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Mais do que uma pedra no caminho

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Terror no cinema

Terror no cinema

A recorrência de casos de importunação e assédio sexual traz cada vez mais insegurança às mulheres que se deslocam pelas cidades brasileiras

Isadora Martelli Letícia Bonat Letícia Fortes Juliane Capparelli Maria Eduarda Souza

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Juliane Capparelli Olhares insistentes, cantadas ofensivas e indesejadas, comentários inconvenientes e apelativos. Esses e outros comportamentos agressivos fazem parte da vida de sete em cada dez mulheres que se deslocam pelas cidades brasileiras, as quais já foram importunadas ou assediadas sexualmente, segundo pesquisa dos Institutos Locomotiva e Patrícia Galvão. O impacto dessas agressões na vida das vítimas fica evidente no desconforto e no constrangimento de todas as mulheres entrevistadas

nesta reportagem, as quais decidiram manter o anonimato e falar através de nomes fictícios.

Para Júlia Carvalho*, o simples transitar pelas ruas traz um constrangimento familiar e inevitável. “Sempre que ando na rua, ouço buzinas, sinto encaradas, aguento comentários... Sempre as mesmas coisas, de diferentes homens.” Ela confessa que foi importunada sexualmente até mesmo em festas, durante seus momentos de lazer com os amigos. “Sempre que eu ia a festas, em algum momento algum homem passava a mão na minha bunda. Já tiveram vezes em que colocaram, literalmente, a mão dentro do meu short ou no das minhas amigas enquanto estávamos passando.”

Nos diversos meios de transporte, as mulheres são o grupo mais vulnerável à diversas violências, sendo a importunação sexual uma agressão mais recorrente para 36% das entrevistadas do que para o restante das 34% participantes que já foram vítimas de assalto, furto e/ou sequestro. Embora a pesquisa quantifique apenas os casos de importunação sexual registrados em meios de transporte, a maioria

“Sempre que ando na rua, ouço buzinas, sinto encaradas, aguento comentários.”

- Júlia Carvalho*

dessas mulheres se desloca frequentemente para trabalhar ou estudar, ambientes nos quais os casos de importunação e assédio sexual são ainda mais recorrentes. Segundo pesquisas dos Institutos Avon e Patrícia Galvão, 56% das mulheres foram importunadas sexualmente na universidade e 39% já foram assediadas no ambiente de trabalho, ao receberem elogios constrangedores ou convites para sair de seus superiores hierárquicos.

Embora o termo assédio seja mais utilizado socialmente, tanto por pesquisas especializadas quanto por mulheres desrespeitadas e constrangidas com apologias ao sexo -, o assédio sexual é um crime previsto pela lei n°10.224/2001, no qual o assediador deve ser um superior hierárquico da vítima e utilizar seu cargo ou função para sobrepor-se a ela em algum ambiente, sobretudo no local de trabalho. Por meio dessa relação de subjugação, o assediador constrange a vítima para obter vantagens ou favores sexuais como beijos, contatos físicos, encontros e relações sexuais. O artigo 216-A do Código Penal brasileiro penaliza os assediadores com detenção de um a dois anos e multa.

Segundo a presidente da Comissão de Direitos Humanos da Universidade de São Paulo (USP), Maria Paula Panúncio Pinto, essa relação de poder entre assediador e vítima, muitas vezes é sustentada pelo medo ou até mesmo pela vergonha. “É o chefe, o patrão, o professor, alguém que pode de fato prejudicar a mulher caso ela não ceda aos seus esforços de obter vantagem sexual sobre ela. É importante reforçar que em qualquer tipo de violência está caracterizada uma relação de poder. Pode ser um poder real, ou pode ser o simples poder da força física, por exemplo.”

Já o crime de importunação sexual existe quando comentários constrangedores e ações como “roubar” um beijo sem permissão, tocar partes íntimas, “encoxar” ou ejacular no corpo da vítima ocorrem na rua, especialmente no transporte público. Essa conduta é caracterizada como crime desde 2018, pela Lei nº 13.718 e pelo artigo 215-A do Código Penal, a

Juliane Capparelli

Esperar o ônibus é um desafi o diário para as mulheres que se deslocam sozinhas.

fim de proteger a liberdade sexual das vítimas que se deslocam em espaços públicos e responsabilizar os agressores, com pena de reclusão de um a cinco anos.

Para Tatiana Souza*, a origem desses dois crimes está na própria sociedade, a qual permanece com uma visão extremamente machista e opressora em relação à mulher, perpetuada pela impunidade decorrente de falhas judiciais, “quando a gente vê na mídia que a Justiça, muitas vezes, deixa passar casos de assédio, a gente percebe que isso abre uma brecha para homens se sentirem no direito de tratarem as mulheres como objetos e até mesmo como figuras sexuais”.

