A Sirene - Ed. 53 (Setembro/2020)

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A SIRENE

PARA NÃO ESQUECER | Ano 5 - Edição nº 53 - Setembro de 2020 | Distribuição gratuita


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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER

Setembro de 2020 Mariana - MG

Repasses NOTA DE PESAR Por Sérgio Papagaio

O dia 28 de agosto de 2020 ficará para sempre em nossa memória como o dia em que Tupã chamou, para junto de si, a nossa querida anciã Helena Carlos Costa, a Dona Helena, da aldeia indígena de Areal, esposa do cacique José Barcelos. Com 79 anos de amor prestados a todos que a conheceram, aprendemos a amá-la e a respeitá-la pela sabedoria e pelo acolhimento, características marcantes daquela que sempre foi um ser de luz em nosso caminho. Saudades ficarão, tristezas não, pois é preciso compreender a grandeza dessa passagem regida por Tupã. Que sua entrada na aldeia, no seio da mãe terra, seja iluminada, conforme foi sua passagem por esta terra de sofrimentos e de amor, que fez de Dona Helena mais uma estrela no céu. Que a Deusa conforte o coração dos familiares, parentes e todos os amigos que tiveram o privilégio de conhecê-la e de amá-la. São os sinceros sentimentos da família Jornal A SIRENE.

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EXPEDIENTE Realização: Atingidos(as) pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana | Conselho Editorial: Expedito Lucas da Silva (Kaé), Genival Pascoal, Letícia Oliveira, Pe. Geraldo Martins, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva | Editores-chefe: Genival Pascoal e Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Jornalista Responsável: Wigde Arcangelo | Diagramação: Júlia Militão | Reportagem e Fotografia: Joice Valverde, Júlia Militão, Juliana Carvalho, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Daniela Felix | Tiragem: 3.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de Ajustamento de Conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministério Público de Minas Gerais (1ª Promotoria de Justiça de Mariana).


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Opinião:

Papo de Cumadres:

Mais um vagão do trem da saúde Consebida e Clemilda estão aborrecidas com a atitude da prefeitura, que partiu para a judicialização do plano emergencial em saúde, construído em conjunto com a assessoria e os atingidos, ajuizou, sem a nossa participação, num total processo de exclusão. Por Sérgio Papagaio

- Cumadre Clemilda, já faz quase 5 anu que a barrage foi estoranu e tanta gente matanu, e por causa du rompimentu todu dia a morte carrega gente em toda bacia, e ês vem discuti u planu emergenciá de saúde, ês divia emplantá era um planu funerá, pra repará as pessoa que a morte leva pru outru ladu em nome da fundação sem pidi comprovação. - É cumadi minha fia, cê falô tudu sem dexá nada fartá, dispois de 5 anu é mesmu um pranu funerá, sem u nexu carsal precisá prová, u rompimentu da barrage me carsô muita tristeza e até me fez chorá, mas u pió desta situação é a tar fundação, que u crime todu dia renova, sem fazer reparação. - Eu oio nossa saúde, parece u trem da vale que tá passanu us vagão é tudu iguar mas nu finar tem sempre um vagão novu e é este que traz a duença pra querê nus matá. - Cumade u que mais me faz ispantá é vê um motorita de ônibus querê avião pilotá. - Uai entendi não. - Cumadi prestenção a perfeitura de Barra Longa levô u pranu de saúde pra ajuizá, sem us atingidu consurtá, ele foi por todos nóis construidu, assessoria, atigidu e secretaria de saúde, e nu finar trataru nóis com excrusão, levaru u planu de saúde pru juiz fazer comprovação, ele istudô direitu, foi medicina não, é u mesmu que levá um processu judiciá pra um medicu avaliá. - Agora tô intendenu u que tá acontecenu neste trem da saúde, é tanta cufuzão que a gente num sabe se ele carrega a morte ou a solução. - É cumadi agora vô ti falá u trem que istá a passá nunca caregô a solução, ele sempre caregô a moute em muitus de seus vagão.

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Foto: Daniela Felix


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Direito de Entender:

