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Com que olhos você enxerga o mundo
Como as tecnologias podem conferir autonomia às pessoas com deficiência visual
Aline Bellino Danielle Spielmann Natalie Bollis Rubiane Kreuz
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Distante meia hora do câmpus da PUCPR até Pinhais, chegamos ao endereço da nossa primeira entrevistada. Já era quase 10 horas quando uma senhora simpática e bem vestida abriu a porta do apartamento de número 13. É nossa entrevistada
Maria do Carmo. Logo de início fizemos a seguinte pergunta: “Como você quer que a chamemos? De pessoa cega ou de pessoa com deficiência visual?”. Já tínhamos lido muito sobre o assunto, mas ainda não tínhamos certeza qual o termo correto. Foi quando ela nos contou a seguinte história:
“Eu sempre falei em deficiência visual até que há uns dez anos, me perdi na rua procurando o consultório do meu médico. Pedia informações para as pessoas na rua, e elas me indicavam o caminho por meio de orientações do tipo, vire ä esquerda, ou então logo atrás daquele prédio vermelho, até que não aguentando mais eu parei uma senhora e disse – Sou cega e preciso achar esse endereço. Foi só assim que percebi que, para a maioria das pessoas, o deficiente visual é aquele que enxerga pouco, mas que ainda tem visão mesmo que baixa.”
Maria do Carmo ficou cega aos 6 anos como consequência de um glaucoma congênito. Sua irmã mais velha, perdeu a visão aos 12 anos. Como ainda não era alfabetizada os médicos disseram aos seus pais: “Essa menina não vai ler nem escrever, não vai poder estudar porque ela não enxerga”. Mas Maria sempre foi uma menina inquieta. “Eu adorava mexer nos cadernos Aplicativos facilitam a vida de pessoas com deficiência visual.
Rubiane Kreuz
dos meus irmãos mais velhos. Eu tentava juntar as letras, mas minha visão já era bem baixa. Mesmo criança eu negava o fato de não poder ler. Eu era muito curiosa.” Seu pai, vendo a vontade de Maria em aprender a ler e escrever, mudou-se da zona rural da pequena cidade de Bandeirantes, norte do estado paranaense, para o interior do estado de São Paulo, a fim de estudar em um Instituto para Cegos. E foi lá que Maria ficou até cursar o segundo grau.
Após esse período, já alfabetizada em braille, sistema de escrita e leitura tátil para pessoas cegas, retornou ao Paraná, onde pode continuar seus estudos. Aos 26 anos, formou-se em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), em 1984, época em que também foi aprovada em concurso no TRE-PR, onde
trabalhou por 32 anos. Aposentada desde 2016, diz que agora tem mais tempo para passear pela cidade e ir ao cinema. Ela enfatiza que não gosta da audiodescrição nos filmes, pois para ela há um exagero nessa descrição das imagens, o que acaba cansando.
Ela é categórica: “se as pessoas têm o direito de ver as cenas do filme, então aos cegos também deve ser dado esse direito. Então a audiodescrição é uma questão de igualdade.”
Maria do Carmo tem três filhos. Seu marido também é cego. Durante a entrevista, sua filha mais nova, Angelita, interrompe a entrevista para contar que seus amigos sempre perguntam para ela como seus pais escolhem as roupas, atendem telefone ou mexem em computadores e fazem as coisas do dia a dia de forma independente. Essas dúvidas são comuns. Para Maria, as pessoas cegas são diferentes umas das outras, assim como uma pessoa comum. Ela diz que há cegos preguiçosos que não gostam de estudar e se modernizar. Para ela, as pessoas imaginam que o cego é um coitadinho que não consegue se virar sozinho, mas isso não é verdade. A vontade de estudar está dentro de cada pessoa, independentemente de sua condição física. Em relação às tecnologias, ela usa muito o Dosvox, sistema para computadores e celulares que se comunica com o usuário por meio da síntese da voz. Esse sistema é editor leitor e impressor de textos, e tem ampliador de telas para pessoas com visão reduzida.
Após uma hora de ótima conversa e aprendizado sobre o mundo das pessoas cegas, não poderíamos deixar de perguntar: “Maria, você é feliz por quê? E a resposta foi “Por que eu não seria feliz? “, dada de forma rápida e natural, o que nos surpreendeu. Saímos dali com a sensação de que havia muito a aprender e entender sobre a natureza humana e superação das adversidades que a vida nos apresenta.
