Um «Velho Media» Em Estado Novo - Cinema, Propaganda, Comunicação e Sociedade em atualidade(s)”

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Um “velho media” em Estado Novo: Cinema, Publicidade, Comunicação e Sociedade em Atualidades Jorge Augusto dos Santos (#62214)

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Docente: Rita Espanha | Teorias em Media e Comunicação Mestrado em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação


UM “VELHO MEDIA” EM ESTADO NOVO Cinema, Propaganda, Comunicação e Sociedade em atualidade(s) Jorge Augusto dos Santos

e-Working Paper n.º2/2012

ISCTE-IUL – Instituto Universitário de Lisboa | Escola de Sociologia e Políticas Públicas E-mail: jorge.augusto.s@netcabo.pt


RESUMO O cinema português, particularmente o criado na época ditatorial do Estado Novo, serve de objeto ao tema em estudo, sobre persuasão, especificamente na sua forma de propaganda política, enquanto envolvimento da/na sociedade. O ensaio divide-se em duas partes: na primeira, analisam-se os golpes desse meio de comunicação, sobretudo através do género comédia à portuguesa e documentários ou docu-ficção nacional, incluindo uma análise semiótica e mítica a um filme percursor do género, A Canção de Lisboa (1933), de Cotinelli Telmo, por forma a ilustrar o poder das imagens no cinema e o poder do imaginário criado pela obra cinematográfica; a segunda parte é dedicada a uma breve incursão histórica sobre a cinematografia portuguesa, desde o Cinema Novo até ao virar do século, de forma a efetuar uma atualização devidamente contextualizada, do fenómeno da publicidade através da sétima arte, concluindo com uma análise crítica sobre a publicidade na teia de complexos conceitos da Era das Informação em Rede e dos novos media. PALAVRAS-CHAVE: cinema português, propaganda política, Estado Novo, persuasão, publicidade, semiótica, mitologia, imaginário coletivo e individual, narcisismo e novos media.

ABSTRACT The guideline for this paper is the portuguese cinema, particularly the one created during the ditactorship of the so called Estado Novo, specifically its political propaganda form and its role in/from society. The essay is divided in two main parts: first we analyse the stroke of that medium, mainly through the comédia à portuguesa (portuguese comedy) genre and national documentaries or docu-fiction movies, including semiotic and mythical analysis of a genre precursor, A Canção de Lisboa (1933) – The Song from Lisbon -, by Cotinelli Telmo, in order to illustrate the power of images in cinema and the power of imagination created by the cinematographic work; in the second part, after a brief historical excursion on Portuguese cinematography, from the Cinema Novo (New Cinema) to the turning century, in order to perform an upgrade, properly contextualized, of the phenomenon of advertising through the seventh art, the work concludes with a critical analysis of advertising in the web of complex concepts of the Age of Network Information and new media. KEY-WORDS: Portuguese cinema, political propaganda, Estado Novo, persuasion, advertising, semiotics, mythology, individual and collective imagination, narcissism and new media.


Um “velho media” em Estado Novo: Cinema, Publicidade, Comunicação e Sociedade em Atualidade(s)

“A mentira é a única verdade dos artistas.” - António Ferro1

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INTRODUÇÃO «Propaganda», do latim propagare, significa o “acto de espalhar sementes pela terra para fazer novas plantas.”2 A expressão nasceu em 1633 quando o papa Urbano VIII decidiu criar uma comissão (Congregatio de Propaganda Fide, ou seja, Congregação da Propaganda), associada, portanto, à religião e à divulgação (para o crescimento) da fé, mas depois apropriada por outras causas, para persuasão em forma maciça. Aquela utilizada pela comunicação de massas, durante a Primeira Guerra Mundial, por exemplo, manipulou os factos e logo os profissionais da comunicação (os primeiros comunicólogos que se debruçaram sobre o assunto) concluíram que os efeitos produzidos eram determinados pelos estímulos difundidos. A mensagem transformava numa massa homogénea, quase robótica, de ‘mortos-vivos’, todos aqueles que lessem ou ouvissem uma mensagem. Estava criada a primeira teoria das balas mágicas, que se popularizou a partir de 1920, exatamente quando irrompe, nos Estados Unidos, o cinema. Este, por sua vez, iria assimilar e assumir o papel influenciador de atitudes e comportamentos, de estimulador de emoções, de apresentação de padrões morais e de alteração da realidade. Por isso foi visto como perturbador da educação, acusado mesmo de ser subversivo e maquiavélico. Quando Eisenstein viu o filme de John Ford, Young Mr. Lincoln (1939), - um dos poucos filmes americanos então distribuídos na União Soviética - escreveu3 (em jeito de confissão elogiosa?) que “[...] há filmes mais sumptuosos e mais ricos [...] mais divertidos e mais cativantes, [...] há mesmo filmes mais comoventes na obra de Ford [...] e, no entanto, de todos os filmes realizados era este que eu gostaria de ter feito”. O que é que cativa, então, no cinema, senão ‘apenas’ a sumptuosidade, a riqueza, a diversão ou a comoção? Para André Bazin4 o cinema é a arte da realidade, depende e regista desta a “espacialidade dos objectos e o espaço por eles ocupado”. O real, por si só, tem a sua validade estética, sem necessidade de alteração, de estilos ou de demasiada técnica. Mas isto levanta a questão da plasticidade da imagem. Por mais artificial que seja o mundo que o cinema deseja transmitir, tem de existir um denominador comum com a vida real para que possamos - como espetadores dessa imagem fechada entre quatro segmentos de recta (vulgo ecrã ou tela) - admitir essa realidade (outra), que a fotografia potenciou e que o cinema desenvolveu. O crítico de cinema Roberto Nobre afirmou 5 que “o cinema não é uma arte plástica, no sentido decorativo do termo. É sim uma arte que se expressa por meios plásticos, mas, antes de mais nada, uma sensibilidade a realizar-se e portanto não apenas exterior.” Seria redutor afirmar que o cinema é como a fotografia, embora se admita que essa outra arte está na sua origem. Continua Nobre que “para compreender imagens não é necessário, evidentemente, aprender a ler, basta olhar. Mas entender o que significam, se elas exprimem intenções elevadas ou complexas, necessita o mesmo grau de cultura que as artes literárias.” As sombras no rosto de Lincoln, no filme de Ford, ou o balão vermelho e vivo (depois morto), no de Lamorisse, provocam uma reação no espetador. É talvez aí que residem os índices de realidade que um filme contém. Os cientistas sociais confirmaram o imenso poder dos meios de comunicação de massas, embora a mensagem não chegue a toda a gente da mesma forma. Ou seja, a massa não é homogénia e não há dúvida sobre o seu poder persuasivo. Mas o que está por trás da decisão e da opção das pessoas? O que as leva a reagir de determinada forma e não de outra? Qual é, então, o poder dos meios de comunicação? Estas questões impulsionaram o estudo do judeu austríaco Paul Lazarsfeld, sobre as eleições presidenciais dos Estados Unidos, em 1940, num período de guerra que previa tempos ainda mais difíceis. Os inquéritos 1