O direito da população atingida a uma renda mensal emergencial (o AFE) A montanha foi moída / E é serpente morta no calabouço dos navios. / Levam-na assim: / Como quem rouba pergaminhos / A misturar-se já com outro tempo. […] A fibra densa faz o nó / E hoje sou minério / O chão que piso cansou do império! / Mas sigo / A troar passadas / A engasgar goelas! Charles Trocate (A montanha foi moída) Nos calabouços dos navios que vinham e iam do Brasil Colônia chegavam pessoas escravizadas e saíam as riquezas aqui exploradas. Ainda hoje, saem montanhas inteiras – como em A montanha foi moída, de Charles Trocate, ou n’A montanha pulverizada, de Drummond, que já citei neste espaço. Em seu lugar, ficam buracos, chamados de cavas, depois de as mineradoras terem escavado chãos e vidas. Uma história de colonialidade que perdura. Nos desastres, de que Minas Gerais tornou-se epicentro, ficam vítimas, aos milhares. Não só em terras mineiras, mas em todo o prosseguimento da bacia do rio Doce, até desembocar no mar que banha a costa do Espírito Santo. Tais vítimas precisam, obviamente, manter-se, em condições de dignidade, até que a reparação integral aconteça (o que, às vezes, infelizmente, nos desanima, como uma miragem distante). Daí o direito de que as pessoas atingidas recebam uma renda mensal em caráter emergencial. Em 4 de dezembro de 2015, foi assinado, pelo Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério Público do Estado do Espírito Santo (MPES), com a Samarco, o Primeiro Aditivo ao Termo de Compromisso Socioambiental Preliminar. Tal acordo previu um “auxílio subsistência” a trabalhadores que exerciam atividades laborativas vinculadas ao rio Doce, aos seus afluentes, bem como em lagos, lagoas e águas marinhas atingidas, no valor de um salário mínimo, com aumento de 20% para cada cônjuge, companheiro(a) ou convivente, e para cada filho(a). Registrou-se, no acordo, que a Constituição brasileira assegura o direito ao trabalho (art. 6º), o que, por consequência, traz também o sentido do direito à renda. O auxílio subsistência daquele acordo preliminar deu origem ao auxílio financeiro emergencial (ou AFE), criado quando as empresas causadoras do desastre do rompimento da barragem de Fundão (a Samarco e suas controladoras Vale e BHP Billiton Brasil) firmaram, em 2 de março de 2016, com a União e os Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, o TTAC, sigla para termo de transação e ajustamento de conduta. O TTAC, em suas cláusulas 137 e 138 (cujo parágrafo único faz referência ao acordo firmado com MPF, MPT e MPES), prevê que o AFE é devido à população que sofreu o comprometimento de sua renda, no valor de 1 salário mínimo, com o acréscimo de 20% por dependente e de mais uma cesta básica. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em recursos de agravo de instrumento e de apelação interpostos pelos Ministérios Públicos e Defensorias Públicas federais e dos Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo – relatados pela Desembargadora Federal Daniele Maranhão, que exerce jurisdição atenta e sensível ao caso –, confirmou que o AFE não pode ser deduzido da indenização por lucros cessantes. Essa renda mensal emergencial vem, com critérios diferentes, sendo reconhecida em processos diversos de reparações a desastres. No caso do desastre da Vale na mina do Córrego do Feijão, localizada em Brumadinho, por exemplo, foi realizado, em 20 de fevereiro de 2019, um acordo com a mineradora, perante a Justiça Estadual, pelos Ministérios Públicos e Defensorias Públicas federais e do Estado de Minas Gerais, ao lado da Advocacia-Geral do Estado de Minas Gerais (AGE/MG), à época em uma ação de tutela antecedente que havia sido ajuizada pela AGE/MG. O mesmo pagamento mensal foi assegurado à comunidade indígena Pataxó e Pataxó Hã-Hã-Hãe, atingida pelo mesmo desastre, em um acordo firmado com a Vale pelos membros da aldeia Naô Xohã, MPF e Funai. Já no caso da barragem da Vale em Barão de Cocais-MG, o pagamento mensal emergencial é recebido pela população removida da zona de autossalvamento (ZAS) e por parte muito reduzida da que se encontra na zona de segurança secundária (ZSS). Na ZAS, se considera que não há tempo suficiente para intervenção em situação de emergência, enquanto na ZSS (área também incluída no mapa de inundação), há locais em que a onda de inundação pode chegar em meia hora, ou locais que estejam a 10 km do ponto de rompimento, devendo-se considerar o que for menor. Nessa situação, o dano sofrido pelas vítimas é muito palpável, pois a chamada “lama invisível” toca continuamente a tranquilidade e a vida das pessoas. Há outros exemplos, mas cabe aqui ressaltar que se trata de uma obrigação jurídica decorrente do ato ilícito praticado pelas empresas responsáveis; no caso Rio Doce, a Samarco, a BHP Billiton Brasil e – sempre ela – a onipresente Vale. Os acordos pertinentes cuidam, na verdade, do modo como deve ser cumprido esse dever. Afinal, pelo princípio do poluidor-pagador, quem aufere os bônus de uma atividade poluidora (ou desastrosa, como nos casos mencionados) deve arcar com os ônus respectivos, inclusive garantindo às respectivas vítimas as condições necessárias para aguardar, com dignidade, a reparação. Voltarei ao tema para tratar de outras questões relacionadas ao AFE. Ainda sobre o plano de ação em saúde de Barra Longa: Em julho, nesta coluna, informei que a ação do MPF que buscava a implementação do plano de ação em saúde de Barra Longa-MG foi julgada extinta pelo juízo da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte, sem exame dos pedidos. O magistrado entendeu que se trataria de interesse do município de Barra Longa, não cabendo ao Ministério Público defendê-lo. O MPF apresentou recurso de apelação contra tal sentença. Felizmente para a população barra-longuense, porém, o município ingressou com ação judicial e obteve, no mesmo juízo, ao menos parte das medidas que pleiteou. Como a ação do MPF tem maior abrangência de pedidos, postulamos, em nosso recurso, que seja reconhecida a possibilidade – que, ao nosso ver, é inquestionável – de que o Ministério Público seja autor de uma ação que trata, em última análise, do direito à saúde da população atingida.

Foto tirada na aldeia Takruk, Terra Indígena Krenak. Por Edmundo Antonio Dias Netto Junior Procurador regional substituto dos direitos do cidadão em Minas Gerais e membro das forças-tarefa Rio Doce e Brumadinho do Ministério Público Federal


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Construindo e cuidando em momentos de crise Por equipe Conviver

