A SIRENE
PARA NÃO ESQUECER | Ano 5 - Edição nº 56 - Dezembro de 2020 | Distribuição gratuita
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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER
Dezembro de 2020 Mariana - MG
Repasses NOTA DE PESAR
É com grande pesar que nós, do Jornal A SIRENE e membros das comunidades atingidas, lamentamos o falecimento de Geraldo Pascoal, morador de Bento Rodrigues. Manifestamos os nossos sentimentos aos(às) familiares e amigos(as). Desejamos que Deus conforte o coração de cada um e dê forças para atravessar esse momento de luto e dor.
ATENÇÃO!
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EXPEDIENTE Realização: Atingidos(as) pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana | Conselho Editorial: Expedito Lucas da Silva (Kaé), Genival Pascoal, Letícia Oliveira, Pe. Geraldo Martins, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva | Editores-chefe: Genival Pascoal e Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Jornalista Responsável: Wigde Arcangelo | Diagramação: Júlia Militão | Reportagem e Fotografia: Genival Pascoal, Joice Valverde, Júlia Militão, Juliana Carvalho, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva | Agradecimentos: Carol Saraiva e Isis Medeiros | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Isis Medeiros | Tiragem: 3.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de Ajustamento de Conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministério Público de Minas Gerais (1ª Promotoria de Justiça de Mariana).
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APARASIRENE NÃO ESQUECER Foto: Sérgio Papagaio
Opinião:
Papo de Cumadres: a justiça e a lama
Consebida e Clemilda estão sem entender o papel da justiça no caso do rompimento da barragem de Fundão, ela complica mais sem trazer solução. Por Sérgio Papagaio
- Cumadre Clemilda minina de Deus, tô apavorada com esta nova impreitada e com esta justiça toda atrapaiada. - É cumadre antigamente quandu nois piquenu num tinha intendimentu de argum turmentu, era a justiça que nus dava alentu. - Hoje mesmu com todo cunhecimentu, a justiça parece ter garradu ódio de nois que num temu intendimentu, e com seu paper inveltidu, tem dexadu nossus dia mais sufridu. - Cumade minha fia é miô nois resorvê nossas pendenga aqui sozinhas com nossa humirdade du que percurá a justiça que se tornou a mãe da mardade. - Tem genti até dizenu que nois atingida mesmu com a vida sufrida, tamu apriveitanu das mineradora, e eu achu que a justiça disavizada ta acreditanu nesta cunvelsa fiada, e põe comu vitima as mineradora e nois deste crime as autora. - Eu tenhu um bucadu de medu que du jeitu que a coisa tá, nois seja curpada de ter sidu atingida, e neste cenariu horrorozu ês apilide o rompimentu de rompimentu curposu. - Eu cumadre num vô fica adimirada se u tempu vortá para traz e nois sê chamada de iscrava, e sê obrigada a trabaiá de graça pras mineradora, tendu comu pagamentu chicotadas voraz, das mão da justiça que hoje é seu capataz.
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Opinião:
Falta de transparência da Fundação Renova na divulgação de seus relatórios
Por Carol Saraiva Professora Doutora do departamento de Administração da Universidade Federal de Ouro Preto
Imagine que você tenha de ir a um lugar diferente, para onde nunca foi e que você não sabe como chegar. Como você faria? Utilizaria um mapa, certo? Esse mapa te daria informações sobre o trajeto, informaria o caminho certo para chegar ao seu destino. E se esse mapa estivesse com algum defeito e fornecesse informações erradas sobre o caminho, teria como você chegar ao lugar certo? Com certeza, não! Os relatórios de atividades divulgados por uma empresa devem funcionar bem, como um mapa que nos dá boas direções e que nos leva ao local correto. Mas, quando os relatórios não são transparentes, não é possível entender, acompanhar e verificar o que está sendo realizado pela empresa e isso impede a participação social. Ao verificarem os relatórios do Programa 6 – Comunicação, Participação, Diálogo e Controle Social (PG06), divulgados pela Fundação Renova, os pesquisadores Carolina Saraiva e Michel Pereira, do grupo de pesquisas Observatório Crítica, Formação e Ensino em Administração (Observatório CAFÉ), da UFOP, descobriram que eles são como os mapas estragados que levam as pessoas aos lugares errados. A pesquisa descobriu que, dos 50 relatórios mensais sobre progresso do programa PG06, 32 são totalmente duplicados. Isso significa que, dos meses de setembro de 2016 a outubro de 2020, há 32 relatórios que contêm informações idênticas, em pares. Além do problema grave da duplicação de relatórios, os pesquisadores descobriram que há diferentes versões para um mesmo relatório, e que chega a haver até cinco com informações completamente diferentes. Isso significa que, a depender da data em que a pessoa acessou o site da Fundação Renova, ela pode ter lido informações sobre o progresso do programa PG06 com cinco conteúdos diferentes. É como se o mapa dissesse que estaria te levando para um determinado lugar e, na verdade, te levasse para outro completamente diferente! Vamos colocar aqui o exemplo: digamos que você procurou informações sobre o andamento dos projetos do PG06 no mês de outubro de 2017, no site da Fundação Renova. Se você fez isso em 14 de abril de 2020, o conteúdo do relatório era referente ao mês de dezembro de 2019. Se você acessou o relatório em 25 de agosto de 2020, o conteúdo do mesmo mês foi alterado para o de abril de 2020. Se acessou o relatório em 6 de outubro de 2020, o conteúdo era idêntico ao do mês de junho de 2020 e, se você o acessou em 18 de novembro de 2020, o conteúdo era o de agosto de 2020. E isso tudo sem nenhum aviso. A Fundação Renova tem a obrigação de divulgar relatórios sobre suas atividades, para que todas as pessoas e instituições possam se informar, acompanhar e verificar suas ações. Essa obrigação está determinada em vários acordos, como no Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC) e no Termo de Ajustamento de Conduta Governança (TAC-Gov). O acesso às informações assegura a participação social, e permite o acompanhamento e o controle das ações da Fundação por qualquer pessoa interessada. Os relatórios elaborados pela Renova devem ter as características descritas no TTAC: transparência, acessibilidade, linguagem adequada e compreensível, informações completas e públicas, e divulgação ampla. Várias são as cláusulas do TTAC e TAC-Gov que obrigam que a Fundação Renova deva ser transparente em suas ações e relatórios. Podemos notar isso, por exemplo, nas cláusulas 60, 65, 69 e 72 do TTAC. O TAC-Gov cita o princípio da transparência 32 vezes, quase uma vez por página, e define que a transparência deve estar presente na divulgação das informações para a sociedade e as pessoas atingidas. A transparência é um dos pilares dos Direitos Humanos, pois garante o acesso a informações, a participação social, o diálogo efetivo, permite denúncias e soluções mediadas. Para saber mais informações sobre a pesquisa mencionada, entrem em contato com Profa. Carol Saraiva pelo e-mail carolsaraiva@ufop.edu.br, pelo site: www.observatoriocafe.com.br ou no Facebook do Observatório CAFÉ.