Apud PITA:44. SANTOS:15. 3 Apud COSTA,1977:132. 4 ANDREW:115-SS. 5 NOBRE:23. 2

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aplicados aos eleitores revelaram que as pessoas eram influenciadas por outras pessoas, substituindo o modelo da teoria anterior (das balas mágicas). As teorias continuaram a ser atualizadas ao longo do tempo. Para se compreender os efeitos que qualquer comunicação provoca, é necessário conhecê-la na sua globalidade e admitir que ela é intencional e que se destina a obter efeitos, ou seja, a manipular. A fórmula de Harold Lasswell, de 1948, marcou os estudos da comunicação e aplica-se no processo da propaganda, ao pressupôr o estudo e análise de cada uma das dimensões do processo comunicativo: Quem diz o quê, em que canal, a quem e com que efeito. José Rodrigues dos Santos 1 afirma que “numa situação de guerra, as populações acreditam na propaganda não porque alguém quer que elas acreditem mas porque elas próprias querem acreditar. Contudo, esse é claramente um comportamento típico de uma lógica de crise e de uma situação de excepção”, ou seja, noutro contexto espacial, temporal e noutras condições sociais, políticas e, até, religiosas, os modelos não se aplicam linearmente nem se podem tomar como certos os efeitos da comunicação social. Daí que ela tenha passado a ser encarada como um dos fatores que contribuem para a formação da opinião, pelos chamados “Estudos de Persuasão”. O cinema português, particularmente aquele realizado na época ditatorial do Estado Novo, serve de objeto ao tema em estudo, sobre persuasão, especificamente na sua forma de propaganda política, enquanto envolvimento da/na sociedade. Será abordado nas próximas páginas em duas partes: na primeira, analisam-se os golpes desse meio de comunicação, sobretudo através do género comédia à portuguesa e documentários ou docu-ficção nacional, incluindo uma análise semiótica e mítica a um filme percursor do género, A Canção de Lisboa (1933), de Cotinelli Telmo, por forma a ilustrar o poder das imagens no cinema e o poder do imaginário criado pela obra cinematográfica; A segunda parte é dedicada a uma breve incursão histórica sobre a cinematografia portuguesa, desde o Cinema Novo até ao virar do século, de forma a efetuar uma atualização devidamente contextualizada, do fenómeno da publicidade através da sétima arte, na Era da Informação em Rede, através da teia de complexos conceitos, que aqui se tenta descomplicar sem, contudo, se desvendar ou concluir.

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CINEMA, PROPAGADOR DE MENSAGENS (E OUTRAS ‘CANTIGAS’) Golpes de propaganda política no cinema, em Portugal: um ‘velho’ media num Estado Novo? Ainda a I República portuguesa dava os primeiros passos quando, de uma golpada, a ditadura se impõe a partir de 1926, estendendo-se por longas dezenas de anos, até meados da década de 70. Assistia-se ao crescimento exponencial da população e à diminuição da emigração 2, durante a vigência de um regime fascista e da censura, que iria influenciar as artes, castrando-as, modelando-as e/ou apoiando-as, para bem da Nação. O cinema não foi exceção. “Não façais comentários de mau gosto sobre os personagens do filme ou qualquer das suas passagens”3 é o quinto dos 10 mandamentos do espetador de cinema, publicados na revista Invicta, nº40, em 1928. Eles espelham bem a ordem que se desejava impôr na vida portuguesa, nas artes e, neste caso em particular, no cinema. Visto como uma arte cara, era no entanto um veículo ideal para propagar a política do Estado Novo e promover o seu lema: “Deus, Pátria e Família”. Desde finais dos anos 20 que a ExtremaDireita ganhara destaque e em pouco tempo Oliveira Salazar representava a política de Óscar Carmona, chefiando o seu Governo nas Finanças, inicialmente, e depois noutros assuntos políticos e militares.

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SANTOS:37. MARQUES:665. 3 Apud QUEIROZ:78. 2

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Segundo o cineasta do regime António Lopes Ribeiro1, «Salazar era um cinéfilo [... que] não tinha tempo para ver os filmes estrangeiros, mas os portugueses viu-os todos.» Embora seja questionável a sua sensibilidade estética relativamente ao cinema, ele entendeu-o como uma forma fundamental de difusão de ideias e, por isso, o Estado Novo utilizou-o habilmente e de forma moderna na propaganda. Além destes, por detrás de Salazar estavam forças de grande poder, como a banca, mas também António Ferro, jornalista e escritor que foi também cinéfilo, um espírito intelectual modernista, multifacetado e viajado que, no início da década de 30, já num Estado autoritário e corporativo, estará à frente do Secretariado de Propaganda Nacional, criado em 1933. Esta opção política mostra que afinal Salazar, “apesar do seu tão decantado ruralismo, soube entender as virtudes «públicas» ou «políticas», dos meios de comunicação, antigos e modernos, como a literatura, o panfleto, o cinema ou a rádio, que pôs a funcionar, de forma regular, em 1935.”2 O cinema foi um importante e indispensável instrumento de propaganda, mas também de educação, durante o regime salazarista, que encontrou neste meio de comunicação e nesta forma de arte, um veículo e uma ‘arma’ para o seu discurso, tendo criado, em 1932 uma Comissão do Cinema Educativo. Informativo e formativo, portanto, tomava a si o poder de propagar as mensagens marxistas, leninistas e estalinistas, seguindo o exemplo de Sergei Eisenstein, que na União Soviética ‘inventou’ esta forma de comunicação. O objetivo era engrandecer e divulgar as obras públicas e os atos cívicos, políticos e culturais de Salazar, explorados pelos cineastas do regime (António Lopes Ribeiro e Leitão de Barros) quer nos documentários (como Exposição Histórica da Ocupação (1937), As Festas do Duplo Centenário (1940), Inauguração do Estádio Nacional (1944) ou A Morte e a Vida do Engenheiro Duarte Pacheco (1944), por exemplo), quer nas obras de ficção (como Gado Bravo (1934), de Lopes Ribeiro, As Pupilas do Senhor Reitor (1935), de Leitão de Barros). Ou no teor historicista, como Camões (1946), de Barros, que celebra a história de Portugal, um dos valores muito queridos da ideologia de moral da década de trinta até à de cinquenta. Os filmes de propaganda política forjavam a realidade do país e a sua imagem ideal. No entanto, os filmes referidos anteriormente não são assumidamente de propaganda. Nesta categoria incluem-se A Revolução de Maio (1937) e Feitiço do Império (1940), ambos de Lopes Ribeiro que, na senda de Eisenstein (que admirava) e como admirador do cinema alemão e italiano, tinha consciência do papel do cinema como um meio que cumpria esse objetivo. Relativamente ao primeiro, um verdadeiro filme oficial, que exalta a nação, foi patrocinado pelo SPN, entre outras entidades estatais. O realizador teve o objetivo de, com esta obra de ficção, “servir o cinema português [...], servir o público português [...], servir a propaganda de Portugal [...] e servir a política de Salazar”3. Numa cena final do filme, aparecem Salazar e Carmona, a celebrar o X aniversário da “Revolução Nacional” (numa grande manifestação de propaganda), em 26 de maio de 1936, em Braga. Ao mesmo tempo, tenta converter-se a nação ao regime e convencer, por exemplo, que a taxa de desemprego é uma das mais baixas da Europa. O segundo, Feitiço do Império, também mistura a realidade com a ficção em forma de documentário, com os mesmos objetivos de conversão às virtudes da nação e do Império Português, num ano que foi também grandioso na dupla comemoração, de 1940. Já na década anterior haviam sido produzidos diversos documentários que divulgavam as colónias portuguesas e a vida dos seus habitantes. Como refere Luís Reis Torgal4, em “Propaganda, Ideologia e Cinema no Estado Novo – a «conversão dos descrentes»”, nestas duas películas, existe