Somos uma equipe de saúde mental que atua com a população de Mariana que foi atingida pelo rompimento da barragem de Fundão, da mineradora Samarco. Somente na cidade de Mariana, 19 vidas foram ceifadas e cerca de 350 famílias perderam, literalmente, “o seu chão” e foram arrancadas de suas casas. Longe de ser uma questão isolada, as comunidades marianenses também compartilham as dores dos impactos sofridos pelas comunidades atingidas ao longo do “Doce”, até o Espírito Santo, porque a lama seguiu deixando marcas nas vidas, nos ambientes, territórios e cotidianos. Longe de ser um acontecimento único, as comunidades marianenses também se sensibilizam com os impactos de todos os municípios atingidos pela mineração, seja pela lama real e tóxica, que devastou vidas em Brumadinho e provocou danos ao longo do rio Paraopeba, em 2019; ou pela lama invisível, que apavora vários municípios mineiros pelo risco de novos rompimentos. De 2015 pra cá, são 4 anos e 10 meses de vivência de uma outra realidade, nunca antes imaginada, permeada pela espera pelas novas casas e novos reassentamentos, e de muita luta pela retomada de uma vida digna. No âmbito da saúde, inúmeros desafios se apresentam para uma justa reparação dos danos. Ao ofertar cuidado e apoio em saúde mental, não deixamos de perceber os corpos adoecidos pela hipertensão, diabetes, pelas dores provocadas pela desesperança e pelo cansaço, pelo medo real da contaminação pelo metal pesado, e pela insegurança com relação ao futuro. Somados a esses desafios, 2020 carrega um fato triste e peculiar que acomete novamente as famílias que já passaram por momentos de grandes mudanças e, agora, vivenciam o segundo grande “desastre”, a Covid-19. Essa pandemia, que, desde março de 2020, afeta o Brasil, traz inúmeros desafios e exige grandes mudanças nos cotidianos e nas rotinas das famílias. O distanciamento social tem sido um dos fatores mais marcantes. O fato de não ser possível se encontrar para celebrar datas importantes, como o nascimento de uma criança e casamentos, ou prestar os ritos fúnebres em homenagem a uma pessoa querida, afeta as nossas emoções e sentimentos. E é comum o aumento de sentimentos de incerteza com relação ao futuro, insegurança, medo, ansiedades, tristeza… Sensações que estão cada vez mais presentes em nossas vidas. Estudos comprovam que, em momentos de grandes crises, como o rompimento da barragem de Fundão e a pandemia da Covid-19, o período que compreende os três primeiros meses é marcado pelo “cair em si”, quando a pessoa começa a ter a percepção do que aconteceu, da sua condição nesse contexto e a elaborar as dores vividas para construir alternativas e soluções, individualmente ou com a comunidade. Também é um período em que o cuidado e o suporte com a saúde mental são essenciais para diminuir as possibilidades de adoecimentos mais sérios no futuro. Nós, equipe de saúde mental, também fomos desafiados a construir cuidado no contexto de mais uma emergência. Pensando que a população que se deslocou de forma forçada para a sede urbana da cidade é rural e que o contato com a tecnologia remota, para alguns, ainda é dificultoso, enfrentamos um desafio diário para manter o atendimento às comunidades. As populações que se encontram nos distritos rurais também têm uma limitação de acesso à comunicação telefônica e/ou à internet. Mas os desafios não impediram a construção de alternativas para o cuidado, seja ele no território físico ou virtual. Estamos muito atentos à necessidade de garantir suporte para aquelas pessoas que escutam o “fique em casa”, com uma dupla sensação: de saudade, provocada pela falta do contato com os amigos e familiares, em função do distanciamento social; e também de ansiedade pela casa que está por vir, já que as casas que habitam não são próprias. O nosso recado, para vocês, é que a nossa equipe sempre estará disponível para acolher e cuidar. Passados quase seis meses desde o início do distanciamento social, a presença de sofrimentos intensos e persistentes precisa ser avaliada por um profissional. Pedir ajuda não é sinal de fraqueza, mas de muita coragem! Conviver Rua Genoveva Leão Lemos, 25 A Telefone 3557-4222

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Rumo à reparação justa e integral A Matriz de Danos de Barra Longa e a de Mariana se encontram em estágios diferentes, porém a aplicação de ambas está evoluindo, graças à luta dos(as) atingidos(as) pela garantia da reparação integral e das assessorias técnicas de cada região, AEDAS e Cáritas, respectivamente, junto ao trabalho da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Em Barra Longa, a Matriz foi finalizada, sendo que o documento prevê quatro eixos: Moradia e Objetos; Produção Agropecuária e Segurança Alimentar; Comércio, Trabalho e Despesas; e Saúde e Dano Moral. O primeiro eixo já foi integralmente aprovado pelos(as) atingidos(as). Já no caso de Mariana, os(as) atingidos(as) comemoraram, no dia 14 de agosto, a protocolização da Matriz de Danos junto ao Ministério Público, na Ação Civil Pública na qual as mineradoras Vale, Samarco e BHP Billiton são rés pelo crime do rompimento da barragem de Fundão. Aos poucos e com muita luta, as populações atingidas têm conquistado seus direitos.

Por Gladston Figueiredo, Flávia Braga Vieira e Verônica Viana Com o apoio de Juliana Carvalho

Foto: Ellen Barros/Cáritas

Gladston Figueiredo e Luzia Queiroz marcando a entrega da Matriz de Danos dos(as) atingidos(as) de Mariana à Comissão de Atingidos da Barragem de Fundão (CABF).


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Foto: Ellen Barros/Cáritas

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Foto: Leandro Raggi/AEDAS

A atingida Luzia Queiroz, de Paracatu de Baixo, junto ao Promotor de Justiça, Dr. Guilherme Meneghin, no dia da protocolização da Matriz de Danos dos(as) atingidos(as) de Mariana.

Assembleia de negociação da Matriz com a Renova, no dia 30 de outubro de 2019, em Barra Longa.

A gente começou esse processo de validação da Matriz no ano passado, então, a gente tem todo o Eixo 1, Moradia e Objetos, validado e aprovado pelo povo. Inclusive, a gente iniciou um processo de negociação com a Fundação Renova. Ela participou de uma assembleia, a gente apresentou toda a pauta, as questões específicas da nossa Matriz e ficou encaminhado que ela voltaria com uma resposta mais solidificada em reunião na semana seguinte. Na data da reunião, ela encaminhou um ofício dizendo que os moradores de Barra Longa não eram atores legítimos para arcar com a revisão da Matriz e indicou que os atores seriam os experts do Ministério Público Federal. A gente finalizou totalmente a Matriz, tinha iniciado um processo de revisão junto ao povo, mas veio a pandemia e o distanciamento social e a gente está substituindo essas estratégias de revisão por atividades virtuais, com metodologias, tanto no âmbito da Comissão de Atingidos, do grupo de base e dos coordenadores, e num processo de articulação com as instituições de justiça, com outras assessorias técnicas e com parceiros diversos. Verônica Viana, advogada na Assessoria Técnica da AEDAS

