A SIRENE PARA NÃO ESQUECER | Ano 3 - Edição nº 25 - Abril de 2018 | Distribuição gratuita
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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER
Abril de 2018 Mariana - MG
Pelos atingidos com a colaboração do Jornal A Sirene No mês de março, o Jornal A SIRENE realizou um seminário, em Barra Longa, para discutir o direito à comunicação dos(das) atingidos(as) pela Barragem de Fundão e para pensar sobre o futuro da atuação do nosso jornal. Em homenagem a esse encontro e, também, ao 7 de abril - Dia do Jornalista -, trazemos aqui uma pequena reflexão sobre o nosso espaço de fala e sobre a forma como construímos a nossa comunicação.
De atingido me fiz:
REPÓRTER “Quando me chamaram para fazer parte do A SIRENE, fiquei pensando: ‘Como vou participar do jornal sem ter nenhum conhecimento na área?’ Por eu ser da roça, cheguei na redação me sentindo em outro mundo, com aquele tanto de computadores estranhos. No começo, fiquei meio sem graça com aquela galera toda, mas fui pegando a prática aos poucos, entendendo e aplicando um pouco de outros conhecimentos que eu tinha. Fiquei muito agraciado com o carinho da equipe comigo e com os demais atingidos. Hoje, sou membro do Conselho Editorial e quero agradecer a todos os meus amigos e professores que me ensinaram a ser jornalista. Agradeço também a equipe que está com a gente agora, por fazer acontecer. O Jornal A SIRENE é para nunca esquecermos que tínhamos uma vida, uma história e que a ganância das empresas destruiu.” Genival Pascoal, morador de Bento Rodrigues POR Todo mês, os(as) atingidos(as) pautam o que deve ser contado e indicam/ participam do processo de apuração e produção das matérias. Nosso primeiro público-alvo são os próprios moradores das comunidades atingidas, que têm o projeto como um espaço de fala, registro, denúncia, luta e de preservação das memórias. Desse modo, para nós, a matéria é sempre de autoria de quem conta - e viveu - a história, e também, de forma simbólica, de todo(a) atingido(a) que ajudou a construí-la.
COM O APOIO DE Nossa equipe fixa é formada por atingidos(as), profissionais e estudantes de Jornalismo da UFOP. Para a realização do jornal também contamos com o auxílio de outros parceiros, como de pesquisadores e de movimentos sociais. Caso não seja possível que o(a) atingido(a) construa o próprio texto, esses colaboradores o fazem, preservando a essência de suas falas e os consultando sobre o que é mais importante dizer. Nada é publicado sem o consentimento dos(das) atingidos(as) participantes das matérias.
ATENÇÃO! Não assine nada Em caso de dúvidas sobre o conteúdo, conte com a ajuda de um advogado ou qualquer outro especialista. Se te pedirem para assinar qualquer documento, procure o Ministério Público ou a Comissão dos Atingidos.
Escreva para: jornalasirene@gmail.com
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EXPEDIENTE Realização: Atingidos pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana e Um Minuto de Sirene | Conselho Editorial: Angélica Peixoto, Cristiano José Sales, Genival Pascoal, Lucimar Muniz, Manoel Marcos Muniz, Milton Sena, Mônica dos Santos, Pe. Geraldo Martins, Rafael Drumond, Sergio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva e Thiago Alves | Editor-chefe: Milton Sena | Jornalista responsável: Silmara Filgueiras | Diagramação: Larissa Pinto | Editor Multimídia: Flávio Ribeiro | Editora de Texto: Miriã Bonifácio | Editora de Vídeo: Daniela Felix | Reportagem e Fotografia: Genival Pascoal, Madalena Santos, Sergio Papagaio, Simone Maria da Silva, Tainara Torres e Wandeir Campos | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Agradecimentos: Guilherme de Sá Meneghin (Promotor de Justiça - Titular da 1ª Promotoria de Justiça de Mariana) e Fabiano Araújo - VEIAS Workshop | Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Fabiano Araújo | Tiragem: 3.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de ajustamento de conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministério Público de Minas Gerais (1ª Promotoria de Justiça de Mariana).
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Aconteceu na reunião REUNIÃO: DIQUE S4 16 de março, Belo Horizonte Guilherme Meneghin (Promotor da 1ª Promotoria de Justiça da Comarca de Mariana / MG): O objetivo desta reunião é tratar do prazo para descomissionamento do Dique S4, discutir o valor da indenização, a forma de negociação e a medição dos terrenos. Tentar resolver essas coisas para, se tudo der certo, não ter necessidade de ação judicial. Janaína Flores: Acho importante colocar também a questão das “negociações” que foram feitas no Hotel Muller, que teve muito desrespeito, constrangimentos, principalmente com os idosos, acho que deveria ter um dano moral pra tudo isso. Mauro da Silva: Primeiramente doutor, é lamentável a atitude da empresa, mais uma vez. Ao fim da outra reunião eu questionei se as empresas estariam aqui hoje e o representante da BHP foi enfático em dizer que a Samarco tinha toda autonomia para decidir com a gente. Eu insisti e perguntei se a gente ia trazer o assunto, e se a gente já ia sair daqui com o assunto concluído. Vemos que isso não vai acontecer. Lamentável. Genival Pascoal: Era para a