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Apud TORGAL:34. TORGAL:35. 3 Apud TORGAL:72. 4 TORGAL:90. 2

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[...] como em todo o acto de propaganda – independentemente, por um lado, da qualidade técnica e estética dos filmes, e, por outro lado, bem diferente, da sua aceitação pública, ou seja, da sua eficácia -, uma intenção militante, deliberada e metodicamente pensada, para fazer reproduzir uma ideologia única, uma ideologia de Estado.

Esta ideologia encontra-se muito viva nos filmes de teor histórico e no documentário, mas menos nos de ficção. A difusão de ideais revolucionários marxistas regressará às telas ou à televisão, sob a forma de propaganda, já depois da Revolução dos Cravos (1974). Antes disso, no documentarismo português o discurso político contém evocações da História e do seu turismo – folclore, imagens rurais, locais históricos, etc. O documentário mais paradigmático deste discurso é a curta-metragem A Nossa Terra. A Aldeia mais Portuguesa de Portugal (1938), de Lopes Ribeiro, contendo uma mensagem (em off) clara: “Portugal é uma cantiga sem fim onde palpita a alma de suas regiões.” 1 Nos documentários encontram-se os feitos e empreendimentos do regime (escolas, estradas, etc.) e as demonstrações de apoio pelos populares, como na curta-metragem Manifestação de agradecimento a Salazar (1945), na qual a multidão agradece por Portugal não ter participado na Segunda Grande Guerra. O cinema encontrou formas de fazer campanha, como a registada no documentário Campanha Eleitoral de 1949, de Lopes Ribeiro, com o objetivo de engrandecer o regime e a figura do presidente do Conselho. Tentava manter-se a imagem do regime, ao mesmo tempo que a imagem pública de Salazar era também alvo de muito cuidado, apesar deste tentar parecer despreocupado sobre o assunto. Assiste-se ao poder do cinema e da imagem, enfim, da comunicação e da publicidade, ao serviço de uma figura pública e política, mas também de um Estado e de um país, que via nele uma figura exemplar. As obras cinematográficas perpetuaram o homem, a sua obra e a vida de uma nação. ‘Cantigas’ propagandísticas ou entretenimento político? Embora Ferro não fosse (nada) fã da comédia 2, em 1933 estreia A canção de Lisboa, de Cotinelli Telmo, que, naquele género à portuguesa, seria considerado o modelo dos filmes dessa década e da seguinte. Teatro de revista (e)levado ao cinema! O filme ainda hoje provoca discussão e debate, entre sorrisos de uns e desdém de outros, cinéfilos e eruditos ou populares e não-entendidos. Seria, portanto, redutor e inútil tentar definir a própria Arte para instruir sobre o seu entendimento. Podem imaginar-se as emoções e a conotação do sorriso de quem assistia às sessões, recorrendo à historiografia e à cinematografia dos anos 30 em Portugal, particularmente na capital. Naquela época ir ao cinema era um acontecimento ainda mais social e espetacular do que hoje, um dos poucos locais onde os dois sexos podiam encontrar-se em público e onde se podia escapar ao triste e sufocante quotidiano. Por isso, gerava grande azáfama, que algumas regras conservadoras tentavam acalmar. Aplaudido ou criticado, com audácia Cottinelli Telmo deu, com este consagrado filme, um passo confiante na sétima arte, popularizando e criando um estilo que seria – bem ou mal – copiado por uns, e criticado por outros tantos. Incluindo Chianca de Garcia 3 ou Alves Costa4, que com boas intenções considera o filme “limitado”, uma “farsa impessoal”, sem qualquer outro objetivo que não fosse o sucesso comercial através do riso ou, ainda, “pouco cinematográfico” em algumas cenas, um “defeito grave” que se pode encarar como uma interessante transposição (no texto e nos sketches) do género teatral (de revista) para a tela. Embora se tenha ficado por esta realização cinematográfica, o arquiteto do regime, ainda inexperiente, foi virtuoso em muitas cenas que continuam a marcar uma época. A sua visão invulgar e arquitetural mostra também a sua excelência. Não se sabe ao certo se o filme terá sofrido a influência da indústria, mas, ainda 1

«Guimarães, as festas gualterianas», in jornal Português, nº 63, novembro de 1946, Apud Paulo:109. “[...] considerava a comédia o «cancro do cinema português»”, sendo para ele filmes “grosseiros, reles e vulgares” (António Ferro Apud GRANJA:196) 3 “[...] todos os filmes portugueses são iguais. Iguais ao primeiro modelo que já era errado: A Canção de Lisboa.” (Chianca de Garcia Apud GRANJA:196). Apesar de Chianca estar indicado – embora não creditado! - na colaboração e argumento do filme que refere. (ROSA:18) 4 COSTA:49. 2