Obviamente que os valores são diferentes, porque tivemos também equipes diferentes valorando. Nós fizemos a valoração, em Barra Longa, da Matriz total, material e imaterial, e, em Mariana, foi uma outra equipe, mas o próprio relatório da Matriz de Danos que a Cáritas consolidou mostra que alguns itens valorados tanto por nós, quanto pelo CEDEPLAR/UFMG, chegaram a uma ordem de grandeza, a intervalos de valores muito semelhantes. Flávia Braga Vieira, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Nós não tínhamos referenciais de valor do ponto de vista da jurisprudência nacional que dessem conta de um caso tão excepcional, tão específico quanto esse, do desastre da Samarco. Então nós buscamos referenciais internacionais, e encontramos os melhores referenciais na Corte Interamericana de Direitos Humanos, visto que esse caso se assemelha a outros, de graves violações de direitos humanos e de crimes ambientais de grandes proporções que já foram julgados pela Corte. E aí nós chegamos a um valor que seria o valor total de danos imateriais, conforme decisões anteriores da Corte. Para a Matriz de Danos de Barra Longa, nós trabalhamos junto à AEDAS e valoramos os danos materiais e imateriais. Nós seguimos a mesma lógica [de Mariana] de procurar referenciais sólidos na bibliografia, na literatura nacional e internacional, e também nas jurisprudências do direito nacional e internacional.

A Matriz de Danos é uma ferramenta importante para os atingidos porque, a partir do processo de cadastramento que foi feito em Mariana, em que foram listados todas as perdas e os danos que os atingidos sofreram, a Matriz é um espelhamento desse cadastro e apresenta metodologias de valoração para todas as perdas e os danos. Realmente existe uma disparidade, por exemplo, entre os valores apresentados pela Matriz de Danos da Fundação Renova e a Matriz de Danos construída com os atingidos, que apresenta metodologias pautadas em estudos científicos. A Matriz de Danos foi construída em parceria com instituições respeitáveis, a Agroequilibra, a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e o IPEAD CEDEPLAR, que é da Faculdade de Economia da UFMG. Essas metodologias foram construídas em diálogo com os atingidos, isso é o mais importante. A Matriz é um parâmetro para o atingido entender se aquela proposta de indenização que está sendo oferecida pela Fundação Renova é condizente com o que ele tem a receber. A Matriz de Danos foi protocolada no Ministério Público, por conseguinte, vai ser protocolada na Ação Civil Pública aqui de Mariana, que abarca todos os processos de reparação integral dos atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão. A juíza, ao julgar a solicitação do atingido, vai levar em consideração essa Matriz de Danos. Gladston Figueiredo, coordenador operacional da Assessoria Técnica Cáritas


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fotos: Daniela Felix

A saudade dos animais Os(As) atingidos(as) de todas as regiões devastadas pela lama tóxica das mineradoras Samarco/Vale/BHP Billiton foram prejudicados(as) de várias maneiras. Uma delas foi a perda de seus animais. Alguns(mas) perderam para o rejeito, outros(as) perderam a oportunidade de conviver com seus animais diariamente, em seu território. Quando a barragem de Fundão se rompeu, os animais sobreviventes foram transferidos para uma fazenda, em Diogo de Vasconcelos. Hoje, eles se encontram na Fazenda de Castro, em Acaiaca. Se os(as) atingidos(as) já sofriam com as restrições determinadas que os(as) separavam de seus animais, com as medidas de distanciamento social impostas pelo novo coronavírus, a situação está mais difícil.

Por Arnaldo Mariano Arcanjo, Marcos Muniz e Zilda Ferreira Com o apoio de Júlia Militão e Juliana Carvalho

Temos em torno de 10 animais equinos. Tinha mais, só que morreram na fazenda, em Diogo de Vasconcelos. A situação deles hoje está ruim. A relação da Fundação Renova com nós, atingidos diretos pela barragem de rejeito, é ruim por não ter organização de visitas aos animais. Nós não conseguimos ver os animais, não sabemos se estão bem cuidados. A coordenação da Fundação Renova disse que não podemos visitar os animais na fazenda. Mas eles não proibiram os funcionários da Samarco de trabalhar para preparar outra barragem. Arnaldo Mariano Arcanjo, morador de Bento Rodrigues

Fotos tiradas para a edição 14, de maio de 2017, na fazenda em que os animais estavam sob os cuidados da mineradora Samarco.


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Nessa quarentena, em meados de março, as visitas foram canceladas. Antes, elas aconteciam uma vez por semana, no local para animais de grande porte, na Fazenda Castro, e outros, de pequeno porte, na Fazenda Asa Branca. Hoje não acontece e a gente vê que, por precaução, a maneira adotada faz sentido, é necessária. Mas, por outro lado, a gente vê que isso faz falta para o atingido, né? As pessoas iam ver seu animal, encontravam com o atingido, com outras pessoas, conversavam… Isso era um meio de até ajudar em relação à saúde, um meio de ocupar o tempo. Precisa da gente ver com a Renova um meio seguro de ir visitar os animais. Um meio que o atingido possa ver seu animal, mantendo o distanciamento. Lógico, serão menos vezes. Teria que bolar alguma coisa nesse sentido, para não ter aglomeração, porque também temos que estar muito atentos: não adianta a pessoa ver o animal e levar o vírus pra contaminar outras pessoas. Seria, também, um meio de ocupar o tempo, ainda mais pelo que estamos atravessando hoje. A gente percebe que isso faz falta para o atingido. Marcos Muniz, morador de Bento Rodrigues

Antonio Amado, morador de Bento Rodrigues, em maio de 2017.