empresa levar respostas concretas para nós, mas só foram advogados da Samarco que não sabiam nada do processo, melhor dizendo, nos fizeram de bobos. REUNIÃO: COMISSÃO ATINGIDOS(AS) DE MARIANA CADASTRO 26 de março, Mariana Ana Paula Alves (Coordenadora Geral do Cadastro): O processo de cadastramento dos/as atingidos/as pela Barragem de Fundão está acontecendo desde o dia 01 de fevereiro de 2018. Até o momento, 523 núcleos familiares concluíram a primeira etapa. A 2ª etapa do processo começou no dia 19 de fevereiro e até o momento 200 núcleos familiares já concluíram as oficinas de cartografia familiar, instrumento complementar ao formulário. COLETIVA DE IMPRENSA: SAÚDE DE BARRA LONGA 27 de março, Belo Horizonte Após terem participado de uma pesquisa realizados pelo Instituto Saúde e Sustentabilidade, iniciado no final do ano de 2016, da Universidade Federal de São Paulo (USP), 11
moradores da cidade de Barra Longa foram diagnosticados com níveis elevados de metais pesados no sangue. (Ver mais na página 15) Luciene: O resultado dos exames da minha filha também deu níquel elevado e contaminação por arsênio. Ela sente dores de cabeça, tem manchas na pele, tem febre, diarreia e falta de ar. Antes, minha filha não tinha estes problemas de saúde. Pedimos ajuda, nossas filhas estão precisando de tratamento e não temos condições de arcar com os gastos. Simone: Quando a gente recebeu o laudo, constatando que ela está com alta taxa de níquel e o nível de zinco baixo, além do normal, nós tivemos que ir até São Paulo fazer outros exames. A fundação/empresas e a prefeitura viraram as costas pra ajudar a gente. Leticia Oliveira (Coordenação do MAB): O nexo causal entre a contaminação e a lama não foi estudado. Mas o que foi comprovado é que há uma contaminação. Deve haver novos estudos e nós lutamos por isso. Lutamos para que haja um diagnóstico mais claro da situação não só em Barra Longa mas em toda a bacia, para comprovar se o nexo causal tem a ver com o rompimento de Fundão e responsabilizar quem causou isso. AUDIÊNCIA - DIRETRIZES REASSENTAMENTO 27 de março, Mariana Mais 21 orientações para o reassentamento das comunidades de Bento Rodrigues e Paracatu foram homologadas. Outras 46 já haviam sido pactuadas no último 6 de fevereiro. Restam ainda 12 diretrizes a serem discutidas em reunião extrajudicial que vai ocorrer no próximo dia 11 de abril, no Centro de Convenções de Mariana. Rosária Frade: A gente precisar saber como vai ser a compensação pra quem tá recebendo um terreno com qualidade inferior ao que tinha. É importante discutir isso agora porque, por exemplo, se a compensação vai ser com mais “terras” isso mexe no projeto do reassentamento. Eu, por exemplo, não tenho interesse no dinheiro, e com outras pessoas também pode ser assim. Samarco: Não temos condições de garantir a forma como isso vai ser feito agora, precisamos sentar e reavaliar. Vamos seguir para frente.
Agenda de Abril 11
GT de reparação: reassentamento horário: 17h Local: Centro de Convenções
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Apresentação do produto sobre a saúde dos atingidos Horário: 19h Local: Centro de Convenções
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Coletiva de imprensa sobre a saúde dos atingidos Horário: 10h Local: Universidade Federal de Minas Gerais
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GT Patrimônio Horário: 18h Local: Escritório dos atingidos
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MP em Pedras e Borba: coleta de termos para auxílio cartão Horário: 14h MP em Campinas: coleta de termos para auxílio cartão Horário: 17h
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Reunião sobre compra e venda de animais Horário: 18h Local: Centro de convenções
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MP em Paracatu de Cima e Ponte do Gama Horário: a definir *Agenda sujeita a alterações
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Abrir caminho, guiar a água até o rio
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Fotos: Maria Geralda / arquivo pessoal
A engenharia popular da comunidade de Paracatu, que respeita as pessoas, a natureza e que resolve os problemas. Por Maria Geralda Com apoio de Silmara Filgueiras
Nosso trabalho é simples, honesto e de boa vontade O lodo verde que se formou na poça de água em frente à igreja de Paracatu de Baixo significou nosso tempo de espera por alguma providência da Fundação Renova/Samarco/Vale/BHP. - Esperamos mais ou cuidaremos do nosso patrimônio? Não, vamos nos juntar pra tirar a água lá da frente da igreja - decidimos. O povo da nossa comunidade trabalha com boa vontade. É assim: - Vamos? - Vamos! No sábado de manhã, bem cedinho, estávamos lá. Usamos nossas próprias mãos, enxadas, foices e o conhecimento sobre nossa terra. Limpamos o caminho pra água escorrer até chegar ao Gualaxo. Não precisamos de máquinas, nem de estudos avançados. O que a fundação/empresas não fez nesse tempo todo que nós ficamos pedindo, resolvemos em menos de duas horas.
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Fotos: Silmara Filgueiras
As identidades das pessoas que participaram da manifestação/ação pela recuperação do entorno da Igreja de Paracatu foram preservadas nestas fotografias.
