A SIRENE
EDIÇÃO ESPECIAL 5 ANOS | PARA NÃO ESQUECER Ano 5 - Edição nº 55 - Novembro de 2020 | Distribuição gratuita
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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER
Novembro de 2020 Mariana - MG
Repasses 5º SEMINÁRIO INTEGRADO DO RIO DOCE Minas Gerais, 20 de outubro a 6 de novembro
A 5ª edição do Seminário Integrado do Rio Doce discute, entre os dias 20 de outubro e 6 de novembro, o tema “Esquecimento e incertezas dos desastres da mineração: resistir é preciso”. Dentre os assuntos apresentados, estão questões relacionadas à saúde e aos direitos dos(as) atingidos(as) e do meio ambiente, como a qualidade da água do rio Doce e os desafios enfrentados pelos(as) atingidos(as) de toda a bacia durante os cinco anos de espera pela reparação. Excepcionalmente neste ano, o evento acontece de forma on-line e os debates podem ser acompanhados ao vivo pelo canal da Universidade Vale do Rio Doce no YouTube, o Univale GV.
ATENÇÃO! Não assine nada Em caso de dúvidas sobre o conteúdo, conte com a ajuda de um advogado ou qualquer outro especialista. Se te pedirem para assinar qualquer documento, procure o Ministério Público ou a Comissão dos Atingidos.
VALE COM A INJUSTIÇA NAS MÃOS: CINCO ANOS SEM REPARAÇÃO NA BACIA DO RIO DOCE
CINCO ANOS DE LUTA: NA AUSÊNCIA DE REPARAÇÃO, O CRIME SE RENOVA
Minas Gerais, 5 de outubro a 6 de novembro
Minas Gerais, 12 de novembro
Durante o mês que antecede o marco de cinco anos do rompimento da barragem de Fundão, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) promove a programação “Jornada de Lutas - Vale com a injustiça nas mãos: cinco anos sem reparação na bacia do Rio Doce”. O evento conta com encontros virtuais, como lives e debates, com a participação de atingidos(as) e autoridades de Direitos Humanos do Brasil e do mundo. Para o dia 5 de novembro também estão programadas ações presenciais, porém com respeito às medidas de segurança e de distanciamento social devido à pandemia do novo coronavírus.
Escreva para: jornalasirene@gmail.com Acesse: www.jornalasirene.com.br www.facebook.com/JornalSirene
As assessorias técnicas dos(as) atingidos(as) de Mariana, Barra Longa e Alto do Rio Doce, respectivamente, Cáritas de Minas Gerais, AEDAS e Centro Rosa Fortini, e as Comissões de Atingidos(as) de Mariana, Barra Longa, Rio Doce e Santa Cruz do Escalvado, se reunirão, no dia 12 de novembro, para o evento virtual “Cinco anos de luta: na ausência de reparação o crime se renova”. A reunião contará com a participação dos(as) atingidos(as) e, nela, serão abordados temas relacionados à reparação integral, com foco em indenização justa. O evento será transmitido pelas redes sociais das assessorias e também do Jornal A SIRENE.
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EXPEDIENTE Realização: Atingidos(as) pela Barragem de Fundão e Arquidiocese de Mariana | Conselho Editorial: Expedito Lucas da Silva (Kaé), Genival Pascoal, Letícia Oliveira, Pe. Geraldo Martins, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva | Editores-chefe: Genival Pascoal e Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Jornalista responsável: Wigde Arcangelo | Diagramação: Júlia Militão | Reportagem e Fotografia: Joice Valverde, Júlia Militão, Juliana Carvalho, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) e Simone Maria da Silva | Agradecimentos: Agência Primaz, Felipe Cunha, Larissa Pinto, Lui Pereira, Stênio Lima, Tainara Torres e Thomas Byczkowski | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Larissa Pinto | Tiragem: 3.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de ajustamento de conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministério Público de Minas Gerais (1ª Promotoria de Justiça de Mariana).
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APARASIRENE NÃO ESQUECER Foto: Joice Valverde
Opinião:
Papo de cumadres:
Cinco anos de uma maldição que parece não ter solução Consebida e Clemilda estão anestesiadas com a chegada dos cinco anos do rompimento da barragem de fundão, com a quantidade de crimes cometidos, até agora sem solução. por sérgio papagaio
- Clemilda minha fia hoje faz 05 anu que a barrage foi istoranu, parece que foi onte ainda mais se nois oiá para a reparação, pru reassentamentu, pras casas tricada, e pra toda gente que foi indenizada, dá contá nus dedu de uma mão. - Pois é Consebida minha cumade querida, us trem que ês já fez cabe na parma de uma mão mas us que ês ainda tem que fazê dá pra inchê um monte de caminhão. - Minha tristeza cumadre é que nossa gente já vai morenu sem vê reparação, 05 anu pra um jove é até isperiência, mas pra muitus veiu é u restu de uma existência. - Pois intão preste atenção, estes 05 anu du rompimentu de fundão marcadu por tristeza i distrução não só dus trem de valor matriá mais de tudu que em nossus coração a vida toda nois consiguiu gaudá. - Cumadre minina de Deus preste muita atenção nu que agora vô te falá, pru carsa du rumpimentu é tanta genti nossa que morre que num dá tempu nem de chorá, eu tenhu um medu danadu que pru carsa desta daneira a gente comece achá a molte uma coisa curriquera.
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Direito de Entender:
As matrizes de danos das novas “comissões de atingidos”: um piso a ser ampliado "A vida é muito mais cômoda quando se submete às piores injustiças e se esquece de que são injustiças. Sim, se torna mais cômoda, mas também completamente sem sentido. […] a luta pela salvaguarda dos direitos humanos, tanto no plano nacional, como internacional, não tem fim, como no perene recomeçar imortalizado no mito de Sísifo. Ao descer da montanha para voltar a empurrar a rocha até em cima, toma-se consciência da condição humana. […] Mas há que seguir lutando, inclusive para que a justiça pública reaja imediatamente e de ofício diante do cometimento do ilícito e da vitimização [...].” Antônio Augusto Cançado Trindade (voto apartado no caso Ximenes Lopes versus Brasil, quando juiz na Corte Interamericana de Direitos Humanos) Na mitologia grega, Sísifo foi condenado a levar uma rocha até o alto de uma montanha. Ao chegar ao topo, a pedra rolaria de volta ao sopé. Deveria ser depois levada novamente até o cume e assim sucessivamente. As idas e vindas no processo de reparação do desastre provocado por Vale, BHP Billiton e seu braço Samarco – tais como as ressalvas e reinterpretações que, na realidade, desconsideram o teor integral dos acordos firmados pelas partes e homologados judicialmente – lembram o mito de Sísifo. É também o que se dá com o abandono do modelo de constituição de comissões de atingidos que foi acordado com os réus pelas Defensorias e Ministérios Públicos, federais e estaduais. Tem sido aceita pelo juízo da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte a representação de atingidos por comissões, criadas muito recentemente, com reduzidíssimo número de pessoas, como ocorreu em Baixo Guandu-ES (com nove integrantes) e Naque-MG (com oito). Edmundo Antonio Dias Netto Junior Procurador regional substituto dos direitos do cidadão em Minas Gerais e membro das forças-tarefa Rio Doce e Brumadinho do Ministério Público Federal
Diversamente do sistema que havia sido homologado pelo mesmo juízo, essas comissões (de representatividade obviamente questionável) têm ingressado com petições perante a 12ª Vara Federal apresentando matrizes de danos criadas sem embasamento fático, já que desconsideram condições concretas das pessoas atingidas. É inegável a importância das indenizações individuais às pessoas atingidas pelo desastre na bacia do rio Doce, sobretudo em um contexto em que a Fundação Renova não tornou real a reparação. Mas o capítulo das indenizações é parte essencial de um processo muito maior: o da reparação integral. Comissões como as que foram criadas em Baixo Guandu e Naque, na verdade, oferecem uma ilusão de participação bem ao gosto das empresas rés, na linha de dar o problema por resolvido, ao invés de resolvê-lo. Tanto assim que, no processo que tratou da matriz de danos dos atingidos em Baixo Guandu, outros moradores desse município peticionaram nos autos, afirmando expressamente que não se consideravam adequadamente representados pela “Comissão de Atingidos de Baixo Guandu”, mas o juízo considerou que só a referida “comissão” teria legitimidade para participar das negociações coletivas e formular pretensões em nome da coletividade de atingidos. O Ministério Público Federal (MPF) apresentou recursos nos casos de Baixo Guandu e Naque. Mas, apesar dos inúmeros vícios processuais que apontou, é importante destacar que o pedido é de que sejam mantidas as matrizes de danos fixadas, para que possam ser utilizadas pelas pessoas atingidas, porém como um piso mínimo das indenizações devidas e sem as condições estabelecidas pelo juízo, como as de que o atingido dê quitação integral quanto aos valores que tem a receber e desista de outras ações. Nem as empresas rés, nem as “comissões de atingidos” de Baixo Guandu e Naque, manifestaram discordância quanto às matrizes de danos e condições estabelecidas nas decisões judiciais, pois não recorreram. Não são condições a que as pessoas atingidas possam, realmente, aderir de maneira livre. Depois de cinco anos de espera por uma reparação que não chega, essa é uma falsa escolha que lhes foi dada. Se acolhido o pedido do MPF, fixar tais matrizes de danos como um piso mínimo possibilitará que os valores já assegurados às pessoas atingidas venham a ser complementados após a elaboração de outras matrizes construídas a partir de dados e diagnósticos concretos. No último dia 29 de outubro, MPF e Ministério Público de Minas Gerais, ao lado das Defensorias Públicas da União, de Minas Gerais e do Espírito Santo, apresentaram petição à 12ª Vara Federal requerendo exatamente isso: que as matrizes de danos estabelecidas judicialmente sejam estendidas para todas as regiões atingidas, porém como um patamar mínimo para as indenizações. É preciso, também aqui, evitar que, como no mito de Sísifo, a rocha desça mais uma vez a encosta, trazendo novas inseguranças à população atingida. Mas a segurança jurídica buscada deve ser conquistada sem que as pessoas atingidas sejam levadas a abrir mão de seus direitos.
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Justiça e verdade
Guilherme de Sá Meneghin Promotor de Justiça
Cinco anos se passaram desde o crime desencadeado pela Samarco, Vale e BHP: o rompimento da barragem de Fundão, no dia 5 de novembro de 2015, matou 19 pessoas, arruinou comunidades inteiras, poluiu o meio ambiente e destruiu os sonhos de milhares de pessoas nos Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo. Como resposta a esse dia fúnebre, as empresas optaram pela instituição de uma entidade sem fins lucrativos que, em tese, deveria promover a JUSTA reparação dos prejuízos, isto é, reparação adequada, isonômica, célere, participativa, honesta. No entanto, a preocupação primordial da Fundação Renova é mentir, mentir e mentir, ou seja, criar uma narrativa que justifique sua ineficiência, os atrasos constantes e o desvirtuamento de suas finalidades, imputando, não raras vezes, às próprias vítimas os problemas que as empresas e a referida entidade provocaram e continuam provocando. Realmente, o material publicitário da entidade, onipresente na mídia nacional, seria digno de um Oscar, se não se pautasse por omissões e mentiras deliberadas! A mentira, falsidade, aleivosia, patranha, inverdade, é oposta à Justiça; não existe Justiça baseada em mentiras ou na distorção dos fatos. Por isso, o Padre Antônio Vieira declarou, em um de seus sermões: “a verdade é filha legítima da justiça, porque a justiça dá a cada um o que é seu. E isto é o que faz e o que diz a verdade, ao contrário da mentira. A mentira ou vos tira o que tendes, ou vos dá o que não tendes; ou vos rouba, ou vos condena. A verdade não: a cada um dá o seu, como a justiça. E porque o céu influiu naquela terra a justiça, por isso influiu e nasceu nela a verdade”.¹ Certamente, a Fundação Renova, em sua sanha publicitária, divulgou incontáveis e terríveis mentiras, que não suportaram o peso dos anos. Disse seu anterior presidente que entregaria as casas para as vítimas até março de 2019; outro representante da entidade alegou, em 2019, que a matriz de danos foi feita com a participação dos atingidos... Já estamos em 2020 e a VERDADE é que: (1º) nenhum reassentamento foi integralmente concluído e poucas moradias foram entregues aos atingidos, não chegando nem a 1% de conclusão do processo de entrega das casas; (2º) a verdadeira matriz de danos, elaborada com a participação dos atingidos de Mariana, junto de sua assessoria técnica, foi questionada com recursos judiciais pelas empresas (Samarco, Vale e BHP), sendo que, somente após a decisão dos Desembargadores do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, foi possível concluir a matriz de danos dos atingidos, conferindo-lhes o instrumento referencial imprescindível para que possam requerer indenizações justas. Obviamente, essas duas mentiras não são “mentirinhas quaisquer”, não são pouca coisa! Esses dois direitos – moradia e indenização – constituem a essência da reparação devida aos atingidos e, inacreditável, a entidade constituída para essa finalidade fez de tudo, tudo mesmo, para reduzir as prerrogativas dos atingidos a esses direitos, sobretudo por meio de mentiras. E, onde reina a inverdade, não existe JUSTIÇA. De toda forma, o Ministério Público de Minas Gerais não desistirá de promover a JUSTIÇA e a VERDADE no caso, sempre atuando com a colaboração dos atingidos, as vítimas que merecem o respeito de sua dignidade humana. Não desistiremos: lutaremos no fórum, na rua, no legislativo, na mídia, onde for necessário; dentro tudo o que estiver ao nosso alcance, vamos nos esforçar para constituir uma sociedade livre, justa e solidária para, com e pelos atingidos. ¹ Sermão da Quinta Dominga da Quaresma, de Padre Antônio Vieira, 1654.