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Uma vida dedicada aos bichinhos O amor pelos animais é uma potência de cura e aconchego para muitas pessoas. Infelizmente, nem todas direcionam sua humanidade e apoio àqueles seres indefesos, constantemente maltratados e abandonados, tanto por seus tutores, como pelo poder público. Zilda, moradora de Barra Longa, é uma dessas pessoas que, ao se deparar com animais domésticos que precisam de cuidado e atenção, não hesita em estender a mão e abrir as portas de sua casa. Eu cuido dos cachorrinhos de rua, tem muitos e muitos anos. Durante toda vida, eu tive, na minha casa, gatinho. Já tive 20, hoje só tenho três, depois tive cachorro. Uma vez, eu fui operada de vesícula e, por mera coincidência, entrou um cachorro pra casa adentro. Aí eu falei com a minha prima, que estava cuidando de mim: “põe um almoço pro cachorrinho também porque, coitadinho, ele também é visita, chegou na hora do almoço”. A casa estava cheia de visita e o cachorrinho entrou e demos uma comidinha pra ele, né? Aí falaram pra mim: “mas você não pode pegar ele, não, que ele tem dono”. Aí eu falei: “não, eu não vou pegar, não. Só tô fazendo um agrado, porque ele veio me visitar”, então eu dei o almoço, mas não era que eu ia ficar com ele. Aí, na hora da janta, ele voltou pra jantar, jantou e foi embora. Quando foi no outro dia, ele não voltou pro almoço e eu falei com a minha prima: “olha, o cachorrinho ontem não gostou da janta, porque ele não voltou pro almoço hoje”. Quando foi na hora da janta, por volta das 16 horas, ele chegou. Nunca mais foi embora. Quando ele via o dono dele, ele saía daqui e ia lá. Cumprimentava, brincava, voltava… Aí, ele ficou morando comigo muitos anos. Depois trouxeram um irmão dele, a filha do dono desse outro cachorro me ofereceu outro cachorrinho. Ele ficou anos comigo também, 17 anos, depois morreu. Eu continuo com essa vida, quando eu vejo cachorrinho na rua, o povo joga veneno pra um, aí vem aqui: “ô, tia Zilda, vai lá socorrer, porque você sabe mexer com isso, tá envenenado”. Nossa Senhora, me ligam e perguntam: “Zilda, o que que eu dou pro meu bicho? Ele tá assim, tá assado…”. Eu não sou veterinária, não, eu sei só o “basiquinho”. Costuma dar certo, né? Mas eu sempre falo: “vai pro veterinário, liga pra ele”. Eu caminho às cinco horas da manhã, vou rezando e volto rezando, vai eu e Deus, sozinha. Aí eu peço a São Lázaro, protetor dos animais, a proteção divina pros gatinhos, cachorrinhos, cavalinhos, pros bichinhos do mundo inteiro. E peço pra nós, seres humanos, minha família, meus amigos todos. Em janeiro, eu faço 65 anos e é cansativo, viu? Essa semana eu fiquei de dar banho nos bichos que eu tenho aqui dentro, adotei uma de rua de novo. Hoje eu tô aqui cuidando deles e amanhã eu posso precisar. Então eu cuido dos meus bichinhos, que eles também são seres vivos, né? Eu cuido dos bichinhos desde que eu tinha 16, 17 anos. E isso é coisa da família, viu? Minhas irmãs que moram em São Paulo também mexem com bichinhos, cuidam de tudo, gato, cachorro, pegam os filhotinhos da rua... Outro dia, minha irmã estava em Belo Horizonte com uma cachorra de rua que tinha acabado de ganhar os filhotinhos no meio da rua, ela colocou a cachorra na garagem pra amamentar os filhos… Acredita que ela trouxe os cachorrinhos pra Barra Longa? Hoje eu tô cuidando, aqui em casa, de três gatos e dois cachorros, fora os de rua, que eu dou remédio de verme, né? É o que eu posso fazer. Uma vez, teve reunião aqui com o prefeito pra ver se eles faziam um canil pros bichinhos, mas a reunião não saiu do lugar, não… Então a gente ajuda como pode. Eu gasto mais com ração pros meus bichos do que com comida. Mas tá bom demais, graças a Deus, o importante é estar vendo eles felizes. Nossa Senhora, eles me dão muita alegria. Tem uma aqui que eu chamo de Pretinha, que fica na rua, ela estava com nove filhotinhos. A menina do restaurante aqui perto trouxe pra casa dela, cuidou dos cachorrinhos e a gente fica cuidando. E aí eu peço proteção pra ela e pra todo mundo. Enquanto eu estiver dando conta, eu vou cuidando. Zilda Ferreira, moradora de Barra Longa


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A volta da Renova e o medo da contaminação Por Sérgio Papagaio