Segundo a socióloga Jacqueline Pitanguy, a naturalização do assédio e outros atos de violência contra a mulher refletem uma aceitação desses comportamentos por parte da sociedade. Por isso, a existência de leis de combate à violência contra a mulher revelam não apenas um avanço do sistema judiciário e legislativo, mas também uma transformação da consciência social de um país. ‘’Mudanças culturais na relação de gêneros são fundamentais. Tanto para os homens perceberem o quanto são abusivos com certos comportamentos, atitudes e falas, quanto para as mulheres também perceberem que estão sendo abusadas no momento que são tratadas dessa forma.’’

Em Curitiba, a Guarda Municipal realizou 32 prisões pelo crime de importunação sexual desde o início do ano, segundo o departamento de comunicação da Assessoria de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres. Desse total, 11 casos ocorreram dentro do transporte público, com atendimento policial no próprio terminal de ônibus ou na estação-tubo mais próxima. Comparativamente a 2020, houve uma pequena diminuição no registro de casos de importunação sexual: no ano passado, foram feitas 38 prisões devido a esse crime, sendo 14 delas dentro do ônibus. No entanto, a própria assessoria ressalta que os dados apresentados são desproporcionais à realidade, devido à redução do uso do transporte público no início da pandemia de Covid-19.

O Brasil progrediu bastante na contabilização de casos de assédio sexual, após a criação de canais institucionais e campanhas de conscien-

tização. Porém, é preciso cautela para interpretar as variações no número de denúncias. ‘’É importante diferenciar o aumento no número de registros do aumento efetivo de casos. Mais registros não significa, necessariamente, mais violência. Mas sim que essa violência está sendo vista e contabilizada. É claro que com nuances. De qualquer forma, ter registros é fundamental, porque demonstra que as vítimas reconhecem que elas sofreram um abuso e que há mais consciência por parte da sociedade’’, alerta a socióloga.

A visão machista em relação à mulher é um dos aspectos principais da

chamada “cultura do estupro”, a qual transcende o conceito do crime de estupro e traz uma visão sistêmica da objetificação e da violência contra a mulher. O termo se refere a todos os comportamentos sociais que desmerecem, relativizam e silenciam atitudes de violência moral e sexual contra a mulher, sejam eles sutis ou explícitos.

Para a socióloga Jaqueline Pitanguy, a cultura do estupro é um fenômeno universal. “Em países que têm uma cultura mais erotizada e que sexualiza mais a mulher, como o Brasil e outros países latinos, o machismo fica mais acentuado. Mas, lamentavelmente, o patriarcalismo tem a força de um fenômeno universal. E é muito difícil de vencer ele.” Na cultura, a socióloga destaca que a recorrência de estereótipos machistas em alguns programas e séries de televisão também dificulta a superação da cultura do estupro. “A mídia, as novelas e os programas de televisão têm uma influência cultural enorme no país. Em que medida você pode desconstruir esses estereótipos do homem abusador e dominante, da mulher submissa ou objeto sexual? Ou seja, a mídia também tem uma responsabilidade muito grande nisso.”

Nas ruas das cidades brasileiras, um dos comportamentos mais recorrentes que compõem a cultura do estupro

é o discurso da “roupa provocante”, que culpabiliza as vítimas pela própria importunação que sofreram devido à roupa curta ou decotada que vestiam na ocasião. “Já passei por abusos por questões da roupa e vi meninas passarem também. Outra coisa é quando estava numa rodinha, ouvi esses comentários em relação até mesmo às expressões da menina. Sabe quando homens falam ‘a cara de quem tá pedindo’? Então… já ouvi muitos comentários desse tipo”, desabafa Júlia*. “Às vezes, alguns homens se aproveitam de meninas que estão mais frágeis por conta da bebida, ou quando acabam drogando alguma delas para que se torne mais frágil. Alguns homens têm a necessidade de conquistar, e fazem de tudo para conseguir o que desejam e saírem ilesos, como se não tivessem feito nada de grave.”

Para a presidente da Comissão de Direitos Humanos da USP, Maria Paula Panúncio, o assédio fere profundamente a dignidade humana e não deve ser de forma alguma naturalizado pela sociedade, visto que este ameaça a segurança, a igualdade de oportunidades e afeta a saúde global. “Muitas vezes a mulher sente culpa pelo

“Lamentavelmente, o patriarcalismo tem a força de um fenômeno universal. E é muito difícil de vencer.”

- Maria Paula Pinto, presidente da CDH-USP

assédio e isso é algo bem importante de ressaltar: a culpa nunca é da mulher, não importa como ela se veste. A culpa é sempre do assediador. Ocorre que esse tipo de comportamento (investidas sexuais, comentários com teor sexual, pressão para obter favores sexuais para manter ou progredir no emprego) é aceito como natural, muitas vezes até desejável em homens. São os estereótipos de gênero que reforçam esses comportamentos como naturais.”