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Fotos: Arquivo pessoal de Edson Antônio Gomes
Nem mesmo as frutas podemos comer Em Barra Longa, após a cidade ser invadida pelo rejeito tóxico da barragem de Fundão, as frutas e as verduras nunca mais cresceram como antes. A agricultura familiar garantia uma alimentação saudável e proveniente diretamente do quintal. Hoje, muitos(as) atingidos(as) convivem com doenças adquiridas depois do rompimento e, para o tratamento, não podem contar com os alimentos plantados, devido à má qualidade da colheita. Edson Antônio Gomes, conhecido como Dinho, é um desses moradores que, acostumado a consumir as frutas orgânicas colhidas do pé, hoje, é obrigado a comprá-las para o controle diário de sua saúde. Essa é uma realidade que segue contestada pela Fundação Renova. Vale lembrar que os estudos da Ambios Engenharia e Processos mostram que há contaminação por metais pesados no ar e no solo dos territórios atingidos e alerta que os alimentos e a água devem seguir em pesquisa, apesar de ainda não comprovar a mesma contaminação. Por sua vez, os estudos conduzidos pela professora e pesquisadora Dulce Maria Pereira, da Universidade Federal de Ouro Preto, já confirmam a presença dos metais pesados na água do rio Doce e dos alimentos expostos à contaminação. Por Edson Antônio Gomes (Dinho) Com o apoio de Joice Valverde
A minha doença está relacionada a um câncer que tive em 2010. Me curei e, já aposentado, comecei a trabalhar como representante de laboratório, viajando por algumas cidades vizinhas para complementar a renda familiar. Quando veio a lama, fiquei com problemas pra sair de Barra Longa para trabalhar como vendedor, porque não tinha tranquilidade de sair de casa e deixar minha família, pois havia sempre rumores do risco de novos rompimentos, e a cidade estava um caos. Assim, eu viajava por poucos dias da semana e, na preocupação de voltar, diminui as vendas, a produtividade e fui demitido. Minha renda foi impactada, porque sou aposentado como funcionário público, mas com um salário pequeno. Em 2017, tive uma recorrência do câncer, com metástase no peritônio [migrado para a membrana que reveste as paredes do abdome e a superfície dos órgãos digestivos]. Passei a gastar mais com medicamentos, consultas e também com frutas e algumas hortaliças orgânicas que, antes, tinha da agricultura familiar. As frutas que plantava eram orgânicas. Não de tantas variedades, mas banana, laranja e mamão eram frutas que consumia sempre colhidas do quintal, além de algumas hortaliças, como couve, taioba, lobrobo e mostarda, e outros alimentos, como chuchu, mandioca etc. Depois que a lama atingiu a cidade e o nosso quintal, as frutas não têm mais a mesma qualidade e não dão mais para comer. Todas as manhãs tenho que fazer coquetel para receita médica. Até hoje, faço tratamento quimioterápico e gasto muito com isso, são muitos gastos com minha doença. Fui o único do prédio em que resido a ser excluído do cartão emergencial liberado pela empresa Samarco, mesmo que as outras duas famílias que moram no mesmo prédio que eu tenham conseguido receber. Quanto à saúde da minha esposa, ela desenvolveu alergia na pele e no couro cabeludo. Antes, ela não tinha nada. Foi selecionada para ser acompanhada e fazer exames. Fizeram o cadastro dela, mas nunca a procuraram para realizar os exames. Edson Antônio Gomes, morador de Barra Longa
Após a lama de rejeito, as frutas são colhidas apodrecidas do pé.
Joana D'arc Lemos Ferreira Gomes, esposa de Dinho, também enfrenta problemas de saúde e desenvolveu alergias na pele.