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Uma visita à Barra Longa
Fotos: Tainara Torres
Durante seminário do projeto A SIRENE, realizado no último 3 de março, em Barra Longa, a atingida Simária Quintão, de Bento Rodrigues, questionou as condições futuras para o seu reassentamento a partir do que viu na cidade. Já que, enquanto os(as) atingidos(as) de Mariana discutem os caminhos para as novas comunidades, os moradores de Barra Longa convivem com a má qualidade das reformas e das reconstruções feitas até agora pela Fundação Renova/Samarco. Por Mariá Barbara de Almeida, Maria de Lurdes Valentim, Simaria Quintão, Sergio Papagaio e Simone Silva Com apoio de Silmara Filgueiras
O nosso hoje Minha casa era uma casa simples na Volta da Capela. Era o meu canto. Depois que a lama veio, ela ficou suja mais de dois meses até eles retirarem o rejeito. Então, eu acho que isso fez com que as paredes ficassem umidificadas. Depois que ela foi reformada, foram surgindo alguns problemas. Abriram trincas nas paredes e elas começaram a mofar. Eu já tinha problemas respiratórios e, agora, agravou por causa da umidade que deu na casa. Além disso, quando chove, o telhado começa a vazar, em praticamente todos os cômodos e, na parte de fora, a água da rua vai toda pra dentro de casa, porque parece que a canaleta que foi feita ficou rasa. Quando ia fazer um ano que a casa tinha sido entregue, tive que sair de lá e voltar para a casa alugada. Em julho, faz um ano que estou fora de casa de novo, aguardando eles mexerem, porque eles ainda não mexeram. Mariá Bárbara de Almeida, moradora de Barra Longa Tinha acabado de reformar minha casa quando a lama chegou. Estava tudo bonitinho e novinho. O primeiro andar a lama invadiu, sujou tudo, estragou o piso. A fundação/empresas limparam a lama dentro de casa, mas o quintal ainda está sujo. O piso não foi refeito, só refizeram o banheiro e a varanda, porque quem passa do lado de fora vê que está tudo bonitinho, mas não está não. A casa era toda cercada por uma tela, eles só refizeram as laterais, à beira rio ainda continua aberto. A capivara vai na porta da cozinha, pois não cercaram direito. Para agravar a situação, eles entraram no meu quintal, sem minha autorização, e desviaram o esgoto para o vizinho, sendo que sempre foi na minha casa. Já tem quase dois anos que estou atrás da fundação/empresas para deixar a casa do jeito que estava, fiz várias reclamações, mas eles não fazem nada. No segundo andar, as paredes ficaram com rachaduras por causa dos carros pesados que passam. Lá, eu mesma tive que arrumar, pois eles não estão nem aí e eu uso a casa pra alugar, não poderia ficar sem minha fonte de renda. Maria de Lurdes Valentim, moradora de Barra Longa
Após seis meses da reforma, estrutura da Escola Municipal Gustavo Capanema apresenta problemas.
Podemos temer o futuro? Olha para essa fiação exposta desse jeito ali. Assim, um menino pode puxar e arrancar aquilo, se machucar e ainda machucar alguém. Fiquei sabendo que, nesta escola, já houve um princípio de incêndio. Você vai na praça de Barra Longa, que foi toda atingida, agora reformada, e vê que eles não tiveram nem o cuidado de plantar uma planta colorida para a gente olhar e se encantar com o jardim. Acho que essa experiência só concretizou o pensamento que nós tínhamos. Ir em Barra Longa e ver é uma coisa diferente, por isso, acho que deveriam vir mais pessoas, esses que têm uma visão da Renova/Samarco que a gente não tem, pra ver a realidade do nosso futuro. Ver se vão gostar. Saio de Barra Longa triste e com a impressão de que, se uma reforma pode ser assim, a construção da minha casa, no reassentamento, pode ser um pouco pior. Simaria Quintão, moradora de Bento Rodrigues
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Foto: Wandeir Campos
As contradições da Renova Por Manuel Marcos Muniz (Marquinhos), Gilmar Silva, Marlene Agostinho e Luzia Queiroz, Com o apoio de Daniela Felix, Flávio Ribeiro, Gustavo Nolasco, Larissa Pinto, Miriã Bonifácio, Tainara Torres e Wandeir Campos
Desde que a Fundação Renova surgiu, ela construiu um “mundo” repleto de contradições. A maior parte de suas ações seguem caminhos que levam ao que é mais simples para ela e o que é mais difícil para os(as) atingidos(as). A omissão, o adiamento de soluções, o desvio de foco, os descumprimentos de suas obrigações são exemplos disso. Para conseguir manter o disfarce, ela ergue uma “casa”, onde o teto encobre sua falta de legitimidade, a fachada embeleza a má qualidade de seu trabalho, a sala recebe seus convidados de interesse, a cozinha prepara a “espera” e o chão, frágil, não sustenta suas políticas.
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O teto de vidro
Criada em junho de 2016, a Fundação Renova se define como uma aquela que surge a partir de um crime - a maior tragédia socioambie veis pelo rompimento da Barragem, a Samarco, a Vale e a BHP. M a aprovação dos planos e ações”, é formado, em maioria, por pe se fosse uma reunião de bairro, mas sem os moradores. O T foi firmado em março de 2016 entre os Estados de Mina (CIF) deveria “avaliar, acompanhar, monitorar e fisca Embora os rumos traçados pela Renova e pelo aco dos a dialogar com ela - quando não limitados motivos não menos essenciais, os(as) atingi Fundação que tem, como missão, agir “se sicos, não faz a prestação completa de
Por fora parece bonita Embora a Fundação Renova afirme que atua independentemente das empresas Samarco, Vale e BHP Billiton, e insista nessa história para “reforçar a identidade e a reputação da Fundação na sociedade”, como ela mesma afirma em um de seus relatórios, por trás dos panos, não é bem assim que funciona. Quando o assunto é “engajamento e diálogo” - um eixo de atuação da Renova, que inclui canais de relacionamento com os(as) atingidos(as) e com a imprensa -, a Fundação adota as mesmas técnicas utilizadas pelas mineradoras responsáveis pelo crime. Para se ter uma ideia, a agência Rede Comunicação de Resultados, que produz as cartilhas que tentam informar as pessoas atingidas sobre a reparação dos danos é a mesma empresa que presta serviços de comunicação para a Samarco e a Vale. Inclusive, todas elas são unânimes em chamar os(as) atingidos(as) de “impactados”. Ainda em relação aos planos de comunicação da Renova, os(as) atingidos(as), que deveriam ser o principal foco da Fundação, continuam em segundo plano. A Renova tem feito grande esforço para fazer publicidade - duvidosa - de suas próprias ações. Enquanto isso, os(as) atingidos(as) ainda aguardam respostas básicas sobre sua reparação em questões urgentes, como o reassentamento das famílias que tiveram suas comunidades destruídas. Estima-se, segundo relatório financeiro da Fundação Renova, de 2016, que, pelo menos, R$ 18 milhões foram utilizados para cobrir ações relacionadas ao programa de “engajamento e diálogo”, que inclui esses planos de publicidade e outras estratégias de comunicação de suas ações.
Fazer sala para quem?