Medo, palavra que traduz um sentimento mundial e se tornou doméstica no território de Barra Longa, após o rompimento da barragem da Samarco, das controladoras Vale e BHP Billiton do Brasil, em Mariana, no dia 5 de novembro de 2015. Medo de guerra, medo do crime, medo da violência e de todo subproduto do progresso. Barra Longa, uma cidade esculpida entre montanhas das Minas Gerais, com histórias que datam do início do século XVIII, irrigadas pelas águas dos rios Carmo e Gualaxo do Norte. Inicialmente, financiada pelo garimpo de ouro, usando, como mão de obra, os pretos escravizados pela Igreja Católica e pelo Império português. Até cinco anos atrás, a pacata Barra Longa parecia ter vencido os seus traumas e vivia em perfeita harmonia com a natureza, até que o monstro de rejeito se liberta da prisão da Samarco e invade nosso território, trazendo consigo um mundo que, até então, era, por nós, barra-longuenses, visto só pela televisão: um aumento exorbitante nos casos de doenças de vários tipos se naturalizam barra-longuenses e veio morar conosco. A Renova, fundação criada para reparar o crime, transforma-se em uma máquina de renovação desse crime em curso. Se não bastasse todo o mal que já vínhamos sofrendo, uma pandemia mundial apontou no longínquo. Esperávamos, como todo o mal que, com a evolução, nunca fez morada em Barra Longa, que este coronavírus também fosse visto só pela televisão. Seguindo a orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS), exigimos que a Renova se ausentasse de nosso território, visto que as obras de reparação nunca foram levadas a sério pela Renova. Assim, pautamos a vida como prioridade, mas, infelizmente, o poder público, tendo, à sua frente, como gestor, o Sr. Mário Antônio Coelho, prefeito da nossa querida Barra Longa, entende que a economia é mais importante que a vida e, sem consulta à população, decide que a democracia é algo que não se aplica à Barra Longa, permitindo a volta da Renova para atuar em campo na nossa amada cidade. Sabendo que a Renova não visa lucros e já dispõe de um capital para a reparação, com base na lei ambiental, que responsabiliza o poluidor pagador a arcar com os danos decorrentes do seu empreendimento de risco, a Comissão de Atingidos, o Coletivo de Saúde, com sua assessoria técnica, a AEDAS, por meio de ofícios, convidou, várias vezes, o poder público para reuniões para somarmos forças e lutarmos pelo bem comum de nossa população. Sem respostas aos nossos apelos, a prefeitura colocou em segundo plano a vida, que, sabidamente, só dá uma safra. Após termos visto o que aconteceu em Mariana, onde os funcionários das empreiteiras prestadoras de serviços para a Renova foram grandes disseminadores da Covid-19, vivemos hoje, em Barra Longa, o medo de que esse trabalhadores, pais de família, que precisam tratar dos seus, possam trazer para nós e/ou levar para a casa o vírus mortal. Por entendermos que a Renova é responsável pela estabilidade dos funcionários, sem prejuízo de seus vencimentos salariais, e sem ter o direito de pôr em risco a população, e por entendermos também que a reparação passa primeiro pela vida, é que ainda apelamos para órgãos públicos competentes para que nos auxiliem na luta pela existência.

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Setembro de 2020 Mariana - MG

Fotos divulgadas nas redes sociais da Assessoria Técnica da Cáritas

#ReparaçãoIntegral No dia 24 de agosto, os(as) atingidos(as) e os advogados das empresas Samarco/Vale/ BHP Billiton se reuniram virtualmente com a juíza da Comarca de Mariana, Marcela Decat, para definir os valores de compensação. A expectativa por essa audiência era muita, pois se trata de um tema já discutido em ocasiões anteriores, mas sem que se chegue a um acordo. E, dessa vez, não foi diferente. Novamente, a audiência foi encerrada sem uma decisão da juíza, que ofereceu um novo prazo para que as mineradoras apresentem uma outra proposta. Os(As) atingidos(as) defenderam, nas suas redes sociais, uma compensação justa, de acordo com proposta construída em parceria com a Assessoria Técnica da Cáritas, com base em estudos técnicos. Por Genival Paschoal e Mirella Lino

Carlos Alberto Barbosa, morador de Paracatu de Baixo.

José Vicente Fortunato, morador de Campinas.

Com o apoio de Joice Valverde e Wigde Arcangelo

Angela Aparecida Lino de Santana e Mateus Junior Lino de Santana, moradores de Ponte do Gama.


APARASIRENE NÃO ESQUECER

Setembro de 2020 Mariana - MG

Nós estamos em plena pandemia e, mesmo à distância, ainda estamos lutando como podemos para defender o trabalho construído com nossa assessoria. Foram mais de cinco reuniões discutindo os assuntos. No reassentamento familiar, estamos lutando para que tenhamos uma conversão justa, porque, até agora, só estamos levando prejuízo com as propostas das mineradoras. Nós, atingidos de Paracatu e de Bento Rodrigues, estamos, há quase cinco anos, à espera de uma solução para os nossos imóveis, que têm inúmeros problemas nos reassentamentos coletivos. Entre eles, podemos citar o tamanho da área, que não é o mesmo do de origem e, em muitos casos, não vai dar nem pra colocar tudo aquilo que tínhamos no terreno. Há imóveis em que faltam testadas, assim como existiam imóveis que tinham recursos hídricos (córregos, nascentes…). Outros não tinham, mas o rio era perto e podia buscar quando quisesse. A água encanada era de graça, podia usar para cuidar dos animais e para irrigação das plantas. Nos reassentamentos está prevista a cobrança da água com hidrômetro. Agora, imagine só: você tinha tudo de graça, lá na roça, não pagava nada; agora, nos reassentamentos, teremos que pagar água, que ninguém sabe o valor que vai ser. Pelo que estamos vendo, vai ser só os que têm boas condições financeiras que vão poder ter criações em casa e quintal cheio de plantações. Genival Paschoal, morador de Bento Rodrigues A gente tava usando esse modelo de postagem, principalmente da hashtag reparação integral [#REPARAÇÃOINTEGRAL] nas redes sociais, porque, como a gente tá no meio de uma pandemia e a audiência ia ser on-line, não daria para os atingidos participarem, né? Só os representantes. Geralmente, quando é no fórum, a gente consegue fazer uma pressão lá fora e ficar um pouco dentro da sala em que a audiência acontece também e, nesse formato, agora, a gente não ia conseguir ter isso. Então, pra tentar fazer uma pressão na juíza e ter uma participação dos atingidos, a gente tava usando esse formato das fotos. Mirella Lino, moradora de Ponte do Gama

Genival Paschoal, morador de Bento Rodrigues.

Genival Paschoal, morador de Bento Rodrigues.

Angela Aparecida Lino de Santana e Mateus Junior Lino de Santana, moradores de Ponte do Gama.

Bruna Carneiro Lisna Silva, moradora de Ponte do Gama.

