Edição nÚmero 5 - agosto
A SIRENE
PARA NÃO ESQUECER
“
Atingidos? Eu tinha um açougue em Bento Rodrigues, era minha
principal fonte de renda. Perdi minha casa, meu estabelecimento comercial e toda minha mercadoria. Hoje estou em Mariana e recebo o cartão. Mas não recebi adiantamento da indenização.” Agnaldo Silva “Eu gasto mil e duzentos reais só de taxi todo mês para resolver o problema de saúde que a minha filha desenvolveu em decorrência da poeira de rejeito que tomou conta de Barra Longa. Não recebi adiantamento de indenização.”
Simone Silva
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EDITORIAL Em nove meses, desde o rompimento da barragem de Fundão, a luta por direitos ainda é marcada por indefinições e insegurança. mais do que nunca, o espírito da união, da luta coletiva, mostra-se essencial. É o que reforça Espedito Silva, atingido de Bento Rodrigues, em seu depoimento sobre as mudanças na vida dos pequenos comerciantes atingidos. A definição sobre quem deve ser considerado atingido ainda é uma disputa, o que dificulta o entendimento e a luta pelos direitos. A suspensão do “Acordão”, discutida na edição anterior, trouxe novas inseguranças e o receio de que esse debate pode continuar sem a participação coletiva. Nesta edição, buscamos contribuições para melhor compreensão sobre essa grande controvérsia. A possível construção do “dique” S4 nas terras de Bento Rodrigues amplia a insegurança sobre o direito à propriedade e à manutenção das memórias. Em mais uma matéria sobre o tema, buscamos esclarecer de que forma essa proposta poderá afetar Bento Rodrigues e toda a bacia do rio doce. As comunidades buscam manter suas tradições para se fortalecerem. Em mariana, o direito à propriedade é reforçado pelos atingidos de Bento Rodrigues com muita persistência. Em Barra Longa, a marujada reforça as tradições populares e a relação da cidade com o rio, atingido pelo rejeito. As aflições de Barra Longa dialogam também com a primeira edição do A Sirene, “Viver tem sido uma Barra”, e reforça outras dimensões da nossa luta como atingidos: a presença latente da morte (no soneto de Sérgio Papagaio), os problemas de saúde decorrentes do rompimento da barragem de Fundão e a luta pelo direito de trabalhar. Por tudo isso, torna-se cada vez mais urgente a necessidade de assumirmos uma postura ativa na reconstrução do nosso modo de vida, como protagonistas de nossas própria luta e com o direito de escolher quem poderá nos ajudar nessa caminhada. Nesse sentido, trazemos um texto com esclarecimentos sobre assessorias técnicas, direito pelo qual também precisamos lutar. A história de isabella, uma criança de 8 anos, moradora de Pedras, fecha essa edição lembrando-nos o valor da natureza, tão intrinsecamente relacionada à vivência de todos nós, que reivindicamos o cheiro das matas e frescor dos rios tão presentes nas nossas memórias.
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Todas/os merecem ser acolhidas/os! Acolher é estender as mãos quando o outro mais precisa, possibilitando que novos caminhos sejam construídos. A verdadeira acolhida acontece quando olhamos para o lado e nos deparamos com as histórias, as necessidades, o olhar do outro sobre a vida e compreendemos e respeitamos as diferenças. Acolher significa respeitar e, se possível, entender. Significa estar cada vez mais junto. E este gesto tão importante e grandioso possibilita o exercício do amor fraterno Pratique essa ideia. Acolha!
CUIDADO Não assine nada: Se tiver dúvidas sobre o conteúdo. Se precisar de ajuda de um advogado ou qualquer outro especialista. Se alguém disser que “todo mundo já assinou, só falta você”. Se você quiser consultar algum familiar antes. Se alguém disser que “se não assinar, não terá mais direito”. Atenção! Se alguém tentar fazer você assinar qualquer coisa, procure o ministério Público ou a Comissão dos Atingidos. O tempo para analisar e questionar qualquer documento é seu! Leve essa mensagema todos os outros atingidos!
EXPEDIENTE Atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão/mariana | Apoio: #UmminutodeSirene, UFOP, Arquidiocese de mariana, movimento dos Atingidos por Barragens (mAB) | Editor: milton Sena | Colaboradores: Adelaide dias Novaes, Ana Elisa Novais, Antônio geraldo dos Santos, Cristiano José Sales, Elke Pena, Espedito Lucas da Silva, Felipe Pires, Fernanda tropia, genival Pascoal (geninho Bravo), Juçara Brittes, Lucas de godoy, isabella Walter, Lucimar muniz, Luiza geoffroy, manoel marcos muniz, marília mesquita, marlene Agostinha, mônica dos Santos, Sérgio Papagaio, Silvany diniz, Simone maria da Silva, Stênio Lima | Fotografia: Ana Elisa Novais, Lucas de godoy, Rui Souza, Stênio Lima | Projeto Gráfico/Diagramação: Larissa Pinto, marilia mesquita, Silmara Filgueiras, Stênio Lima | Revisão: Ana Elisa Novais, Elke Pena, giovani duarte | Agradecimentos: débora Rosa, Pe. geraldo martins, ministério Público de minas gerais, gEdEm (grupo de Estudo sobre discurso e memória), gEStA (grupo de Estudos em temáticas Ambientais) | Impressão: Sempre Editora | Tiragem: 2.000 exemplares | Contato: jornalasirene@gmail.com.