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que condicionado à ideologia de então, foi ao encontro do gosto de um público que tinha consciência de estar a ser enganado com uma realidade que não era a sua. Afinal, não é esse o motivo que leva, ainda hoje, o público ao cinema (e a outras formas de arte)? É certo que o realizador optou por esconder a realidade espacial, temporal e social, como afirma Paulo Jorge Granja1. É esta, aliás, uma das caraterísticas do género a que se convencionou chamar comédia à portuguesa e que, segundo Granja, condena “o desejo de ascensão social por parte da pequena e média burguesia.” A população revia-se nas personagens e nos bilhetes postais da cidade em que (ainda) havia touradas, ria-se dos gags dos quadros revisteiros e queria-se feliz, numa ordem idílica2, que só o cinema potenciava, mas que as desviava da realidade. Análise semiótica: o poder das (nas) imagens Por isso o filme A canção de Lisboa foge do tempo e do espaço, encontrando a sua principal mensagem subtil e subliminar, que o aproxima do seu tempo em breves momentos, por exemplo no letreiro com o dizer “Estado Novo” (Fig.1), que é pendurado pelo calão, fajuto doutor, brincalhão e desordeiro Vasco (Vasco Santana) na velha cliente do alfaiate Caetano (António Silva), aludindo em sentido duplo ao regime. O poder ‘camufla-se’ noutras formas: no ensino (os professores da Universidade de Medicina 3); no poder paternal (o das tias ou o do pai Caetano sobre Alice (Beatriz Costa), a filha sonhadora: a família como meio de estabilidade social); no poder patronal (a autoridade do patrão Caetano sobre as empregadas costureiras, condenando a preguiça e a negligência da classe operária, mas sem consciencializar direitos, reinvindicações ou melhores condições de vida); no poder institucional (a imposição da vontade e dos interesses do presidente Caetano, na eleição fantochada da Miss Castelinho na Academia Recreativa); ou, ainda, através da presença recorrente da marcha ordeira, que estabelece e exibe modelos de comportamento a seguir (como a dos marchantes felizes, em festa, que mostram terem aprendido a lição do conformismo, dando o exemplo à população que assiste ao filme no cinema). A delinquência existe no centro da cidade e não no recato do bairro onde vivem as personagens. Este filme é reflexo do modelo do Estado atuante contra as reinvidicações da classe dos trabalhadores, proibídos de fazer greve, mas atua na própria arte, ao mostrar-se contra comportamentos desviantes de cineastas. Vigilante, portanto, como outras formas culturais, embora não se possa considerar que o cinema estivesse verdadeiramente “preso ao Estado Novo do ponto de vista institucional.”4 Acredita-se que, por causa das orientações (ou castrações) políticas, o cinema tenha ficado preso a fórmulas brejeiras de comédia, sem margem para evolução. Entende-se a crítica, pois terá levado à estagnação da arte. No entanto, enquanto fez rir muitas gerações e criado ricas tradições 5, o cinema ‘coloriu’ a triste vida dos anos 30 com vida, cativantes cantigas e o seu universo de “comediantes, homens e mulheres de grandes dotes [...] que se entregam à composição de retratos célebres e instantâneos de uma cidade lisboeta irónica, mas invariavelmente confiante e estereotipada.”6 Análise mítica: o poder do imaginário Não é o passado literal que nos governa, excepto, talvez, numa acepção biológica. São as imagens do passado: com frequência tão intensamente estruturadas e tão imperativas como os mitos. As imagens e as construções simbólicas do passado encontram-se impressas, quase à maneira de informações genéticas, na nossa sensibilidade. Cada época histórica contempla-se no quadro e na mitologia activa do seu próprio passado, ou de um passado tomado de empréstimo a outras culturas. 7

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GRANJA:202. Note-se a cena do casamento, filmada na romântica Sintra, ou a ausência de classes marginais. 3 Os professores, filmados num plano inferior, torna-os superiores ao aluno (Vasco), demarcando a hierarquia. 4 TORGAL:36. 5 Como as tão lisboetas marchas populares, por exemplo. 6 GRILO:16. 7 STEINER:13. 2

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A herança cinematográfica fica retida num imaginário coletivo e numa memória individual que, entrelaçados na aprendizagem através de diversos media (como a televisão, revistas, livros, por exemplo) formam as histórias pessoais e a História de uma nação e da sociedade, até à contemporaneidade. Ou seja, “[...] cada metro de filme produzido no passado pode conter informações valiosas a respeito da visão que cada um de nós pode possuir da história que já vivemos.”1 A sociedade espelha reações diversas provocadas pelos filmes documentais. Inicialmente, estes eram de curta duração e tinham a missão (jornalística) de transmitir e divulgar novidades e importantes eventos sociais, complementando a informação de jornais, de revistas e da rádio. Mas pelo poder que ao longo do tempo foi demonstrando, passou a assumir um papel de maior relevo e de maior independência relativamente aos restantes meios de comunicação, crescendo o bastante para se tornar um poderoso meio de propaganda, inicialmente turística e depois política (embora não se possa, efetivamente, separar uma intenção da outra). O cinema desviava as atenções da realidade, funcionando como um “sistema de controlo social”2, em representações de poder rececionadas através de um ecrã, em histórias de “Era uma vez...”. Por exemplo, o filme A Menina da Rádio (1944), de Arthur Duarte, inicia assim: “Esta História começa no tempo em que ainda havia bolos nas pastelarias...” (Fig.2)). Ele recria a realidade, corpos, pessoas, mas cria, ao mesmo tempo, relações que encontram na experiência do cinema a forma determinante de comportamentos princípios e valores. Cada espetador encontra uma correspondência entre o seu olhar e uma realidadeficcional que toma como sua. Assim, este meio de comunicação é um catalizador de mudanças, promovendoas ou prevenindo-as. Como indica Frederico Nuno Vicente Lopes 3, em “Representações do poder no filme matriz da «comédia à portuguesa»”, ele pode influenciar os espectadores de modo a perceberem os interesses do poder como se fossem os seus próprios interesses. [...] No cinema narrativo, as personagens, através dos seus actos, encontram-se constantemente envolvidas em relações e, na maior parte dos casos, em relações de poder, tal como acontece na vida social, em cada dia.