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Fotos: Isis Medeiros
“15:30”: a luta dos(as) atingido(as) em fotografias O jornalismo e a fotografia andam lado a lado quando se trata de divulgar depoimentos e imagens a fim de denunciar os constantes ataques aos direitos humanos vistos no mundo. A fotógrafa Isis Medeiros, que já teve fotos publicadas aqui no Jornal A SIRENE, tem acompanhado a luta das comunidades atingidas desde o crime cometido em 2015 e lançou o livro “15:30”, no qual algumas fotografias de pessoas atingidas estão documentadas. As imagens são, também, modos de denúncia, de gerar visibilidade às vítimas de crimes socioambientais e podem auxiliar na luta por direitos e por uma reparação justa. O lançamento do livro de fotografias foi realizado de forma remota e contou com a participação das atingidas Simone Silva e Eliane Balke e do atingido Ailton Krenak. O livro foi publicado pela Tona e está sendo vendido pelo site da editora. Por Eliane Balke, Isis Medeiros e Simone Silva Com o apoio de Juliana Carvalho
Todas as fotos aqui publicadas estão presentes no livro "15:30".
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Eu vejo o lançamento desse livro como uma arma, visto que perdemos espaços na luta. O TAC Governança foi rasgado, ele já não tem nenhum valor, porque todas as demandas, todas as pautas dos atingidos estão na mão do juiz da 12ª Vara. Eu vejo o lançamento desse livro como uma nova ferramenta de denúncia, como um instrumento de luta, até porque é um registro ao longo dos cinco anos. Eu fico vendo a minha foto que tá no livro, ali foi logo no princípio do sofrimento, das perdas. E eu emagreci demais, você pode ver que eu tô só uma capa ali naquela fotografia, diante das perdas, da história, de Sofia doente. Ali, Sofia passava muito mal, ela ficou um mês vomitando, com diarreia, então, se ela não comia, eu também não comia, eu sofria junto com ela, então isso aí vem como um instrumento de luta. Essa live foi, pra mim, uma forma de denúncia muito forte. Simone Silva, moradora de Barra Longa Antes do rompimento da barragem de Mariana, ainda não tinha tido nenhum contato com o tema da mineração, não tinha me envolvido com nada relacionado a essa questão, mas eu já conhecia o Movimento dos Atingidos por Barragens a partir de algumas lutas, de alguns eventos, já havia documentado alguns encontros em Belo Horizonte, principalmente, em marchas que aconteciam na cidade. Quando rompeu a barragem, no dia seguinte, eu fui à Mariana com o MAB e com o jornal Brasil de Fato para saber o que estava acontecendo, pra entender o que tinha sido aquilo. Num primeiro momento, eu não conseguia fotografar o que eu achava que era importante, porque eu também não tinha muita compreensão do que significava aquele rompimento, o que significava aquilo no território atingido e em Minas Gerais. Por ser vizinha do crime - eu sou de Ponte Nova -, me senti solidária à questão do que as pessoas estavam vivendo ali e também responsável por começar a contar um pouco das histórias que eu estava ouvindo. Eu fui para ficar dois, três dias, e acabei ficando 15. E aí, com o passar dos meses, eu retornava à Mariana, sempre que era possível, para acompanhar os desdobramentos desse crime. Eu ia para entender o que havia avançado, quais eram as questões que estavam envolvidas ali. Participei de uma marcha territorial na bacia do rio Doce seis meses após o crime, e foi quando tive a oportunidade de conhecer mais pessoas atingidas nos territórios atingidos, e de ouvi-las também. E, para além das imagens trágicas do rompimento da barragem, fiz também retratos das pessoas que fui conhecendo. Escrevi sobre o tema, publiquei documentários e registrei mais de 8 mil imagens ao longo desse tempo. No ano passado, felizmente, também consegui ir até ao Espírito Santo para poder conhecer algumas comunidades atingidas, de pessoas pescadoras, ribeirinhas, que haviam perdido o modo de vida, o trabalho. Eu estive em São Mateus (ES), em uma comunidade de pescadores, junto à Defensoria Pública do Espírito Santo. Enfim, ao longo desses cinco anos, me envolvi por meio de marchas, de organizações e também de forma independente, e fui até esses locais para poder fazer esse trabalho acontecer. As imagens que produzimos não só podem como devem ocupar um espaço de memória do povo. A fotografia tem poder de documento, de
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prova, de denúncia, para que não se esqueçam crimes como esses que estão acontecendo em Minas Gerais e para anunciar o risco de outros crimes que estamos sujeitos a viver. A história de Mariana não ficou para trás, outros cinco crimes socioambientais que envolviam mineração aconteceram antes do rompimento da barragem de Fundão e, com o passar dos anos, isso vai sendo esquecido e deixado de lado. O crime que aconteceu em Mariana ainda não acabou, existem, pelo menos, 70 barragens em alto risco em Minas Gerais, são verdadeiras bombas-relógio da mineração, com elevada probabilidade de romperem. Enquanto isso, só há um terço dos 40 fiscais trabalhando em vistorias, isso é absurdo! Crimes como esses que estão acontecendo no Brasil não podem ser esquecidos ou invisibilizados, precisamos continuar denunciando com as ferramentas que tivermos em mãos. A minha ferramenta é a fotografia e me coloco à disposição para a causa, para que a reparação seja feita e a justiça, de fato, aconteça para as populações e os territórios massacrados. A fotografia tem esse papel e a responsabilidade de trazer a realidade à tona, de informar certas questões que estão invisibilizadas, apagadas. É o que este livro pretende trazer. Isis Medeiros, fotógrafa