Realização:
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Agenda Informes Julho 07 – A Samarco informou que assinou com o Ministério Público de Minas Gerais, Termo de Compromisso Preliminar,
tendo como objetivo a adoção de medidas emergenciais que visam à preservação do Patrimônio Cultural sacro existente nas localidades de Bento Rodrigues, Paracatu e Gesteira, afetadas pelo rompimento da Barragem de Fundão. Dentre as obrigações foi instituída a reserva técnica, localizada em Mariana, espaço físico destinado para recebimento e guarda do acervo do material resgatado em campo. O espaço passa por adequações. Este acervo conta hoje com mais de 700 (setecentas) peças, estando programada para dezembro uma exposição com itens.
21 - Foi acordado entre a Comissão dos Atingidos, os atingidos e a Samarco Mineração S.A o auxílio para pagamento das
contas de luz dos atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão. Para efetivação deste acordo, os inquilinos residentes em casas alugadas pela Samarco deverão apresentar, a partir do dia 08/08/15, as contas de luz dos meses de agosto/setembro/outubro de 2015 e também as contas de abril/maio/junho de 2016, assim como o termo de transferência da titularidade das contas em nome do titular do cartão chefe de família. É necessária a presença do titular do cartão Policard. A diferença média do gasto com energia elétrica será paga retroativo a março /2016.
Agosto 01, 15, 29 Reunião Grupo de Trabalho Temático de Pedras – 17:00 h – Escritório dos Atingidos.
01, 08, 10, 22, 25
Reunião Interna da Comissão dos Atingidos – 18:00 h – Escritório dos Atingidos.
02, 09, 16, 23, 30
Reunião Grupo de Trabalho Temático de Bento Rodrigues – 18:00 h – Escritório dos Atingidos.
03, 10, 17, 24, 31 Reunião Grupo de Trabalho Temático de Paracatu – 18:00 h – Escritório dos Atingidos.
O4 Reunião Pública Geral dos Atingidos de Mariana/Samarco/Ministério Público – 18:00 h Centro de Convenções.
18 Assembleia Pública Geral dos Atingidos de Mariana/Ministério Público – 18:00 h Centro de Convenções. Reunião Pública Geral da Comissão dos Atingidos de Mariana/Comunidades Atingidas de Bento/Paracatu e demais localidades – 19:00 h Centro de Convenções.
25 Reunião Pública Geral dos Atingidos de Mariana/Samarco/Ministério Público – 18:00 h Centro de Convenções.
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DIQUE? O QUE É?
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DIQUE S4 -
Diques, assim como barragens, são estruturas para conter água. O termo tem origem na palavra holandesa “dijk”, que se refere ao lugar onde esses recursos são muito usados para controlar inundações. A principal diferença entre diques e represas é que os primeiros normalmente são estruturas mais simples, geralmente construídas com terra e rochas. Por ser um suporte de tamanho considerável, a escolha da posição de um dique visa ao menor custo de construção e à maior capacidade de represamento. O solo abaixo da estrutura precisa ser resistente, para suportar seu peso, e pouco permeável, para impedir a passagem da água por baixo da estrutura. A construção de um dique tem como resultado o represamento da água e, portanto, o alagamento de uma área. No caso de Bento Rodrigues, o dique S4 irá alagar propriedades particulares, e o tamanho da área alagada ainda não é claro para os atingidos. “A Samarco pretende, ainda, construir outros três diques dentro do Rio Gualaxo do Norte até o Município de Barra Longa para reter os rejeitos trazidos para a calha do rio por erosão em seguida à ocorrência de chuvas, operação essa ainda não autorizada.” Relatório Final - Comissão Extraordinária das Barragens/Belo Horizonte 2015/2016 “Durante o início das obras do Dique S4 (abertura de acessos para sondagens), foi mapeada a existência de trechos de muros na região do Bento com significativo valor cultural (muros arqueológicos). A necessidade de levantamento das peças desses muros gerou a paralisação temporária das obras de construção do Dique S4.” Trecho do Parecer do Comitê Interfederativo. “(...) foi solicitado à Samarco apresentar os estudos de alternativas ao S4 de forma detalhada e justificada, com foco nas características estruturais além de locacionais.” Nota Técnica IBAMA, 29 de Junho 2016
Foto: Dique S3
COMUNIDADE O que o dique S4 irá alagar? Somente casas e ruínas? Ou também memórias? Ninguém será arbitrariamente privado da sua propriedade? Como vamos acessar o Bento? Participar das decisões acerca do futuro é um direito, e, antes de tomar qualquer decisão, devem-se conhecer outras alternativas. “A construção do dique S4, para mim, tem outros motivos além de conter rejeitos que ainda restam da barragem de Fundão. Pela quantidade de lama que ainda existe, penso que ele é insuficiente para remendar todos os problemas que possam vir com o período chuvoso que se aproxima. A empresa tem que encontrar outro meio para solucionar seu problema. Não podem ferir ainda mais os sentimentos das pessoas. Já sofreram demais por ter perdido seu lares.” Antônio Geraldo dos Santos “Para mim, não podemos admitir que a cena do crime seja encoberta com a água e rejeito. As únicas prova e garantia que temos são as ruínas e as casas que sobraram. A construção do dique S4 é inadmissível neste momento. Não conseguimos assimilar a perda que tivemos e tão cedo eles já querem tomar o que é nosso, aquilo que levamos gerações para construir. Querem nos furtar. Estão usando a forma mais covarde para fazer isso: quando dizem que a única solução é a construção do dique S4, querem nos por contra a parede, quando na verdade acho que querem é tirar o que é nosso.” Antônio Geraldo dos Santos