As formas de poder apropriam-se dele para estabelecer uma cumplicidade com as relações humanas. Bourdieu4 refere o poder simbólico, como “esse poder invisível que só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”. Esse poder e o conflito entre classes sociais, o retrocesso nas emancipações feminina, social e económica, o condenável desvio de comportamentos, imposição (e obsessão) pela ordem, encontram-se, como se viu, no filme A Canção de Lisboa, mas também noutros filmes desse género, como Aldeia da Roupa Branca (1938), de Chianca de Garcia, O Pai Tirano (1941), de Lopes Ribeiro, O Pátio das Cantigas (1942), de Francisco Ribeiro, O Costa do Castelo (1943), O Leão da Estrela (1947) ou O Grande Elias (1950), de Arthur Duarte, entre outros. A ideologia assenta num conformismo absoluto através do humor, que acalenta, ao mesmo tempo que sufoca. Mesmo não sendo ‘prima’, a obra A Canção de Lisboa continua a primar, sobretudo pelo seu caráter mítico, que a eternizou na cinematografia nacional, mas também pelo divertimento dinâmico e por mostrar a alma lisboeta e popular, que esquece todas as arrelias da vida com festejos de foguetes e balões. Com todo o humor - medíocre, fácil ou superficial, implícito ou explícito - “podeis rir à vontade, mas lembrai-vos de manter sempre a vossa compostura”5 e seguir as regras, dentro da tradicional moral! Os mitos são como sonhos coletivos, encenações estéticas ou rituais. Eles contam a História da Humanidade, como a realidade passou a existir, por exemplo, e por isso o cinema, como fragmento desse real, cria uma imagem social da coletividade que procura. Quando os espetadores mergulham nas histórias que ele conta, 1

PAULO:96-97. Foucault Apud CASTELO BRANCO:3. 3 LOPES:3505. 4 Apud LOPES:3506. 5 8º mandamento do espectador de cinema Apud QUEIROZ:78. 2

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encontram um seu reflexo e um regresso a si mesmos, tal Narciso que se tenta amar a si próprio, num utópico romance. O reflexo desta personagem mítica pode ser uma metáfora para a imagem real em contraponto com a falsa verdade de um Outro. Neste sentido, também o cinema tem os seus amores impossíveis.

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DO NOVO CINEMA AOS NOVOS MEDIA As cantarolices do cinema dos anos 30 e 40 (do século XX) alegraram um público que tentava fugir à vida angustiante. A sétima arte floresceu timidamente, mas declina na década seguinte, tendo para isso contribuído, também, a introdução (e expansão) da televisão. A década de 60 foi ainda muito marcada pela censura do Estado Novo, por rebeliões, movimentos estudantis, greves, prisões em massa, manifestações que sacodem o país e o mergulham numa crise. Apesar da esperança na política de Marcelo Caetano, depois do episódio da cabeçada no chão, em ’68, que pôs termo a um longo período de poder quase absoluto, mantevese a situação de perseguição, não se conseguindo, imediatamente, a necessária renovação, que só chegaria num dia de abril. Cinema novo e Anos Gulbenkian As medidas repressivas do fantasma de Salazar manter-se-ão sobre as universidades (afetando professores e estudantes, demitindo-se uns, condenando-se outros), colocando em risco a continuidade do ensino. É este cenário que os cineastas encontram, alguns indo formar-se ‘lá fora’. É com eles que emerge o Cinema Novo, materializado numa tendência que “reclama o «poder da imagem», ao abordarem a realidade com uma dinâmica crítica e distinta de preocupações temáticas e estéticas.”1, trazendo ao “moribundo cinema português uma transformação radical e imparável.”2 Depois de um arranque impulsivo e natural, o Cinema Novo enfrenta o dominante cinema industrial, tentando resistir-lhe. No final da década é fundado o Centro Português de Cinema (CPC), uma importante parceria e apoio da Fundação Calouste Gulbenkian ao cinema, iniciando o período da «Primavera Gulbenkian». O Instituto Português de Cinema (IPC) é instituído depois, pela famosa Lei de Cinema (7/71). A mudança é marcada por estes dois projetos, juntamente com o aparecimento de uma «nova vaga» de autores, que assistiam à revolução no cinema inglês, à nouvelle vague francesa e ao cinema soviético. Esse contacto com realidades menos censuradas do que a portuguesa marcou e influenciou os realizadores e o poder passava, assim, hipoteticamente, do Estado para os autores do novo cinema, que nele manifestavam a sua capacidade artística, mas também organizativa, potenciando uma estética e uma visão vanguardista de uma (nova) geração que triunfou sobre os despojos dos movimentos mais perigosos para o Estado Novo, como o cineclubismo e o neo-realismo. No entanto, o público não foi imediatamente recetivo a estas novas fórmulas. Ele estava ainda ‘enfeitiçado’ pelo entusiasmo das ‘velhas’ comédias, que se tentaram reavivar neste período. Era preciso esperar por uma terceira geração daquele (já não tão) novo cinema, mas a propaganda política estava ausente. Uma consciência coletiva deste novo cenário na cinematografia ia-se formando e habituando à liberdade e ‘primavera’ tardias. A sétima arte, apoiada pelo Estado e pela Gulbenkian, cingia-se a duas vertentes: a da autoria e a da indústria. Era esta última que dominava, por isso tornava-se necessário criar um “núcleo de resistência à tendência dominante [...] uma margem no centro [...] combativa”, conforme expressa Paulo Filipe Monteiro3 em “Uma Margem no Centro; a Arte e o Poder do «Novo Cinema»”.

Da Pós-Revolução e viragem do século, ao Cinema em rede(s): Atualidade, massas, redes sociais e publicidade 1

MATOS-CRUZ:366. GRILO:18. 3 MONTEIRO:332. 2

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Se antes do 25 de Abril o cinema português foi ‘castrado’ pela censura, mesmo quando os temas abordados poderiam interessar o público, depois da Revolução a barreira entre o público e o meio de comunicação foi substituída pelo mercado da distribuição. Na viragem dos anos 80 para os anos 90, a sétima arte encontra outro tipo de massificação, em nome da economia de mercado, dos custos de produção e da necessidade de alianças com a televisão e com o estrangeiro que vai afastá-los: primeiro com uma política de entronização do «audiovisual», [...] depois com um novo instituto [... que] melhor podiam defender uma política populista contrária ao experimentalismo que o novo cinema desenvolvera.1