Em novembro do ano pas completava os dois anos da tr dação Renova entrou para o dações e Empresas). Esse gru eles, nomes de grande expre social no Brasil. Diante diss instituições como essas, a Re O que significa, para ela, est que essa participação interess Esses questionamentos, pa postas, nos revelam, pelo me nova está preocupada em con atrelada à ideia do que os ins GIFE significam. Mas, ao co po ali formado não para inv gar, mas para reparar um crim também um grande objetivo Mais do que ser, basta parece
Sem chão, não tem casa “Para nós, de Gesteira, a prioridade hoje é o reassentamento. Temos enfrentado grande dificuldade nas negociações. Vimos vários investimentos na região, como em cooperativas, que é algo importante, mas, por exemplo, minha mãe, com 80 anos, não tem esperança de viver muito, e ela briga incansávelmente pra ter a casa dela. A empresa leva o povo pra todo lado e tá enganando a sociedade. Mas o básico, que é nossa casa, nada disso ainda foi feito.” Gilmar Silva - Morador de Gesteira.
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a instituição criada a partir de uma “solução inédita” no Brasil, o que, em palavras mais diretas, significa ental do país. Ela também se apresenta como “independente”, tentando se distanciar das empresas responsáMas a verdade é que o Conselho Curador da Renova, responsável pelos “orçamentos e contratações, bem como essoas indicadas pelas mineradoras. Dos sete membros, seis são escolhidos por elas. Nenhum atingido. É como Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), conhecido como “acordão”, e do qual nasce a Renova, as Gerais e do Espírito Santo, a União e as empresas. Segundo o termo, um órgão intitulado Comitê Interfederativo alizar” as ações promovidas por essa Fundação. Mas, novamente, esse órgão não possui a presença de atingidos(as). ordão sigam sem a participação das vítimas, ao longo de toda a Bacia do Rio Doce, os(as) atingidos(as) são contrarias apenas a ouvi-la. E esta é a única e, talvez, a maneira mais difícil de tentar garantirem seus direitos. Por esses e outros idos(as) não consideram a Renova uma instituição legítima para a garantia da reparação dos danos. Afinal, como uma empre de forma eficiente, idônea, transparente e ética”, não tem respostas para nada, não é capaz de assegurar direitos báe suas contas, muito menos, respeita a voz dos(as) atingidos(as) em suas decisões, poderia despertar a confiança de alguém?
Cozinhando em banho-maria
ssado - mesma época em que se ragédia/crime de Fundão -, a FunGIFE (Grupo de Institutos, Funupo reúne vários associados, entre essão e atuação de investimento so, nos perguntamos: ao lado de enova irá conseguir se legitimar? tar e conquistar esse espaço? E a sa aos(às) atingidos(as)? ara os quais ainda não se tem resenos, uma coisa, a Fundação Renstruir uma imagem de si mesma stitutos e fundações presentes no ontrário deles, ela é o único gruvestir socialmente em algum lume. O disfarce, então, nos parece e um investimento da Fundação. er ser?
O prazo para que a Fundação Renova/Samarco cumpra o processo de reassentamento das comunidades atingidas de Mariana, de acordo com a ação de cumprimento de sentença ajuizada pelo Ministério Público em novembro de 2017, é até março de 2019. Essa ação, no entanto, está suspensa, por pelo menos 180 dias, para continuar a discussão das diretrizes. Porém, o cumprimento desse prazo é praticamente inviável diante dos inúmeros erros e atrasos da Fundação, como: demora na compra dos terrenos para o reassentamento, necessidade de reformulação do Cadastro e problemas nos projetos urbanísticos de Bento e Paracatu - que precisaram ser refeitos e resultaram em mais de um ano de espera desde a votação inválida para a poligonal da “nova” Bento Rodrigues. “Em uma das assembleias, a Renova/Samarco não quis estipular prazo. Se não vão estipular prazo é porque já estão prevendo que vão atrasar. Podemos até pensar que, como a empresa é grande, podem ter muitas empreiteiras e pode dar o tempo de fazer, mas isso também pode tumultuar muito a situação. Nem o registro do terreno eles têm e, sem o registro, eles não conseguem fazer nada. Se eles quisessem fazer mesmo, já tinham feito nesse tempo todo que já passou. Vejo que eles não estão correndo atrás mesmo.” Marquinhos Muniz, morador de Bento Rodrigues. Em resposta ao descumprimento do prazo final, a Renova afirmou ao Jornal Nacional, na edição do dia 27 de março de 2018, que havia recebido novas diretrizes para o reassentamento em dezembro e que, diante disso, determinaria uma nova data para a entrega das moradias. Entretanto, essa afirmação, faz parecer culpa dos atingidos um erro que é dela. A Fundação não conseguiu cumprir a maior parte dos prazos do seu cronograma, o que fez com que os(as) atingidos(as) precisassem criar orientações para a reconstrução de suas vidas, na tentativa de garantir direitos básicos e de evitar correrias e má qualidade das obras. De novo, a Fundação Renova tenta escapar de suas responsabilidades colocando a culpa nas próprias vítimas.
Em Gesteira, o processo de reassentamento já teve um prazo de conclusão estimado pela própria fundação para o fim de 2017, mas em 2018, sequer compraram o terreno. Dessa forma, percebemos que cumprir prazos não é uma prioridade para a Renova. Então, se a fundação não cumpre o que é prioridade dentro desse processo de reparação - que é a construção das casas -, o que é, então, prioridade para ela? Pois, para quem perdeu até a moradia, o que mais se deseja é o lar, ter um chão para que se possa começar de novo.