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- Problema ou solução? CONFIANÇA “(...) Devido à inação da empresa para retirada do rejeito acumulado nas margens dos cursos d’água, observou-se, ainda durante a última visita técnica, que a água do Rio Gualaxo do Norte continua turva, mesmo após ter sido limpa pelo dique S3, piorando sua turbidez ao longo do caminho, pelo carreamento da lama.” Relatório Final - Comissão Extraordinária das Barragens/Belo Horizonte 2015/2016 “A empresa tem a proposta dela para o dique e dá várias garantias de como tudo será feito. Mas, depois de 9 meses do rompimento da barragem, podemos confiar plenamente no discurso dela? Quem garante que não haverá alteamento do dique S4 após um tempo, com o argumento de que sem altear ele não vai resolver o problema de descida da lama? Se ele for alteado, vai alagar uma área maior ainda da comunidade de Bento Rodrigues. Há muito mais coisa em jogo: provas do crime, cultura, história.” MAB “Em relação à construção do dique, quem irá fiscalizar o dique S4? Os mesmos órgãos ambientais que deveriam fiscalizar a barragem que se rompeu? Se o dique S3 não foi suficiente, o dique S4 será? Quem garante a segurança de um dique feito às pressas? Todas as comunidades devem ficar atentas a essa questão, porque, se os diques não forem seguros, será mais transtorno para as comunidades rio abaixo, como Ponte do Gama, Paracatu, Pedras, Campinas, Gesteira etc.” MAB
POR Antônio Geraldo dos Santos, Cristiano José Sales, Lucimar Muniz e Manuel Marcos Muniz Com apoio de Felipe Pires, Isabella Walter, MAB e Stênio Lima
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Direito de entender Por Milton Sena e Antônio geraldo dos Santos Com apoio de Adelaide Dias, Felipe Pires, Isabella Walter e Marília Mesquita Assessoria Técnica é o serviço de profissionais de confiança, com conhecimentos especializados para dar apoio a uma ou mais pessoas na hora de tomar decisões. Por exemplo, imagine que você vai comprar um carro usado. Você vai à concessionária e pede a um atendente que lhe indique um modelo de acordo com seus costumes e necessidades. Para se decidir, você leva o carro a um mecânico de sua confiança. Ao responder suas dúvidas, o mecânico, nesse caso, está fazendo o papel de uma assessoria técnica. Pensando no caso dos atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão, a assessoria técnica coletiva é um direito exigido pela Ação Civil Pública de 10 de dezembro de 2015. Ao ser contratada, irá acompanhar e garantir uma participação com segurança em etapas como: escolha do terreno de reassentamento, cadastro socioeconômico, definição do valor das indenizações, desenvolvimento de projetos de reconstrução, recuperação ambiental de área degradadas, apoio psicológico, preservação do patrimônio cultural, entre outros.
“
A Samarco não tem qualquer gerência sobre a assistência técnica; a assistência técnica é para a parte autora do processo, não para os réus do processo. A empresa deve apenas custear esses valores. É importante frisar que o dinheiro da assistência técnica não vai ser retirado do dinheiro das indenizações. isso não vai gerar qualquer prejuízo para os atingidos.”
Guilherme de Sá Meneghin Promotor de Justiça do ministério Público de minas gerais
A assessoria técnica, com uma formação que compreende várias áreas, tem o propósito de ajudar os atingidos a fazer a leitura daquilo que a empresa está propondo, através de um grupo de confiança dos atingidos.” Padre Geraldo Martins Coordenador Arquidiocesano de Pastoral
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Segurança
até que ponto? A Samarco instalou esta sirene no distrito de Paracatu de Baixo depois do rompimento da barragem. A foto foi feita em abril de 2016. Hoje, agosto de 2016, a Sirene não está mais lá.
Por Marcos Muniz Com apoio Ana Elisa Novais, Silvany Diniz E Stênio Lima
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Manoel Marcos Muniz, conhecido como Marquinhos, morou desde os 6 anos de idade em Bento Rodrigues, terra natal de seu pai, seu Neco. Por 29 anos e 10 meses trabalhou na Samarco Mineração até se desligar no dia 04 de novembro de 2014. A partir de um bate-papo cheio de inquietações ele descreve o cotidiano de uma empresa movida por rígidas regras de segurança que lhe garantiam a sensação de trabalhar em um ambiente protegido. “A realização de APR (Análise Preliminar de Risco), de DDS (Diálogo diário de Segurança), de tagueamentos que são o bloqueio de equipamentos para manutenção, de exames toxicológicos, de simulações com portas de emergências, de descrições de riscos e pontos de encontros, de treinamentos e cursos de reciclagem era comum em minha rotina. Não se admitia a improvisação de ferramentas ou equipamentos, e exxigia-se a troca ou a manutenção imediata dos itens que não se encontravam em conformidade com as normas de segurança da empresa. Eu trabalhei em uma empresa que tem um trânsito interno com velocidade controlada. Que faz cumprir procedimentos como a utilização de óculos de segurança, botas, capacete, protetor auricular, luvas, máscaras, que realiza SIPATs (Semana Interna de Prevenção de Acidentes), com todos os funcionários, incluindo os terceirizados. Que construiu credibilidade nacional e internacional junto ao mercado, conquistando selos de qualidade e prêmios de excelência na área. A severidade da empresa em relação à segurança se resume em uma frase emblemática: acidente com vítima é inadmissível. No dia 05 de novembro de 2015, um ano e um dia após meu desligamento e início do processo de aposentadoria, eu vi a minha terra, Bento Rodrigues, ser destruída pelo rompimento da Barragem de Fundão, pertencente à mesma empresa em que eu vivenciei rotinas de procedimentos de segurança interna. Ao ver a confiança e o respeito pela empresa na qual trabalhei se desfazerem, eu me pergunto: por que uma empresa que visa tanto à segurança conviveu durante anos com uma barragem que tinha risco eminente de se romper? Por que uma empresa reconhecida por seus selos de qualidade e prêmios de excelência não prioriza as leis de Barragens? Com tanta segurança interna, por que não havia sirene em Bento?
