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“Como se fosse uma sobremesa”

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Terror no cinema

Terror no cinema

“Como se fosse uma sobremesa”

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A pandemia acabou por causar um efeito reverso: o porcentual de adultos fumantes que havia decrescido no Brasil, aumentou

Eduardo Veiga Giovana Bordini Mariana Alves Mariana Toneti Para desestressar no período pré-vestibular durante a pandemia, a estudante Maria Eduarda Marcelino, de 17 anos, começou a tragar um mini vaporizador aromatizado, popularmente conhecido como pod. Uma válvula de escape às pressões internas e externas. Além de ter a influência dos amigos, que diziam que fumar acalmava, Maria convive com sua mãe, também fumante. Ela sempre viu o hábito como algo “natural”. Sua rotina consiste em fumar sempre após uma refeição quase como um complemento à comida. Em suas palavras, “como se fosse uma sobremesa”, que se repete de seis a 17 vezes ao dia, dependendo de sua vontade.

Maria Eduarda faz parte dos 34% dos fumantes brasileiros que aumentaram o consumo de tabaco durante a pandemia, conforme apontou a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). A pesquisa também indica que os fumantes entrevistados alegavam ter um deterioramento emocional em decorrência do isolamento. Por isso, acabavam aumentando a quantidade diária de vezes em que fumam. A preocupação dos órgãos de saúde

é dada em resposta ao agravamento de comorbidades no organismo de cada pessoa consumidora de tabaco, assim aumentando a vulnerabilidade a infecções bacterianas.

A relação entre uma maior propensão à contaminação de Covid-19 por tabagistas foi fundamentada por meio de uma análise inicial sobre as mortes causadas pelo vírus na China. Outro fator relevante nesse estudo foi a comparação entre a quantidade de homens fumantes, que supera a quantidade de mulheres. O Brasil conta com um porcentual de 9,5% de adultos fumantes, sendo 7,6% entre mulheres e 11,7% entre os homens, e que, como a China, também tem uma prevalência de fumantes do sexo masculino.

A dentista Carolina Lopes percebeu que entre seus pacientes houve um aumento no número de pacientes que se declaram fumantes. “A maioria dos pacientes jovens chega ao consultório em busca de limpeza e clareamento dental devido a muitas manchas. Manchas que sabemos que são devido ao cigarro.” Fator bastante preocupante, pois o tabagismo aumenta o risco de câncer bucal e também pode levar a perda dos dentes. “Em relação a uma pessoa que não fuma e uma que fuma, o risco aumenta até oito vezes”, afirma Carolina.

Com a intensificação do isolamento social no país, os profissionais que trabalham com saúde mental já previam que o consumo de cigarro, bebidas alcóolicas e outras drogas aumentaria, principalmente somado aos quadros de ansiedade. Para a psicóloga clínica Jéssica Ribas, que atua em casos de dependência química, quem faz uso de tabaco, álcool e outras substâncias também pode apresentar algum quadro de ansiedade, principalmente se o consumo for feito em conjunto. “Essas substâncias são como um prazer momentâneo, agindo até mesmo como uma outra forma de lidar com alguma questão que está difícil para a pessoa.”

A sensação gerada no corpo após o uso de nicotina - enzima presente no cigarro - ativa no cérebro alguns mecanismos que imitam soluções produzidas pelo organismo, como a dopamina, que causa prazer. Já a nicotina traz um contentamento artificial que, a curto prazo, funciona como uma anestesia. Esse é um dos agravantes na compulsão pelo cigarro.

“São como um prazer momentâneo, agindo até mesmo como uma outra forma de lidar com alguma questão que está muito difícil.”

Jéssica Ribas, psicóloga O CIGARRO NA PANDEMIA

No ano passado, a indústria tabagista brasileira gerou mais prejuízos do que ganhos, conforme pesquisa do Instituto Nacional do Câncer (INCA), da Fiocruz, e do Instituto de Efectividad Clínica y Sanitaria. O país gastou com doenças, mortes e baixa produtividade em decorrência do cigarro por volta de R$ 57 bilhões. Nos últimos anos, o país vem sofrendo uma queda no número de fumantes, mas, mesmo assim, o Brasil ainda conta com 12,6%

de mortes diárias em decorrência do tabagismo.

Quanto aos jovens, dados do INCA apontam que a idade média para a descoberta do tabaco entre os escolares brasileiros é de 16 anos de idade, tanto para meninos quanto para meninas. Em uma pesquisa da Organização Mundial da Saúde, em 2015, no mundo, 17% dos jovens entre 15 e 24 anos fumam.

Caso bastante parecido com o do gerente financeiro Murylo Stringari, que desde pequeno conviveu com pais fumantes e o irmão mais velho, que também começou a fumar, apesar de sempre deixaram claro para ele que fumar era errado. “ Não considero que tive algum tipo de influência deles dentro de casa. Inclusive, quando descobriram que eu fumava, ficaram muito decepcionados.” Com a pandemia, Murylo também aumentou o consumo da nicotina principalmente por ficar mais em casa, pois isso o deixava mais ansioso, então acabava “descontando’’ no cigarro. “O cigarro, querendo ou não, acaba se tornando um companheiro teu. Por exemplo, você vai fazer alguma coisa e acaba pensando em fumar um cigarro, e quando termina tal coisa, de novo, pensa em fumar.”