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Vai reassentar Paracatu, mas como? Embora o terreno de Lucila tenha sido escolhido em setembro de 2016, o processo do reassentamento de Paracatu ainda é motivo de receios e dúvidas entre os(as) atingidos(as). A comunidade exige da Fundação Renova/Samarco/Vale e BHP transparência, participação e agilidade nas decisões que, até hoje, continuam no vai e vem de rascunhos e estudos sem fim. Apresentamos, a seguir, os problemas mais urgentes que ainda não foram solucionados. Por Luzia Queiroz, Maria Geralda e Romeu Geraldo Com o apoio de Daniela Felix, Flávio Ribeiro e Assessoria Técnica da Cáritas
Os moradores de Paracatu retomaram, no fim de março, os grupos de trabalho (GTs) para criar um método sobre como avançar com o projeto de reassentamento da comunidade. A discussão sobre o projeto foi suspensa em 2017, após a criação de 15 versões do mapa, e pela falta de informações concretas por parte da Renova/Samarco sobre os terrenos. Agora, uma das propostas é que os(as) atingidos(as), em conjunto com a Assessoria Técnica da Cáritas e a Renova/Samarco, se dividam em grupos para construir o mapa da nova Paracatu, além de realizarem visitas ao terreno de Lucila.
“Queremos um Paracatu, ‘Paraca’, onde se possa viver com harmonia e a comunidade esteja satisfeita. Pois, hoje, a nossa comissão se sente sensibilizada com a saída da assessora Ludmila, que sempre nos auxiliava com a questão dos mapas e com as outras demandas relacionadas ao reassentamento.” Luzia Queiroz “É importante ressaltar que, no momento, somente é possível pensar no método e preparar para os trabalhos futuros, pois trabalhar no projeto, efetivamente, necessita que todas as áreas de restrição do terreno sejam levantadas. E quem irá afirmar ou negativar esse ponto, são a SEMAD e a SECIR em sua nota técnica." Hélio Sato, assessor técnico da Cáritas
PRINCIPAIS PREOCUPAÇÕES: Regularização dos terrenos De acordo com a Assessoria Técnica da Cáritas, no início do processo de reassentamento, a Renova/Samarco afirmou que Lucila - terreno da nova Paracatu formado por duas áreas- comportaria toda a comunidade. Entretanto, os estudos da assessoria mostraram que para contemplar todos os moradores de Paracatu, o terreno precisaria ser ampliado, o que acarretou no aumento de duas para nove áreas. Com as novas compras para considerar toda a população e entraves no cartório, a Renova/Samarco acusou o estudo da Cáritas de ser o responsável por atrasar o processo de reassentamento. Porém, a compra de todas as áreas necessárias, incluindo o terreno principal de Lucila - que deveria ter sido adquirido desde o começo, só foi finalizada em janeiro de 2018. Portanto, mesmo que não fosse necessária a compra de mais terrenos, o processo ainda estaria atrasado devido a demora na aquisição de Lucila- que foi, inclusive, o último terreno a ser comprado.
“O próximo passo agora é a regularização dos terrenos. O prazo inicial da Renova para a regularização de todos os imóveis era para o dia 10 de março. Agora, eles colocaram o prazo para o dia 10 de abril.” Hélio Sato, assessoria técnica da Cáritas
Áreas de restrição De acordo com as leis de restrição de ocupação e uso do solo, não é possível construir em todo o terreno destinado ao reassentamento da comunidade, já que deve-se respeitar as áreas de preservação ambiental, de patrimônio cultural, de cavernas e áreas de risco, como em altas inclinações. A Fundação/empresa apresentou aos moradores (e sua assessoria técnica) algumas dessas restrições, mas é necessária uma posição final de órgãos como a Semad (Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável) e a Secir (Secretaria de Cidades e de Integração Regional), que analisam por meio de notas técnicas os estudos de licenciamento do terreno realizados pela Renova/Samarco. A última nota técnica enviada pelos órgãos aponta que esses estudos estão inadequados. Uma nova nota deve ser entregue neste mês. “Enquanto não houver certeza que todas as áreas de restrições foram devidamente levantadas, trabalhar no projeto pode causar frustrações para os atingidos, tendo em vista que ele pode atrasar.” Hélio Sato, assessor técnico da Cáritas “Vocês vão fazer a gente sonhar e depois falar que não dá ou que não pode?” Luzia Queiroz
Diálogo entre os envolvidos Os(as) atingidos(as) criticam o suposto diálogo entre a Renova/ Samarco e os demais envolvidos no processo de reassentamento. O Comitê Interfederativo (CIF), que reúne as empresas e os governos de Minas Gerais e Espírito Santo, é formado basicamente por um grupo de pessoas indicadas pelos próprios responsáveis pelo crime, e não inclui de maneira legítima os mais interessados nas decisões: os(as) próprios atingidos(as). Para tentar minimizar esse problema, as comunidades criaram, em fevereiro deste ano, uma diretriz geral para a formação de um grupo que reúna todas as instituições envolvidas no processo de reparação, entre elas a Secir, a Semad, a Cáritas, a Prefeitura de Mariana, as empresas causadoras do dano e todos os moradores.