Sobre a cultura de massas, Pierre Bourdieu 2 notou que os hábitos “são duradouros mas não eternos [...] constantemente sujeitos a experiências e são constantemente afetados por eles de uma forma que qualquer um reinforça ou modifica a sua estrutura”. Nesse sentido, a ideia de Roger Silverstone3, de que “a tecnologia e a sociedade não coincidem”, toca precisamente na confrontação da novidade dos media com as pessoas e na complexidade dessa relação. Os novos media, como combinação de computação, telecomunicação e digitalização de conteúdo, acarretam questões de organização da sociedade, que por sua vez os encara como algo complexo, como um problema a questionar. A dimensão da comunicação entre as pessoas é alterada, agitando a que outrora se tinha com os media tradicionais. Novas convenções sociais se criam, acarretando, como afirmou Ronald Rice4, novas “expectativas, práticas, constrangimentos e outras influências dos seus tempos tecnológicos, históricos, económicos, sociais, políticos e culturais.” As consequências são ao mesmo tempo positivas e negativas. Das vantagens, podem sublinhar-se as opções agora disponíveis, embora a facilidade de acesso à informação por todas as pessoas seja, ainda, uma questão sensível. Afinal, o conhecimento ainda é um dos bens mais valiosos da Humanidade, que deverá existir e desenvolver-se com o desenvolvimento do ser humano. O mercado, ao substimar o investimento no capital humano, cairá em ruína se não criar novas políticas de governação. No século XX os meios de comunicação, como o cinema, tornaram-se essenciais na vida da sociedade. Silverstone5 afirmou mesmo que se enfrentava “o fantasma de mais uma intensificação da cultura mediática pelo crescimento global da internet e pela promessa (ou ameaça) de um mundo interativo em que tudo e todos podem ser acessados instantaneamente.” O papel é assumido sem consciência das implicações psicológicas e sociais que acarretam. Como seres de uma Humanidade em evolução, pretende-se, a (quase) todo o custo, ‘evoluir’ com ela, esquecendo-se que para isso acontecer, é necessário refletir sobre o seu objetivo. Ou seja, ter (alguma) consciência do lugar para onde se quer evoluir e, sobretudo, se essa evolução é para bem próprio ou da nação. O poder parece estar longe da pessoa, única, mas, pelo contrário, ele encontra-se exatamente dentro dela. É ela que, ao pensar, ao refletir, cria e inova e faz evoluir o mundo. Desse modo, não é o mundo da tecnologia, dos novos media ou, até, das artes que movem as pessoas, mas as pessoas que movem esses mundos. No mundo digital(izado) quer-se ser aliado ou adversário? As pessoas brincam e envolvem-se com os (novos) media que as assombram. Essa brincadeira [...] revela a criança no adulto; e o adulto na criança. [...] possibilita a exploração desse tecido-limite entre fantasia e realidade, entre o real e o imaginado, entre o si mesmo e o outro. Na brincadeira temos uma licença para explorar a nós mesmos e a nossa sociedade [...] investigamos a cultura, mas também criamos. Há nisso segurança mas também perigo, pois os limites nem sempre podem ser mantidos e a confiança que exigimos talvez não seja sempre oferecida. Agimos, mas também exteriorizamos. Cometemos erros.

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MONTEIRO:337. Apud MURDOCK:14 3 SILVERSTONE:10. 4 RICE:24-ss. 5 SILVERSTONE:17. 2

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Empacamos. Interpretamos mal os sinais. E, algumas vezes, tragicamente. Mas há prazer nisso. O prazer do jogo bem jogado. 1

A mediação é a nova mensagem, nos novos tempos. Ela medeia a realidade através da virtualidade, a verdade que se quer esquecer e a falsidade que se procura, o facto que não se quer viver e a ficção que se quer sonhar. Será que as lentes e os ecrãs que envolvem tudo e todos potenciam a experiência em detrimento das relações em comunidade? Estariam as pessoas, realmente, perdidas e excluídas da sociedade, sem os media? O prazer que proporcionava o cinema, como se viu anteriormente, é substituído, ou melhor, atualizado por novas formas. Se no primeiro século do cinema, um grupo reduzido de pessoas criava conteúdos cinematográficos para um grupo mundial de espetadores, ávidos de serem seduzidos e enganados, conscientemente, por esse mundo outro de ficção e de fuga da realidade, nas primeiras décadas do século XXI qualquer pessoa produz um conteúdo, normalmente digital, que pode chegar, com mais facilidade, a um grupo maior de espetadores. O poder é virtualmente real, por mais paradoxal que pareça esta assunção. Mas é de poder, precisamente, que se trata (e se tem tratado, ao longo deste trabalho). Que exemplo maior de poder existe atualmente nos media, se não o da publicidade? Considere-se a campanha de Natal (2012) do Jumbo (Grupo Auchan), com o pertinente slogan “Eu quero, posso e escolho”. Criados pela McCann, os spots publicitários [Fig.4-5] utilizam referências de dois personagens bíblicos dessa quadra: Maria e Gaspar. A opção destes não é por acaso. Em vez do par habitual (Maria e José), a figura paternal é substituída, na cena consumista, por um dos reis magos. Mas não um qualquer. É aquele que, por acaso (?) tem o nome próprio do Ministro das Finanças português. O ator tenta imitá-lo na fala, com o seu conhecido tom arrastado, e aconselhando a esposa a poupar e cortar nos gastos das compras de Natal. A austeridade atinge, desta forma, a publicidade, através da qual os portugueses sentem imediatamente uma relação com a sua realidade e a realidade do país. No final do spot, é Maria quem enfia o gorro (do Pai Natal) em Gaspar, como que a transmitir a mensagem contrária à que os portugueses normalmente sentem: são os políticos quem enfiam barretes às pessoas. Com isso convencem (ou tentam convencer) que as pessoas podem (devem) ter controlo sobre as suas vidas e as suas finanças, ou seja, retornando o slogan que o Jumbo pretende reforçar nos media (televisão, rádio, imprensa e outdoors). Controlar a vida das pessoas é o objetivo da publicidade? Ou será, antes, manipular e/ou criar comportamentos? Por exemplo, na série de anúncios publicitários, televisionados, da campanha Não há volta a dar. Se quer Lisboa limpa, ponha o lixo no lugar, promovida a partir de novembro de 2012 pela Câmara Municipal de Lisboa, encontram-se algumas pistas que podem ajudar a entender estas questões, embora não lhes dando, talvez, respostas conclusivas ou definitivas. O objetivo desta campanha é sensibilizar os habitantes e visitantes da cidade da capital portuguesa para a boa prática de limpeza ou conservação do espaço público, utilizando, para isso, três filmes computacionalmente (e pobremente ?) animados, com cenas conhecidas ‘copiadas’ do já analisado filme A Canção de Lisboa: Naquele com o slogan Lisboa Limpa – Dejetos Caninos, um senhor entrega um saco ao boneco animado, que traja exatamente como Vasco (interpretado no filme por Vasco Santana), para que este apanhe o dejeto deixado no chão pelo seu cão, acção a que este responde, indignado “Olha lá... cocós há muitos, seu palerma!” (fig.7), fazendo uma óbvia alusão à original cena do jardim zoológico, em que um elefante rouba o chapéu ao personagem Vasco, que profere a famosa frase “Chapéus há muitos, seu palerma!” (fig.6); Noutro filme publicitário, desta mesma campanha, o slogan é Lisboa Limpa – Separar para Reciclar e nele se podem ver dois bonecos animados que trajam exatamente como os personagens alfaiate Caetano (António Silva) e Alice (Beatriz Costa), que re-interpreta a canção da agulha, mas substituindo o conhecido refrão “Ai chega, chega, chega, chega ó minha agulha [...]”(fig.8) pelo “Ai ponha, ponha aqui o seu lixinho [...]” (fig.9), promovendo a separação do lixo doméstico; 1

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SILVERSTONE:123-124.