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Foto: Juliana Carvalho
ATÉ HOJE
Vivendo em um estado de dor e de luta Há cinco anos, os moradores de 41 municípios entre Minas Gerais e Espírito Santo viram suas vidas se transformarem completamente. Nesse tempo que passou, a cada dia, uma nova mudança era percebida. Se, antes, havia a liberdade de desfrutar da natureza de forma respeitosa e benéfica, hoje, as mineradoras, que utilizam a natureza visando ao lucro acima de qualquer coisa, desfrutam da liberdade causada pela impunidade. É doloroso assistir aos sucessivos crimes das mineradoras, ano após ano, mês após mês, dia após dia. É verdade que não é possível mudar o que aconteceu no dia do crime do rompimento da barragem de Fundão, é um trauma coletivo que deixará marcas para sempre. A questão é que os danos deveriam ser minimizados por aqueles que os causaram e isso não tem sido feito. Na realidade, criam-se ainda mais danos, antes impensáveis pelas populações atingidas. Nesta edição, o Jornal A SIRENE escutou atingidos(as) de várias regiões, por meio de aplicativos de comunicação, como o WhatsApp, devido à impossibilidade dos encontros presenciais causada pela pandemia do novo coronavírus. Nessas conversas, perguntamos aos(às) atingidos(as) como tem sido o passar desses cinco anos. Assim, chegamos a relatos muito diferentes, de acordo com as subjetividades e os afetos de cada um. No entanto, mesmo diferentes, o que se percebe, em cada um, é a falta de perspectiva. Ressaltamos que a falta de perspectiva não quer dizer falta de força. Para todos(as) os(as) que convivem com a luta diária das comunidades atingidas, é visível a força que essas pessoas têm para conquistar seus direitos e mesmo para lutar no lugar de quem já está exausto(a). Mas não é fácil, sabemos, lutar todos os dias para ter o mínimo de respeito e dignidade. Ainda assim, a luta vale a pena e é por meio dela que podemos vislumbrar uma transformação social na qual a Samarco, Vale, BHP Billiton e Renova pagarão pelos seus crimes. Por Andréia Mendes Anunciação, Antônio Áureo, Arlinda da Silva, Arnaldo Mariano Arcanjo, Gilmara da Conceição dos Santos Dias, José de Félix, José do Nascimento de Jesus, José Vicente Fortunato, Léia Marques, Luciana Souza de Oliveira, Maria Geralda Oliveira da Silva, Marino D’Angelo Jr., Odete Cassiano Martins, Ramila Cerqueira Mol, Renata Cristina Nascimento Silva, Rodrigo Lima, Vanusa Aparecida Pereira Cerceau, Vera Lúcia Aleixo Silva, Vinícios Rocha dos Santos e Wigsmar Ederson da Silva Com o apoio de Joice Valverde, Júlia Militão, Juliana Carvalho e Wigde Arcangelo
Eu, como atingida, tenho certeza que o maior incômodo não é só meu, mas também de boa parte da comunidade: o medo, a incerteza e o sentimento de tristeza, principalmente quando o 5 de novembro está se aproximando. Não que, nos outros dias, não vivamos tudo isso, mas é que, quando se aproxima o 5 de novembro, todas aquelas lembranças ficam ainda mais fortes e nos tornam mais deprimidos. Léia Marques, moradora de Bento Rodrigues Depois de um tempo para cá, algumas pessoas ficaram desanimadas por ser muita luta e pouca vitória. Esses cinco anos não foram fáceis, não. É uma luta constante com a Renova, o que acaba mexendo com o psicológico da gente. Tanto que você perde a paciência, fica esgotado, cansado, desanimado… Muitos perderam seus familiares, perderam o contato com a família, muitos tiveram que ir para mais longe de suas casas, perdendo as amizades, porque, como a Renova trabalhava no território colocando um atingido contra o outro, então, se perderam muitos amigos. Acho que, hoje, estamos aí, como a grande maioria, cansada, desanimada, com o psicológico abalado. Como atingida, a gente tem uma sensação de muita injustiça. Essa sensação acaba corroendo a gente com o tempo. Mas, nesses cinco anos, a gente aprendeu muita coisa sobre direitos, sobre leis, coisas que a gente vai carregar na bagagem pro resto das nossas vidas. O que mantém todo mundo de pé é a esperança, acreditar que a justiça será feita. Ela pode até tardar, mas ela não vai falhar. Se a justiça dos homens falhar, a de Deus não falha, não. Andréia Mendes Anunciação, moradora de Volta da Capela
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Eu vim pra essa região em 1989, aqui me tornei produtor de leite, fiA maioria dos atingidos nunca dependeu de mineração. Eu nunca quei conhecendo a minha esposa, me casei na região. Vivíamos em hardependi de mineração e, hoje, vivo aqui praticamente condenado a uma monia com todos. A gente sempre procurou fazer o bem, sempre procuvida imposta pela instituição que causou o crime na minha vida. E o rou ajudar e, pra muitas pessoas da nossa região, a gente era considerado pior: com o aval da justiça. Tem momento, nesse processo, em que eu até um ponto de referência quando a situação ficava um pouco difícil. acho que os criminosos são os atingidos por estarem no percurso da Criamos uma associação de produtores de leite na qual eu fui presidente lama, porque eu estou condenado a viver num lugar que não é meu, a por três mandatos e, através dessa associação, desenvolvemos a principal não organizar os meus planos e não realizar os meus projetos, porque atividade econômica da região, que é a pecuária de leite, da qual muitas não tem como e não sei quando isso vai terminar. Estou condenado por famílias tiram o sustento, colocam o pão na mesa. Juntos, nós conquistempo indeterminado. Então é humilhante, sofrido, porque além de ser atingido, é você perder sua história, perder seus compatamos três tanques de expansão, com capacidade pra três nheiros, perder uma comunidade, perder aquilo tudo mil litros de leite/dia e chegamos a produzir 10 mil litros Pra me manter que você vinha construindo como ser humano dentro de leite por dia. Com o rompimento, 50% dos produtores nesse processo, se de uma sociedade e ser condenado a viver uma vida imque faziam parte da associação tiveram sua capacidade de gastam milhões; posta, sem saber quando você vai ter a sua vida de volta. produção e suas terras destruídas pela lama. Isso tornou a pra resolver a Não é brincadeira participar desse processo e conassociação inviável para produzir. A gente tá aqui tentando reerguer a associação, mas a duras penas. Nossa renminha vida, não se seguir perceber a crueldade que essas pessoas praticam da foi acabando. Isso causou um empobrecimento muito gasta um centavo". com os atingidos. Em nome dos atingidos, muita gente forçado e muito grande na região e pra mim. tá ficando rica, empresas, empreiteiras, obras superfaFui tirado da minha casa, tive dois terrenos atingidos por lama, dois turadas e, para os atingidos, nada. Pra me manter nesse processo, se gasestão em isolamento comunitário. Hoje a gente não tem mais os compatam milhões; pra resolver a minha vida, não se gasta um centavo. Cadê nheiros, os amigos. Vivemos em um isolamento total, não conseguimos a justiça? Cadê os representantes do povo? Cadê o ser humano que tem ninguém pra ajudar a gente no trabalho. E o pior de tudo é que vivemos amor? Porque esse povo vem aqui e leva toda nossa riqueza embora e uma vida imposta. Pra ser sincero, eu sinto que os atingidos, hoje, estão só deixa destruição e tristeza pra nós. Até quando nós vamos continuar no centro de um grande negócio. Gasta-se muito mais pra manter os sendo vistos como os criminosos dentro desse processo? Eu, enquanto atingidos dentro do processo do que pra resolver a vida das pessoas. Eu não receber uma indenização que seja do meu agrado, não pretendo sair. adquiri várias doenças. Diabetes, pressão alta, depressão. Tenho que toPorque eu lutei muito pra resgatar as minhas coisas, eu sou osso duro de mar remédio pra dormir. E essa falta de perspectiva de quando eu vou roer. Pode levar 10 anos, 20 anos, 50 anos, enquanto eu viver, eu tô aqui ter minha vida de volta, de quando eu vou ter a rédea da minha vida de lutando pelo meu direito. O tempo não é mais problema pra mim. volta, é que adoece, é que desanima, é que faz a gente ficar cada vez pior. Marino D’Angelo Jr., morador de Paracatu de Cima Foto: Joice Valverde
Marino e sua esposa, Maria do Carmo D'Ângelo.
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Nada foi feito.
