A SIRENE
PARA NÃO ESQUECER | Edição Especial Foz do Rio Doce | Distribuição gratuita
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Setembro de 2017 Regência Augusta - ES
PARA NÃO ESQUECER
Poesia e regeneração
Foto: Daniela Felix
A comunidade de Regência Augusta é terra de poetas e poetisas, como provam os alunos da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio de Vila Regência. Esses artistas locais são autores de denúncias contra o mal que se instaurou em todo o Rio Doce após o rompimento da Barragem de Fundão. Além disso, usam suas obras para enaltecer a vila mágica onde moram. Por alunos da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio de Vila Regência Com apoio de Sérgio Papagaio
Raíssa Santos Pacheco
Natalia Oliveira Cassiano
Kalina Maciel Ribeiro Amanda Zanon do Nascimento
Expediente
Realização: Atingidos pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana, Coletivo Um Minuto de Sirene | Conselho Editorial: Adelaide Dias, Angélica Peixoto, Cristiano José Sales, Genival Pascoal, Kleverson Lima, Lucimar Muniz, Manoel Marcos Muniz, Milton Sena, Mônica dos Santos, Pe. Geraldo Martins, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva e Thiago Alves | Editor chefe: Milton Sena | Jornalista Responsável: Rafael Drumond | Editora de arte: Silmara Filgueiras | Editor Multimídia: Flávio Ribeiro| Editora de texto: Miriã Bonifácio | Editora de Vídeo: Daniela Felix | Reportagem e fotografia: Daniela Felix, Sérgio Papagaio e Silmara Filgueiras | Apoio: Festival Regenera Rio Doce, Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Agradecimentos: Escola de Ensino Fundamental e Médio Vila Regência, Festival Regenera Rio Doce, Guilherme de Sá Meneghin (Promotor de Justiça - Titular da 2ª Promotoria de Justiça de Mariana), moradores de Areal, Entre Rios e Regência Augusta | Impressão: Sempre Editora |Foto de capa: Daniela Felix | Tiragem: 2.000 exemplares | Fonte de Recursos: Termo de Ajustamento de Conduta entre o Ministério Público de Minas Gerais (2ª Promotoria de Justiça de Mariana) e Arquidiocese de Mariana.
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Foto: Daniela Felix
Papo de cumadres: Areal Por Sérgio Papagaio
O nascimento do Rio Doce Aos 13 anos, Tiquinho, morador de Regência Augusta, expressa, com maturidade e engajamento, a Arte Naif - uma manifestação nativa, espontânea, ingênua e totalmente despreocupada com qualquer regra sobre o que a arte deve ser e fazer. Presente na cultura local de Regência, onde diversos artistas produzem seus trabalhos a partir de tal perspectiva, a estética Naif encontrou, na energia juvenil de Tiquinho, mais uma forma de aparição. Nesta seção, destacamos um dos poemas escritos pelo garoto sobre as consequências socioambientais provocadas pela lama de Fundão. Por Everton Siqueira da Silva (Tiquinho) Com o apoio de Sergio Papagaio
Com um pinguinho de água se deu uma explosão. Com terra pra todo lado, no canto, se formou um buracão. Com vários dias de chuva se formou um rio. Com pingos de açúcar que adoçaram a água. O tempo passou e ali um rio virou. Depois de um ano algumas mulheres, em fase de parto, tiveram bebês. Eles nasceram e cresceram nas margens desse rio, que deram o nome de Rio Doce. Com as várias espécies de peixes, os bebês viraram pescadores. Mas ainda não acabou.