Me sentirei sempre grata à Isis Medeiros por ter indicado os melhores caminhos para organizar, em formato de livro, todos esses relatos. Por ter compartilhado as nossas histórias, reflexões, saudades, planos futuros, visões de mundo, sabedoria e solidariedade. Obrigada por me mostrar a grandeza da luta coletiva em busca de justiça, autonomia e direitos. É uma luta que não esquece a defesa das águas, do meio ambiente e do futuro da comunidade, desmantelada por crimes praticados pelos poucos que exploram e transformam em grandes fortunas as riquezas do imenso Brasil. Eliane Balke, moradora de São Mateus-ES
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A silagem e a sobrevivência Foto: Arquivo pessoal de Maria Célia Albino de Andrade
Desde o rompimento da barragem de Fundão, as empresas criminosas ficaram responsáveis pelos cuidados e pelo custeio dos tratamentos dos animais dos(as) atingidos(as). A Renova, criada com a função de reparar os danos causados, lida diretamente com alguns dos animais que foram levados para a Fazenda de Castro, em Acaiaca. No entanto, os(as) atingidos(as) que escolheram ficar com os seus animais ou que vivem em regiões mais distantes, ao longo da bacia, recebem o auxílio da silagem, alimento tradicionalmente usado na pecuária. Desde o início do processo de reparação, no entanto, a Renova negligencia os cuidados com esses animais que dependem da silagem. A produtora rural Maria Célia Albino de Andrade afirma que teve de lutar durante mais de dois anos para que seus animais recebessem os cuidados necessários para voltarem a produzir. Ainda que a decisão judicial seja de que a Renova siga fornecendo a silagem até que o solo e a água estejam propícios à produção, muitos(as) atingidos(as), como Marino D’Angelo, veem uma piora considerável na saúde de seus animais, que não recebem a quantidade adequada do alimento e apresentam sinais de desnutrição.
Por Maria Célia Albino Andrade e Marino D’Angelo Com o apoio de Júlia Militão
de
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dos animais Quando a Renova entrou, a primeira preocupação dela foi cortar a silagem. Cortou a silagem dos atingidos e, desde então, eu passei mais de dois anos com uma papelada na mão, rodeando tudo quanto é reunião que tinha, pedindo comida pra esses animais, porque a minha terra já não produzia mais. Com o rompimento, tudo o que eu plantava não dava produção. Os animais começaram a morrer de fome, eu tive um índice altíssimo de mortalidade de bezerros, vacas. Perdi muita criação, as vacas estavam abortando, não davam leite… A Fundação Renova não se importa nem com atingido, quanto mais com animal de atingido. Você fazer uma coisa com tanto carinho e ver uma bezerra morrendo, um bezerro, uma vaca abortando e morrendo também por falta de comida: isso é muito triste, é de doer o coração. Era um desespero a cada um que morria. Maria Célia Albino de Andrade, moradora da zona rural de Conselheiro Pena A Fundação, para mim, omite a parte de responsabilidade dela em cuidar dos meus animais. Oferece uma alimentação que não é ideal, em pouca quantidade. Já perdi animais aqui por conta da alimentação. A Fundação Renova sabe que o tanto de alimento que eles me dão não é suficiente. Veio um veterinário aqui, da Renova, e deixou um laudo, em que informa que eles estão desnutridos. A própria empresa que é responsável em cuidar da alimentação dos meus animais me dá um laudo que eles estão desnutridos. É possível isso? Marino D’Angelo, morador de Paracatu de Cima A Renova, em momento nenhum, aceitou tratar dos animais, nós temos a silagem hoje, porque foi uma decisão do juiz da 12ª Vara. Ficou acordado seis meses de silagem, de maio a outubro. Nós pedimos por seis meses, porque a Renova falou que a ATER (Assistência Técnica e Extensão Rural) viria a campo recuperar nosso solo, mas, devido à pandemia, isso não aconteceu. O juiz disse que, enquanto a Renova não provar no papel, não vir recuperar nosso solo e provar que está tudo bem com a água e com o solo, ela tem que continuar fornecendo a silagem. Ela voltou a fornecer, dizendo que seria até dezembro, mas essa não é a decisão do juiz. A silagem vai continuar, eu não sei por quanto tempo, mas eu tenho muito medo dessa questão de laudo. Nas minhas análises, o solo está muito ruim. Eu tenho muito medo dessa trocação de empresa, de análises que não sejam verdadeiras, e a gente perder isso. A silagem, pra mim, hoje, é tudo. Dentro desses seis meses, o leite, que estava dando um pouquinho, logo aumentou. As vacas que estavam abortando e não estavam dando cio, todas deram o cio e ficaram prenhas. Eu não tive histórico de nenhuma mortalidade, de maio pra cá. Então, assim, a silagem foi de grande retorno financeiro e emocional na minha vida. Eu consegui sair de um quadro de estresse muito grande na minha vida, de depressão, e hoje, com a silagem, estou conseguindo fechar meu mês e pagar as minhas contas. Aquele curral, pra mim, é o equilíbrio da minha vida. Quando lá tá tudo bem e, aqui, os meus filhos estão bem, a minha vida fica bem. Maria Célia Albino de Andrade, moradora da zona rural de Conselheiro Pena
A silagem está sendo entregue. O problema é que a Renova congelou a vida do atingido no dia 5 de novembro de 2015 e fornece o mesmo tanto de silagem cinco anos depois, como se os animais não procriassem, como se a gente estivesse igual uma estátua e voltasse a movimentar só quando a Renova achar que deve. Hoje, a gente vive uma vida imposta, a gente não tem as rédeas da nossa vida mais, a maioria dos atingidos mora em uma propriedade que não é dele, casas que não são deles. Às vezes, os animais vão crescendo, o rebanho vai crescendo, mas não tem como você acompanhar esse crescimento, porque você não tem renda suficiente para tratar dos bichos. Você não pode plantar um capim, porque mora numa propriedade que não é sua. Você não pode se organizar para ter um trato dentro da realidade que sempre teve. Agora eles falaram que vão cortar a silagem a partir de dezembro. Eles estão querendo fazer em forma de pagamento em dinheiro: em vez de entregar a alimentação, entregaria dinheiro. Eu