Foto: Arquivo pessoal de José de Félix
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Foto: Wigde Arcangelo
Dentro desses cinco anos da tragédia, nada foi feito. A cada dia que passa, o que vejo é tristeza, sofrimento, angústia, doença, problema sério de saúde nas pessoas. Tudo isso está tomando conta das pessoas. Não temos mais liberdade. O meu pai tem 90 anos e chora de saudade de sua casa. Um homem que dedicou uma vida inteira trabalhando para ter tudo e, hoje, não temos nada. Na nossa comunidade, Paracatu de Baixo, temos nossa igreja onde celebramos nossas festas e tradições. Menino Jesus, Santo Antônio, Nossa Senhora Aparecida. Hoje só podemos fazer uma simples homenagem, não temos mais jeito de celebrar como era. Antes, tinha um grupo de jovens que participavam da igreja e, hoje, não existe mais. Maria Geralda Oliveira da Silva, moradora de Paracatu de Baixo Em primeiro lugar, o que me preocupa muito é a questão da saúde. Não tivemos resposta sobre a contaminação que a lama causa. E a Renova está deixando a desejar sobre a manutenção das estradas, ainda não recuperou os bens coletivos, assim como o campo de futebol, a arena de cavalgada, a cachoeira etc. Perdemos sinal de telefone após o rompimento e ainda nem tem a proposta de instalar torres nas comunidades atingidas, até hoje não fizeram nada em questão da telefonia. E sobre o dossiê, a Renova está tratando os atingidos de forma diferente um do outro, e não está concordando com a Matriz de Danos elaborada pela Cáritas. José de Félix, morador de Ponte do Gama
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Foto: Wigde Arcangelo
Está fazendo cinco anos que perdemos tudo, muitos morreram e outros estão doentes. Penso que é até mentira isso o que está acontecendo, porque é muito sofrimento que não terá fim. A Fundação Renova deixou alguns atingidos com uma bomba armada nas mãos, que não tem como desarmar, muitos estão em situação de engolir propostas de aceitação sem interesse por goela abaixo. Muitos estão no prejuízo, mesmo comprovando os seus direitos estabelecidos por lei. A nossa família tinha oito mil metros de terra e mais benfeitorias no Bento. Agora, no reassentamento do Novo Bento, tivemos perda das metragens e não ganhamos a mais, como temos direito. E, se quisermos recuperar o valor, temos que vender essa metragem perdida pra empresa, só que pelo valor que ela mesma dá para a venda imobiliária. Arnaldo Mariano Arcanjo, morador de Bento Rodrigues No início de 2017, caí numa vala aberta pela Samarco, no quintal da minha irmã, do ladinho de minha casa. Tive fratura exposta no braço esquerdo. Como encheu de pó da lama tóxica, tive infecção no osso do braço e também na cirurgia. O que mais me incomoda é a sequela na mão esquerda. O defeito no braço me deixou com limitações. Além disso, a garagem da minha casa corre risco de desabar. Caso isso aconteça conosco em casa, será mais um crime. As criminosas sabem disso e não tomam as devidas providências. Eu, que era responsável e cuidava do meu pai mais minha mãe, idosos e já com algum problema de saúde, quando me acidentei, o meu filho teve que vir. Ele veio cuidar de mim, do meu pai e da minha mãe. Eram dois doentes, depois eu acidentei, ficou todos os três aqui precisando de cuidados. Aí ele deixou tudo e veio cuidar de mim, do meu pai e da minha mãe, e ficou desempregado esse tempo todo. Aqui, ele tentou um trabalho, mas ele não conseguiu, porque eu faço parte da Comissão dos Atingidos e aí eles não deram emprego a ele. Por mais que ele batalhasse, ele não conseguiu, porque eu sou do movimento dos atingidos. E, nessa brincadeira aí, ele ficou quase dois anos aqui em casa, cuidando da gente, sem ter rendimento nenhum e eu tive que tirar do dinheiro do cartão da Samarco pra ele pagar a pensão dos meninos dele e é isso que deixa a gente bem chateado. Quer dizer, foi dois anos sem INSS, dois anos sem rendimento nenhum. É muito complicado. Odete Cassiano Martins, moradora de Barra Longa
Foto: Arquivo pessoal de Odete Cassiano Martins
O que mais me incomoda é a sequela na mão esquerda".
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Foto: Stênio Lima
Sinto tristeza e frustração com o tratamento disponibilizado tanto pela Renova quanto por suas contratadas. Não tive nenhum direito reconhecido e não acredito em reparação justa, pois o processo é todo ditado e feito por pessoas que não representam minha família e têm outros interesses. Minha família foi abandonada por cinco anos, tratada como se não existisse. Não sabemos como e nem a quem recorrer. Perdemos nossas raízes e dividiram nossa família. Falam que priorizam os atingidos, mas não nos dão oportunidade de emprego justo, de acordo com minha formação. Estou correndo atrás da sobrevivência, pois, se dependesse da Samarco, a gente tava enterrado e esquecido. Minha família parece que não existiu em Bento Rodrigues. Em tudo o que precisamos, temos que mendigar nossos direitos e nem todos são atendidos. Ouvi advogada da Renova dizer que minha mãe não era deficiente pelos critérios da Renova. Isso magoa e fere muito. A gente estava construindo uma casa e eles não querem reconhecer minha mãe como proprietária. Tem muita gente lucrando com a nossa tragédia e não temos nada. Gasta-se milhões com empresas que dizem estar prestando ajuda, quando, na verdade, estão só se ajudando. Tem hora que, como minha mãe diz, era melhor ter morrido na lama do que ficar vivo aguentando esse tipo de humilhação e ver gente ganhando pra humilhar a gente ainda mais. Estou trabalhando fora de Mariana, pois, dentro da cidade, não tem vaga com remuneração justa. Trabalhei em três contratadas da Samarco e Renova, é frustrante ver essas empresas pagando altos salários e regalias para profissionais menos capacitados. Aos atingidos e suas famílias resta a dor da perda e a sensação de que somos roubados a cada dia. São cinco anos de enrolação e prejuízos. Wigsmar Ederson da Silva, morador de Bento Rodrigues Uma coisa que tenho grande saudade de Campinas, onde minha casa foi interditada, é que nós somos em 11 irmãos e, todo fim e meio do ano, vinha a maior parte e lá nós nos reuníamos todos, né? E uma das coisas que eu me sinto triste é porque eu cansei de pedir a eles pra arrumar lá o rio, onde nós tomavámos banho. E acho, de que 100% dos meus pedidos, nenhum foi atendido. Então, Campinas, pra mim, hoje, quando eu paro e penso, me dá uma tristeza muito grande, porque é um lugar em que eu nasci e me criei, só vim para cá por uma enfermidade, sabe? Mas, quando melhorei um pouco, eu voltei. Eu plantava na roça, plantava feijão, tinha pomar, tinha criação, tinha casa e cuidava de lá. Essa lama fez com que abandonasse tudo. Lá era um encontro da família. Hoje eu tô aqui em Mariana, mas o negócio da minha família é lá na casa da roça. Toda vida foi. E não adianta, porque a turma não quer reunir aqui em Mariana, a turma quer ir pra roça, né? É onde eles foram criados, é onde eles se sentem bem, onde que eles gostam. Então essa é a minha tristeza. Agora é um ponto que tirou da minha vida. Às vezes, eu até costumo falar que não tem dinheiro que pague, né? Hoje eu me sinto preso aqui. José Vicente Fortunato, morador de Campinas
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Tirou meu sonho de estudar
Foto: Joice Valverde
Eles arrancaram muitos sonhos meus".
Arlinda (sentada), ao lado de Cleonice Gonçalves e Edilene Vitória de Souza, participando de um protesto em Pedras. Naquele dia cinco, em que a barragem estourou, eu estava realizando um sonho de visitar Ouro Preto. Nasci, vivi, fui criada aqui em Minas, mas eu não conhecia a maravilha que tem em Ouro Preto. Eu, estudando em Águas Claras, fui com a minha turma de sala de aula passear em Ouro Preto. A gente passeou, foi muito bom. Na saída, quando a gente estava vindo embora, foi que a gente recebeu a notícia dizendo que a barragem tinha estourado. Foi muita informação, cada um falava uma coisa. Eu voltei para roça, no ônibus escolar, vim pra minha residência, cheguei e meu esposo também estava em casa. Fomos resgatar outras pessoas que estavam em área de risco, acabamos ficando também em área de risco. Eu fui levada de helicóptero do mato onde eu estava para o hospital em Mariana. Acabei ficando um ano em Mariana. Os meus amigos, a minha família de Paracatu, cada um foi para um lado. Eu não pude retornar realmente para terminar o ano letivo em Águas Claras, acabei concluindo o ano em Mariana, com outra turma completamente diferente. Até hoje, eu sinto saudade dos meus amigos, dos meus professores, com que eu tinha muita intimidade, assim, um carinho muito especial com eles. A gente tinha um sonho de se formar juntos, acabou que esse sonho sendo interrompido e não tive formatura, que era o meu sonho. Eu pedi a uma senhora que deixasse eu morar na construção da casa dela, pois a Renova pagou aluguel pra nós por um tempo só, depois falaram que a gente tinha que retornar pra casa, porque, na minha casa, não tinha ido lama. Mas, se eu fosse, não podia continuar meus estudos. Nesse tempo, eu falei: “não, eu não posso ter meus estudos interrompidos, a única chance que eu tenho é agora”. Acabei completando o restante do tempo que faltava para eu me formar lá em Mariana. A Renova não me ajudou em nada. Eu tenho muito problema com minha família por isso, por eu ter uma idade, assim, avançada, aí por volta dos 40 anos. Para eles, eu era velha, muitas pessoas falaram: “pra que estudar mais? Está na hora de morrer”. Mas eu estava estudando, não era pra eu ir para uma faculdade, ou
ter um um cargo alto, é simplesmente pra eu pegar uma bula de um remédio e saber ler. A Renova roubou o meu sonho. Eu choro todas as vezes quando eu lembro, porque a minha vontade sempre foi ser veterinária. Eles arrancaram muitos sonhos meus. Eu não tenho nada de bom pra dizer que consegui por meio dessa barragem que estourou. Eu não perdi ninguém da minha família, mas só da gente saber que faleceram tantas pessoas com essa barragem, que muita gente perdeu casa, que muita gente perdeu criação... Eu mesma perdi criação, minha casa ficou toda destruída. Nesse tempo em que eu fiquei fora, muitas rachaduras na parede, manchas, o forro da minha casa caiu e, até hoje, eu não pude arrumar. Minhas plantas acabaram praticamente quase tudo, os fregueses que compravam na minha mão não existem mais. Eu tinha minhas criações de estimação, morreram. A Renova falava que ia cuidar, mas não cuidou direito, morreu. Fiquei muito doente, estou doente, meu esposo já não tem mais saúde. Vou te falar, dá vontade de virar às avessas só pra ver se a dor passa, mas não passa, não. Está doendo muito, muito. Porque você relembrar o que passou, o que tá acontecendo até hoje, tá doendo muito. O meu lugar não é mais o que era antes. A gente não tem mais transporte, a gente não tem uma estrada que presta, eu não tenho uma casa mais que presta, eu não tenho trabalho, meu marido está desempregado, tá sendo muito ruim. É muita coisa, nossa, dá pra gente escrever um livro de umas 200 páginas e ainda não cabe tudo. A gente olha pro rio, todo sujo, ele tá morto. Era o lugar que a gente pescava, andava, olhava a água transparente, via animais, atravessava e ia para a casa de um outro parente. Hoje você não pode mais ter contato nem com a água. Ela está suja, triste, escura, tem tudo de ruim. Eu tenho saudade até de uma árvore que tinha na beira do rio, que eu sabia que ela tava lá, hoje já nem existe mais. Eu ia trabalhar, eu passava perto do rio, eu via animais comendo fruta. Aquilo era uma felicidade. Não ver isso hoje é muito triste. Arlinda da Silva, moradora de Pedras
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Foto: Arquivo pessoal de Vanusa Aparecida Pereira Cerceau
As comunidades rurais atingidas lutam constantemente contra o apagamento de seus problemas promovido pela Renova. Pautas básicas, como obras em áreas de lazer ou limpezas das estradas, são ignoradas, enquanto grandes obras são realizadas no centro de Mariana. Na época do rompimento, eu era diretora de uma escola, em Campinas. Devido ao rompimento da barragem, os alunos ficaram muito prejudicados, porque perdemos o acesso e tínhamos que fechar um ano letivo, porque Paracatu foi isento de cumprir por questões da barragem, mas Campinas não, tinha que cumprir. Eu fui, então, de casa em casa, em Campinas, Pedras, Borba, Barreto - a comunidade do Barreto pertence à Barra Longa, mas os alunos são assistidos na escola de Campinas. Fui de casa em casa, pois os pais falaram o seguinte: “Vanuza, eu deixo sair de casa se for com você”. Então, eu passei a buscá-los com uma van, de casa em casa. E a formatura, que sempre ocorre, não aconteceu aquele ano. Nós transferimos pra março, no início de 2016, e quando solicitei uma ajuda da Renova, o que eu tive de resposta foi que a minha escola não tinha sido diretamente atingida. Então, eu não tinha direito a nada. Aí uma outra coisa. Houve esse transtorno, nessas idas e vindas, porque, uns 15 dias após eu estar buscando essas crianças, eu tive uma infecção renal devido ao que eu estava passando. E eles não levaram isso a sério também, porque, naquele corre corre, eu fui ao médico, ele me deu atestado, me deu remédio, mas eu não entrei com atestado, continuei realmente trabalhando, porque os meninos dependiam de mim. Porque, pra vocês terem ideia, o que foi feito em Pedras, no Borba, em Campinas, com relação ao lazer das crianças, né? Então, assim, qual o lazer que, até hoje, cinco anos após o rompimento, a Renova fez pra Pedras? O campo tá lá destruído, não foi feito o outro, né? O que foi feito no Borba pela Renova em relação a lazer? Nada. Em Campinas, nada, né? Então, assim, deixaram mesmo abandonados. Então, eles focam aqui em Mariana, né? Igual investem lá no jardim, investem em Natal de Luzes, igual foi ano passado. Eu acho uma injustiça com as pequenas comunidades. Então, eu vejo um descaso, um descaso. Vanusa Aparecida Pereira Cerceau, moradora de Borba
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Presos(as) dentro de casa O tempo possui essa teimosia de não querer ser controlado. Ele passa e transforma o seu entorno. Crianças que saíram dos territórios atingidos ainda bem novas, hoje, crescem em uma cidade que não se parece com suas comunidades. Muitos(as) responsáveis se preocupam com a socialização de seus(suas) filhos(as) neste espaço. Por outro lado, pessoas que sonhavam em estabelecer família em seus locais de origem são privadas de realizar o desejo. Pra mim, nesses cinco anos, está tudo na pior, porque, até hoje, eu não tenho uma solução da Samarco. Tenho meu lote lá em Bento Rodrigues e, até hoje, nada foi resolvido. O que eu mais queria era ter construído minha casa lá, mas veio a Samarco e tirou todos os meus sonhos... Às vezes, as pessoas acham que eu ganho alguma ajuda da Samarco, mas vou deixar bem claro: não ganho. A Renova me fez uma proposta que eu não aceito, eles querem me pagar como filha de proprietária de Bento. E não, eu tenho o meu lote lá. Tanto que ele continua lá, não passou lama de rejeito nele, pois ele fica na parte alta, onde não chegou rejeito. A minha vontade é ir lá e construir minha casa, porque, até hoje, eles não me deram nenhuma solução, não me falaram como vão me entregar a indenização. Eu não quero indenização pelo meu lote, eu quero o meu lote de volta. Me chamaram uma vez, eu não aceitei a proposta e não me chamaram mais. Minha mãe e meus irmãos foram chamados para visitar um terreno no novo Bento, enquanto um outro irmão meu e eu não fomos chamados. Estou me sentindo excluída da proposta deles. Se o meu lote era junto do lote da minha mãe e irmãos, por que eu não fui conhecer o meu no novo Bento? Hoje eu estou casada, tenho o meu filho de três aninhos. O meu sonho era ter construído a minha casa, ter meu filho dentro de Bento e ele poder ser criado igual eu fui: com liberdade, poder brincar na rua, poder ter mais amizades, já que, aqui na cidade, a gente não tem. Meu filho quase não brinca com vizinhos, só quando junta a família que ele se diverte com meus sobrinhos. Eu gostaria, sim, de ter construído a minha família dentro de Bento Rodrigues. Eu não tinha casa, tinha lote, mas eu creio que, com esses cinco anos, eu já não estava dependendo de morar de favor, igual hoje eu estou. Eu tenho certeza que eu já estaria dentro da minha casa. Gilmara da Conceição dos Santos Dias, moradora de Bento Rodrigues
O meu sonho era ter construído a minha casa, ter meu filho dentro de Bento e ele poder ser criado igual eu fui".