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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER

Setembro de 2020 Mariana - MG

Renova impõe PASEA a famílias que devem ser reassentadas Por Alecsandra Cunha e Ellen Barros Com o apoio de Luiz Fernando Horta Foto: Arquivo pessoal

Propriedade atingida em Campinas, zona rural de Mariana. Lidar com um modelo de “processo de reparação” conduzido de forma a violar direitos e promover mais sofrimento: essa tem sido a realidade de diversas famílias que, após quase cinco anos na expectativa de terem o direito à moradia restituído e de poderem retomar, com segurança, o modo de viver e de produzir na terra, recebem a notícia de que se tornaram “inelegíveis” para o Reassentamento Familiar. As regras para acesso ao Reassentamento Familiar são claras: 1) deslocamento físico compulsório; 2) isolamento comunitário; 3) impossibilidade de manutenção dos métodos tradicionais de produção; e 4) inabitabilidade. No entanto, o critério de exclusão dessas famílias nunca é explicitado pela Renova, que tem usado o PASEA (Projeto de Adequação Socioeconômica e Ambiental das Propriedades Rurais) para negar direitos. A negativa do direito de famílias ao reassentamento é grave e deve ser denunciada à Assessoria Técnica. O PASEA, em si, não é o problema. Trata-se de um projeto do governo do Estado, coordenado pela Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Minas Gerais (Seapa), para ser aplicado pela EMATER-MG. O objetivo é adaptar as propriedades rurais e melhorar os índices de produtividade da maneira mais sustentável possível. A questão é que a Renova vem pressionando as famílias para que aceitem esse projeto em suas propriedades de origem, a partir da negativa de Reassentamento Familiar. A forma como o PASEA tem sido implantado apresenta diversas violações: são produções que devem ser “retomadas” no terreno coberto pelo rejeito tóxico da mineração; famílias que continuam expostas ao risco de repetição do crime, pois acabam por permanecer em área de autossalvamento, abaixo da barragem

de Germano; famílias que perderam a vizinhança e se veem isoladas. Além disso, saberes e desejos dessas famílias são desconsiderados na implantação de modos de produção que desrespeitam os modos tradicionais e familiares, entre diversas outras violações cometidas. Existem ainda casos em que a Renova propõe, a partir do PASEA, uma reorganização espacial da propriedade que não atende às demandas da família atingida e, mesmo com a família deixando isso claro, a Fundação insiste no projeto proposto. Exemplo disso são as Áreas de Proteção Permanente (APP) delimitadas e cercadas nos projetos, mas que já se classificavam como área consolidada para uso, de acordo com a legislação federal. Nestes e em outros casos, a adequação da propriedade, se a família optar pelo PASEA por vontade própria e sem pressão, deve acontecer de acordo com os interesses e desejos da própria família. As informações dadas pela Renova para as pessoas atingidas sobre o PASEA não têm sido suficientes, muito menos diante da negativa do Reassentamento Familiar. Chegou-se ao absurdo caso de uma família que assinou documentos referentes ao PASEA sem saber do que se tratava, acreditando ser uma autorização para que a equipe da Renova entrasse na propriedade apenas para observar o terreno. Nesse caso, a utilização de má fé diante da dificuldade de leitura e escrita da pessoa atingida é ainda mais revoltante. É função da Renova aplicar ações para a retomada das atividades agropecuárias das famílias atingidas, tais como: implantação e/ ou retificação do CAR, programas de regularização ambiental, restabelecimento de estruturas de captação de água, implantação e/ ou recuperação de pastagens etc. Trata-se de medidas de reabilitação, que podem e devem ocorrer em casos de famílias que optaram por se manter no imóvel atingido. As medidas de reabilitação e retomada dos modos de vida têm de ser realizadas respeitando as escolhas e, principalmente, garantindo os direitos dessas famílias. É importante lembrar que não aceitar o PASEA em sua propriedade não tira seu direito à reparação integral. Se a sua família se enquadra em, pelo menos, um dos critérios de elegibilidade para o direito à moradia, vocês têm direito ao reassentamento. A produção agropecuária era uma das principais atividades desenvolvidas por muitas famílias atingidas e, por isso, o direito à restituição da moradia e das áreas produtivas em lugar seguro deve ser garantido. Caso você esteja vivendo algum tipo de imposição para aderir ao PASEA ou tenha alguma dúvida a respeito desse projeto, entre em contato com a Assessoria Técnica, por meio da Central de Informações da Cáritas, em Mariana: (31) 99218-0264.


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APARASIRENE NÃO ESQUECER

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A Matriz de Danos dos(as) atingidos(as) de Barra Longa No último mês, a assessoria técnica apresentou, aos(às) atingidos(as) de Barra Longa, a Matriz de Danos, documento que traz os valores dos itens para cálculo da indenização. O documento foi construído a partir das discussões e do relato das perdas sofridas pela população do município. Os(as) atingidos(as) decidiram que precisavam revisar e ajustar essa forma de pagamento, estabelecendo novos valores e incluindo itens que a Fundação Renova não considera na sua Matriz. O povo requisitou a sua própria Matriz de Danos, que abrange o direito à moradia, à produção agropecuária, à alimentação, ao comércio, ao trabalho e à renda e à saúde. A Matriz de Danos é um instrumento essencial para o cálculo da indenização e, por isso, nesta edição do jornal A SIRENE, apresentamos uma entrevista realizada com a professora Flávia Braga, coordenadora da equipe da UFRRJ que produziu a Matriz. Por Juliana Cobucci (assistente social, AEDAS), Laís Oliveira (mobilizadora social, AEDAS), Sérgio Papagaio e Verônica Viana (advogada, AEDAS)