não concordo. Atrás dessa proposta, eu só vejo crueldade, porque, depois, eles só vão diminuindo a quantidade de dinheiro. E não se resolveu nada até hoje na vida das pessoas. Em cima da lama não se produz. Então a gente só vê cilada armada pros atingidos. Marino D’Angelo, morador de Paracatu de Cima Eu acho que essa silagem mesmo depois da terra em campo, trabalhando, não pode ser cortada de imediato. O solo está tão ruim, que não vai conseguir recuperar em um primeiro momento. Quando a gente fala dos animais, a gente está falando de vidas também e, quando a gente fala de vida, tem que ter um cuidado especial. A silagem, eu posso definir como o AFE (Auxílio Financeiro Emergencial). Do mesmo jeito que as famílias têm o AFE, os animais têm que ter a silagem garantida. Tem que ter todo o cuidado e todo o respeito com esses animais. Em qualquer momento que a Renova cortar essa silagem, eu volto à estaca zero de novo. Hoje eu estou nas mãos da Renova e preciso dessa silagem, porque a minha renda financeira depende muito desses animais. Eu não tenho outro emprego, não tenho outra renda, eu dependo exclusivamente dos animais. E eles necessitam de uma condição de vida sustentável, que é a comida e a água, sem essa condição, eles não podem me proporcionar nada disso. Maria Célia Albino de Andrade, moradora da zona rural de Conselheiro Pena O que eu quero, na realidade, é que isso seja resolvido, porque, se a Fundação Renova não vai assumir o papel que ela se propôs, de reparar os danos causados, que ela devolva a vida da gente. A gente não dependia disso. Eu quero a rédea da minha vida de volta. Hoje eu sou vítima do crime causado pelas mineradoras, mas o condenado sou eu, que estou há cinco anos aqui sem poder me organizar, sem poder colocar meus planos e objetivos em andamento, porque a Fundação Renova é omissa, é ineficiente. Marino D’Angelo, morador de Paracatu de Cima
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Gesteira
Fotos: Sérgio Papagaio
Gesteira, 5 de novembro de 2020, O Gesteira, hoje, é o retrato vivo do descaso das empresas mantenedoras da Renova. Abandono, tristeza e dor marcam os cinco anos do rompimento da barragem de Fundão. Após esse tempo, as ruínas da pequena vila do Gesteira, quase todas cobertas de lama, ainda se mantêm inertes. Nada foi feito em relação ao reassentamento e/ ou às indenizações. Existem, até hoje, pessoas que não receberam o cartão emergencial. A igreja e as casas soterradas pelo rejeito de minério, em seu silêncio, dialogam com o rio Gualaxo na maior e mais fiel denúncia que já se fez da tragédia que continua em curso. Os antigos moradores foram lá para ouvir a vila, mas nada disseram. Todavia, seus olhares contam uma história de dor e abandono. Por Sérgio Papagaio
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Eu não gosto do Papai Noel Por Sérgio Papagaio
Na escola onde estudei, a professora estava ensinando os meninos e as meninas a escreverem bilhetes pro Papai Noel. Eu não sabia escrever e nem ler, mas fui correndo pra ela me ensinar a escrever. Ela disse: “menino abobado não pode ser letrado”, e não me ensinou a escrever. Pedi à minha mãezinha, coitadinha, que me desse uma ajudinha. Ela, então, me falou: “entre no quarto e peça com fé, que, mesmo de longe, Deus ou Papai Noé vai podê te atender”. Botei meus joelhos no chão, naquele quarto de terra batida, e pedi pro papai Deus que me ensinasse a escrever. Assim, no ano que vem, igual a toda meninada que já sabia ler, eu poderia meu próprio bilhete escrever. No ano seguinte, entra na sala de aula o meu presente de Deus, aquela professorinha, que se chama Lurdinha, veio com a luz no coração pra minha cabeça acender. Então, naquele primeiro Natal, depois de aprender a ler, eu fui lembrado por mainha, pro meu bondoso Deus agradecer. Fiz uma reza espertinha e, com menos de um minuto, agradeci a Deus e à dona Lurdinha. Corri para o quarto de meu pai, onde, lá no cantinho, tinha uma velha mesinha e, com o lápis na mão direita e um pedaço de cartolina, escrevi minha primeira cartinha. Lembro de cada rabisco que fiz com muito orgulho, sempre agradecido da minha professorinha, escrevi assim: “querido Papai Noel, nesta data que se aproxima, peço que não se esqueça dessa humilde cartinha e traga, pro meu Natal, uma bicicletinha”. Deitei bem cedo e, antes que o sol saísse, eu já havia acordado. Em cada canto da casa, por mais de uma vez, eu passava um atento reparo. Mas era cedo demais e eu voltei para a cama, certo de que ele traria, mais de manhãzinha, a minha bicicletinha, mas o que ele me trouxe foi uma pequena bolinha. Fiquei com raiva de Deus e da minha professorinha e, num canto da casa, chorando, eu disse: “nem Deus nem dona Lurdinha souberam me ensinar a escrever a cartinha”. No ano que se seguiu, eu, mais letrado estava e com a raiva trocada por aquela vontade danada que a data almejada chegasse bem depressinha, pra eu, mais uma vez, poder escrever a minha cartinha. Então, pra não dizer que errei, a cartinha do meu coleguinha eu copiei, pois ele sabia escrever, talvez até mais que dona Lurdinha, pois, em todo Natal, o Papai Noel lhe trazia uma nova bicicletinha. Naquele Natal não foi diferente, deitei antes da lua e levantei depois do sol raiar, pois ele podia se atrasar e, quando eu levantei, certo de que, naquela manhã, eu receberia a minha bicicletinha, outra vez, o que tinha era aquela feia bolinha. Eu não brinquei com ela, só fiquei da janela olhando o meu coleguinha ganhar, mais uma vez, uma bicicletinha. Então, tive a certeza, aquele velho malvado só gosta de menino rico. A culpa de eu não ganhar a minha bicicletinha não era de Deus nem de dona Lurdinha, subi no morro, lá perto do céu, e gritei bem alto: “eu não gosto de você, Papai Noel”. Hoje tenho certeza: aquele velho danado gosta mesmo é de dinheiro, nunca se preocupou em ser nobre e trazer presente bom para menino pobre.