Foto: Juliana Carvalho
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Às vezes, ficamos até sem explicação, vai passando o tempo e nem conseguimos mais explicar o que acontece com a gente. Está sendo bem difícil morar numa casa que não é sua. Sabendo que você tinha a sua casa e, hoje, você não tem mais, o tempo está passando e, até hoje, nada. Só ficam nos iludindo, dizendo que vai sair ano que vem. O ano que vem chega e não sai, vão jogando mais para frente. Se a gente estivesse lá no Bento durante a pandemia, tinha um terreno para a gente capinar, para limpar, divertir com as crianças da gente. Aqui, você tem que ficar preso dentro de casa, não tem terreno, não tem nada para você fazer. A gente acaba ficando nervoso, os filhos da gente começam também a ficar nervosos, porque não têm espaço. Quando aconteceu o rompimento da barragem, a minha menina estava com 10 anos, o meu menino, quando saiu do Bento, estava com cinco anos. Minhas crianças, desde que aconteceu o rompimento, não querem mais dormir sozinhas, ficam irritadas… Eles querem espaço para brincar, mas eu não tenho coragem de soltar meus filhos para rua em Mariana. Os meus filhos foram criados praticamente em roça, tenho medo de soltar meu filhos na rua e acontecer alguma coisa com eles. Se alguma coisa acontecer com os meus filhos, será que alguém vai me dar eles de volta? O que mais sinto falta do Bento é a liberdade que eu tinha. Porque lá era um lugar sossegado, você tinha os amigos perto. Você tinha aquela felicidade de estar na sua casa, no seu lugar. Nossos sonhos foram todos embora. Depois desses cinco anos, a sensação é de revolta. Ontem estivemos no Novo Bento, a gente estava esperando encontrar mais casas feitas, mas não tem nada. Durante cinco anos não tem nada. Eles ficam iludindo a gente durante esse tempo. Quem nos garante o nosso lar? Ninguém. Cinco anos, o tempo está passando e nada até hoje. Ontem, no novo Bento, eu senti tristeza. Os atingidos, dos mais novos aos mais velhos, estão adoecendo, as pessoas estão morrendo, de jeito que os mais velhos não vão ver os lares deles de volta. E nós, mais novos, será que vamos ver? Será que nossos filhos vão voltar para o lado deles, onde tinham liberdade? Eu só faço essa pergunta: será? E ninguém responde. Eu cheguei aqui com o meu pai, em 2016, ele estava com esperança de voltar para a casa dele. Só que ele faleceu no ano passado. Ele não voltou para casa. O que mais nos revolta é isso: as pessoas estão morrendo sem voltar para o lado delas. Depois do rompimento, eu vivo de remédio. A minha liberdade e minha felicidade foram todas embora. A única coisa que eu quero de volta é a minha casa. Eu sei que a minha felicidade e saúde não vão ser as mesmas. Não vai voltar ao que era antes. Eu só consigo pensar no futuro, no dia em que eu estiver dentro da minha casa. Renata Cristina Nascimento Silva, moradora de Bento Rodrigues
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Será que nossos filhos vão voltar para o lar deles, onde tinham liberdade? Eu só faço essa pergunta: será? E ninguém responde".
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A demora é o que mais preocupa
Foto: Juliana Carvalho
Os problemas se acumularam ao longo desse tempo. Muitas pautas das comunidades atingidas ainda não foram atendidas. Atingidos(as) relatam sentir descaso da Renova em algumas questões, o que contribui para a demora da reparação. Os mais velhos temem nunca verem suas casas prontas.
Vai fazer cinco anos desse crime escandaloso e, nesses cinco anos, a luta nossa é demais. Eu vou todos os dias à obra e a gente vê que o andamento agora melhorou um pouco, a partir da metade do ano pra cá. Mas a espera é demais. Cinco anos e, praticamente, tem duas casas prontas. Então a gente fica sentido, a gente fica lamentando, porque, pra gente sair correndo pra não morrer foi rapidinho, ou corre ou morre, e, até agora, o reassentamento nosso tá numa lentidão, um atraso que não tem tamanho. Então a gente fica preocupado com esses problemas. A idade vai chegando e a gente não tem esperança de voltar pra nossas casas. A gente fica morando, até hoje, em lugar que não é da gente, mal acomodado, mal alojado, porque não é a nossa residência e isso atrapalha muito. Então isso, pra mim, é preocupante, é triste, lamentável, a lentidão da Renova com os reassentamentos. Não só o nosso, de Paracatu, todos os lugares atingidos e a recuperação do meio ambiente também me preocupa muito. Hoje parece que envolve muito dinheiro na Renova com os funcionários, tudo muito bem pago e nós, que somos atingidos, a gente não tem o que precisa e o que merece ser recompensado. Têm pessoas que ainda não receberam indenização, muitas. A demora é o que mais preocupa. A gente chegar, ver caminhão, caminhonete, carro pra baixo e pra cima, e casa levantando é muito pouca. É lamentável a gente ter que falar isso, porque tá faltando respeito com as comunidades atingidas, então eu acho que a Renova tem que raciocinar, tem que botar as coisas em prato limpo, ter mais agilidade, porque ela foi criada para sanar todos os danos e, até então, não tem nada. Só fala, promete e não cumpre. Todo mundo conhece minha maneira de ser. Verdade, eu não tenho medo de falar pra ninguém. Porque cinco anos, desses cinco anos, tinha que ter, no mínimo, só em Bento Rodrigues, umas 100 casas prontas. Coisas que não tem. Tem apenas duas casas prontas. Vou fazer 75 anos agora em novembro, dia 3 de novembro, dia 5 faz cinco anos e, até hoje, não tô na minha casa. Isso me preocupa e muito. Muito. Mas muito mesmo. Isso aí dói e dói demais. Fazer o quê? Renova, infelizmente, é assim. José do Nascimento de Jesus, morador de Bento Rodrigues
Até hoje, não tô na minha casa. Isso me preocupa e muito. Muito. Mas muito mesmo. Isso aí dói e dói demais.
José do Nascimento de Jesus guarda uma réplica de um objeto que a lama levou, no rompimento da barragem.