O julgamento de culpa pela roupa que vestem acompanha as mulheres com frequência e em diversos locais, como acontece com Tatiana Souza*. “Volta e meia eu ouço cantadas ou vejo homens me olhando com más intenções no centro de Curitiba. E detalhe: eu sempre ando no centro com calça e roupas discretas.” Independentemente da roupa que vestia, ela já foi assediada sexualmente até mesmo no Instituto de Neurologia de Curitiba (INC), em setembro de 2020. “Eu fiquei em choque e sem saber o que fazer. Eu tinha consciência que era assédio, mas cheguei a me questionar se o homem não estava apenas sendo simpático, até as falas dele começarem a passar do limite.”

Tatiana* relata que estava sozinha com o agressor em uma das salas do hospital, com soro intravenoso, e que conseguiu se afastar do homem somente depois de cerca de dez minutos, quando uma das enfermeiras o retirou da sala após notar o ocorrido. Por isso, ela afirma que o tipo de roupa não é uma garantia ou uma prevenção para episódios de assédio e importunação sexual. “Eu fui assediada no hospital, numa situação vulnerável onde eu estava doente, de pijama, e impedida de sair. Mesmo assim,

Impasse entre ideia e ação

Coletivos femininos encontram dificuldades práticas para acolher mulheres em casos de assédio e violência sexual nas universidades

Os coletivos femininos são criados em instituições de ensino com o objetivo de ouvir, acolher, promover debates e coibir as diversas formas de assédio e violência moral, sexual, física e psicológica aos quais as mulheres estão expostas na sociedade. Eles servem como uma rede de apoio feminina, que têm como objetivos amparar vítimas de assédio e buscar soluções para responsabilizar os agressores. Ambos os grupos são essenciais para facilitar a comunicação e o debate de temas pertinentes, como os direitos das mulheres e medidas judiciais em casos de assédio. Apesar de os coletivos contarem com planos de ação preestabelecidos e estruturados, eles admitem que, na prática, o projeto apresenta falhas.

O Grupo Lara de Lemos é formado por universitárias voluntárias que acolhem as vítimas e direcionam os casos de assédio para pessoas com mais conhecimento ou para possíveis trâmites jurídicos. O grupo admite inconsistências no atendimento por conta da sobrecarga das voluntárias, que sentem dificuldade em conciliar o projeto de apoio com a vida pessoal. “Resumidamente, fazemos o possível. Mas é uma sobrecarga muito grande.”

Outro coletivo que acolhe as vítimas de assédio sexual na PUCPR é o núcleo feminino do NACAD (Núcleo Acadêmico de Comunicação, Artes e Design), que também realiza ações de debate e conscientização sobre o assédio sexual. Entre palestras e atendimentos de suporte, a presidente do coletivo também admite dificuldades em colocá-lo em prática. “Em teoria, nosso projeto tem tudo para ser uma forma de apoio e auxílio a essas meninas, mas infelizmente ainda não conseguimos colocá-lo em prática com excelência.”

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O medo faz parte da vida das mulheres que temem serem assediadas diariamente.

um homem de pelo menos 60 anos ficou analisando minha roupa falando que eu deveria tirar, porque estava quente. Errados são os homens por acharem que sua roupa é convite.”

Apesar das penas previstas em lei, todas as entrevistadas vítimas de importunação ou assédio sexual sentiram-se desencorajadas a denunciar tais crimes. A maioria afirmou que se sentiu coagida por casos famosos nas quais os agressores saíram impunes, como ocorreu com a digital influencer Mariana Ferrer.

A impunidade é, inclusive, o que motiva Júlia Carvalho* a alertar outras mulheres a não se calarem, desde que o façam com prudência e evitem revidar assédios em momentos nos quais estão sozinhas com o agressor, para se prevenir de agressões físicas. “Precisamos continuar batalhando pelas suas próprias vidas e procurar ajuda de alguma forma, no caso das mulheres que estão passando por assédio e importunação sexual em suas casas, trabalho, em qualquer lugar.”

Para a socióloga Jaqueline Pitanguy, a redução dos casos de assédio e importunação sexual depende de duas medidas complementares: uma reforma no sistema de Justiça e a implementação da educação sexual nas escolas. Para ela, é preciso investir em um novo modelo de formação para policiais, que os ensine a reconhecer casos de assédio e violência contra a mulher. Nas escolas, Jaqueline defende uma educação sexual que transcenda a descrição biológica do ser humano e paute o relacionamento entre meninos e meninas por princípios de integridade e respeito. “Desde os primeiros anos escolares, é preciso conformar identidades femininas e masculinas como complementares e não hierárquicas e fortalecer as meninas para identificar casos de violência em qualquer lugar que elas circulam. E também alertar os meninos sobre os comportamentos de domínio, imposição e importunação. Trazer esse debate para as escolas é fundamental.”

*O nome das vítimas de assédio e importunação sexual foi alterado para preservar as identidades de cada uma.

Saiba mais

Como proceder em casos de assédio sexual, onde denunciar e conheça redes que oferecem apoio.

portalcomunicare.com.br

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