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SAMARCO MINERAÇÃO O termo de transação e de Ajustamento de Conduta (ttAC), firmado em março deste ano e conforme discussão com as autoridades públicas competentes, criou critérios para definir os impactados. [Ver critérios no texto do ttAC (Acordão), disponível em www. cbhdoce.org.br]. tiveram direito ao adiantamento de indenização as pessoas que tiveram perda de imóvel (R$20 mil), casa com toda a mobília incluída, e perda de familiar (R$ 100 mil), segundo critérios definidos no termo de Ajustamento de Conduta (tAC) firmado com o ministério Público de minas gerais no dia 23 de dezembro de 2015. Os direitos variam para cada tipo de impacto. Um programa de cadastramento dos impactados abrangerá todo o território impactado em minas gerais e no Espírito Santo e será finalizado até o final deste ano. O cadastro nesta fase é fundamental para o mapeamento de necessidades, levantamento de informações para realização de futuras ações para mitigar os impactos causados pelo rompimento da barragem de Fundão.
Profa. Raquel Oliveira - GESTA – Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais – UFMG O conceito que a Samarco realiza parece uma simplificação das noções de deslocamento físico e deslocamento econômico do Ressetlement Handbook da international Finance Corporation (iFC), que é um braço do grupo Banco mundial. mas o conceito de habitação regular do iFC é complicado porque as áreas rurais e urbanas estão conectadas na vida das pessoas. Uma família pode precisar morar temporariamente na cidade, por questões de acesso a serviços de saúde e educação, ou pode dividir seus dias entre a casa na roça e na cidade. Como determinar o que é habitação regular? deslocado físico não é aquele que perdeu habitação regular, mas aquele que sofreu realocação física decorrente da impossibilidade de manter antigas formas de vida. Na minha opinião, essa concepção é limitada, mas o modo como tem sido operacionalizada pela mineradora pode reduzir ainda mais o direito dos atingidos.
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Por Antonio Geraldo Santos, Genival Pascoal, Lucimar Muniz Com Apoio de: Ana Elisa Novais, Elke Pena, Silmara Filgueiras Prof. Willian Menezes Departamento de Letras - UFOP GEDEM (Grupo de Estudos sobre Discurso e Memória) Atingidos e impactados são termos que, por vezes, podem ser trocados um pelo outro, entretanto, não são termos iguais; em casos concretos nem sempre um pode ser trocado pelo outro sem alguma perda de sentido. O caso do rompimento da barragem é um deles. O atingido é um sujeito de direitos – um cidadão – que sofreu perda (material, psicológica, simbólica, ambiental etc.) em decorrência de um fenômeno externo e cujo responsável é um outro sujeito (no caso a mineradora). Apesar de todas as perdas, não perderam a condição de sujeitos de direitos. Assim, o termo impactados, quando aplicado aos atingidos, parece ser insuficiente para dar conta dos direitos porque representam, ao mesmo tempo, uma dimensão mais fluida em termos da definição de direitos e ressarcimentos.
Profa. Andrea Zhouri – GESTA – Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais – UFMG muitas pessoas que não perderam casa ou emprego, mas perderam terrenos, plantações, criações, pasto para gado, perderam com isso muitos trabalhos e tiveram também suas vidas alteradas de diversas formas pelo rompimento da barragem. Assim, deveriam ser indenizadas imediatamente. A definição de quem vai ser incluído e quem será deixado de fora não deveria se tornar uma disputa entre os atingidos. Um levantamento a partir da perspectiva dos atingidos seria essencial. direitos não deveriam ser negociados dessa forma, externa à realidade das pessoas envolvidas, que traz sofrimentos e perdas adicionais às vítimas.
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Profa. Rita de Cássia Liberato – Professora do Departamento de Ciências Sociais da PUC Minas. Eduardo Gontijo – Graduando em Ciências Sociais pela PUC Minas O termo “atingidos” é usado para designar pessoas ou comunidades abrangidas, acertadas, acometidas, afetadas ou impactadas por fenômenos naturais (tempestades, enchentes, deslizamentos, etc.) ou decorrentes de ações antrópicas (produzidas pelos seres humanos), como construções de barragens, alteração de cursos de rios, construção de estradas, incêndios, rompimento de barragens, etc. A expressão impactado/as, empregado pela Samarco, reduz as perdas e, por extensão, o sofrimento, pois as pessoas podem ser impactadas por informações, notícias, etc.
MAB (Movimento do Atingidos por Barragens) Os critérios para definição de quem é atingido devem ser construídos pelas próprias famílias e devem estar claros para todos, de forma a garantir que todos os atingidos sejam reconhecidos como tais. O que vemos em mariana, Barra Longa e ao longo do Rio doce é justamente o contrário. Os atingidos não construíram os critérios e não têm clareza sobre eles. Alguns critérios adotados, inclusive, não correspondem à realidade das famílias. Há muitas dúvidas de por que algumas famílias receberam cartão e outras não, por que algumas famílias receberam R$20 mil e outras R$10mil. Em toda a bacia do Rio doce há muitas famílias que ainda não receberam nada.