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Foto: Wigde Arcangelo
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No início, quando teve a seleção de terreno, a minha família acompanhou tudo e até chegou a escolher o terreno na Lavoura. Só que foi passando um tempo e a gente viu que não era um terreno bacana, aí entramos em acordo e preferimos escolher algum terreno aqui em Mariana. E a gente achou que seria melhor, só que acaba que tem essa demora pro início de obra, que, até hoje, não se iniciou nada, nada. A gente até tá sendo atendido sim, mas também já tem um ano que estão empurrando com a barriga. Já assinaram os documentos, meus pais já foram no cartório, já registraram. Teve um problema com a questão de opção da minha madrasta com a irmã dela, porque os lotes são praticamente um só e foi dividido em duas partes. Aí, resolveram fazer a virada de lote, porque uma quer a casa virada pra rua e a outra não quer. Só pra essa mudança de virada de lote demoraram praticamente um ano pra resolver isso. Agora diz que tá resolvido e a gente tá aguardando a resposta pra início de obra. O reassentamento familiar deveria ser mais rápido, pelo fato da demanda de obra ser menor, mas também está muito lenta. E acontece que, quando a gente cobra uma resposta, eles dão um parecer que seria como se eles estivessem fazendo um favor para nós. Se pararmos pra pensar, se eles tivessem focado nessas obras do reassentamento familiar, pelo tempo que já tem, já teriam casas prontas a serem entregues. Eu fico me questionando também o porquê das obras do Novo Bento estarem tão atrasadas, já se foram cinco anos e estamos vendo claramente a lentidão dessas obras. Claro que é uma obra grande e entendo que realmente não é feita da noite para o dia, há todo um projeto a ser feito, mas acontece que a Renova está focando muito em obras sem tanta tanta necessidade e urgência quanto às moradias, que são o que realmente importa. Por mais que a minha família tenha escolhido residir aqui em Mariana, eu não estou pensando somente em mim, mas estou pensando também nas famílias que foram retiradas à força dos seus lares e que estão aguardando respostas, que, infelizmente, estão demorando tempo demais. Enquanto isso, as obras que a Renova está realizando por fora estão indo a todo vapor, tirando total foco da obra do Novo Bento. Vinícios Rocha dos Santos, morador de Bento Rodrigues
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Foto: Júlia Militão
A minha maior indignação é a demora da Fundação Renova em ateneles, pelas empresas, porque eles são o intercâmbio das empresas, é que der ao atingido. Vejo como o maior desrespeito com a gente. No dia 5 de eles não enxergam o atingido como atingido. Eles enxergam o atingido novembro de 2015, aconteceu o rompimento da barragem de Fundão, como explorador, mas eles veem dessa forma porque isso não aconteceu acabando com todo o nosso trabalho, nosso suor, nossas dificuldades na com eles, porque a nossa vida, hoje, se estampa na dor, no sofrimento, na comunidade. A nossa comunidade era uma comunidade simples, mas depressão, até mesmo na falta. Porque o que eles oferecem com o cartão, uma comunidade organizada. Uma comunidade que tinha lazer, tinha se a gente for colocar tudo na ponta da caneta, ele não dá pra sustentar alegria, tinha momento de festa, festa religiosa, festa cultural e, hoje, tá a casa, principalmente aquelas pessoas que saíram do seu território pra uma comunidade morta, sem vida. Uma comunidade que luta, luta pela vir pra cidade, né? O custo, pra nós, ficou maior. Não é o custo do nosso recuperação e se encontra com uma empresa poderosa que só nega o diterritório. Lá, a gente tinha ajuda, a gente plantava, a gente colhia, a gente reito do atingido. Ela não contempla o atingido como é preciso. A minha tinha criação de gado, de galinha… Isso é uma renda que a gente tinha e, maior indignação é ver o meu povo adoecendo, hoje, não tem. Essa lama nos colocou na dificuldade, o meu povo depressivo, porque todos estão denos colocou com mais pobreza, porque a gente era A nossa comunidade pressivos na nossa comunidade. Todos com capobre, mas era um pobre que tinha tudo, era um poera uma comunidade sas trincadas, as que ficaram foram danificadas e bre saudável. Então, essa demora da Fundação Renosimples, mas uma trincadas, e a Fundação Renova não repara esse va em atender ao atingido nos deixa muito chateados, erro. E a demora com nosso novo reassentamencomunidade organizada. tristes, magoados, e tudo isso nos deixa frágil. Deixa a to, com nossos projetos, todos prontos, feitos… gente sem forma de sair, de desenvolver. Uma comunidade que A Fundação Renova está distorcendo tudo aquilo Quando aconteceu, a justiça deu, pra Fundação Retinha lazer, tinha alegria, nova e a Samarco, até 2019 para atender aos atingidos. que é o plano do atingido. Levou para o juiz e, agora, está levando todos os nossos projetos na tinha momento de fes- É 2020, o que tem no nosso território, para a construmão do juiz, sem consultar o atingido, desrespeita, festa religiosa, festa ção do nosso reassentamento, é o terreno. O terreno tando o atingido. A minha maior indignação com e um projeto que a Fundação Renova está fazendo da cultural e, hoje, tá a Fundação Renova é a forma dela tratar o atinforma deles. A gente fica sem saber, sem confiança, gido com desigualdade, colocando um atingido sem entender o que passa na cabeça desse povo pra uma comunidade contra o outro. Ela reconhece um e não reconheatender a gente, desrespeitando nossas necessidades, morta, sem vida. ce o outro, e toda a comunidade foi atingida no nossos projetos e desejos. Quem tem que falar como geral. Eu fui uma atingida que saí da minha casa. Trabalhei 43 anos pra vão ser nossos projetos somos nós. Nós é quem fomos atingidos, não é ela construir uma casa, construir o meu lazer… Dentro de 20 minutos, esse quem vai responder pelos nossos reassentamentos e nossas casas. crime dessa lama maldita levou toda a minha casa, eu saí de casa com a E também na comunidade tem várias pessoas com cadastro feito, que roupa do corpo, e nunca a Renova chegou em minha porta pra me ofeforam atingidas, são idosos esperando o cartão emergencial e nada. A recer um apoio, um acolhimento, uma preocupação com toda a minha Renova não reconhece, não busca, não contempla o direito dessas pessovida e da minha família. A minha indignação, no geral, é em relação às as. É muito revoltante pra nós, atingidos. A Fundação Renova não pode casas. É casa trincada, é casa pras pessoas que perderam as suas casas destratar o atingido como ela destrata, negar direito como ela nega, pore estão fora do seu território, as pessoas que estão doentes e precisam que a nossa luta é a busca por direito. A gente busca pelo direito e a Funde tratamento, os pais que precisam de cartão emergencial e eles negam dação Renova luta pra tirar os nossos direitos, e a gente confia agora em esse cartão pra quem tá com os seus filhos doentes, com todo o diagnósDeus, né? Porque a gente vai lutando, lutando, nós não podemos perder tico nas mãos de que está contaminado pela lama, com metais pesados a esperança da luta. Mas tem pessoas que estão perdendo as forças, estão no corpo, e eles ainda negam o direito do cartão emergencial. A minha se afastando, porque perdem a paciência de esperar. maior indignação com a Fundação Renova, com esse crime cometido por Vera Lúcia Aleixo Silva, moradora de Gesteira
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Tenho nitidez do caráter unilateral dessas “negociações” e de seu pacto com a preservação dos interesses das grandes empresas envolvidas. O fato de que a própria política de indenização é elaborada e conhecida apenas pela Fundação Renova (contratada pelas autoras do crime) atesta essa premissa. Na ausência de qualquer diretriz que respalde o entendimento das pessoas, das comunidades, dos povos tradicionais e indígenas, do ecossistema, enfim, de todos os povos atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão, não há negociação. Há exposição de opiniões, posicionamentos, argumentos, migalhas etc... Há também muita polidez em lidar conosco, nos localizam como vítimas, ainda que munidos de todo o aparato para nos silenciar institucionalmente. Trata-se de uma batalha de poder muito desigual. Mas, na minha opinião, um crime é sempre um crime, genocídio é sempre genocídio, e isso não é negociável. Além disso, nossos alvos de negociações são distintos: para eles, o que está em negociação é em qual perfil a pessoa atingida “se enquadra”, de acordo com seus próprios parâmetros e, consequentemente, qual a quantia que lhe será destinada. A arbitrariedade do processo é intrínseca e totalmente condicionada ao julgamento da própria Fundação. Isto é, se você é considerado atingido ou não, e mais, quão atingido você foi, é colocado pela Fundação Renova. Para nós, se trata de negociar um futuro possível, negociar nossas vidas, negociar uma versão da história que nos contemple e que explicite que o rompimento da barragem de Fundão foi um crime. Ramila Cerqueira Mol, moradora de Paracatu de Baixo
CIF aprova Plano de Ação em Saúde de Rio Doce No dia 17 de setembro de 2020, o Comitê Interfederativo (CIF) aprovou o Plano de Ação em Saúde do município de Rio Doce. A deliberação permite que o município possa usar recursos da Renova na saúde pública, com o intuito de minimizar os impactos gerados pelo rompimento da barragem de Fundão. No entanto, a Renova entrou com um ofício de impugnação da decisão, que ainda não foi analisado.
Foto: Felipe Cunha
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Foto: Felipe Cunha
Olha, esses cinco anos, pra mim particularmente, têm sido muito desgastantes, muito tensos. E, falando do processo de saúde e doença relacionado ao crime, eu tenho sentido muito, porque são muitas dificuldades, a gente percebe estratégias de quase querer calar a gente, de não atender às nossas reivindicações, de desqualificar até as falas da gente, sabe? Então tem sido muito desgastante, mudou a nossa cultura, nossa realidade, inimizade dentro das próprias famílias, uma divisão da comunidade entre aqueles que são atendidos e aqueles que não são reconhecidos. Embora nossa realidade cultural, geográfica e tradicional seja a mesma, nós fomos divididos em grupos de atingidos atendidos Vemos nossos direitos irem por lama abaixo. É um sentimento de tristeza, de desilusão, mas, acima de tudo, a gente não perde a esperança. A gente tá pronto pra continuar a luta de uma forma organizada, pensando sempre no coletivo dos atingidos, com prioridade para aqueles que estão em situação, além de atingidos, de risco social. O Plano de Ação de Saúde é importante não só pra Rio Doce como para todos os territórios da bacia no rio Doce, porque essa mudança brusca de cultura literalmente enterrou os nossos sonhos, os nossos costumes, as nossas tradições, a nossa cultura, o nosso meio ambiente e, psicologicamente, principalmente, afetou muita a saúde de todos os atingidos diretos e indiretos, né? O Plano vem atender uma necessidade dos atingidos, porque as pessoas estão muito abaladas e precisam de uma atenção maior, não só no aspecto psicológico, mas em todos aspectos da saúde em relação ao homem e meio ambiente, ao homem e à cultura, à família. O Plano foi elaborado em conjunto com o Rodrigo, que é nosso secretário de Saúde, com a participação efetiva dos atingidos, de uma forma bem democrática e participativa, com ideias brilhantes. Eu, como representante da comissão na Câmara Técnica de Saúde e também do Conselho Municipal de Saúde participei diretamente. Junto com o secretário e com a Assessoria Rosa Fortini, nós fizemos reuniões nas comunidades e aqui também na sede, e, nessa junção de ideias, formalizamos questões relevantes para as comunidades que participaram do Plano de Saúde. Antônio Áureo, morador de Rio Doce
Vários impactos foram gerados na saúde das populações dos municípios atingidos. O Plano é importante para, além de mitigar os impactos da saúde, reparar todos os impactos da saúde que vêm do rompimento.Tanto em relação ao psicológico, já que hoje não temos mais o rio que antes servia como lazer e pesca que agregava na renda das pessoas -, quanto em relação a outros fatores que resultaram em gastos muito grandes do poder público durante o rompimento, aqui em Rio Doce, não tivemos aporte nenhum da Fundação Renova, como outros municípios tiveram. Precisamos criar condições de garantir uma saúde melhor para a população atingida, a intenção do Plano é essa. A Fundação Renova diz que precisa de estudos de avaliação de risco para a saúde humana antes de implementar alguma ação, porém nós, que trabalhamos com SUS, temos o sistema de informação que nos permite ver o aumento significativo em várias partes da saúde após o rompimento, como exames laboratoriais, saúde mental… Nós também tivemos um aumento da população flutuante e volante, que trabalha nas obras de reparação e que é atendida pelo município. A Renova não aceita esses dados por bater na tecla do nexo de causalidade, mas, na saúde, precisamos trabalhar com o princípio da precaução, que busca a prevenção e a promoção da saúde. Como profissional da saúde, digo que a importância do Plano é dar dignidade novamente a essas pessoas. Como cidadão riodocense e pessoa atingida, digo que é também uma questão de honra. Rodrigo Lima, secretário municipal de Saúde de Rio Doce
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Foto: Thomas Byczkowski
Mais consequências ao longo da bacia
O rejeito de lama do rompimento da barragem de Fundão percorreu o rio Doce e chegou ao mar do Espírito Santo. Municípios do Estado capixaba também foram atingidos e viram seus modos de vida serem modificados. A pesca e o turismo sofreram transformações em regiões que dependiam financeiramente dessas atividades. Em alguns lugares, até mesmo a distribuição da água potável foi afetada. A luta por reparação dos(as) atingidos(as) do Espírito Santo possui algumas semelhanças e diferenças com a dos(as) atingidos(as) mineiros. Bom, como é que eu tenho me sentido nesses cinco anos do rompimento? Eu acho que com mais gás, mais garra, mais luta. Aquela certeza incontestável de que nós vamos conseguir, com muita luta, sim, mas conseguir os nossos direitos. Tínhamos uma vila muito unida em um objetivo que era o reconhecimento e o cartão para todos, o direito universal à água potável, o nosso rio de volta e o trabalho. Porque, pra nós, o trabalho é uma questão de honra. Fizemos paralisações, mobilizações, nós ocupamos alguns espaços, como as câmaras técnicas e o CIF. Com o TAC GOV, a gente conseguiu avançar no sistema de governança e aí a gente entendeu o que é a centralidade da vítima, a cláusula 11 do TTAC, que fala que o atingido tem o direito de participar e também de interceder pelo interesse próprio, o interesse do atingido. E a gente foi tomando esses espaços, essas percepções, e a gente tem estado em constante luta, espera, busca e de poucas realizações. Mas, sobretudo, a gente tem uma esperança de poder virar essa página. A gente confia muito em Deus, então estamos no estado da graça e da esperança. Em alguns momentos, a gente fica muito triste, porque a gente vê que, durante cinco anos, as políticas de prevenção de rompimentos de barragens, de sustentação, de segurança, caminharam bem pouco em detrimento do lucro. E aí, quanto vale uma vida? Eu tenho estado em luta. Em espera. Em vigília. Em esperança. Que nós possamos voltar a comer o peixe, a nadar, que eu não tenha medo de deixar os meus filhos nadarem no rio que povoou toda a minha infância, que ajudou a moldar o meu caráter. Tenho tentado fortalecer os movimentos, a força-tarefa, a Defensoria Pública, o Fundo Brasil. É fortalecer o Davi pra derrubar o Golias. Então, na verdade, é imen-
surável a dor, a revolta, mas também é inexplicável a esperança de que dias melhores estão por vir. O que mais me incomoda? Decorrendo cinco anos, a gente pouco avançou. Hoje, o que me incomoda, de fato, é saber que o atingido se perdeu nessa luta. O que me incomoda é a Fundação Renova se aproveitar de uma situação de cinco anos de descaso, de desrespeito, pra botar um preço pequeno diante desse sofrimento e o atingido se vê na situação diante da cruz e a espada, o que acaba propiciando que ele assine esse acordo, porque, pra quem tá há cinco anos sem receber nada, é melhor pouco do que nada. Então o que me incomoda é ver que, depois de tantas lutas, a Renova vai minando as forças de toda essa população atingida que tá sendo cerceada de seus direitos. É claro que o atingido pode não querer assinar, isso é fato, mas, diante do sofrimento de cinco anos, você vai fazer o quê? E aí estão se construindo novas comissões que não são legitimadas, elas fazem uma comissão fechada, judicializa a questão do atingido e esses processos correm em segredo de justiça, então não dá nem ao Ministério Público e à Defensoria Pública o direito de se posicionarem. Então eu fico muito incomodada, muito triste, exaurida, porque toda aquela união de cinco anos foi minando, minando, até chegar à sensação de que o atingido tá sozinho, que ele nada recebeu, então ele se vê refém de uma política para minimamente receber, às vezes, um terço do que ele teria direito. Mas ele já está tão cansado de lutar que, simplesmente, assina e sai desse cenário deixando poucos que ainda têm força pra lutar contra tudo isso e à mercê daquela esperança de que dias melhores virão. Luciana Souza de Oliveira, moradora de Regência
É imensurável a dor, a revolta, mas também é inexplicável a esperança de que dias melhores estão por vir".