Foto: Arquivo Festival Regenera Rio Doce
Consebida e Clemilda estão deslumbradas e assustadas com a beleza da comunidade de Areal e como a Samarcu lhe fez tanto mal. -Ficu triste pra daná quando vejo tanta tristeza decoranu a beleza de Areá. - Como assim? Dá pra expricá? - Espera só que já vô falá, dum ladu, a natureza é dona de tanta beleza, doutru ladu, a Samarcu traz pra cá um monte de lama em forma de tristeza. - Se avexe não, num tem nessa vida um mal que num tenha solução. - O povo daqui é guerreiro. O ouro dessa terra é a paz e a curtura du povo ancestrá e, nisso, o índio é garimpero: essa riqueza, sem mal causar, da terra ele sabi tirá. - Veja só, o caso dus índios é iguar pra todu lugá, o terrenu deles ês num qué documentá, diz que tem que demarcá. - É estranho pra daná, se arguém mora por mais de cincu anu num lugá, a propriedade do terrenu ele pode pleitiá e, pra resorvê a situação, é só pedi a posse através do usucapião. - Os índios mora nu terrenu antes du Brasil virá nação e, com esse tempo todo, pra ês num vale lei niuma, nem o usucapião. - O índio e o pobre tão na mesma condição, o pobre passa fome na cidade, o índio passa perrengue em sua antiga propriedade, onde o povo da cidade veio fazer exploração. - Me exprica, cumade, toda essa situação, num entendi nada não. - Veja ocê o tamanhu da exploração, a Petrobras tira petróleo nas terra que sempre pertenceu ao povo indígena na comunidade de Areá e o tar du roite é a cidade que vai pegá. Pru índio, só sobra água contaminada e um canteiro de obra eternu no seu lugá. - E até o Rio Doce e as lagoa onde os índio ia pescá, a Samarcu com a lama amardiçuada fez questão de istragá, e com os peixe contaminadu, os índios pelo IBAMA foram embargadus de ter nu pratu o tar pescadu. - Que confusão! E prus índios, ês teve cartão? - A situação é a mesma em toda bacia, sem a menor distinção. Pra uns ês deru, pra outrus não, querenu fazê intriga nessa pequena nação e separá um povo que sempre viveu como irmão. - O trabaio que os português começô, ês toca du memu jeito, o índio pra nós é sujeito, pra Samarcu é tudu rejeitu.
Nas margens também nasceram plantas, bem verdinhas. Os caules, também perfeitos deram um toque de alegria. Depois poluíram o rio. Com o tempo a mineradora Samarco quase terminou com ele. Mas os bebês já eram adultos e lutaram para regenerá-lo. Regenera Rio Doce!
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De Marian
Foto: Lucas de Godoy
A distância que separa Mariana da Foz do Rio Doce é também o que as une. S Gualaxo do Norte, Carmo, Piranga, Doce e Foz compartilham histórias, cada reparar as vidas violadas pelo rompimento de Fundão. Passados 22 meses, os a pletamente alterados. Eles se aproximam na luta por respeito aos modos de vida fértil e por causa de uma adaptação forçada. Por Atingidos de Fundão Com o apoio de Daniela Felix, Miriã Bonifácio e Silmara Filgueiras
Isabela Assis, atingida de Pedras (MG) Foto: Daniela Felix
Autossustento “Era só colocar o anzol que o peixe vinha rapidinho. Não tinha coisa melhor do que esperar o peixe fisgar o anzol e depois voltar pra casa com o saco de arroz cheio de peixe pra minha avó e minha mãe cozinhar.” Isabela Assis, atingida de Pedras (MG) “Antes, a gente fazia a rede e buscava o peixe no mar. Isso que aconteceu foi o mesmo que cortar os meus braços e as minhas pernas. Estou há quase dois anos com meu barco parado e ferramentas de pesca parados. Agora a gente vai ter que criar os peixes em tanques.” Leônidas Carlos, atingido de Regência Augusta (ES)
Lama ainda é visível em córrego que passa pela comunidade de Campinas Foto: Lucas de Godoy
