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O que a fez deixar a cidade
by EdLab Press
Após ter revirado isso na sua cabeça por algum tempo, chegou à conclusão de que havia tomado parte de um grande drama, que era, em si mesmo, senão um grande sistema de roubo e erro. “Sim”, ela disse, “o rico rouba o pobre, e o pobre rouba outro pobre”. É verdade que ela não havia explorado o trabalho dos outros, mas sentia que os havia explorado: pegou para si o trabalho de outras pessoas, que era o único meio que tinham para conseguir dinheiro, o que no fim dava no mesmo. Por exemplo, um cavalheiro lhe daria um dólar para que ela contratasse um homem pobre para limpar a neve recém-caída dos degraus e das calçadas. Ela se levantava cedo e fazia o trabalho sozinha, colocando o dinheiro no próprio bolso. Um homem pobre poderia aparecer, dizendo que ela deveria ter deixado que ele fizesse o trabalho: ele era pobre e precisava do pagamento para sua família. Ela endureceria seu coração contra ele e responderia: “eu também sou pobre e preciso do dinheiro para mim.” Mas, em seu exame retrospectivo, ela pensou em toda a miséria que poderia estar adicionando, em sua ganância egoísta, e isso perturbou sua consciência gravemente. Essa insensibilidade às reivindicações da irmandade humana e às necessidades dos pobres necessitados e miseráveis, ela agora via, como nunca havia feito antes, insensível, egoísta e perversa. Essas reflexões e convicções deram origem a uma repulsa de sentimentos no coração de Isabella e ela começou a encarar dinheiro e propriedades com grande indiferença, se não com
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desprezo, estando naquela época incapaz, provavelmente, de discernir qualquer diferença entre um miserável atrás de sustento e alguém que acumulasse dinheiro e bens, ou entre um verdadeiro uso das coisas boas desta vida para seu próprio conforto e o alívio daqueles a quem ela poderia auxiliar e assistir. Uma coisa tinha certeza, que preceitos como: “trate aos outros como gostaria de ser tratado”, “ame seu próximo como a si mesmo” e assim por diante foram máximas nas quais ela pouco refletiu ou cumpriu.
Sua próxima decisão foi a de que precisava deixar a cidade: aquele não era lugar para ela. Sim, ela sentiu um chamado do espírito para partir, viajar para o leste e professar. Ela nunca havia ido mais a leste do que a própria cidade, nem tinha nenhum amigo lá de quem pudesse esperar qualquer coisa. Ainda assim, para ela, era claro que sua missão estava no leste e que lá faria amigos. Estava determinada a partir, mas essas determinações e convicções ficaram fechadas no seu peito sabendo que seus filhos e amigos ficassem cientes de sua partida, fariam uma celeuma em torno disso, e seria muito desagradável, se não agoniante, para todos. Depois de fazer os preparativos para partir, ela julgou necessário colocar algumas peças de roupa em uma fronha, tudo o mais sendo considerado um encargo desnecessário. Cerca de uma hora antes de sair, ela informou a senhora Whiting, a dona da da casa onde estava, que seu nome não era mais Isabella, mas SOJOURNER, e que estava indo para o leste. E à pergunta: “por que está indo
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para o leste?”, sua resposta foi: “o espírito me chama para lá, e eu devo ir.”
Ela deixou a cidade na primeira manhã de junho de 1843, atravessando para o Brooklyn e Long Island. Tomando o sol nascente como sua única bússola e guia, “lembrou-se da esposa de Ló” e, na esperança de evitar seu destino, resolveu não olhar para trás até ter certeza de que a cidade perversa da qual estava fugindo fora deixada muito para trás para ser visível à distância.28 Quando ela se aventurou a olhar para trás, pode apenas discernir a nuvem azul de fumaça que pairava sobre ela e agradeceu ao Senhor por estar tão distante do que lhe parecia ser uma segunda Sodoma.
Ela agora já estava a bom caminho na sua peregrinação; sua trouxa em uma mão, uma pequena cesta de mantimentos na outra e dois xelins de York29 em sua bolsa. Seu coração estava forte na fé de que sua verdadeira obra estava diante dela e que o Senhor era seu diretor e ela não duvidava de que a sustentaria e a protegeria, e que seria muito censurável por parte dela carregar mais do que um modesto abastecimento das suas necessidades então presentes. Sua
28 Segundo o Gênesis, a mulher de Ló desobedeceu à ordem de não olhar para trás quando deixava Sodoma e foi por isso transformada em uma coluna de sal.
29 Unidade de valor da Nova York colonial que valia cerca de doze cêntimos e meio.
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missão não era apenas viajar para o leste, mas “professar”, como ela definia: “dar testemunho da esperança que havia em mim”, exortando as pessoas a abraçar Jesus e a se abster do pecado, cuja natureza e origem ela lhes explicou de acordo com seus pontos de vista muito curiosos e originais. Ao longo de sua vida e todas as suas mudanças radicais, ela sempre se apegou rapidamente às suas primeiras impressões permanentes sobre assuntos religiosos.
Onde quer que a noite a alcançasse, ela procurava acomodações, gratuitas, se pudesse; se não, pagava. Em uma taberna, se acontecesse de estar em uma; se não, em uma residência particular. Com os ricos, se a recebessem; se não, com os pobres.