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Fotos: Sérgio Papagaio
Se a vale pode minerar, por que os garimpeiros não podem garimpar? Por Clodomiro de Castro, Gilson Felipe de Resende, Hermínio Amaro do Nascimento e Sérgio Papagaio.
No ano de 1696, nasce a vila de Mariana, embrião do Estado das Minas Gerais, alimentado pelo ouro encontrado em suas terras. Anos depois, a então vila é elevada à cidade e, posteriormente, à primeira capital do Estado. Tudo isso se deve à abundância do ouro em terras de seu domínio. A extração desse valioso metal contou com a mão de obra de povos escravizados oriundos da África. Pensarmos, hoje, que a escravidão acabou é utopia. E muitos garimpeiros descendentes desses povos escravizados ainda se mantêm na prática extrativista mantendo seus modos de vida em uma liberdade que os prende ao garimpo até os dias atuais. Muitos usam, para assinar seu nome, unicamente o polegar direito e ainda vivem às margens dos rios Carmo e Gualaxo do Norte, exatamente onde viviam seus ancestrais. Com modos de vida inalterados, praticam agricultura familiar no período das cheias dos rios, a pesca e garimpam quando os rios assim lhes permite. Mas o rompimento da barragem de Fundão, de propriedade da Samarco Mineração, e de suas controladoras, Vale e BHP Billiton do Brasil, impossibilitou quaisquer prática extrativista e de cultivo agrário em suas margens e/ou em seus leitos, seja pelo acúmulo de rejeito depositado em toda extensão dos dois rios, no leito e nas margens; ou pela quantidade de enormes pedras colocadas pelas reparadoras do crime em suas margens, prática denominada de enroscamento; ou pela contaminação de suas águas e suas várzeas, melhores áreas de cultivo. Para entendermos melhor este triste capítulo da história do garimpo é que conversamos com alguns garimpeiros:
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Gilson Felipe de Resende (Gilsinho), garimpeiro tradicional, morador da cidade de Barra Longa, entrevistado por A SIRENE em março de 2019, relatou: “estou arriscando a vida no rio Gualaxo, pois não tem emprego em Barra Longa, a única forma de afastar a fome é trabalhar no rio. O que fazer?” Hoje, voltei a conversar com Gilsinho e ele me disse: - Continuo trabalhando no rio, é o que eu sei fazer e é o que eu gosto de fazer. Então lhe perguntei: - Gilsinho, você não pensou em trabalhar em uma das contratadas da Renova? - No garimpo, eu sou mestre; nas contratadas, serei ajudante, e eu não me ajeito com o chefe e nem com o regime das empresas. Sou bicho solto, nasci e cresci no garimpo. Sou igual passarinho arisco, não consigo viver em uma gaiola. Prefiro morrer de contaminação do que trabalhar num lugar e me sentir na prisão. Hermínio Amaro do Nascimento, garimpeiro tradicional, morador da cidade de Acaiaca, entrevistado pelo jornal A SIRENE em março de 2019, nos relatou o seguinte: “eu trabalhava na roça, era muito pobre. A gente plantava só pra comer, o garimpo trouxe esperança de uma vida melhor”. Hoje, questionado sobre como está sua vida, Herminio nos faz um relato emocionante: - Tenho filhos pra criar, depois do rompimento da barragem, a vida foi ficando difícil e eu senti medo não de passar, mas de ver meus filhos passarem fome. Eu aprendi com meu pai que um homem, quando põe filho no mundo, tem obrigação de tratar deles. Eu só sei plantar roça e garimpar. Plantar roça eu não quero, pois a experiência não foi boa; só me restou enfrentar a contaminação dos rios e caçar algum ourinho pra tratar dos meus filhos. - Você não tem medo de se contaminar nos rios por metal pesado? - Eu tenho medo é de ver meus filhos passando fome. Clodomiro de Castro, nascido em Barra Longa, reside atualmente em Acaiaca. Questionado sobre sua situação como garimpeiro tradicional após o rompimento da barragem de Fundão, diz: - Eu nasci na roça, em Barra Longa, onde eu aprendi a trabalhar, mas eu vim conhecer dinheiro foi no garimpo. Eu fiz minha casa foi com dinheiro de ouro, e passei, eu e minha família, a ter uma vida boa foi com dinheiro de ouro. - Muitos garimpeiros me disseram que passaram a ter medo de não ter o que comer ou de não conseguir sustentar sua família. Você passou a ter medo da fome após o rompimento da barragem? - Da fome de comida não, pois eu tenho saúde, posso trabalhar em qualquer lugar, mas eu não tenho outra profissão sem ser o garimpo, então eu ia ganhar só pra comer, mas eu e minha família não temos fome só de comida, eu quero ver minha filha formada, tenho fé em Deus.
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Minas e a mineração Por Sérgio Papagaio
A fundação da cidade de Mariana se deu com a descoberta de ouro em suas terras, no ano de 1696. Primeira vila do Estado e berço da fundação das Minas Gerais, podemos afirmar que as minas de ouro da então vila de Mariana foram a madrinha de batismo do nosso Estado. Minas Gerais, com a região que compreende, hoje, os Estados de Goiás e de Mato Grosso, protagonizaram, nos primeiros 60 anos do século XVIII, o ciclo do ouro, mas Minas se destacou na produção minerária, a ponto de seu povo carregar o gentílico relativo ao ofício que foi o leite do Estado, mas também seu algoz. Pensar que todo o ouro do Estado, neste período, foi extraído sob as chibatas nos faz entender que a escravidão perdeu força para as leis de consumo britânicas, mas, até hoje, vivemos sob o domínio dos senhores do maior garimpo do mundo, Vale e BHP Billiton, que nos açoitam com o chicote de ferro em seu sistema ditatorial de extrativismo minerário e sua política de necro engenharia, com seus rompimentos de barragens, destacando o rompimento da barragem de Fundão, que, no dia 5 de novembro de 2020, completa cinco anos de dor e desrespeito à vida não só no Estado, mas em todo planeta. Dizer que a escravidão foi abolida é o mesmo que acreditar que vivemos em democracia num país que não nos prende nas gaiolas, mas corta nossas asas. E, para não nos esquecermos, rompeu também a barragem de Brumadinho, por isso, para os mais esquecidos, a sirene toca às 10 horas, em todo dia 10 de cada mês, nos fazendo lembrar que estamos vivendo sob o domínio da morte, funcionária da Vale e da BHP Billiton do Brasil.
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Foto: Lui Pereira/Agência Primaz
Ecos da mineração No Boletim do Setor Mineral 2020, Alexandre Vidigal de Oliveira, Secretário Nacional de Geologia, Mineração e Transformação Mineral, coloca o setor como um dos principais propulsores da retomada da economia brasileira após as transformações econômicas causadas pela pandemia de Covid-19. A mineração exerce uma grande influência financeira no Brasil, isso se revela não apenas na economia, mas também nas barragens espalhadas pelo país. Em outubro de 2020, 858 barragens nos Brasil estavam cadastradas no Sistema Integrado de Gestão de Barragens de Mineração (SIGBM). Minas Gerais é o estado com a maior concentração destas barragens, são 365. É preciso olhar para a mineração para além dos montantes de dinheiro que ela proporciona. É necessário perceber como essas 858 barragens interferem na vida das pessoas e do meio ambiente. A barragem de Fundão não foi a primeira a se romper. Mas o tamanho do rastro de destruição causado pelo crime fez com que percebêssemos com mais nitidez o poder destrutivo desse setor. O que não foi o suficiente para que evitasse outras violações de direitos, terror psicológico e mortes. Ainda se convive com o crime da mineração em Minas Gerais.