GIDO
Um conceito em disputa
Decreto Presidencial 7.342/2012 www.planalto.gov.br Art. 2o - O cadastro socioeconômico previsto no artigo 1o deverá contemplar os integrantes de populações sujeitas aos seguintes impactos: i - perda de propriedade ou da posse de imóvel localizado no polígono do empreendimento; ii - perda da capacidade produtiva das terras de parcela remanescente de imóvel que faça limite com o polígono do empreendimento e por ele tenha sido parcialmente atingido; iii - perda de áreas de exercício da atividade pesqueira e dos recursos pesqueiros, inviabilizando a atividade extrativa ou produtiva; iV - perda de fontes de renda e trabalho das quais os
atingidos dependam economicamente, em virtude da ruptura de vínculo com áreas do polígono do empreendimento; V - prejuízos comprovados às atividades produtivas locais, com inviabilização de estabelecimento; Vi - inviabilização do acesso ou de atividade de manejo dos recursos naturais e pesqueiros localizados nas áreas do polígono do empreendimento, incluindo as terras de domínio público e uso coletivo, afetando a renda, a subsistência e o modo de vida de populações; e Vii - prejuízos comprovados às atividades produtivas locais a jusante e a montante do reservatório, afetando a renda, a subsistência e o modo de vida de populações.
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Mãos que não querem parar Por Espedito
lucas Silva, Iracema Pereira de Oliveira, Valéria Souza, comerciantes de Barra Longa Com apoio de Ana Elisa Novaes, Juçara Brittes, Larissa Pinto, MAB, Silvany Diniz
ESPEDITO Eu perdi uma parte do mel que produzia na minha casa em Bento Rodrigues. Eu mesmo fazia minhas caixas e dava manutenção, o que barateava os custos. Eu vendia no atacado, aqui em Mariana, e vendia para Mel Santa Bárbara também. Eu perdi todos os materiais da apuração do mel mais as vinte e cinco colmeias produtivas. Eu perdi mais ou menos meio a meio das colmeias. Depois de muita burocracia eu consegui pegar as que sobraram no Bento, e elas nem estavam na área de risco. Mas eu peguei a liberação com a Defesa Civil e levei tudo sozinho. Hoje tá muito difícil apurar o mel. Tenho que fazer isso em Fonseca, em casa de favores, por causa das máquinas que eu não tenho mais. Se juntar o geral, o meu trabalho mais o cartão da Samarco, dá mais ou menos a mesma coisa. Mas aumentou a dificuldade, porque eu produzia na minha casa e agora, tenho que andar cinquenta quilômetros. Também, o custo de vida aqui em Mariana é muito mais caro. Lá eu trabalhava de pedreiro de dia e, à tarde, apurava o mel. Como eu faço isso aqui hoje? Hoje eu não consigo trabalhar de pedreiro. Mas, na verdade, o que eu sofro é sair da rotina. Eu consigo, com ou sem a Samarco, me manter. Mas a minha preocupação não é comigo. Eu tô na luta é porque tem gente que perdeu tudo. Não é o eu, é a comunidade. Nós hoje estamos recuados. Eu queria deixar uma mensagem pra mantermos sempre a união e não abrirmos mão dos direitos. Manter sempre a esperança e a luta pra conseguir os objetivos em conjunto. IRACEMA Em Paracatu, eu tinha minha sorveteria. Tinha fila e mais fila. Eu tinha ganhado uma receita bem natural de uma amiga, com leite tirado da vaca, fruta colhida no quintal. É segredo nosso! Fiz o primeiro pote de sorvete, vendi tudo. Depois a venda se repetiu e foi dando lucro. Aí comprei meu primeiro freezer e fui ampliando o negócio. Quando teve o desastre, eu tinha comprado um grande estoque para a sorveteria, com o dinheiro das vendas do feriado de finados. Nem deu tempo de fazer o sorvete. Perdemos tudo: casa, criacão, horta e a obra para ampliação da sorveteria. A Samarco me propôs alugar um ponto pra eu retomar a sorveteria em Mariana, mas, aqui, tem muita concorrência, os ingredientes caros e todos artificiais. Não tem como dar certo. Então, de comerciante, eu passei a ganhar 20% do salário mínimo. Foi difícil perder tudo. Não só a sorveteria, mas minha máquina de costura também. Ela era especial: com as costuras consegui comprar meu primeiro freezer para guardar o sorvete caseiro que eu fazia. Eu ganhei uma máquina nova de uma jornalista. Com ela ganho uns trocados fazendo pequenos consertos. Não sou mal-agradecida, mas o sentimento é diferente.