“Tinha bastante fruta, quase todas qualidades de fruta. Tinha pêssego, laranja, limão, ameixa, goiaba, manga, abacate, banana, abacaxi, mandioca, batata, de tudo nós tinha plantado. Agora compra lá em Mariana. A gente pescava lá e comia. Tambaqui, piau, carpa, tilápia. Eu sinto falta de tudo.” Maria de Souza, atingida de Pedras (MG) “Cacau não tem mais, banana não tem mais, água do rio não tem mais. A gente tenta plantar, mas nada cresce igual antes. Parece que a terra perdeu a força depois que a lama chegou aqui. Peixe até tem no mar, mas não dá coragem de comer. Uma vez ganhei um, quando fui limpar, vi que a barriga estava cheia de lama. Joguei fora.” Helena Costa, atingida de Areal (ES) Sem respostas “Não entendo o que é esse formulário, o tal do cadastro. Preenchi em dezembro e até hoje não recebi auxílio nenhum. Querem que a gente prove que é atingido, mas eu nunca tive carteirinha de pesca.” Nelma Flores, atingida de Regência Augusta (ES) “A Fundação Renova foi criada e nada mudou pois, na sua maioria, os funcionários da empresa são remanescentes da própria Samarco. Como confiar naquele que fez vítimas e hoje está querendo cuidar dessas vítiFoto: Daniela Felix
Tanque construído para pesca em cativeiro na comunidade de Campinas (MG)
Nelma Flores, atingida de Regência Augusta (ES)
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na à Foz
Foto: Daniela Felix
Seguindo o caminho da lama, as comunidades atingidas ao longo dos rios a uma com suas particularidades, cada uma com suas dificuldades para atingidos de Minas e do Espírito Santo seguem com seus cotidianos coma, contra os preconceitos e no sofrimento pela falta do rio, pela terra pouco
mas? Eu pergunto aos senhores: vocês entregariam um membro de suas amílias que foi estuprado aos cuidados do estuprador? As ações da Fundação Renova não estão sendo suficientes para reparar aquilo que nos foi rrancado de forma tão cruel.” Mauro Marcos da Silva, atingido de Bento Rodrigues (MG)
“Não adianta esperar pela Samarco. Ninguém vai ajudar a gente. Fiz o cadastro tem três meses e, até agora, nada. Só enrolam. A Renova fica prometendo que vai contratar gente daqui pra trabalhar nas empreiteiras. E, mesmo assim, é trabalho de apenas dois, três meses.” Sonia Pereira, atingida de Regência Augusta (ES)
Ilda Oliveira, atingida de Areal (ES) Foto: Daniela Felix
Tanques para pesca em cativeiro na associação de pescadores de Regência Augusta
“O problema da Fundação Renova é a morosidade. Já faz quase dois nos que aconteceu o incidente e até hoje a gente está sendo tratado como e fosse de caráter emergencial. Não tem nada de concreto para a gente. Nós estávamos na expectativa de sermos reassentados em 2019, de acordo com o cronograma da própria Renova, mas nós vemos que isso não ai ser possível. Até este momento, a Fundação não concretizou a compra dos imóveis. A situação dos atingidos é como se nós tivéssemos dado um pause nas nossas vidas e não conseguíssemos mais dar o play.” Rosária Ferreira Duarte Frade, de Paracatu (MG)
Foto: Daniela Felix
Área de risco “O fato da lama não ter destruído minha casa me deixa muito inseguo em relação ao que a empresa pensa. Eu fui tirado da minha casa, foi ama na porta da minha sala e eu não quero morar mais em uma área de isco. Quero começar a vida num lugar onde eu sempre sonhei, que é um ugar tranquilo.” Marino Dangelo, atingido de Paracatu de Cima (MG)
“A gente vive com medo da chuva, porque Areal alaga todo. Já tiveram que resgatar a gente de lancha e helicóptero. O que será de nós quando o Rio Doce encher de novo? Com essa lama, a enchente vai ser muito pior." Ilda Oliveira, atingida de Areal (ES)
Escassez de Alimentos de alimentos no supermercado de Regência Augusta Foto: Daniela Felix
Foto: Daniela Felix
Ainda que não facilmente visível, lama permanece no fundo do Rio Doce
Helena Costa, atingida de Areal (ES)
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“Estamos juntos, estamos vivos e somos muitos”