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O primeiro encontro do grupo direcionado pelos(as) atingidos(as) ainda não foi agendado. A demora em um posicionamento final dos órgãos públicos, e a incompetência por parte das empresas, justifica a preocupação dos moradores em relação ao que se pode ou não ser realizado na nova comunidade. “Falar até papagaio fala. A gente tá querendo ação. Já se passaram 2 anos e 4 meses e nada foi feito na nova Paracatu. As pessoas mais velhas estão ficando sem esperança. Quando isso vai se resolver?” Romeu Geraldo
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No dia 13 de fevereiro de 2018, a Renova/Samarco afirmou que apenas três opções de coleta da água, das seis sugeridas pelos(as) atingidos(as), tinham quantidade suficiente e viabilidade de transporte para abastecer Paracatu, entre elas a do poço artesiano. “A Renova não pode afirmar se a quantidade de água atende Paracatu, já que ela não apresentou um levantamento das atividades e usos de água por meio das famílias. Hoje, a Renova utiliza uma estimativa de 200* litros por pessoa ao dia, alegando que 120 litros seria uma estimativa adequada e 80 litros seria “bônus” para a criação de pequenos animais. Um técnico do SAAE (Sistema Autônomo de Água e Esgoto), presente em reunião, disse que em um distrito parecido com os modos de vida de Paracatu, o consumo é de 600 litros por pessoa ao dia.” Hélio Sato, assessoria técnica da Cáritas
Abastecimento de água Até o fim de 2017, a Fundação Renova/Samarco havia realizado estudos preliminares sobre o abastecimento de água em apenas dois pontos (rios/riachos) de captação. Após isso, a única proposta indicada pela fundação/empresa foi o abastecimento por meio de poços artesianos. Contudo, a comunidade criticou a ideia, já que são conhe* Os 200 litros por pessoa/dia é uma estimativa feita pela cidos os casos em que os poços acabaram secando com o passar dos própria Fundação Renova. anos. Sendo assim, os(as) atingidos(as) tiveram que sugerir seis alternativas para estudo. Reforçando assim, o que tem acontecido nesse processo de reparação, “Quando vai ser a reconstrução em que a Renova/Samarco não apresenta Mais de dois anos se passaram desde de Paracatu? Quando vamos ter opções que atendam da melhor forma as que os moradores de Paracatu tiveram que as nossas casas? O que a gente necessidades do novo terreno, delegando sair da comunidade às pressas, deixando precisa pra ter uma resposta esse trabalho para as próprias vítimas. tudo para trás. Hoje, com tanta demora e correta?” angústias, o que se espera minimamente da Fundação Renova/Samarco e dos ór“No ano passado, em Maria Geralda gãos públicos é um reassentamento feito GTs, os técnicos da Renova de maneira honesta. Quando falamos de chegaram a declarar que vidas, não se deve trabalhar apenas com o abastecimento de água “o que der pra fazer”. Lucila não substiseria visto após o reassentuirá Paracatu, mas pode ser um recomeço digno para quem viu sua tamento, o que não faz nenhum sentido, já que o reashistória desaparecer debaixo da lama. E, para isso, é preciso água, solo sentamento deve trazer qualidade suficiente para a retofértil, construções de qualidade, áreas de lazer e, sobretudo, diálogo, mada dos modos de vida da comunidade e a água tem ética e competência entre todos os responsáveis. Afinal, ninguém peum papel fundamental para isso.” diu para sair de casa. Hélio Sato, assessoria técnica da Cáritas Foto: Luzia Queiroz
“Ainda é só mato”. Moradores cobram respostas sobre problemas que inviabilizam e atrasam o reassentamento de Paracatu.
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Fotos: Miriã Bonifácio
É ser forte, e aguentar Por Mônica Santos Com o apoio de Miriã Bonifácio
Os livros do curso de Direito tem sido objetos em que Mônica se apoia para seguir em frente. Ela contou sua história no Programa Encontro com Fátima Bernardes no dia 1º de março deste ano.
Resiliência é você perder tudo e ainda conseguir levantar da cama. É saber que tem que se manter forte porque tem várias pessoas que precisam e confiam que você pode fazer a diferença. É você estar acabada por dentro e colocar um sorriso no rosto só para manter as aparências, como se estivesse tudo caminhando bem. - Tá bem, Mônica? - Tô sim, graças a Deus. É você ter uma palavra de conforto para aquela amiga, aquela senhora amiga que te parou na rua pedindo ajuda para fazer uma mudança, ou um conselho sobre o filho que está dando problema. A gente não esquece o que a gente viveu, mas precisamos andar pra frente. É você, no meio de tanta dificuldade, ainda ter força para enfrentar uma sala de aula, num curso de cinco anos, que você não acredita que ele é Direito porque no seu dia a dia ele tem sido injusto. É você ter dificuldades para fazer uma prova, é você não entender a matéria, é você sentar, chorar e não ter ninguém para te ajudar, e mesmo assim você enfrentar as dificuldades. É você ficar noites e noites sem dormir, sem saber como vai ser o amanhã, viver na incerteza, e mesmo assim saber que existe um Deus que não te deixa desistir e te levanta todos os dias. É você tentar lutar com suas forças e ver no que vai dar.
APARASIRENE NÃO ESQUECER
Abril de 2018 Mariana - MG
Saberes que continuam
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O Jornal A SIRENE traz, a partir desta edição, uma série de histórias que dizem sobre os saberes de moradores das comunidades atingidas e suas relações com as tradições culturais desses lugares. Esses ofícios, hábitos e vivências revelam a importância de se falar da união desses povos e de fazer um resgate de suas memórias, para que, a cada mês, possamos também aprender com eles alguns dos seus melhores e mais valiosos ensinamentos. Por Carla Barbosa e Laura Barbosa (Dona Laura) Com apoio de Wandeir Campos Fotos: Wandeir Campos
“O pastel da Dona Laura”
Dona Laura tem 83 anos, nasceu em Paracatu de Baixo, e tem um filho e uma neta. Desses 83, mais de 50 anos foram dedicados a fazer aquilo que dá origem à sua fama, o pastel. Essa receita aí é da minha cabeça mesmo, ninguém me ensinou. Quando casei, meu marido tinha o comércio, né, aí que comecei a fazer os pastéis, há 50 anos. Passava muita gente lá. A pé: viajantes, povo de Paracatu. Bem depois, de ônibus. Faziam encomendas e o meu pastel andava por todo lado. Fazia de manhã e à tarde também. Eu tinha a quitanda e o pessoal ia tomar café. O povo da roça sempre passava no fim de tarde. Acordava cedo e logo já pegava a farinha, a água e o sal. A massa não tem ovo não. Depois abria a massa, colocava o recheio. Pastel de carne e queijo. Meu preferido é o de queijo. Fritava, vendia. Naquela época, era 1 real, não, lembrei, 50 centavos. [Muita coisa ficou lá debaixo da lama, né minhas louças, presentes de casamento, o que ficou, ficou o que sobrou, fomos nós]. Dona Laura, moradora de Paracatu de Baixo.
