publicita (ou promove) um objeto ou uma ideia. O aparecimento de novos media, que se expandem e fazem emergir, naturalmente, uma nova culturamundo, promovem simultaneamente a hiper-modernidade e o impacto das redes digitais no consumismo tornase ainda mais evidente. Eles também ditam as modas e criam públicos de uma exposição de grande sucesso 1
George Seurat (1859-1891), pintor francês conhecido pela técnica (pioneira) do pontilhismo; Chris Ofili (n.1968), artista britânico conhecido pelos quadros em que utiliza excrementos de elefante, referido por Llosa no post-capítulo Antecedentes – Pedra de Toque, Caca de elefante, LLOSA:55 e ss. 2 STEINER:114.
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mediático que, por causa disso, chama a si mais visitantes, exponenciando ciclicamente o processo. Pode concordar-se, ou não, que essa «cultura-mundo» torna o indivíduo submisso, privado da “lucidez e livrearbítrio”. Ainda que por “mero snobismo” 1 se crie uma «alta cultura», podemos acreditar que esta pode conduzir a uma literacia, provocada por essa dinamização cultural, embora se possa admitir ser demasiado turística. Quanto ao humanismo e futuro da Humanidade, na data em que se elabora este ensaio, um milionário russo, Dmitry Itskov, anuncia o Projeto Avatar, que “abre o caminho para a imortalidade" 2, ou seja, um “prolongamento da vida humana através das tecnologias cibernéticas”, suportado por alguns prestigiados cientistas3. O empresário, presidente de uma empresa dedicada aos media online, apresenta uma janela para uma neo-Humanidade, “baseada em cinco princípios: elevada espiritualidade, cultura, ética, conhecimento científico e tecnologia”4. Este é o passo consequente da evolução do homem, que se prevê estar a ‘funcionar’ plenamente até ao final da primeira metade do século atual. Seria desta desumanizada Humanidade a que Vargas Llosa, implicitamente, no seu ensaio/tese se referia? Ou será esta a capacidade do “efeito de espelho” apontada por Norbert Elias em “Transformações do equilíbrio nós-eu”? Ou seja, conseguião os homens, com esta sua capacidade de se projetarem, de “sairem conscientemente de si próprios e para se encararem enquanto existência, na segunda e na terceira pessoa” 5 como nenhum outro ser vivo -, construir um mundo mais humano e mais cultural? █ [20.213 carateres com espaços; sem notas de rodapé.]
“E posso ficar pior ainda: o pior não vem enquanto pudermos dizer É isto o pior.”6
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Lipovetski e Serroy Apud LLOSA:26. Apud http://expresso.sapo.pt/milionario-russo-descobre-como-se-tornar-imortal=f809964 [consult. 29-05-2013]
Especialistas em interfaces neuronais, robótica, orgãos artificiais e sistemas.
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http://expresso.sapo.pt/milionario-russo-descobre-como-se-tornar-imortal=f809964 [consult. 29-05-2013] ELIAS:212. 6 Edgar em O Rei Lear, de William Shakespeare: “And worse I may be yet: the worst is not/ So long as we can say This is the worst.” 5
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BIBLIOGRAFIA CITADA APPADURAI, Arjun (2004a) - “1. Aqui e agora” [excerto], ”, em Dimensões culturais da globalização: A modernidade sem peias, Lisboa, Teorema, pp.11-30. APPADURAI, Arjun (2004b) - “2. Disjuntura e diferença na economia cultural global”, em Dimensões culturais da globalização: A modernidade sem peias, Lisboa, Teorema, pp.43-70. BOURDIEAU, Pierre (2003a) - “A metamorfose dos gostos”, em Questões de Sociologia, Lisboa, Fim de século, pp.169-180. BOURDIEAU, Pierre (2003b) - “Mas quem criou os ‘criadores’?”, em Questões de Sociologia, Lisboa, Fim de século, pp.217-231. CONDE, Idalina (2001) - “Prefácio: o sistema, o