De 14 a 30 de julho, Regência, Areal e Entre Rios - comunidades da Foz do Rio Doce, no Espírito Santo - receberam a 1ª edição do Festival Regenera Rio Doce. Realizado a muitas mãos e corações, o evento, organizado pelo coletivo Aliança Rio Doce, reuniu voluntários, especialistas de diversos lugares do Brasil e do mundo, organizações e atingidos de mais de 15 comunidades de toda a bacia. Toda diversidade presente no festival simboliza a crença de que a regeneração só será possível se for praticada em todos os níveis: no individual, nas relações familiares, comunitárias, na relação com o rio, com a natureza e com a sociedade, nas esferas ambiental, cultural, afetiva, econômica, ética, social e política. Por Ana Karolina de Andrade, Flavia Ramos e Hauley Valim (Aliança Rio Doce) Com o apoio de Daniela Felix e Silmara Filgueiras
Um Festival e muitos protótipos de regeneração Ao longo do Festival, mais de 80 atividades colocaram em prática a ideia dos Protótipos de Regeneração. Protótipos, pois o Festival e suas atividades são uma espécie de semente que não tem a pretensão ou expectativa de resolver toda a situação do Rio Doce em 17 dias, mas sim trazer inspiração, criar um terreno fértil de trocas e aprendizados e colocar em prática a esperança de que a regeneração do Rio Doce é possível. Desse modo, os modelos de regeneração foram propostos por meio de oficinas, mutirões, rodas de conversa e nas apresentações artísticas e culturais que movimentaram o Festival para serem testados, replicados, melhorados, ampliados e difundidos pelas comunidades.
Ancestralidade - regenerar os vínculos com as culturas, símbolos e práticas ancestrais que cuidavam da terra e das comunidades por meio de atividades como: queima de cerâmica, pintura corporal, roda de cura (medicina da floresta). Fortalecer os vínculos entre diferentes povos tradicionais e indígenas da região. Arte, Cultura e Celebração - envolvimento com a arte e a cultura local e conexão com nosso poder criativo. Valorizar a celebração, o riso e a festividade como bem estar e fortalecimento dos vínculos afetivos e comunitários com oficinas de arte: filtros dos sonhos, costura, música MPB para crianças. Direitos Humanos, Mulheres e Luta Política - regenerar a coragem e união. Reconhecer e apoiar a luta histórica do contexto político e econômico e buscar formas engajadoras (como a arte) de manter a resiliência coletiva em ação.
Educação e Ludicidade - regenerar a forma com que ensinamos e aprendemos a lidar com os desafios impostos pela lama. Cocriar com as crianças, jovens, famílias e educadores ferramentas lúdico-pedagógicas, tais como fantoches, bonecos e máscaras, que incentivem a prática e aprendizados do senso crítico, de forma divertida, colaborativa e engajadora. Comunicação e Mídias Livres - gerar mecanismos de promoção da autonomia dos atingidos em relação aos seus processos comunicativos, retratando os fatos de forma verídica e independente com microfones abertos na praça, com a a criação de zines, stencils, panfletos e programas de rádio. Incentivar a comunicação entre os atingidos e também com outras redes que apoiem a mobilização pela garantia e defesa dos direitos humanos e da natureza. Exemplos como o do WikiRioDoce.org e Jornal A Sirene.
Fotos: arquivo Festival Regenera Rio Doce
Permacultura e Agroecologia - regenerar nossa forma de se relacionar com a terra, os alimentos, a água, os ciclos naturais, os seres. Através de mutirões de agrofloresta, doações de mudas, rodas de conversa sobre permacultura, aprender com a natureza e criar formas de promover autonomia e segurança aos indivíduos.
Inovação, Pesquisa e Solução - regenerar o papel das universidades, grupos de pesquisa e organizações na produção de soluções para os danos causados pela lama, além da elaboração de pesquisas e documentos que sirvam como base para a luta política. Saúde, Alimentação e Corpo - regenerar a saúde dos indivíduos para que então possam lutar por seus direitos. Resgatar as medicinas da floresta e os saberes de saúde tradicionais e nativos. Buscar alternativas seguras e prazerosas para alimentação e lazer. Yoga, meditação, alimentação verde. Pomadas terapêuticas, plantas da restinga.