Depois do rompimento da barragem de Fundão, Dona Laura precisou se mudar para o distrito de Padre Viegas, em Mariana, com o filho Carlos e a neta Carla. Esta se tornou sua sucessora e carrega a tradição da receita do pastel da avó. Eu comecei a fazer os pastéis quando minha avó ficou doente, um pouco antes do rompimento. Ela arrumou um problema na perna e não dava mais conta de fazer os pastéis. Aí o meu pai disse pra eu fazer. Minha avó Laura foi quem me passou a receita. No início, tive dificuldade, achei que não iria dar conta. Até que fui fazendo, de pouco a pouco, e fui acertando o jeito de fazer a massa. Hoje em dia, nem preciso medir os ingredientes para fazer. Acordo cedinho aos finais de semana, entro pela porta do fundo do bar, ponho a touca na cabeça e começo a fazer os mais de 50 pastéis com a receita de vovó. Num instante eles são vendidos. Fico orgulhosa de continuar essa tradição. Carla Gomes Barbosa, moradora de Paracatu de Baixo
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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER
Abril de 2018 Mariana - MG
Sobre viver com a reparação
Foto: Tainara Torres
Desde 2015 os atingidos(as) precisam contar com o cartão de auxílio-reparação e, de lá pra cá, as mudanças e as readaptações fazem parte do cotidiano das famílias. O que é sobreviver com uma reparação? O que é viver à mercê de burocracias e (não) reajustes? O que é receber um salário que antes não se recebia, ou melhor, do qual não se dependia? O que é compreender que, mesmo diante dessas dificuldades, existem outras pessoas que não têm nem isso pra reclamar? Por Genival Pascoal, Joana D’Arc, Paulo César e Terezinha Quintão Com o apoio de Tainara Torres
De um ano para o outro, muita coisa pode mudar: os filhos casam, as filhas trocam de emprego, casas ficam prontas. As viagens que tanto queremos acontecem - ou não -, conhecemos pessoas, as famílias crescem ou diminuem. Compramos coisas novas, ficamos mais velhos, vendemos aquele sofá, reformamos casas ou ficamos sem elas. Os salários aumentam? As contas de luz também, e as dores de cabeça começam a ficar mais fortes. De tempos em tempos, descobrimos que o fluxo pode ficar um pouco mais difícil para entender, porque, de um ano para o outro, muita coisa pode mudar, ou nada, já que também temos essa sensação de estarmos parados no tempo. Se nos perguntam sobre transformação, conversamos sobre como a lembrança é forte, sobre o quanto nós somos fortes e sobrevivemos. Hoje, somos metade, porque a outra parte é o Bento. Metade porque essa outra parte resiste em memória, na nossa memória. Mas os obstáculos são diferentes agora, vivíamos do nosso trabalho e, aqui, sobrevivemos por meio de uma reparação. Genival Pascoal, morador de Bento Rodrigues Cotidiano diferente Hoje, a rotina dos(as) atingidos(as) não é mais a mesma, as mudanças, as poucas que aconteceram, não foram positivas. De lá pra cá, eles precisaram reaprender a viver e a sobreviver de um novo jeito, com renda e gas-
tos diferentes dos que tinham até então. O cartão entregue a eles pela Renova/Samarco para auxílio-reparação, por exemplo, já teve um início cheio de problemas. A bandeira Policard era aceita em poucos pontos de comércio da cidade de Mariana, além de vir com um baita adesivo da Fundação Renova, o que reforçava o preconceito e dificultava que comprassem materiais e alimentos para as necessidades mensais de casa. Em junho de 2017, a empresa Alelo passou a gerir os cartões, mas os transtornos com a utilização continuaram. Um deles é a não emissão de um extrato bancário com os valores depositados em cada mês, algo básico e que possibilitaria entender um pouco mais sobre o que recebem. Ainda, para se obter informações sobre a conta é preciso fazer ligação de um telefone fixo, quase inexistente na maioria das residências dos referidos moradores, ou acessar pelo aplicativo - que tem um sistema operacional específico, que não funciona em qualquer aparelho celular. “A nossa despesa, lá no Bento, era um nível; aqui é outro, bem mais alto. Lá, nós gastávamos um botijão [de gás] a cada três, quatro meses; aqui, todo mês, é um. Lá, eu tinha a minha renda, tratores e uma chácara produzindo. Costumo brincar que eu era rico e não sabia. Hoje, o meu cartão pouco dá pra abastecer o carro. Lá, eu tinha galinhas e não gastava nada pra cuidar delas, porque comiam do milho que eu plantava. Banana, alface e couve: era só pegar da horta e dar para elas,
e assim era também com os porcos. Hoje, eu nem tenho galinhas mais. Os animais que eu tenho aqui só posso tratar com ração e isso altera mais a nossa renda." Paulo César, morador de Bento Rodrigues. “Aqui onde a gente está morando, juntando a minha renda, o que eu tinha mais o cartão, a gente está sobrevivendo. As coisas são muito caras. Aqui, temos que comprar verduras, lá em Bento, a gente não comprava. Frutas e verduras a gente pegava na casa da gente mesmo. Às vezes, pegamos o salário e não sabemos nem o que fazer com ele. Lá em Bento, eu tinha o salário, trabalhava com a minha irmã e, às vezes, ela me pagava um salário mínimo. Eu conseguia juntar, eu guardava uns trocados.” Terezinha Quintão, moradora de Bento Rodrigues. “Tem coisa que você tem que deixar de comprar para ter as coisas mais necessárias. Lá em Bento, eu tinha meu fogão à lenha; aqui, eu uso a gás e ele não dá pro mês; e, quando ele acaba, nós esperamos virar o mês pra conseguir comprar outro, senão ficamos sem. Lá, quando quisesse chupar uma cana, tinha; e aqui é o quê? Se não tinha verdura, meu sogro levava pra gente; e aqui? Lá, eu não comprava banana, laranja, mamão; e aqui preciso comprar tudo isso.” Joana D’arc, moradora de Bento Rodrigues.