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Fotos: Lui Pereira/Agência Primaz
O terror psicológico se repete A comunidade de Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto, vive o terror de não conseguir informações claras da mineradora Vale e conhecer as histórias dos rompimentos da barragem de Fundão e da barragem da Mina Córrego do Feijão. Esse cenário faz com que os(as) moradores(as) vivam com altos níveis de estresse. A comunidade se organiza para ter seus direitos garantidos. Entre as pautas, eles(as) exigem conhecer o barulho da sirene que afetaria a população no caso do rompimento da barragem do Doutor. Por Cida Rosa e Ana Carla de Carvalho Costa Com apoio de Joice Valverde, Júlia Militão, Juliana Carvalho e Wigde Arcangelo
A nossa história começou há pouco mais de dois anos, quando a Vale veio no nosso território e falou que se a barragem estourasse ela iria até a escadaria da igreja. A partir ano de 2019, começou o terrorismo. Agora no início de 2020, começou a retirar as famílias, tiraram as das primeiras ruas, agora nos tirou. Não temos um documento que fala se a nossa saída é definitiva ou provisória. Estamos numa casa alugada pela Vale, no meu caso é uma casa muito boa, mas não é minha. O que que vai ser da gente? Eu vou ser indenizada, daqui a quanto tempo? Ou eu vou voltar pra minha casa? Ou eu vou ter direito de comprar uma outra casa onde eu quero? É bem complicado. Abrimos protocolo na Vale e não é atendido. As pessoas da Vale nos olham e reagem como se fossemos nada, é uma situação muito constrangedora. É humilhante, você se sente um zero. Eu gostaria muito que fosse diferente porque nós chegamos lá primeiro, a barragem veio depois. E eu tenho certeza que não é só barragem, eu tenho certeza que ali também existe o fato da mineração. Eu tenho impressão que não é só a barragem, a Vale quer minerar o nosso território. E ela não nos dá um documento falando que a saída é definitiva, só fala. Eu já fiz vários protocolos, já mandei email, já fiz tudo que você
pode imaginar. Por último agora na minha saída, essa documentação eu não assinei. Então assim, ficamos indignados porque a Vale só tem CNPJ, não tem coração. O sofrimento é muito grande, o meu corpo tá reagindo de uma forma gritante. Eu desenvolvi uma doença que chama capsulite aguda adesiva, que é, traduzindo, ombro congelado. O meu braço não levanta, ele fica parado, devido a tensão nervosa. Tudo isso por causa dessa situação que a gente está vivendo. Eu não durmo, a impressão é de que eu estou lá ainda. A sensação é de impotência e as pessoas nos tratam muito mal, como se a gente devesse favor a eles. A gente não deve favor pra eles, a casa era nossa, quer dizer, a casa é minha! Eu ainda não vendi pra Vale, eu não doei pra Valer, ou emprestei. A casa é minha. É bem constrangedor. Eu tenho fotos com o corpo roxo. Até o rosto, abaixo dos meus olhos, ficaram roxo. Choradeira, choro o tempo todo, até os carros na BR a gente assustava achando que poderia ser algum tipo de sirene. É horrível, é só vivendo lá pra saber. Contar o que a gente passou, não é brincadeira. A situação é gritante, as pessoas estão vivendo dias ali de terrorismo, é uma lama invisível. Cida Rosa, moradora de Antônio Pereira
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Algumas famílias resistiram e não saíram das suas casas, desde o primeiro estudo das ZAS (Zonas de Autossalvamento), que pegou a rua Água Marinha. Então hoje existem seis famílias que são remanescentes. Essas famílias elas foram abandonadas pela Vale, há meses a Vale não dialoga com esses remanescentes. Essas pessoas viram seus vizinhos serem arrancados de suas casas, em plena pandemia. A Vale retira as famílias igual se toca gado, de uma forma desumana e perversa. E hoje, eu que também sou moradora remanescente, nós sofremos retaliações da Vale. Ela tem invertido as funções. Porque dentro do nosso entendimento, o que a Vale impôs para a remoção foram muitos acordos de boca, nada de segurança, não tem um papel que informa pra gente se a nossa saída é definitiva ou não. A questão do aluguel temporário, a gente não sabe quanto tempo vai ser. Tem aí evidências de Bento e de Paracatu, que as famílias já vão fazer aí cinco anos e não foram realocadas e não foram indenizadas. Então, nós dissemos não, os remanescentes, nós queremos lutar por aquilo que nós entendemos ser de direito. A gente quer sair com mais garantias. O tempo inteiro a Vale fala nos seus processos que tem procurado diálogo com a comunidade, inclusive com nós remanescentes. Ela diz que nós somos resistentes. E na verdade, ninguém é resistente, todo mundo sabe que vai ter que sair dali. Nós não estamos falando que não queremos sair das nossas casas, é que a gente quer sim, mas com os nossos direitos garantidos. Nessa última ZAS, ela enviou inclusive um mapa que excluiu os remanescentes, ela simplesmente fez como se a gente se apagasse. A vale simplesmente nos ignora, finge que não existimos. Há tempos nós estamos lutando por aquilo que é de direito, pra gente romper com esse ciclo que a Vale faz em todos os territórios, de fazer as remoções negando os direitos e violando as famílias. Estamos cansados de pedir o simulado, já enviamos ofícios cobrando. Nós não sabemos o som da sirene, as rotas de fuga não foram readequadas e elas não são adequadas. As pessoas não sabem se houver um rompimento, o som da sirene, em Fundão não tinha sirene. Em Brumadinho
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a sirene não tocou. em Antônio Pereira, nós não temos simulado e nós não sabemos o som da sirene. Nós não estamos preparados para correr da lama e ainda existem pessoas mesmo com as obras, morando na zona de auto salvamento e isso é muito sério, porque a gente sabe que Fundão rompeu devido as obras que estavam acontecendo, ou seja, a Vale iniciou as obras na barragem do doutor sem retirar todas as famílias das ZAS. Eu sou moradora da ZAS e possuo casa alugada na ZAS. E um outro caso que nós estamos pedindo inclusive uma reunião com a juíza para tratar disso, é o caso dos proprietários que tinham seus inquilinos. A única coisa que foi conseguida numa decisão foi um salário para o proprietário, ou seja, se eu sou proprietária, e o meu marido, por exemplo, não está no documento como proprietário e a minha família são quatro pessoas, só eu recebo um salário. Então, é uma situação que os proprietários estão vivendo que nós tínhamos casas próprias alugadas e usávamos esse dinheiro para subsistência. Hoje o que tá acontecendo é que os nossos inquilinos ganharam a alimentação, ganharam um salário para todas as suas famílias, as crianças metade, os adolescentes um terço, todos receberam tudo e o proprietário ficou as mínguas. Nós, proprietários, não podemos voltar mais pra residir nas nossas casas próprias. Isso é um absurdo. E tem uma outra coisa, por exemplo, algumas famílias que tinham quitinetes, mas que viviam dessa renda, a Vale alega que só paga por CPF, então se ele tinha três quitinetes alugados, a Vale só vai pagar o valor de um salário por uma quitinete. O dinheiro do aluguel, muitas vezes, é o que paga o aluguel de alguns proprietários em outro local. Por isso, nós requisitamos o auxílio emergencial igual dos inquilinos. Assim, é um grito mesmo que os proprietários precisam ser reconhecidos e ter os seus direitos amplamente nas decisões da ação civil pública do Ministério Público. A Vale não cumpre as decisões judiciais, é fato, tanto é que nós estamos ainda morando nas ZAS e ela se justifica dizendo que somos resistentes e na verdade ela não busca o diálogo com a gente. Ana Carla de Carvalho Cota, moradora de Antônio Pereira
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Assim como o crime, suas consequências também se repetem Um ano e nove meses se passaram desde que o crime se repetiu, com o rompimento da barragem B1 da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho. Perto de completar mais um ano, os(as) atingidos(as) estão com medo de que mais uma barragem se rompa. As barragens B1 (a mesma que rompeu no dia 25 de janeiro de 2019) e B6 apresentam trincas e risco de romper. Enquanto isso, a Vale segue negando os direitos dos(as) atingidos(as), seja em trazer respostas sobre os 11 corpos que ainda se encontram soterrados na lama tóxica de rejeitos ou pela tentativa de interromper o pagamento do auxílio emergencial. A Vale insiste em não reconhecer uma grande parcela da população de Brumadinho como atingida, enquanto caminha com carretas de minério pelas ruas da cidade, espalhando a contaminação e ignorando as consequências dos crimes que comete contra a vida de milhares de pessoas. Por Maria Moura, Rose Fontes e Rosilene Aparecida Com o apoio de Joice Valverde, Júlia Militão, Juliana Carvalho e Wigde Arcangelo Passados os dias, os meses e as horas do fatídico dia 25 de janeiro de 2019, a cidade de Brumadinho se tornou um caos. A cidade era pacata, tinha sua rotina certa, o trem passando no horário, os caminhões descendo para subir a serra, os ônibus das empresas e seus funcionários uniformizados; o sorriso e o “bom dia” dado com atenção e carinho entre os moradores, mesmo sem sequer saber seus nomes, mas se conheciam de vista. Isso tudo a lama levou e, com ela, levou muitas coisas, além das nossas joias*. Levou sonhos, levou o sossego e trouxe a violência... Veio gente de todo lado atrás de emprego, vieram os assaltos, as perseguições policiais, os enfrentamentos com tiros, os homicídios à luz do dia. E, como não bastasse tamanho sofrimento, 2020 começa com um vírus que assola o mundo e desola a cada dia mais. Um vírus que, enquanto era número, muita gente não se importava, mas, agora, ele passou a ser nomes. Em Brumadinho, com tanta gente de fora, em terceirizadas contratadas pela tal empresa da lama, isso só nos trouxe o vírus com mais força. Nossas famílias estão reclusas, nossos idosos são os mais vulneráveis, mesmo com todo aparato que o Executivo está fazendo, estamos com medo do amanhã. Nosso psicológico já não é mais o mesmo, eu mesma tive que sair para procurar emprego em outras cidades para ajudar a manter o ganha pão da minha família. Mesmo assim, estou desempregada, pois, na cidade, infelizmente, quem tem vez são pessoas de fora. Sendo assim, Brumadinho que, antes, era refúgio, hoje, não é mais. A sombra da lama paira no ar, a cidade entristeceu de tal maneira que não se vê vida por lá. Com o passar do tempo, será uma cidade fantasma marcada por uma tragédia anunciada. Maria Moura, moradora de Brumadinho * As joias representam as 272 vidas levadas pela lama de rejeitos do rompimento da barragem do Córrego do Feijão.
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Foto: Larissa Pinto
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Vivemos na iminência de termos o auxílio emergencial da Vale findo, depois de deixar um rastro de destruição e morte mergulhando a cidade em caos e tristeza profundos, vivendo um trauma generalizado. Fomos invadidos em nosso sossego e privacidade, acabando com uma pacata cidade que era Brumadinho. Agora, com a pandemia, mais um impacto para Brumadinho e mais um agravo: empresas terceirizadas chegaram aqui com funcionários contaminados pela Covid-19, aumentando os casos que não eram nem relatados, ou seja, expondo ainda mais o povo sofrido da cidade, ainda no auge do crime. Assim, seguem os desmandos da criminosa Vale na cidade onde nada foi reparado ainda, deixando a cidade duplamente impactada... Brumadinho, hoje, é uma cidade cara pra viver, devido aos altos aluguéis, com mão de obra de todo sentido caríssima, alimentação, saúde e duplamente impactadas pelo crime da barragem e pela pandemia. Muitos não estão conseguindo viver mais aqui, porque Brumadinho não é mais uma cidade pacata e calma, se tornou violenta, cheia de gente estranha no nosso convívio, perdemos nossa privacidade... Como não imputar mais esse evento à Vale S.A.? 2019 e 2020 são anos muito difíceis para todos os brumadinhenses... Agora, para piorar a situação, apareceram novas trincas na barragem que estourou e ainda estamos sob o risco de mais uma tragédia... Ainda temos a barragem B1, que estourou e ainda pode dar mais problemas se romper novamente, e a B6, de rejeito líquido. Como não culpar a Vale S.A. por tudo o que estamos passando e ainda não tivemos reparação? Meu município ainda sofre com a falta de reconhecimento por parte das autoridades sobre os impactos causados. Rose Fontes, moradora de Brumadinho O sofrimento de Brumadinho tem sido, a cada dia, pior. As pessoas estão adoecendo demais, muitas pessoas tendo depressão profunda… E tem essa questão da Vale nos negar tudo, né? Negar as indenizações, negar os pagamentos do emergencial, acabar com o emergencial das pessoas sendo que eles nem iniciaram a limpeza dos rios. Então tem muita coisa ainda a fazer e eles já estão querendo dar como pago. Está sendo muito
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complicado para os moradores em Brumadinho, porque, por todo lado que você anda, a Vale está mexendo na cidade. Eles alegam que, aqui em Brumadinho, nem todos os bairros foram atingidos, querem deixar como se fossem três bairros e o restante não. E eles estão querendo tirar o emergencial do pessoal de Brumadinho, uns estão recebendo só meio salário e ainda pretendem diminuir esse valor. Tá ficando muito difícil de mexer com a Vale, porque ela não é uma empresa pequena, ela é uma empresa milionária, é grande demais… Se formos analisar, todos os bairros são atingidos e eles não concordam, e olha que, aqui dentro, os bairros são próximos; no centro de Brumadinho, passa carreta toda hora, caminhão cheio de minério, e eles não querem arcar com isso. Então da mesma forma que ela fez em Mariana, ela faz até pior aqui e está querendo deixar por isso mesmo, entendeu? Como se nada tivesse acontecido. Eu fico muito triste de saber que até a juíza aqui de Brumadinho está em defesa da Vale, então fica complicado. Tantas mortes, tantos amigos que foram embora, e a empresa simplesmente não faz nada. Nós, de Brumadinho, estamos pedindo socorro, porque está pra romper outra barragem, do lado da outra que rompeu, porque está trincada, e a Vale não está nem aí. Eles até pararam a busca dos corpos que não foram encontrados, 11 corpos que ainda não foram encontrados. E essa empresa ainda quer parar com emergencial? Ela é safada, essa Vale! Nós temos que lutar mesmo. Eu acho que nós estamos perdendo as forças também, o nível de depressão aqui em Brumadinho está muito alto, as pessoas estão muito doentes, se deixando levar, porque não conseguem lutar. Ninguém está tendo forças, sabe? Foram muitas pessoas que morreram, e isso é o que a gente sabe. É triste saber que perdemos muitos amigos e tudo fica por isso mesmo. A Vale sabe que é culpada, mas não está nem aí. Estão pagando milhões e milhões para o Governo, enquanto os atingidos aqui de Brumadinho estão sem um salário mínimo e o nosso emergencial só foi prorrogado até o mês que vem. É um absurdo! Eles querem brincar demais com a vida do ser humano aqui de Brumadinho. Rosilene Aparecida, moradora de Brumadinho Foto: Joice Valverde
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Cinco anos de luta: sem indenização justa, o crime se renova Por Ellen Barros e Flavia Gondim Foto e Ilustração: Marcela Nicolas e Guilherme Frodu
O processo de indenização conduzido pela Fundação Renova - entidade criada pela Samarco, Vale e BHP Billiton para gerir a reparação das vítimas - viola ainda mais os direitos das famílias atingidas. Diversas pessoas não estão sendo reconhecidas como atingidas, sob argumentos de critérios de “elegibilidade”, ou seja, se as perdas se adequam ou não aos danos que a própria Fundação Renova entende como indenizáveis. Maria Lúcia Santos Monteiro conta como se sente em relação ao não reconhecimento de suas perdas e seus danos. “Com esses cinco anos sem reparação, a gente se sente humilhado, insultado. Eu mesma, que recebi essa carta, eu me senti insultada. É muito humilhante, muito triste... até de falar a gente fica aborrecido demais”, desabafa a atingida de Bento Rodrigues. Nesta mesma carta, que já é um desrespeito apenas por existir, a Renova diz estar à disposição para reunir e “prestar outros esclarecimentos que a Sra. ou qualquer membro do núcleo familiar entendam necessários” e que a reunião pode ser solicitada pelo telefone 0800 031 2303. No entanto, a Fundação não tem agendado tal reunião, mesmo com a insistência das pessoas atingidas e da Assessoria Jurídica da Cáritas. Até hoje, a Assessoria Jurídica da Cáritas em Mariana (AJ) já recebeu 63 casos de núcleos familiares que receberam a recusa da Maria Geralda, atingida de Paracatu de Baixo. Renova em indenizar os danos declarados no Cadastro. No entanto, esse número pode Para solicitar Assessoria ser ainda maior. É fundamental que todos Jurídica, entre em contato com a saibam que, caso recebam a recusa de indeCentral de Informações da nização por parte da Renova, a atingida ou o atingido pode acionar a Assessoria Jurídica Cáritas em Mariana pelo telefone: da Cáritas. Trata-se de um serviço gratuito, 31 9 9218-0264. que é direito conquistado pelas atingidas e pelos atingidos de Mariana.