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Direito à moradia digna: a luta dos atingidos e das atingidas de Barra Longa Por Assessoria Técnica dos Atingidos e Atingidas de Barra Longa - AEDAS
Durante os cinco anos passados desde o rompimento, a luta pelo direito à moradia digna sempre foi uma pauta prioritária para os(as) atingidos(as) de Barra Longa. Nesse processo, a garantia do direito às reformas e reconstruções para todos(as) que tiveram danos à moradia foi uma das grandes conquistas da população da cidade. A comunidade provou que existem outras formas de danos e que todos(as) deveriam ser reconhecidos(as) e reparados(as) ao confrontarem a Fundação Renova, que afirmava que só teria direito às reformas quem teve a casa invadida pela lama de rejeitos. A partir dos grupos de base, com o apoio da assessoria técnica, as comunidades de Barra Longa construíram um processo coletivo de identificação e mapeamento dos danos à moradia de cada família, com parâmetros e critérios para orientar as ações de reparação desses danos. Nesse processo foram adotados o autorreconhecimento coletivo e a cartografia social como estratégias de construção da identificação coletiva. Além disso, por meio da assessoria técnica, foi produzido um estudo geral da cidade, que indicou os principais danos causados pelo rompimento, com a chegada da lama, e com o processo de reparação, que trouxe grande fluxo de veículos pesados para a cidade, o que danificou as moradias. Com muita luta e negociação, foram conquistados, pelos(as) atingidos(as), o direito às reformas e reconstruções, às moradias temporárias e a uma equipe para acompanhamento técnico das famílias durante o processo da reparação de suas moradias. Apesar dos acordos firmados, os(as) atingidos(as) vivenciaram (e ainda vivenciam) cotidianamente o não cumprimento dos acordos por parte da Fundação Renova, o que gera uma série de novos conflitos no território e interfere na efetivação do direito à reparação integral. Em função disso, em dezembro de 2019, as instituições de justiça entenderam que alguns assuntos precisavam ser levados ao juiz, o que representou um grande retrocesso aos direitos construídos e conquistados pelos(as) atingidos(as) a partir do território. O juiz decidiu que as casas danificadas deveriam passar - novamente - pelo processo de laudos, uma metodologia baseada em normas técnicas, distanciada do território, construída sem participação e que não dá conta da realidade dos(as) atingidos(as) e de suas moradias. Essa decisão coloca a vida das famílias em suspensão por, ao menos, mais dois anos. A AECOM, empresa estrangeira escolhida pelo juiz para produzir os laudos, apresentou um prazo para realizar
Autor: Ciro Monteiro (Acervo AEDAS)
Processo de autorreconhecimento coletivo dos danos às moradias em Barra Longa. o seu trabalho que não foi cumprido nem atualizado. Ela deveria chegar à Barra Longa em setembro de 2020 e permanecer durante um ano realizando visitas para produzir os laudos, com uma equipe de, aproximadamente, 10 pessoas, em um contexto de pandemia, que demanda novos cuidados de todos. A falta de informação e de transparência coloca em risco o processo de reparação integral, produz retrocessos em direitos já conquistados e reduz o universo a ser reparado. Sabemos que a dimensão do “morar” é muito maior que quatro paredes e um teto a serem reformados, e compreende, inclusive, noções de saúde e a mitigação de riscos socioeconômicos. Durante os cinco anos passados desde o rompimento, os(as) atingidos(as) de Barra Longa entenderam que são protagonistas de sua própria história e sujeitos coletivos centrais no processo de reparação. Apesar das condições adversas, os(as) atingidos(as) têm se colocado em movimento, a partir de reuniões virtuais, para construir saídas em torno da defesa do direito construído e conquistado coletivamente no território.
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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER
Dezembro de 2020 Mariana - MG
Territórios invisíveis: a luta pelo reconhecimento como atingido em Mariana-MG Por Isabela Itabaiana, Ana Paula Ferreira, Laura Lanna e Verber Souza, sob supervisão de Gabriel Leite e coordenação de Laís Jabace. Revisado por Pedro Paulo Gonçalves.