APARASIRENE NÃO ESQUECER
Abril de 2018 Mariana - MG
Papo de cumadres: contaminação
Consebida e Clemilda estão desesperadas com as notícias das pessoas contaminadas, ainda mais Clemilda sabendo da contaminação de sua querida afilhada. Por Sergio Papagaio
Consebida, com a voz chorosa, engasganu em sua prosa, diz: - Clemilda, minha fia, cê viu as nutícia que saiu? - Cê tá falanu du povo que o barru contaminô e ainda tá contaminanu? - Cê lembra de Sofya? Uma perrenguesa a cada dia. - Pois num lembru? Minha afiada coitada, com a cara cheia de boia e manchas pru corpo afora, paricia, tinha hora, até que tava com catapora. Uma febre de dá dó, tussinu toda hora pumodi aquele pó. - Isso é mesmo, óia só, por causa daquela lama e daquele pó, cê lembra da agunia que a sua cumadre sintia, de oiá pra fia com tanta alergia, e a Samarcu dizia que o pobrema de Simone era psiquiatria. - Chegaram a querê marcá um médico de tratá da cabeça. Que issu a gente nunca isqueça, ês num acreditava quandu Simone falava com tanta sabeduria o que uma mãe intuía sobre os males que sua fia sentia. - Me lembru naquele dia, Simone ajueiada nu prédio da Câmara dus Veriadô, com muita sinceridade, pedindu às artoridade que de sua fia tivessem piedade, que na rua onde morava num fosse colocada a lama que tantu mar à sua fia
carsava, mas ês da Samarcu falava que Simone doida istava. - Cumadre, num tô intendenu, a rua de Simone foi carçada com a lama que mata e traz tormentu? - Foi issu mês, puseru a lama nu chão pra sirvi de cobertura prus broquetes ter firmeza na lama da tristeza. - Cumadre, agora preste atenção, já faz dois anus que nós tá comentanu o que a lama tá carsanu e a Samarcu sempre desacreditanu. - Ninguém tá importanu com a dor de um outro Fulanu, mesmu que este Fulanu seja Sofya, uma minina de apenas três anus. - É issu, cumade, vivê nesta bacia é ser guvernadu por quem só acredita em dinheiru e fulia, e descrê de Deus e da Virge Maria. - E nós pricisa acordá e ser mais unidu, chamanu todu atingidu pra lutá por nossas vida, antes que ês dê um jeitu e transforme nós tudu em puêra ou pó de rejeitu. - Agora eu vô perguntá, diante de tantas prova que há, quandu Sofya reconhecida será? Como mais uma atingida ou vão esperá a pobre minina em seu sangue completá a coleção de metá. Num basta níquel e arsênio sobrá e zincu fartá? Foto: Larissa Helena
Em maio de 2017 a lama de rejeitos foi usada para fazer o calçamento da rua onde Simone e Sofya moram.
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EDITORIAL A imagem de alguém que não se mostra. As mãos que nos impedem de identificar características importantes dessa pessoa. Não sabemos qual expressão ela traz em seu rosto, qual a cor de seus olhos. Não sabemos se é um homem ou uma mulher. O que sabemos é que, por trás de algo que impede a nossa visão, às vezes, existe alguém que foi atingido. Com a capa deste mês, tentamos dizer, um pouco, o que tem sido o nosso processo de reparação, “a nossa luta”, em que diversos fatores impedem que enxerguem as coisas como de fato são. Consequentemente, como é o caso do reassentamento de Paracatu, isso nos prejudica de prosseguir da forma como queríamos. As incertezas sobre as condições dos terrenos e o vai e vem dos “estudos” que mal entendemos, entre outros detalhes, estão consumindo o nosso tempo e deixando as nossas comunidades desconfiadas e insatisfeitas. Enquanto isso, através de investimentos em publicidade, a Fundação Renova/Samarco vende uma ideia de que tudo está acontecendo conforme o planejado, de tal forma que, “lá fora”, as pessoas possam ver que a extensão da tragédia não foi tão grande e que está tudo bem. Mas isso, na verdade, é ela, mais uma vez, tentando se colocar na e à frente da situação. Tiramos “as mãos” da frente e mostramos o “rosto” de Barra Longa. As “marcas” que podemos ver são as das reparações mal-feitas pela fundação/empresa em dois imóveis atingidos de lá. Além de uma reforma na escola atingida da cidade, onde as instalações elétricas estão expostas e facilmente acessíveis para as crianças, se tornando não um reparo simples, mas uma nova dor de cabeça para os pais. Diante da qualidade desse serviço, muitas preocupações surgem em relação às nossas casas no futuro. E essa realidade não está nas publicidades da Fundação Renova. Assim, essa ideia de Fundação independente, eficiente, transparente e ética, são contraditórias ao desempenho das ações. “Abrimos”, então, a porta da “casa” dessas contradições para mostrar como ela é “por dentro”. Nesse sentido, questionamos, o que de fato é prioridade para a Renova? Com qual objetivo ela tenta se legitimar em espaços que não representam e/ou não interessam os(as) atingidos(as)? Talvez, o fato de estarmos dialogando com ela, sem o apoio necessário, e não com as empresas causadoras da tragédia-crime, seja o maior contraponto de tudo o que estamos passando. - Quanto tempo mais isso, ou aquilo, ainda demora? Sempre perguntamos para a Fundação Renova/Samarco. - Não sei, depende. Mas estamos fazendo o possível. Não importa qual seja a nossa pergunta, a resposta é sempre a mesma. O tempo vai passando e nos sentimos “cobertos” por processos que “se perdem de vista”. Quando voltamos para casa, após uma reunião, e juntamos todos os detalhes que estão soltos pelo caminho, mais dias são acrescentados em nossas vidas provisórias. Vidas como a de Aparecida Maria Cerceau, moradora da comunidade do Borba, subdistrito de Mariana, que recebeu os rejeitos de Fundão durante a noite do dia cinco de novembro de 2015. Ela é a atingida de blusa vermelha na fotografia ao lado.