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Caso não haja possibilidade extrajudicial de reverter a decisão da Renova, o caminho é a judicialização. Para tanto, é necessário acionar a Defensoria Pública de Mariana ou contratar os serviços de advogado particular. No entanto, é importante saber que atingidas e atingidos podem contar com o apoio da Assessoria Jurídica da Cáritas, para orientações e organização da documentação necessária para a judicialização. Para Maria Lúcia, o apoio da AJ trouxe uma nova esperança de, um dia, ser indenizada. “A Assessoria Jurídica me orientou. Eu tava muito desorientada e eles mesmo resolveram para mim. Juntaram os papéis, o dossiê e agora também a Matriz de Danos e, com isso, nós vamos entrar é na justiça!”, relata a atingida. Com esperança de conseguir na justiça o direito negado pela Fundação, que deveria reparar os danos causados, Maria Lúcia deixa seu recado: “eu falaria para a Renova que eles não sabem a nossa dor. Nós que temos a vida e a nossa história destruída pela lama… A gente tem ossos ali debaixo. Eles não vão saber nunca o que é passar por isso! Tomara que Deus não deixe que eles passem por isso, mas eles deviam ter um pouco de sentimento no coração e não pensar só no dinheiro, porque o povo adoeceu com isso tudo, o povo morreu junto com Bento Rodrigues”.
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O crime em números e em cifras $ O mar de lama de 5 de novembro de 2015 continha 43,8 milhões de metros cúbicos de rejeito de minério. O rompimento da barragem de Fundão, das empresas Samarco, Vale e BHP, assassinou 19 pessoas, deixando, pelo menos, 1,9 milhão de pessoas atingidas ao longo da bacia do rio Doce, de Minas Gerais ao litoral do Espírito Santo. Apenas na cidade de Mariana, cerca de 4,5 mil pessoas foram atingidas. Na TV, a Fundação Renova diz que, até abril de 2020, R$ 2,51 bilhões foram pagos em indenizações e auxílios financeiros para cerca de 321 mil pessoas. Parece muito, mas isso é porque a Renova coloca na mesma soma a indenização pelos danos causados e o Auxílio Financeiro Emergencial (AFE). Esse auxílio é um processo de mitigação para as pessoas que tiveram perda de renda em função do rompimento da barragem, portanto, não deveria ser somado à indenização. Ainda assim, com a tentativa de inflar os números, fazendo a divisão do valor anunciado pela quantidade de pessoas, o resultado é de apenas R$ 7.819,31 por pessoa atingida. Uma soma irrisória diante de tanta dor e tanto prejuízo causados pelo crime desde 2015.
Direito à indenização Desde 2015, as famílias atingidas lutam pela indenização justa. No entanto, hoje, esse processo é desigual, pois quem determina quais danos serão pagos e os valores para a indenização é a Fundação Renova, que não garante os direitos assegurados no acordo sobre as indenizações das famílias atingidas, firmado em 2 de outubro de 2018. O acordo determina que as informações levantadas pelo Cadastro devem ser consideradas para o reconhecimento e a fixação das indenizações. Porém, muitas informações do cadastro são desconsideradas pela Fundação Renova, que impõe o aceite integral de propostas, mesmo que haja valores insatisfatórios. “Eles trazem aquele parâmetro ali e não abrem mão daquilo. Não adianta você mostrar que tem mais danos. Eles não negociam”, relata Expedito Silva (Caé). O atingido de Bento Rodrigues completa: “sem indenização não tem como dar seguimento na vida, voltar a investir no que perdemos para trabalhar”. Na Fase de Negociação Extrajudicial (FNE), a Renova segue violando os direitos dos atingidos e das atingidas, uma vez que, ao ingressarem no programa modelado pela Fundação, as pessoas atingidas se deparam com um espaço que, de negociação, tem muito pouco. Trata-se, de fato, da adesão ou da recusa da proposta indenizatória elaborada pela Renova. Por exemplo, no que diz respeito aos danos imateriais, aos sentimentos de cada indivíduo que foram afetados e maculados, a Fundação não abre a possibilidade de discussão ou de revisão dos valores apresentados. Novamente, por meio de carta, a Fundação Renova inverte as responsabilidades, uma vez que condiciona o prosseguimento das tratativas de negociação à prestação minuciosa de informações e à documentação de perdas e danos que ocorreram há cinco anos, desconsiderando abertamente a inversão do ônus da prova, pactuada no Termo de Acordo de 2 de outubro de 2018. Em consonância com suas políticas restritivas de direitos dos atingidos e das atingidas, a Fundação Renova reitera, na Fase de Negociação Extrajudicial, a posição de que somente os seus métodos de identificação e valoração de danos são possíveis de serem utilizados naquele espaço, desconsiderando por completo as metodologias de valoração trazidas pelo Cadastro e pela Matriz de Danos das pessoas atingidas.
Dessa maneira, são muitas as incertezas que rondam o processo indenizatório e o caminho na luta por justiça prossegue nebuloso. A esperança das pessoas atingidas de Mariana tem sido depositada na judicialização. Na edição de dezembro de 2019, na coluna “Direito de Entender”, do Jornal A SIRENE, o promotor de justiça Guilherme de Sá Meneghin fez uma série de esclarecimentos sobre a Matriz de Danos. Lá, o representante do MPMG afirma: “caso o(a) atingido(a) entenda que a proposta não é suficiente, justa ou adequada, ele(a) pode utilizar a Matriz de Danos da Cáritas como fundamento para pleitear na justiça um valor de indenização maior. Nesse caso, sendo ajuizado o cumprimento de sentença individual para pagamento da indenização, o(a) juiz(a) competente poderá utilizar a Matriz de Danos da Cáritas ou da Fundação Renova, ou até mesmo determinar uma terceira perícia, para apurar e fixar o valor de indenização devido”. Dr. Guilherme esclarece, ainda, a função do Ministério Público no processo indenizatório: “a legislação brasileira confere ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) a legitimidade para a defesa dos direitos coletivos. Assim, embora não possa participar diretamente das negociações de indenização, o MPMG é responsável por assegurar, por meio de ações e acordos judiciais, as regras gerais que servem a todos os atingidos e devem ser observadas no processo de indenização, notadamente a garantia da inversão do ônus da prova e a possibilidade do atingido, caso não concorde com o valor oferecido pela Fundação Renova, propor um cumprimento de sentença (um tipo de ação mais célere na justiça) para discutir os valores. Nesse sentido, o MPMG atua como um fiscal na defesa dos direitos das vítimas do desastre de Fundão”. Resta, portanto, aos atingidos e às atingidas, seguir em luta por suas indenizações justas e integrais. É preciso, sobretudo, conhecer e incidir sobre a estrutura do sistema de justiça, para que a triste realidade de violações vivenciada na FNE/PIM não se repita.
EDITORIAL Por Genival Pascoal
Neste 5 de novembro, completam cinco anos do crime da Samarco, da Vale e da BHP Billiton, em Mariana. São cinco anos em que as marcas do crime são reforçadas. São cinco anos de impunidade e sem nossas casas restituídas. É muito tempo vivendo de favor e sendo julgados por pessoas que também se sentem prejudicadas pelo crime e que não sabem o que era a nossa vida antes dessa tragédia. Quando vivíamos tranquilos em nossa própria terra, não dependíamos de mineradoras para sobreviver. Nos reassentamentos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, todo o processo de construção de diretrizes de reassentamento, que foram homologadas pela juíza, está sendo desconsiderado pelas mineradoras. Já sobre o reassentamento de Gesteira, pouca coisa andou. Até hoje, não há uma ação por parte da Renova que nos assegure que teremos nossos modos de vida de volta nos reassentamentos. Primeiro, vamos ter de pagar água para uso doméstico, o que não fazíamos em nossas terras de origem. Segundo, além de pagar água potável para criação e irrigação, não estão nos restituindo nossas terras com os mesmos modos de usos anteriores. Toda a conversa da empresa em relação a esses problemas é voltada para o dinheiro, deixando-nos sem opção de escolha. Como se o dinheiro comprasse tudo. Desse jeito, continua o monopólio capitalista que vai só destruindo comunidades, como Brumadinho, Barão de Cocais e Antônio Pereira. As empresas vão oferecendo o que acham que vale a vida e as tradições locais. Na bacia do rio Doce, a Renova, criada para reparar os danos, tenta boicotar os direitos dos(as) atingidos(as). Como se tudo isso não bastasse, no início do ano, veio a pandemia da Covid-19. Ficamos presos em casas que não são as nossas. E a Renova se aproveita dessa situação para agendar reuniões por aplicativos, o meio mais fácil para ela ditar suas regras de reparação. Além de ficarmos reféns da Renova, ainda temos de contratar serviços de internet. A qualidade das conexões que podemos arcar nem sempre é boa. Continuamos nos reunindo por videoconferências na esperança de que a pandemia acabe e que voltemos a nos encontrar de novo, cara a cara, para ter poder de decisão. Nesses cinco anos, poucas coisas foram feitas para que fossemos reparados integralmente. A nós, resta buscarmos forças para continuarmos lutando pelos nossos direitos.