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VALÉRIA Eu mexia com cabelo desde nova,e quando me tornei maior de idade, fichei na Vix. Trabalhei lá por seis mêses como sinaleira na barragem que estourou. Já saí de lá fichando na Manserv. E mexia com cabelo também. Depois de uns anos, saí da Manserv e fiquei trabalhando só com cabelo. E comecei fazer pão também pra vender. Hoje eu só trabalho com cabelo. Eu perdi tudo, tudo mesmo. Eu ia na casa das pessoas ou as pessoas iam lá em casa. Dos materiais de fazer pão, perdi as formas: eu assava o pão no fogão de lenha. Aqui não dá pra fazer, porque gasta muito gás, demora mais, não fica tão bom, não compensa. Quando a barragem estorou, eu fiquei morando em hotel e Luciane Carneiro, me chamou pra trabalhar lá no salão dela. Foi um momento bom, com movimento de final de ano, uma ajuda e tanto. Aí eles alugaram minha casa, eu mudei pra cá, pro salão da Ana Lúcia. E tô aqui, só mexendo com cabelo. Lá no Bento eu ganhava menos, mas fazia mais com o dinheiro do que o que eu faço aqui. Aqui o gasto é muito maior. Tudo aqui a gente tem que comprar. Eu quero voltar pro meu lugar, sair da cidade, voltar pro Bento. COMERCIANTES DE BARRA LONGA Nós, os comerciantes da Rua Venâncio Lino Mol, da cidade de Barra Longa/MG, estamos passando por momentos difíceis desde o rompimento da Barragem de Fundão, da mineradora Samarco. Estamos indignados com tanto descaso da empresa com relação à nossa situação que ainda não foi solucionada. Estamos fora do nosso estabelecimento desde a data da tragédia e até hoje não obtivemos uma resposta de quando voltaremos ao normal. Já procuramos os responsáveis pelo comércio e apresentamos o orçamento para mon-
tar a loja para que voltássemos o mais rápido possível, mas não recebemos o retorno favorável. Estamos trabalhando em outro ponto comercial longe dos outros comércios e em uma loja que não oferece espaço suficiente para uma boa exposição das mercadorias o que vem ocasionando perdas nas vendas e perdas de mercadorias. Gostaríamos que a empresa Samarco tivesse mais sensibilidade para conosco e conseguisse solucionar nossos problemas. Loja Opção, Isabela Calçados, Priscila Presentes
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De fora pra dentro Por Simone Silva Com apoio de ana Elisa novais, Marília mesquita e Silvany Dinis.
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Meu patrão O navio chegou no mar Hoje o remo tá quebrado Eu não posso navegar Hoje o remo tá quebrado Eu não posso navegar” (Canção do Marujo)
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Em gesteira pelo menos trabalhamos muito com a cultura. A gente fazia a Folia de Reis lá. Hoje parou tudo, porque espalhou o pessoal todo. Os mais velhos estão morrendo, e os mais novos não querem mexer com essas coisas. mas eu tenho vontade de tá voltando. tudo de novo. dançando lá, cantando Folia de Reis. tô aposentando. E, se deus quiser, quando aposentar, eu vou voltar a mexer. Em Barra Longa os marujos de Nossa Senhora Aparecida têm mais de 100 anos, vieram com os escravos e é passado de pai para filho. Hoje o mestre é o Zé; e antes era o pai dele, e foi o avô dele que passou para o pai, e o pai depois pra ele e para o Antônio, que é falecido. marujo vem de marinheiro, e a folia tem dança e canto. É para a Santa d’Água e é diferente do Congado, que é para Nossa Senhora do Rosário. Em 1979, com a enchente que deu em Barra Longa, nós perdemos tudo. Na casa em que ficavam os pertences, foi tudo embora. Aí nós reunimos tudo de novo, foi juntando. A márcia foi quem montou tudo pra nós de novo na época, e a gente foi reerguendo. Hoje estamos aí. Agora somos eu e o Zé. mas para nós tornou muito difícil. Roupa e calçado são muito caros e, pra gente sair avacalhado, a gente não vai sair. mas pra nós é muito importante e pra cultura da cidade é muito importante. mas é coisa que a gente mesmo dá jeito. A gente sempre que comprou, que procurou as costureiras pra fazer as roupas. Só que eu tô no marujo já tem 40 anos. mas eu sou um dos que não era da família. Sou um que veio de fora e encaixou lá dentro. (José mauro marra, 59 anos)
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Acolhida, esperança e resistência Falar sobre a festa do nosso padroeiro, São Bento, este ano é muito difícil, pois era um momento aguardado com muita ansiedade e alegria por todos, onde a comunidade se envolvia nos preparativos com muito empenho e ansiedade para que tudo saísse perfeito. Este ano, porém, foi um momento de mais reflexão. Por termos perdido todas as nossas referências, principalmente a nossa Capela, a imagem de São Bento e tudo mais, pedimos a Deus coragem para prosseguir e celebramos com muita fé em
uma capela emprestada, tomamos as ruas que não eram as nossas com uma imagem doada por irmãos de outra comunidade. Chorei e agradeci durante todo o trajeto, pois, se não fosse a intercessão de São Bento junto a Deus todo poderoso, não estaríamos nem em outra Capela, nem em outras ruas celebrando o nosso glorioso São Bento. Este ano não foi somente celebrar São Bento, mas também de agradecer a vida. Obrigada São Bento! Mônica dos Santos
Além da festa em Mariana, no dia 30 de julho, São Bento também foi celebrado no território arrasado pelo rejeito, com procissão, celebração, queima de fogos e o hasteamento da bandeira do padroeiro. Uma festa marcada por união e perseverança dos ex-moradores de Bento Rodrigues.