Maria do Carmo, aposentada
APLICATIVO
O curitibano João Pedro Novochadlo desenvolveu um aplicativo para celulares gratuitos que utiliza a tecnologia de microlocalização para facilitar a interação e locomoção de pessoas com deficiência visual em ambientes urbanos internos e externos.
Batizado de Veever, esse aplicativo funciona da seguinte forma: “A gente instala alguns dispositivos emissores de sinal bluetooth, em alguns pontos de interesse e na medida que o usuário se aproxima ele recebe o sinal e transcreve por voz as orientações que estão ali, conferindo maior autonomia às pessoas com deficiência visual“.
O aplicativo Veever confere mobilidade e independencia ao usuários.
João Pedro, criador do aplicativo Veever
Segundo ele, assim é possível mapear os ambientes desses estabelecimentos, proporcionando aos usuários mais facilidades para se deslocarem e locomoverem pela cidade. E por meio desse aplicativo, as pessoas com deficiência visual ganharam autonomia.
João Pedro Novochadlo se interessou pelo tema a partir da experiência quando foi voluntário no Instituto Paranaense de Cegos, vivenciando as dificuldades de locomoção das pessoas cegas. Para ele, o poder público deve investir em tecnologias que promovam a inclusão do cidadão e acessibilidade.
Para Gilberto Ozawa, 54 anos, servidor público há 17 anos da área de informática do Tribunal de Justiça, que possui baixa visão desde o nascimento, diz que o correto para ele, é o termo “pessoa com deficiência visual”, mas que se o chamarem de cego, ele também não se importa.No trabalho ele utiliza a rede de aumento do Windows, o que já lhe confere acessibilidade suficiente para desempenhar suas atividades.
O último censo do IBGE sobre o número de pessoas cegas na capital paranaense é de 2010, quando foi apontada a existência de 7 mil pessoas cegas e 36 mil pessoas diagnosticadas com baixa visão. Ano que vem novo censo vai atualizar essa estatística, e de acordo com o próprio instituto, há uma expectativa de aumento desses números em pelo menos dez por cento.
O Instituto paranaense de cegos oferece cursos de tecnologia assistiva.
De acordo com Idamaris Costa, diretora do Instituto Paranaense de Cegos – IPC, “a inclusão entre pessoas com e sem deficiência quebra as barreiras de muitos tabus e que as tecnologias vieram facilitar a inclusão das pessoas cegas ou as que possuem baixa visão”. Por outro lado, o grande empecilho para a acessibilidade também está nos sites tanto de empresas privadas quanto as do setor púbico.
Para a diretora do IPC, muita coisa tem que ser feita para que Curitiba seja considerada uma cidade acessível, a exemplo do centro e dos locais de mais visitação na cidade como parques e museus.
De acordo com Denise Moraes, assessora da Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência da prefeitura de Curitiba, “a linguagem do braile já não é o recurso mais utilizado pelas pessoas com deficiência visual, pois grande parte já utiliza dos recursos de tecnologia assistiva, como o Dosvox, sistema resposável pela leitura dos meios tecnológicos, como o computador, celular, tabletes e de tudo que está escrito por meio de uma voz robotizada”. Ela aponta outras tecnologias como o Seecolors, um aplicativo que apresenta uma grade de cores para que a pessoa possa ter uma ideia de combinação de cores como na escolha de roupas por exemplo e também o aplicativo Veever, que está em fase de testes para implantação na cidade de Curitiba. Para ela, Curitiba é inclusiva.
Aproveitamos a fala da nossa primeira personagem, a Maria do Carmo, 64 anos de puro otimismo e alegria, e que entre tantas histórias e lições que nos ensinou, e que também nos revelou que não gosta de cenoura, mas que come porque “faz bem para a pele”, podemos até ignorar na maior parte do tempo a existência de pessoas com deficiências físicas, mentais ou visuais, mas que temos de ter respeito, pois tal qual a cenoura que faz bem para a pele, o respeito faz bem para a sociedade, sendo a marca genuína de efetiva cidadania.
E você? Com que olhos enxerga o mundo?
Danielle Spielmann