Mapa elaborado por Isabela Itabaiana com base no banco de dados constituído pelo IC 1 e 2, durante o processo de Cadastramento da Cáritas, com informações levantadas com as famílias que já finalizaram o cadastro pela mesma instituição. Cinco anos após o crime cometido pela Samarco, Vale e BHP Billiton na bacia do rio Doce, centenas de famílias das comunidades rurais acompanhadas pela Cáritas no município de Mariana ainda precisam lidar com diversos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão. Observa-se que, na Fase de Negociação Extrajudicial (FNE), a Fundação Renova tem atuado de modo sistemático para o não reconhecimento de núcleos familiares e, até mesmo, de comunidades inteiras atingidas pelo rompimento da barragem. Cabe um breve resgate da formação histórico-social da região de Mariana para melhor compreensão das profundas alterações
nos modos de vida provocados pelo rompimento da barragem de Fundão e seus continuados desdobramentos. O perfil econômico local, que havia sido, inicialmente, fundamentado na fomentação à atividade aurífera, modificou-se em meados do século XVIII com a decadência da sua extração e comercialização do ouro e com o crescimento da agropecuária na região. O garimpo artesanal, no entanto, ainda permanece como atividade tradicional no território, transmitida de geração a geração, e se configura como complemento à renda de várias famílias ou, até mesmo, como a principal fonte de renda de parte delas. A atividade agrícola, por sua vez, já era desenvolvida na região para o
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abastecimento dos arraiais e das vilas, e cumpria um importante papel que possibilitou a fixação das populações nos locais. Destacam-se localidades como Camargos, São Caetano (atual Monsenhor Horta) e Furquim, onde foi possível conciliar a exploração aurífera à prática da agricultura e da pecuária, o que deu origem a novos povoados. Paralelamente ao processo de formação da sede de Mariana, novos arraiais surgiram, sendo que alguns foram transformados em freguesias a partir da criação da Vila do Carmo, em 1711. Apesar do território de Mariana se estender até o leste, a maior parte da ocupação verificada no século XVIII se concentrou na região percorrida pelos rios Gualaxo do Norte, Ribeirão do Carmo, Gualaxo do Sul e Piranga. A chegada das primeiras expedições à região do Gualaxo do Norte tem uma relação com a identificação de novos pontos para a exploração aurífera e com a necessidade de se desenvolver as práticas agrícola e pecuária a fim de alimentar os plantéis de pessoas escravizadas por mineradores e, a partir da existência dos excedentes, abastecer as demandas por alimento das praças próximas, como a sede de Mariana. Várias localidades, como a região do Gama, tiveram sua ocupação na mesma época da sede de Mariana, como é o caso de Bento Rodrigues e do Gama. De modo geral, as comunidades do território do Gualaxo do Norte tiveram sua formação original ainda no século XVIII. Margeando os córregos ou nas encostas, nessas regiões, eram realizadas atividades de extração de ouro e de produção agrícolas e pecuárias. A produção aurífera era bastante significativa e possuía grande representação quanto à arrecadação dos quintos reais. Compreendido, de forma breve, a formação histórica da região, o que contribui para se conhecer os modos de vida que ali foram constituídos, suas dinâmicas e processos, lançaremos os olhos, a partir de então, à realidade dos últimos anos. Tanto nos aspectos relacionados às atividades econômicas, como em questões socioculturais próprias dessas comunidades, a disposição hídrica se faz presente e norteia todas essas relações. A formação das localidades pelo território do rio Gualaxo do Norte ocorreu justamente na interação com o curso d’água, que se encontra devastado desde novembro de 2015 pela ação da lama. A luta pelos direitos e a reparação integral da perda do Rio Gualaxo do Norte, de nascentes e de outros cursos d’água e da biodiversidade local são denúncias coletivas reiteradas constantemente, além do medo de consumir água e alimentos possivelmente contaminados por material tóxico. Em 2019, o Estudo de Avaliação de Risco à Saúde Humana (ARSH), realizado pela empresa Ambios Engenharia e Processos, concluiu que a poeira das casas dos municípios de Mariana e de Barra Longa está contaminada com metais pesados, assim como o solo superficial dessas localidades. Os pesquisadores alertaram sobre a necessidade do monitoramento permanente da água na região atingida em função da acumulação de material da lama de rejeito. Outro ponto comumente relatado pelos atingidos que ainda resistem à mudança de local de moradia após o rompimento da barragem é o isolamento em relação às comunidades vizinhas devido à destruição dos acessos - à exemplo das estradas entre Bento e Camargos; Ponte do Gama e Paracatu de Cima e Paracatu de Baixo; Pedras e Campinas - e ao esvaziamento decorrente da migração forçada de parte da população diante da impossibilidade de se manter nos locais em que viviam. Com o distanciamento social, as pessoas que ainda residem no território, seja pela dificuldade de vender suas propriedades em função da desvalorização dos terrenos, ou pela vontade de permanecer no lugar de origem, convivem com