A festa de São Bento, celebrada em Bento Rodrigues, foi um momento importante na nossa luta pelo direito à propriedade. Junto a esse acontecimento, é também simbólico o sepultamento de Suely da Conceição Sobreira, em 28 de julho. Essa data foi a primeira vez em que todos conseguiram entrar em suas terras, tendo acesso digno via estrada original, fato insistentemente cobrado por todos desde dezembro quando a empresa se apropriou da área. A morte de Suely foi a terceira ocorrida desde o rompimento da barragem. Apesar de momentos de extrema tristeza, cada uma dessas mortes teve um papel importante em nossa luta. O primeiro falecido, Adilio Monteiro (o Mudo), ocorrido em
março, provocou as primeiras reflexões e cobranças à Samarco a respeito do direito ao sepultamento na comunidade de origem. Rafael Silva faleceu em junho, às vésperas da festa junina da escola local, outra festa que também era bastante aguardada por todos. A partir da notícia da morte da criança, escola e voluntários se organizaram para enriquecer a festa ofertada às crianças e a seus familiares. A festa de São Bento e o sepultamento no território de Bento Rodrigues são formas de continuar uma tradição e de mostrar a quem pertence aquele chão e o que deve ser feito dele. Manifestações de esperança, resistência e força. Lucimar Muniz
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com aPoio dE larissa Pinto, lucas godoy E stÊnio lima
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A morte vive: em Bento e toda bacia morreu José, Antônio, Pedro e maria morreu o grande sonho que existia morre mato, bicho e peixe d’água fria A morte coexiste ao corpo que sumiu Na proporção da esperança que partiu morre Paracatu deixando tristeza e dor morre o gualaxo que a morte carregou morre Pedras, Barreto, mandioca e gesteira O povo sofre os males desta maldita poeira E vive o medo de germano na cordilheira morrem assim todos os planos do velho e da criança morre por fim o Carmo e o doce da minha infância Resta a certeza de que a morte vive nesta instância
Lição do Rato Um rato olhando pelo buraco na parede, vê o fazendeiro e sua esposa abrindo um pacote. Pensou logo no tipo de comida que haveria ali. Ao descobrir que era ratoeira ficou aterrorizado. Correu ao pátio da fazenda advertindo a todos:
havia pego a cauda de uma cobra venenosa. E a cobra picou a mulher...
O fazendeiro a levou imediatamente ao hospital. Ela voltou com febre. todo mundo sabe que para alimentar alguém com febre, nada melhor que uma canja de galinha. O fazendeiro - Há ratoeira na casa, ratoeira na casa! pegou seu cutelo e foi providenciar o ingrediente principal. A galinha: Como a doença da mulher continuava, os amigos e vizinhos - desculpe-me Sr. Rato, eu entendo que isso seja um grande vieram visitá-la. Para alimentá-los, o fazendeiro matou o porco. problema para o senhor, mas não me prejudica em nada, não A mulher não melhorou e acabou morrendo. me incomoda. muita gente veio para o funeral. O fazendeiro então sacrificou O rato foi até o porco e: a vaca, para alimentar todo aquele povo. - Há ratoeira na casa, ratoeira! moral da História: Na próxima vez que você ouvir dizer que - desculpe-me Sr. Rato, mas não há nada que eu possa fazer, alguém está diante de um problema e acreditar que o problema a não ser orar. Fique tranquilo que o Sr. será lembrado nas não lhe diz respeito, lembre que quando há uma ratoeira na casa, toda fazenda corre risco. minhas orações. O rato dirigiu-se à vaca e: - Há ratoeira na casa, - O que ? Ratoeira ? Por acaso estou em perigo? Acho que não! Então o rato voltou para casa abatido, para encarar a ratoeira.
O problema de um irmão é problema de todos! JUNTOS SOMOS FORTES!
Naquela noite, ouviu-se um barulho, como o da ratoeira Sugestão de maria José Sena e marilene tavares, ex-moradora pegando sua vítima.. A mulher do fazendeiro correu para ver de Ponte do gama, hoje mora em Passagem de mariana. o que havia pego. No escuro, ela não percebeu que a ratoeira
A SIRENE
Agosto de 2016
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O que perdi além da vida? Por Jacqueline Aparecida Dutra Com apoio de Elke Pena, Stênio Lima e Valcileno Souza
19 vidas levadas diretamente pelo rompimento da barragem da Samarco. 14 trabalhadores diretos ou terceirizados. 13 viúvas.
A enfermeira Jacqueline Aparecida dutra é uma delas. Perdeu o marido, Vando dos Santos, para a força da lama. Não perdeu, no entanto, a luta pela justiça e a garra em seguir na criação dos filhos. Leonardo, o mais novo, não chegou a conhecer o pai. Ficou órfão aos quatro meses. A história que Jacqueline conta se assemelha a de outras mulheres que perderam seus companheiros e não tiveram o mínimo amparo psicológico por parte das empresas contratantes.