AEDAS: Você poderia explicar o que é a Matriz de Danos e qual a sua finalidade? FLÁVIA: A Matriz de Danos é um instrumento que faz a listagem e a valoração de todos os danos materiais e imateriais sofridos pelos atingidos. A finalidade é conseguir fazer uma soma final para que atingidos possam, junto à Fundação Renova e às empresas, negociar os valores que eles vão receber de indenização. É importante destacar que essa Matriz reflete tudo aquilo que foi perdido ou danificado no desastre e após o desastre, até hoje. A: Os danos psicológicos foram considerados na Matriz? F: Sim. No Eixo 4, que é o eixo de dano moral e saúde, nós temos uma categoria específica para os danos psicológicos, que são os danos à saúde mental e o sofrimento psíquico. Então, as alterações psicológicas depois do desastre estão valoradas na Matriz. A: A Matriz traz o valor real de tudo o que os atingidos perderam? F: Sim. A Matriz que a Fundação Renova produziu tinha muito menos danos e os valores eram muito baixos. Nós buscamos os melhores valores de tudo aquilo que foi perdido materialmente e os danos imateriais, que não constavam da tabela da Renova. A: Os atingidos que somente após a realização do cadastro se lembraram de danos sofridos vão receber por esses danos? F: Quando vocês estiverem com a planilha da Matriz na mão, marquem todos os danos sofridos. Não apenas o que foi dito no momento do cadastro. Isso vai ser levado como instrumento de luta no processo de negociação com a empresa. A: Os danos que constam na Matriz foram levantados com os atingidos nos grupos de base, mas pode ser que alguns danos não tenham sido mencionados nessas oportunidades. Agora que a Matriz foi construída, como incorporar esses danos na planilha? F: Tudo o que foi conversado nos grupos de base apareceu na Matriz. Ainda que uma pessoa tenha esquecido de comentar alguma coisa no grupo de base, tem que lembrar que outros atingidos também sofreram esses danos similares. Então, muito possivelmente, esse dano estará incluso. A Matriz ainda está em processo de revisão. Então é importante que todo mundo que participe dos grupos de base, das reuniões com a AEDAS, vá tomando conhecimento da

Matriz e nos relate se ainda estiver faltando alguma coisa. A: Infelizmente, muitas pessoas perderam familiares desde o rompimento. Como fica a situação dessas famílias com relação à valoração dos danos? F: Na Matriz, existe um item referente à perda de familiares. E, além disso, as pessoas que faleceram nesse processo também terão uma planilha, que os seus familiares vão preencher. Quem vai receber essa indenização? Exatamente os seus familiares diretos, conforme a lei diz. A: Em muitos casos, ocorreu de a lama não chegar à propriedade dos atingidos, no entanto, observamos alterações na vida e na rotina dos barralongueses. Essas pessoas terão direito à indenização? F: Sim, as pessoas, mesmo aquelas que não tiveram a lama chegando à sua moradia, mas que tiveram as suas vidas transformadas de forma negativa, têm direito à indenização. Sabemos que casas foram trincadas por causa de máquinas e caminhões, ocorreram problemas de saúde, pessoas deixaram de participar de festas, de novenas, do convívio comunitário, porque a comunidade se desagregou muito, porque os vizinhos foram embora, surgiram conflitos entre as pessoas, enfim. Todos os barralonguenses são atingidos e vão encontrar, na Matriz, o conjunto dos danos sofridos. Destacamos que as bases gerais da Matriz já foram apresentadas à Fundação Renova, que se recusa a debater, uma vez que questiona o direito dos(as) atingidos(as) de revisá-la. Vale lembrar que esse direito já foi reconhecido pelas mineradoras e pela própria Fundação Renova. Dessa maneira, a Comissão começou o processo de revisão apontando para itens que estão faltando e que serão incluídos na Matriz. A assessoria solicitou uma reunião, mesmo que virtual, para negociação. No entanto, a Fundação se recusa a negociar justificando que o tema está judicializado. Isso coloca, aos(às) atingidos(as), o desafio de debater a indenização de forma coletiva e de buscar que as instituições de justiça e o sistema CIF apoiem o direito dos(as) atingidos(as) à revisão. Nesse esforço, a assessoria realizará reuniões virtuais e convida os(as) atingidos(as) a participar. Para mais informações, acessar a página da assessoria no Facebook: www.facebook.com/assessoriabarralonga/


EDITORIAL Viver em comunidade é compartilhar afetos, da alegria à dor, é ver certos pontos da vida de forma semelhante àqueles que nos rodeiam. Quando olhamos para as comunidades atingidas, podemos perceber que cada pessoa é única em sua forma de ocupar o mundo, mas que cada morador(a) divide, com seus conterrâneos, modos de viver em comum. A forma de lidar com a terra, o jeito de ver o trabalho, a maneira de festejar são algumas dessas semelhanças. Os(As) atingidos(as) de Bento Rodrigues e de Paracatu possuíam uma forma comum de tratar os animais. Os bichos, por vezes, eram fonte de sustento, mas não eram vistos como meras mercadorias. Existia uma ligação de carinho estabelecida. O rompimento da barragem de Fundão também atingiu essa relação. A crueldade do crime da Samarco/Vale/BHP Billiton Brasil vai além daquilo que se pode contar materialmente, estende-se para os afetos. Com o rompimento, os animais de grande porte dos(as) atingidos(as) foram levados para fazendas. O elo com os bichos fazia com que os(as) donos(as) saíssem de suas casas e visitassem o sítio constantemente, até que a pandemia de Covid-19 impediu que isso fosse possível. Nesta edição, trouxemos como os(as) atingidos(as) têm lidado com esse afastamento. E não é só nessa questão que o novo coronavírus tem obrigado os(as) atingidos(as) a se adaptarem. O espaço digital também se transformou em lugar de luta. As comunidades atingidas se valem desse espaço para se organizarem e para protestarem, como ocorreu em agosto, quando atingidos(as) postaram fotos nas redes sociais com #ReparaçãoIntegral, no intuito de mostrar que seguiam juntos pela reparação integral. Nosso ensaio fotográfico mostra algumas dessas imagens e explica os motivos do protesto. Também é possível ler, em nossas páginas, os avanços dos dados em relação à Matriz de Danos, tanto em Mariana quanto em Barra Longa, uma importante ferramenta de valoração das perdas materiais dos(as) atingidos(as), assim como daquelas imateriais. Embora nenhum dinheiro possa restaurar a relação perdida com os rios, as conversas nas calçadas com os(as) vizinhos(as) ou, até mesmo, o cuidado com os animais, a reparação de todos os danos causados é um direito dos(as) atingidos(as).


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