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Num último, com o slogan é Lisboa Limpa – Não Sujar, a cena recriada é aquela em que Alice, ciumenta, confronta Vasco que acabara de falar (namoriscar) com a vizinha, ao que ele responde “Se eu não te estou a dizer a verdade, que me cortem aqui a cabeça.” (fig.10) Na recriação animada de 2012, Vasco, negando a sua culpa de ter atirado lixo para o chão, diz “Se fui eu que atirei o lixo pró chão, que me cortem a cabeça. Ai...” (fig.11). A campanha de sensibilização recorreu a um filme muito conhecido da história da cinematografia. O objetivo base do meio escolhido (o cinema) é comum aos dois exemplos, de 1933 e de 2012, ou seja, propagar uma mensagem, incutir um valor. No primeiro, um objetivo camufladamente político, através do cinema, no segundo um objetivo assumidamente ecológico, através do vídeo digital ou da televisão. Em ambos pretende-se manipular ou moldar comportamentos da sociedade. Nesse sentido, a influência do media cumpre perfeitamente a função de persuasão. Curiosamente, ao contrário do que se poderia esperar da campanha de 2012 da Câmara Municipal de Lisboa, a divulgação não explorou eficazmente os novos media, como a Internet ou as redes sociais, da mesma forma que fez na divulgação através da televisão ou dos outdoors e posters espalhados pela cidade. Embora a página em linha da Câmara1 indique, numa breve e quase despercebida notícia, as intenções, que passam por apelar à participação dos lisboetas e “população flutuante (estudantes, trabalhadores, turistas) para práticas ambientais”, recorrendo ao humor e à banda desenhada animada, “através de meios mais sustentáveis do ponto de vista ambiental, como sejam: Facebook; site institucional; You Tube; Vimeo; Spots nos vídeo painéis / écrans espalhados pela cidade; Intranet da CML; páginas em linha das juntas de freguesia; Spots de TV e Rádio”, estes meios não parecem ter tido muito sucesso, pelo menos a julgar pelas visualizações e partilhas desta notícia na rede social Facebook ou do Twitter (com apenas uma partilha no primeiro e nenhum Tweet, no segundo, na data de consulta à página indicada). Na página oficial da CML no Facebook, encontram-se apenas dois dos três vídeos (ambos publicados nesta rede social a 20 de novembro): Lisboa Limpa – Separar para Reciclar e Lisboa Limpa – Dejetos Caninos. O primeiro teve 61 partilhas, com 33 utilizadores a gostarem dele (com um único comentário), enquanto o segundo teve 85 partilhas, 46 utilizadores a gostarem dele (com apenas 6 comentários, alguns dos quais com críticas negativas ao mesmo). Se se considerar o número total de fãs da página oficial, que conta em 19 de dezembro de 2012 com 5.576 gostos, estes números não são significativos 2 e por eles se pode verificar a ineficácia da campanha, pelo menos nesta rede e meio de comunicação social. O exemplo apresentado serve dois objetivos: o primeiro, trazer, à luz da contemporaneidade, uma obra dos primórdios da cinematografia portuguesa, reinterpretada pela publicidade. O segundo, analisar como a mensagem se propaga nos novos media e, principalmente, qual poderá ser a aceitação (ou não) do público a que se dirige. Embora sem intenção de, neste trabalho, se calcularem os verdadeiros efeitos da persuasão pretendida, pode examinar-se o contexto, a estrutura, a forma que assume, ou os códigos utilizados. A crítica não incide tanto sobre a estética, mas sobre conteúdo e potencial impacto social e cultural, que terá, provavelmente, um balanço negativo. A campanha não gera os valores simbólicos “significação, prestígio e identidade”3 que tenta criar na sociedade de consumo. Apesar de utilizar uma linguagem acessível e facilmente identificável, o humor é brejeiro como o da antiga comédia à portuguesa, mas com a agravante de não ser original e, talvez por isso, não criar interesse. Mas será que, ainda assim, a mensagem fica incutida a nível subliminar? Se assim for, os publicitários atingem o objetivo final da sua (re)criação. Talvez ela persista no tempo e dela se venham lembrar as 1

Artigo em < http://www.cm-lisboa.pt/noticias/detalhe/article/nao-ha-volta-a-dar-se-quer-lisboa-limpa-ponha-o-lixono-lugar > [Consult.19/dez./2012] 2 No primeiro, 61 partilhas equivalem a 1,1% e 33 utilizadores a gostarem dele equivalem a 0,6%; no segundo, 85 partilhas equivalem a 1,5% e 46 utilizadores a gostarem dele equivalem a 0,8% (de um total de 5.576 fãs ou gostos da página oficial em < http://www.facebook.com/camaradelisboa > [Consult.19/dez./2012]. 3 HARMS.

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gerações futuras, mas talvez pelos maus motivos apresentados. Afinal, são inúmeros os exemplos de campanhas e anúncios lembrados por serem ‘maus’. Talvez seja apenas isso que interesse aos publicitários, sem preocupações artísticas ou criativas. No entanto, se António Ferro ainda vivesse, não quereria, com certeza, apanhar os ´cocós’ deixados por tais campanhas. A nação agradecer-lhe-ia.