O AMOR “Estávamos casados há dois anos. Juntos eram seis. Eu e o Vando nos conhecemos desde criança. Ficamos afastados por muitos anos. Ele se casou, teve dois filhos do primeiro casamento. Se separou, teve um outro relacionamento e outra filha. depois de tudo isso nos encontramos de novo. Ele era brincalhão. Era a alegria da turma. Quando a gente se reúne não tem como não falar dele. Ele que fazia as palhaçadas, ele que agitava todo mundo para fazer festa. todo mundo sentiu muito isso. A gente senta na mesa e pensa “está faltando alguma coisa aqui”. Eu perdi um companheiro. muitas vezes eu vou à Belo Horizonte levar o Leonardo para algum exame, ou algo assim... O Vando já tinha avisado na empresa quando eu saí do hospital, depois da gravidez, que ele não iria trabalhar quando eu fosse levar o Leonardo para tratar. Então ele me acompanhava nisso. Ele estava lá toda hora que eu precisava. Ele estava lá. É difícil precisar ir pra Belo Horizonte e ele não estar aqui. É um apoio que a gente perde”. O RECONHECIMENTO “Alguns corpos foram muito longe. O corpo do Samuel estava a 100km daqui. Eles confundiram o corpo do Samuel com o de Vando por causa da barba. No dia 9 de novembro, fui até lá, falei para o pessoal do imL que não era. disseram que eu estava em trauma e pessoas em trauma não querem aceitar. meu marido estava desaparecido. Não tinha como não reconhecer. O irmão dele também não reconheceu ele como irmão, pois estava muito diferente. Não tinha a cicatriz que ele tinha na testa. O próximo passo foi tirar a digital. No dia seguinte, disseram que era o corpo do Vando. Achei impossível não reconhecer o corpo do meu marido. Quarenta minutos depois eles me ligam e falam que houve uma dúvida e que seria feita uma contra-prova da digital... 20 dias depois eles disseram que não era ele. É incrível como sai a informação. Antes que eu soubesse do resultado da digital a imprensa já estava me ligando “Ah, é
verdade que acharam seu marido?” Fui muito assediada pela imprensa, mas não dei entrevista no começo. OS DIREITOS “Nossos direitos... o valor financeiro não tinha jeito, eles (a Samarco e a integral) tinham que liberar. A parte de atendimento mesmo, de estar interessado no meu bem-estar, eles não me deram apoio. Um funcionário da Samarco, a psicóloga e a assistente social tiveram na minha casa dois meses depois. E nem voltaram mais lá. Eu perdi meu marido. A gente não teve nenhum apoio. Ninguém veio na minha porta saber sobre a minha situação. Nem quiseram saber se era só ele que trabalhava, o que está acontecendo ou o que não está. A gente não teve nenhum apoio. No primeiro mês da morte dele foi muito complicado. Até a integral liberar alguma coisa dependemos de ajuda da família e amigos, em especial o casal Elaine e Valdinei . Fora isso,nada. deu a entender que eles enxergavam só os bens materiais. O resto não chegava. As outras viúvas estão na mesma situação. Ninguém teve a visita da Samarco para saber o que estava acontecendo. Nós contratamos advogados. Os advogados são em comum da maioria. Estamos unidas, temos um grupo e quando dá nos encontramos. Na audiência do dia 31 de maio com o ministério Público, quando tentavam resolver o pagamento da indenização, convocaram todas as partes interessadas para tentar negociais. Fomos discutir o que eles estavam querendo. E é um absurdo. “Você perdeu uma vida, mas o que além disso você perdeu¿” Ninguém te pergunta isso. FUTURO Eu tento não pensar no futuro. Pensar no agora, no que eu vou fazer hoje. Eu tenho que dar um passo de cada vez. O tratamento do Leonardo é uma coisa demorada. Não pode parar o tratamento para não regredir. Então, eu vivo o hoje. Não vou pensar no futuro se eu tenho muita coisa para fazer agora”.
Quantas Isabellas não podem mais pescar?
Por Isabella Gonçalves Assis, Marlene Agostinha Com apoio de Luíza Geoffroy e Lucas de Godoy
“gualaxo”, em tupi guarani, significa “os que comem como as garças”. Esse é o nome de um rio que nasce na Serra do Espinhaço e rasga os mares de morros de minas gerais em direção ao Espírito Santo. Leva rocha, leva ouro, leva peixe, leva ao doce, leva ao mar. Antes do Rio gualaxo se misturar com o Ribeirão do Carmo ele traça uma rota que era zona proibida no século XViii. Conhecida como Zona da mata, pela exuberância da natureza que ali soava abundante, a região era reduto de pássaros raros, árvores frondosas, solo perfeito para roça, rio regado de peixe, mata de lobo, capivara e jacu. No meio desse caminho está Pedras, subdistrito de mariana onde mora a família de isabella, que tem 08 anos, tranças grossas, expressão leve, sorriso seguro e olhos atentos. Lá de fora vem a voz dela, que traz a lenha coletada com a mãe ali por perto. de short e chinelo, nem teve tempo de sentir o frio que sopra forte nessa época do ano por essas bandas. Em Pedras não vemos mais muitas crianças pela rua. Lá também não tem escola. Para ir à aula, isabella acorda às 05:30 da manhã, toma um café reforçado e aguarda o ônibus que vai para a escola de Águas Claras, onde ela passa as manhãs de segunda a sexta entre brincadeiras e livros de terror.
Em casa, a vida livre de isabella deixa de queixo caído qualquer menino da capital: anda de bicicleta, sobe em pé de fruta, rola com os cachorros, pisa na terra, vai pro rio, pesc… Não. Não pesca mais. “traíra, Cará, Bagre, Lambari, tinha de tudo!”. O rompimento da Barragem de Fundão e a lama de rejeito que desceu o Rio gualaxo lamberam as margens de Pedras, mataram os peixes de isabella, fizeram desaparecer as Capivaras, as garças, o Lobo guará…Não restou pedra sob pedra. “meu programa preferido é pescar!” domingo era o dia mais esperado por isabella, que saía com a mãe e o pai para pescar no Rio gualaxo. Ela refaz o ritual: escolhe sua vara predileta, pega linha reserva, pede pro tio as minhocas de isca, pega o saco de arroz para guardar os peixes. Sai de casa e cadê o rio? “Era só colocar o anzol que o peixe vinha rapidinho. Não tinha coisa melhor do que esperar o peixe fisgar o anzol e depois voltar pra casa com o saco de arroz cheio de peixe pra minha avó e minha mãe cozinhar”. desde o rompimento da Barragem, isabela não comeu mais peixe. desde aquele dia, a vida não foi mais mesma. Pedras sem o rio, é como igreja sem altar, casa sem telhado. Pedras é o Rio. isabella e o Rio. isabella é o Rio