Mas logo descobriu que as casas maiores estavam quase sempre cheias; se não quase, a ocupação já era esperada; e que era muito mais fácil encontrar um canto desocupado em uma casa pequena do que em uma grande; e se uma pessoa possuía apenas um teto miserável sobre a cabeça, você pode ter certeza de que será bem-vindo.
Porém isso, e ela tinha discernimento o suficiente para notar, era tanto o efeito da carência de compaixão quanto da benevolência. E isso também ficava muito aparente em suas conversas religiosas com pessoas que lhe eram estranhas. Ela disse: “nunca conseguia descobrir se um rico tinha uma religião. Se eu fosse rica e bem-sucedida, eu conseguiria, porque os ricos sempre encontram religião nos ricos, e eu conseguia encontrá-la no meio dos pobres.”
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No princípio, participou de todas as reuniões de que ouvisse falar, e falou com as pessoas quando as encontrou reunidas. Posteriormente, anunciou as próprias reuniões e apresentou-se a grandes plateias, tendo, como disse: “passado por bons momentos.”
Quando se cansou de viajar e desejou um lugar para parar e descansar um pouco, disse que sempre encontrava oportunidades por perto; e na primeira vez que precisou descansar, um homem a abordou enquanto caminhava, perguntando se ela estava procurando trabalho. Ela lhe disse que esse não era o objetivo de suas viagens, mas que trabalharia de boa vontade alguns dias, se alguém quisesse. Ele pediu que fosse até sua família, que estava infelizmente precisando de assistência, a qual ele estava sendo incapaz de fornecer. Ela foi até a casa para onde foi direcionada, onde havia um doente, e foi recebida pela família dele como uma “dádiva de Deus”. Quando se sentiu impelida a retomar sua jornada, eles ficaram muito tristes, e ficariam felizes se a pudessem ter por mais tempo, mas, como ela insistisse na necessidade de partir, eles lhe ofereceram o que parecia aos seus olhos uma grande quantia em dinheiro como remuneração pelo seu trabalho, e uma expressão de gratidão pela oportuna assistência. Porém ela aceitou apenas uma pequena parte, o suficiente, como diz, para lhe permitir pagar tributo a César,30 se lhe fosse
30 Mateus 22:21. “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o
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exigido, e dois ou três xelins de York foram tudo o que ela se permitiu levar. Então, com a bolsa reabastecida e as forças renovadas, ela partiria novamente para cumprir sua missão.
que é de Deus.”
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AS CONSEQUÊNCIAS DE SE RECUSAR A UM VIAJANTE UMA NOITE DE HOSPEDAGEM
Ao se aproximar do centro da ilha, ela começou, quando a noite caiu, a procurar o favor de um abrigo. Ela repetiu seu pedido a muitas pessoas, pareceu-lhe umas vinte vezes, e recebeu a mesma quantidade de respostas negativas. Seguiu em frente, as estrelas e os minúsculos chifres da lua crescente derramando uma luz fraca em seu caminho solitário, quando foi abordada por dois índios, que a tomaram por uma conhecida. Ela disse que eles estavam enganados na pessoa, que era uma estranha por lá e perguntou a eles a direção de uma taberna. Eles informaram que ainda era um longo caminho, umas três ou quatro milhas, e perguntaram se ela estava sozinha. Não desejando a proteção deles, e não sabendo qual poderia ser o propósito da gentileza, ela respondeu: “não, não exatamente”, e foi embora. Ao fim de um caminho cansativo, ela chegou à taberna, ou melhor,
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em uma grande construção, que era ocupada por um tribunal, uma taberna e uma cadeia, e ao perguntar por uma noite de hospedagem, foi informada de que poderia ficar, se consentisse em ser trancada. Isso para ela era uma objeção insuperável. Ficar trancada era algo que não se deve pensar, ou pelo menos não se deve suportar, e ela novamente seguiu seu caminho, preferindo andar sob o céu aberto, a ser trancada por um estranho num lugar daqueles.
Não havia andado muito longe quando ouviu a voz de uma mulher sobre um galpão aberto. Aventurou-se a abordá-la, e perguntou se ela sabia onde poderia conseguir um lugar para aquela noite. A mulher respondeu que não sabia, mas que talvez ela pudesse ir para casa com eles e, voltando-se para o “bom homem” dela, perguntou se a estranha poderia dividir a casa com eles por uma noite, no que ele alegremente consentiu. Sojourner achou evidente que ele tinha bebido demais, mas como era civilizado e de boa índole, e ela não se sentia inclinada a passar a noite sozinha ao ar livre, rendeu-se à necessidade de aceitar a hospitalidade deles, como quer que fosse. A mulher logo a informou que havia uma festa, na qual eles gostariam de passar um pouco, antes de irem para casa. Festas não faziam parte da missão de Sojourner, ela não desejava participar, mas sua anfitriã insistiu em pelo menos passar por lá, e ela se viu obrigada a ir com ela, ou abandonar a companhia de uma vez, o que poderia ser pior do que ir junto. Sojourner foi e logo se viu cercada por uma
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