∞ CONCLUSÃO A teoria marxista tinha como ponto de partida A Ideologia Alemã, onde Marx considerou que “as ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes”, que por sua vez “subordina toda a sociedade aos seus interesses, e por isso os meios de comunicação limitam-se a dar a visão do mundo segundo a ideologia dominante.”1 Esta teoria não pretendia, no seu modelo, apenas descrever e criticar mas suscitar a ação, tendo por base a economia (a infra-estrutura da sociedade), não desligada do sistema político e ideológico, o que coloca a questão (desaparecimento) da independência dos meios de comunicação. Na sua análise, os pensadores desta teoria privilegiavam a componente ideológica em detrimento dos estudos clássicos sobre a instância económica. A escola da «teoria da hegemonia», assim batizada por António Gramsci, referia-se à hegemonia “que a ideologia dominante exercia sobre a sociedade através de vários meios, incluindo a comunicação social.”2 No entanto, chegar-se-ia à conclusão que “a ideologia não era imposta pela força, mas pela influência cultural omnipresente e destinada a interpretar a realidade de uma forma coerente, embora errónea.”3 O cinema interpreta essa realidade através do movimento que gera. Ele capta e cria memórias, não apenas fotografando a vida. Como a própria vida, move-se mas cristaliza-se, antes em celulóide, atualmente em pixeis de alta definição, em 3D ou sem qualquer D. O ‘ponto D’ da questão é saber até onde vai a Dimensão da Digitalização. O cinema cria memória do tempo presente para no futuro se conhecer um pouco (melhor) sobre o passado. Cada versão pode ser válida através deste media. Mesmo mostrando realidades Outras, ajuda a criar uma identidade própria do/no indivíduo. Através dele se pode conhecer a sociedade e o mundo. Através desse fingimento ele existe, verdadeiramente. Como o reflexo num espelho que, apesar de se poder ver (vê-se logo existe?), não está lá realmente. O objetivo principal deste trabalho é provocar reflexões múltiplas (uma por leitor) para além das páginas, assumidamente limitadas, deste pequeno ensaio, sobre o poder das imagens, do cinema em particular, partindo do exemplo da cinematografia portuguesa de propaganda, atualizada por uma contemporaneidade definida pelos novos media, numa (ou em várias) formas de comunicação que, longe de nova – afinal é tão antiga como a humanidade –, vai assumindo apenas novas formas de ser materializar (ou virtualizar) na vida das pessoas. Daí à nova sociedade de consumo, constantemente bombardeada por anúncios economicistas, talvez seja um pequeno salto, mas uma legítima (e fundada) tentativa de avanço na reflexão sobre a tragicomédia de enganos que, afinal, é o cinema, a arte que engana o(s) gosto(s).

“Le cinéma est la plus belle escroquerie du monde.”4 - Jean-Luc Godard

BIBLIOGRAFIA

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SANTOS:45. Idem:49. 3 Idem:51. 4 “O cinema é a mais bela fraude do mundo.” (tradução do autor). 2

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FILMOGRAFIA / VIDEOGRAFIA 

TELMO, Cottinelli - A Canção de Lisboa (1933), [Registo vídeo]. Lisboa, Madragoa Filmes (2001). 1 DVD vídeo (85 min.).

Câmara Municipal de Lisboa (2012) - Não há volta a dar. Se quer Lisboa limpa, ponha o lixo no lugar, campanha publicitária - Promotor: Câmara Municipal de Lisboa; Produtor: BBZPublicidade e Marketing; novembro/2012; 3 filmes): 1. 2. 3.

Lisboa Limpa - Não Sujar. [Em linha]. [Consult. 20 nov. 2012]. Disponível na internet: < http://vimeo.com/53437025 >. Lisboa Limpa - Separar para Reciclar . [Em linha]. [Consult. 20 nov. 2012]. Disponível na internet: < http://vimeo.com/53419393 >. Lisboa Limpa - Dejetos Caninos. [Em linha]. [Consult. 20 nov. 2012]. Disponível na internet: < http://vimeo.com/53415790 >. ANEXOS/FIGURAS

Figura 1 Fotograma de A Canção de Lisboa

Figura 2 Fotograma de A Menina da Rádio

(1933), de Cotinelli Telmo

(1944), de Arthur Duarte

Figura 3 Cartaz de propaganda da década de 1940

[Em linha]. Portal da Loja. [Consult. 2 dez. 2012]. Disponível na internet: < http://portadaloja.blogspot.pt/2012/04/o-abismo-dos-sociologos-esquecidos.html >.

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Figuras 4-5 – “Eu quero, posso e escolho”, Spot publicitário do Jumbo (novembro 2012) [Em linha]. Dinheiro Vivo. [Consult. 11 dez. 2012]. Disponível na internet: < http://www.dinheirovivo.pt/Buzz/Artigo/CIECO074553.html > . Figuras 6-11 Fotogramas de A Canção de Lisboa (1933), de Cotinelli Telmo, à esquerda, comparados com a campanha Lisboa Limpa (2012), à direita.

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Figura 6 “Chapéus há muitos, seu palerma!”

Figura 7 “Olha lá... cocós há muitos, seu palerma!” [1] Lisboa Limpa - Dejetos Canino. [Em linha]. [Consult. 20 nov. 2012]. Disponível na internet: < http://vimeo.com/53437025 >.

Figura 8 “Ai chega, chega, chega, chega ó minha agulha…”

Figura 9 “Ai ponha, ponha aqui o seu lixinho [...]” [2] Lisboa Limpa - Separar para Reciclar . [Em linha]. [Consult. 20 nov. 2012]. Disponível na internet: < http://vimeo.com/ 53419393 >.

Figura 10 “Se eu não te estou a dizer a verdade, que me cortem aqui a cabeça.”

Figura 11 “Se fui eu que atirei o lixo pró chão, que me cortem a cabeça. Ai...” [3] Lisboa Limpa - Não Sujar . [Em linha]. [Consult. 20 nov. 2012]. Disponível na internet: < http://vimeo.com/53415790 >.

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CRÉDITO DE IMAGENS CAPA ► Design, composição gráfica e de texto de Jorge Augusto dos Santos. Foi utilizada a imagem da pintura Narciso (1598-1599), de Michelangelo Merisi da Caravaggio, Óleo sobre tela, 110 x 92 cm, oma, Galleria Nazionale D’Arte Antica. [Em linha]. 4Shared. [Consult. 20 nov. 2012]. Disponível na internet: < http://dc196.4shared.com/doc/T47TJkYC/preview.html >, e fotograma do filme A Canção de Lisboa (1933), de Cotinelli Telmo (cena da marcha popular). [Registo vídeo]. Lisboa, Madragoa Filmes (2001). 1 DVD vídeo (85 min.). LAY-OUT, PAGINAÇÃO E FORMATAÇÃO: Jorge Augusto dos Santos < http://www.jorgeaugusto.eu >.

NOTAS FINAIS Neste trabalho foi utilizada a nova grafia do português, exceto nas transcrições e citações, em que se manteve a grafia original. Nas referências bibliográficas utilizou-se as “Normas de Formatação e Apresentação Gráfica da Dissertação ou Trabalho de Projecto de Mestrado e da Tese de Doutoramento”, aprovadas pela Comissão Científica Permanente da Escola de Sociologia e Políticas Públicas (ESPP), em 17.11.2010.

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