A média diária de consumo do cigarro por muitos brasileiros fumantes aumentou, Stringari por exemplo, fuma aproximadamente 30 por dia, quantidade que é considerada alta para os padrões de fumantes normais, o enquadrando como fumante compulsivo. Para ele, a luta para parar é complicada. “Já tentei parar algumas vezes, mas o corpo demora para se acostumar, então tem que ter muita força de vontade. Espero, sim, um dia, em breve, conseguir parar de fumar, porque realmente sei que faz mal à saúde, e sei que isso só me prejudica.”

FATORES SOCIAIS

Nenhuma substância consumida pelos seres humanos é plenamente entendida como puramente biológica, química, orgânica, neurológica e

Há dois tipos de cigarro eletrônico: os vapers, onde o usário inala apenas um vapor; e os pods, uma versão mais barata e compacta do primeiro.

natural. Para as ciências sociais, todas as substâncias consumidas pelos seres humanos também possuem fatores culturais e históricos, relações de poder que acabam por determinar a maneira como essas substâncias são produzidas, distribuídas e consumidas. Para o sociólogo Leonardo Company, professor da PUCPR, o tabaco em formato de cigarro tem fatores sociais e culturais que determinam que não o tornam diferente de qualquer outra substância. “O cigarro é feito a partir da folha de uma planta natural da América do Sul, que os europeus conheceram a partir do momento em que começa o processo de colonização da América. Os índios não usavam a folha do tabaco somente para fumar, a planta também era utilizada para rituais de cura até mesmo para processos de facilitação do nascimento e assim por diante.” A partir do século 19, o tabaco passou a ser a matéria-prima de um produto industrializado, que para crescer economicamente foi usado de forma intensa na indústria cultural para que fosse comprado, o cigarro. A aderência quase massiva do tabaco ocorreu, principalmente, por meio da influência das mídias cinematográficas, e que mais para frente também acabou por influenciar o aparecimento de propagandas das marcas de cigarro em diversos setores do entretenimento. “O cigarro começou a ser associado a uma imagem de glamour, prestígio, trazendo uma imagem de elegância tanto para homens quanto para mulheres. É claro como não havia nenhuma lei proibindo ou controlando o consumo de cigarro, já que esse produto foi sendo amplamente comercializado e consumido mundo afora”, comenta Company. Porém, com a Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, veio a determinação de que qualquer publicidade de tabaco estaria sujeita a restrições legais e que deveria conter advertências sobre os malefícios decorrentes do seu uso. As pesquisas sobre o cigarro na década de 1990, que o associavam a um fator negativo para saúde, trouxeram a restrição de propagandas e do consumo de cigarros em locais fechados. No Brasil essa limitação veio por intermédio da Lei n° 12.546/2014, popularmente conhecida como Lei Antifumo, que proíbe fumar em ambientes fechados públicos e privados, que veio em contrapartida a Lei nº 9.294/1996, que permitia a

“Querendo ou não, acaba se tornando um companheiro teu. Você vai fazer alguma coisa e acaba pensando em fumar um cigarro.” existência de áreas reservadas para fumantes em recintos coletivos, os chamados “fumódromos”. Apesar da restrição de propagandas e dos locais para fumar, o fácil acesso e preços baixos continuam sendo fatores facilitadores para o consumo de taba-

Murylo Stringari, gerente fi nanceiro

co, principalmente entre os jovens, uma vez que, de acordo com o INCA, o cigarro traz alusão à aceitação e popularidade, proporcionando uma futura dependência de nicotina.

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O debate sobre a legalização dos cigarros eletrônicos tem ganhado fôlego no Brasil. Confi ra mais acessando o link. portalcomunicare.com.br A legalização dos cigarros eletrônicos

Os cigarros eletrônicos, conhecidos popularmente como vapes, são dispositivos utilizados para a produção de vapor. Basicamente, o que acontece no interior do equipamento é a queima e a vaporização de um líquido aromatizado, chamado de juice. Em relação à essência, são diversos os modelos: doces, cítricos, gelados, mentolados, com nicotina ou sem nicotina. A segunda opção é um chamariz para as pessoas que desejam largar o vício pelo cigarro tradicional.

No mercado, existe também uma outra opção, os pods. Um pouco menor que o vape, esse tipo de dispositivo é a opção mais fi el ao cigarro tradicional, uma vez que o objetivo não é a produção massiva de fumaça. Além disso, é comum que os pods tenham alto teor de nicotina nas essências. Com o crescimento do mercado dos dispositivos eletrônicos para fumar, atualmente já existe uma opção de pods descartáveis. De acordo com a BAT Brasil, é estimado que, atualmente, mais de 2 milhões de pessoas utilizam os dispositivos no

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