campo e o mundo – paradigmas na sociologia da arte, em A. Melo (2001), Arte, Lisboa, Quimera, pp.13-26. COSTA, António Firmino da (1997) - “Políticas culturais: conceitos e perspectivas”, em OBS, 2, pp.10-14. ELIAS, Norbert (2004) - “III. Transformações do equilíbrio Nós-Eu (1987)”, em A sociedade dos indivíduos, Lisboa, Dom Quixote, pp.173-258. LIPOVETSKI, Giles e jean SERROY (2010) - “Introdução”, em A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada, Lisboa, Edições 70, pp.11-37. LLOSA, Mario Vargas (2013) – A Civilização do Espetáculo, 2ª edição, Lisboa, Quetzal Editores.MELO,
Alexandre (1997), “Política cultural: acção ou omissão”, OBS, 2, pp.8-10. MELO, Alexandre (2001a) - Arte, Lisboa, Quimera, pp.29-52. MELO, Alexandre (2001b) - “Terceira Parte: uma caracterização global”, em Arte, Lisboa, Quimera, pp.119152. MELO, Alexandre (2002a) - “Capítulo 2. Dimensões culturais da globalização”, em Globalização cultural, Lisboa, Quimera, pp.41-86. MELO, Alexandre (2002b) - “Capítulo 3. geografias do poder no sistema das artes” [excerto], em Globalização cultural, Lisboa, Quimera, pp.87-122. PEIXOTO, Fernando (2007) - Técnica e estética na publicidade, Lisboa, Edições Sílabo. PINTO, José Madureira (1997) - “Democratização e desenvolvimento cultural sustentado: o papel do estado”, em OBS, 1, pp.4-7. RIBEIRO, António Pinto (1998) - “A cultura em Portugal no final do século: entre a abundância e a miséria”, em OBS, 3, pp.4-6. SANTOS, Maria de Lurdes Lima dos (1994a) - “I. Questionamento à volta de três noções (a grande cultura, a cultura popular, a cultura de massas)”, em A. Melo (org.) (1994), Arte e Dinheiro, Lisboa, Assírio & Alvim, pp. 101-120. SANTOS, Maria de Lurdes Lima dos (1994b) - “II. reprodutibilidade/Raridade: o jogo dos contrários na reprodução cultural”, em A. Melo (org.) (1994), Arte e Dinheiro, Lisboa, Assírio & Alvim, pp. 121-134. STEINER, George (1992[1971]) - No Castelo do Barba Azul – algumas notas para a redefinição da cultura, tradução de Miguel Serras Pereira, Lisboa, Relógio D’Água.
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WEBGRAFIA __“La cultura no está en crisis; es crisis” [Em linha] El País – Entrevista a Umberto Eco, 23-05-2013 [Consult. 29-05-2013]. Disponível na Internet em <URL: http://cultura.elpais.com/cultura/2013/05/23/actualidad/1369333134_264650.html >. __“McDonald's 'Italianised' menu: the future of fast food?” [Em linha] The Guardian – Life & Style [Consult. 31-05-2013]. Disponível na Internet em <URL: http://www.guardian.co.uk/lifeandstyle/wordofmouth/2013/may/27/mcdonalds-italianised-menu-futurefast-food >. __“Milionário russo 'descobre' como se tornar imortal” [Em linha] Expresso Online - Sociedade [Consult. 2905-2013]. Disponível na Internet em <URL: http://expresso.sapo.pt/milionario-russo-descobre-como-setornar-imortal=f809964 >.
CRÉDITO DE IMAGENS ►Design, edição de imagem, composição gráfica e de texto de Jorge Augusto dos Santos, com base em fotografia da obra Carnaby (2011) de Joana Vasconcelos. [Em linha]. Joana Vasconcelos. [Consult. 04-04-2013]. Disponível na Internet: < URL: http://www.joanavasconcelos.com >. CAPA
LAY-OUT, PAGINAÇÃO E FORMATAÇÃO:
Jorge Augusto dos Santos. < URL: http://www.jorgeaugusto.eu >.
NOTAS FINAIS Neste trabalho foi utilizada a nova grafia do português, exceto nas transcrições e citações, em que se manteve a grafia original. Nas referências bibliográficas utilizou-se as “Normas de Formatação e Apresentação Gráfica da Dissertação ou Trabalho de Projecto de Mestrado e da Tese de Doutoramento”, aprovadas pela Comissão Científica Permanente da Escola de Sociologia e Políticas Públicas (ESPP), em 17.11.2010.
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