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o medo constante de um novo rompimento. O aumento no número de casos de violência e furtos provoca a perda da sensação de segurança e tranquilidade dos moradores remanescentes e, hoje, é necessário que portas e janelas permaneçam o tempo todo trancadas, o que reduz as interações sociais e a liberdade das crianças brincarem nas ruas. O rompimento da barragem ainda gerou uma gama de desdobramentos negativos no que diz respeito às atividades econômicas, à autonomia produtiva e à independência da parte urbana, como o enfraquecimento da economia local, uma vez que houve uma significativa diminuição de sistemas produtivos, de mão de obra e de consumidores. A realidade enfrentada pelos atingidos é a falta de emprego, o empobrecimento das comunidades e a dificuldade em acessar produtos e serviços. Deram-se, no território, relações com o meio natural, relações humanas e manifestações culturais, e foi criada, a partir delas, uma identidade das pessoas com suas comunidades. A apropriação, pelos indivíduos (populações que ali viveram), desse território e o estabelecimento de relações sociais e produtivas entre si e com o próprio ambiente físico implica que, além dos espaços territoriais e materiais, foi atingida uma série de aspectos culturais que integrava a rotina e os modos de vida das comunidades. Assim, com o rompimento, os moradores atingidos do território do Gualaxo do Norte perderam o direito de realizar manifestações de caráter cultural, como festividades tradicionais, celebrações religiosas, de lazer e convívio, relacionadas ao meio natural e aos espaços comunitários das localidades. Foram perdidas as referências culturais individuais e coletivas, indissociáveis do território onde se manifestavam e do significado que possuíam para cada indivíduo e no âmbito coletivo. A partir da criação de critérios unilaterais, a Fundação Renova definiu o parâmetro de indenizar somente os danos decorrentes do contato direto com a lama de rejeitos, ao deixar de lado um universo de danos declarados pelas pessoas atingidas. Assim, danos como a perda de acesso, a desvalorização de terrenos, a contaminação do solo e dos recursos naturais, danos às estruturas e edificações, perda de postos de trabalho, destruição de atividades econômicas, destruição de laços comunitários e de suas relações socioeconômicas, destruição de recursos ambientais, danos morais e outras perdas não têm sido reconhecidas pela Fundação Renova. No processo de cadastramento das atingidas e dos atingidos, realizado pela Cáritas Brasileira, que atendeu, até o momento, a mais de 4 mil atingidos no município de Mariana, os danos acumulados individualmente manifestam, de forma comunitária, a perda das relações humanas e com a natureza, dos modos de vida, dos acessos, de segurança, de saúde física e mental, da paisagem e dos recursos naturais, além das perdas nos âmbitos econômico, histórico e cultural. Segundo a Fundação Renova, no entanto, as negativas ocorrem em razão da “teoria do dano direto e imediato”, em que são reconhecidos somente os danos decorrentes do contato imediato com a lama de rejeitos. No entanto, é de conhecimento público e notório que tal alegação não se aplica quando se trata de danos decorrentes de um crime ambiental dessa equivalência, em que deve prevalecer a “teoria do risco integral”, segundo a qual todos os danos decorrentes do crime ambiental, no caso o rompimento da barragem de Fundão, devem ser indenizados.
EDITORIAL Nos aproximamos do fim do ano de 2020. Não foi um ano fácil. Ainda nos primeiros meses, a atenção mundial se voltou para uma doença, sobre a qual, até aquele momento, pouco se sabia. A Covid-19 - causada por um novo tipo de coronavírus, o Sars-CoV-2 - resultou em uma pandemia que ainda não foi controlada. Até o dia 30 de novembro, ao todo, 2.773 pessoas testaram positivo em Barra Longa, Mariana e Rio Doce, cidades para as quais é voltada a cobertura do Jornal A SIRENE. Um sinal de que a vida no interior também está sendo afetada. A recomendação mais eficaz para evitar a transmissão da Covid-19 foi, e ainda é, o distanciamento social. Embora esse distanciamento não esteja sendo respeitado por muitos da forma como deveria, a medida nos abalou de diversas maneiras: no âmbito psicológico, social, político, econômico… Da mesma forma, (as) atingidos(as) viram suas vidas sofrerem interferências. Como se não bastassem os transtornos do processo de reparação, precisaram se adequar a um novo contexto atípico. As reuniões presenciais foram substituídas por videochamadas. A expectativa para a entrega dos reassentamentos foi novamente afetada pela preocupação com mais um possível adiamento. As dificuldades de adaptação às novas tecnologias e alternativas de diálogo resultaram em mais desgastes em suas rotinas. As formas de violação dos direitos das pessoas atingidas foram atualizadas para esse momento. E foi assim que o crime da Samarco/Vale/BHP Billiton chegou ao marco de cinco anos. O Jornal A SIRENE também foi afetado pela pandemia. As coberturas e entrevistas presenciais foram suspensas e a rotina teve de ser repensada para o trabalho remoto. A impossibilidade de contato pessoal nas casas dos(das) atingidos(as), para conversar e fotografar, nos fez recorrer aos recursos virtuais para continuar a produzir as matérias. Suspendemos também as impressões do jornal e a sua circulação passou a ser apenas por meios digitais. Essas mudanças foram necessárias para que seguíssemos acompanhando o processo de reparação e as denúncias de violação de direitos, ao mesmo tempo em que informamos sobre o novo contexto imposto pela pandemia. O ano de 2020 foi difícil. Não queremos romantizar esses momentos que passamos listando o que aprendemos, afinal, não há o que se comemorar quando mais de 170 mil pessoas morreram em função dessa doença, somente no Brasil, até o fechamento desta edição. Mas há um aprendizado que esse ano reforça e que precisamos nomear: a luta pelos direitos é constante, porque sempre tentam tirar esses direitos de nós, por mais adverso que seja o cenário. Assim, A SIRENE reafirma o seu compromisso de ser um instrumento de luta pela reparação integral dos direitos dos(as) atingidos(as). *A fotografia da capa é de autoria de Isis Medeiros. O trabalho está presente no livro 15:30 da fotógrafa que há cinco anos registra a luta das comunidades atingidas.