Tecnologias Sociais, Cooperativas e Econômicas - regenerar nossa capacidade de criar de forma coletiva as soluções. Laboratórios de criação e gestão colaborativa de projetos são uma boa forma de Identificar, organizar e articular talentos, potenciais e recursos locais de forma eficiente e útil. Ainda há muita coisa pra ser feita, mas “Estamos Juntos, Estamos Vivos E Somos Muitos” para regenerar a bacia do Rio Doce. Acreditamos que a maior tragédia socioambiental do país merece o maior movimento coletivo de regeneração!
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Fotos: Acervo da Família
Dona Hilda vive Por aqueles que não esqueceram Hilda Pessanha Com o apoio de Daniela Felix
Cabocla, costureira, artesã, curandeira, cabruca, lavradora, ativista, guerreira. De Regência, da roça, do Congo, do Trio Fubica, da Festa de Caboclo Bernardo, do Valete de Ouro, do grupo da terceira idade. Filha, irmã, esposa, mãe de nove, avó de 13, bisavó de 19. Hilda Lourenço Pessanha ainda vive. Vive na memória da filha Sélia, que se enche de orgulho ao falar da mãe: - Ela era filha de caboclo, nasceu no dia 16 de junho de 1943. Gostava de plantar, de cozinhar com muito tempero. Nem sabiá comia pimenta igual a ela. Participava de todas as reuniões da comunidade. No dicionário dela não existia nada que fosse o contrário de positivo, e era muito mística. Estava cursando a EJA (Educação de Jovens e Adultos), mas acreditava que, para fazer o bem, não era necessário diploma. Vive na memória de Hauley, que admira a força de Hilda durante a enchente, em 2013: - Ninguém tinha coragem de atravessar a correnteza. Depois que Dona Hilda seguiu em frente, com a água batendo nos joelhos, todos foram atrás dela. Confiaram nos passos da cabocla que conhecia o Rio Doce como poucos conhecem. Vive na memória do cunhado Belmiro, que acredita no poder da reza e dos saberes medicinais de Hilda: - Uma vez, na roça, fui cortar uma galha de cacau, só que dei com tanta força que o facão pegou na minha perna, deixando um corte bem fundo. Dona Hilda pegou folha e seiva de bananeira, enrolou na minha perna e fez uma reza. Em menos de um dia, a ferida cicatrizou toda. Até hoje, a gente usa a seiva de bananeira quando se machuca. Hilda faleceu em março de 2016. Nas palavras de Sélia, ela se “rasgou” por causa da lama, pois se preocupava com a água do rio, que deixou de abastecer as casas e foi substituída pelo caminhão pipa; com os peixes mortos e doentes, que pararam de alimentar e gerar renda para a vila; e, ainda, com a terra, que se tornou infértil e perigosa para a saúde. Apegada às raízes da comunidade onde cresceu, Hilda entrou em depressão. Como não conseguiu o cartão auxílio, deu entrada em um processo na Defensoria Pública. Três dias depois, sofreu um infarto. Mas Dona Hilda ainda vive. Vive, em sua casa, na Avenida do Farol, 2, que foi transformada em memorial. É lá que estão guardados os utensílios para o manejo do cacau, o pilão para a produção de colorau a partir do urucum, os artesanatos feitos com materiais recicláveis, os fuxicos e os crochês. Os trajes e instrumentos usados nas festas de Congo e do clube carnavalesco Valete de Ouro. No quintal, estão as rosas, os chifres de veado e ervas medicinais, como cidreira e noni. Nas paredes, foram pintadas frases, músicas e símbolos, além de um coração que tenta reproduzir a ternura de quem vivia ali. Dessa forma, todos podem conhecer Hilda, que, certa vez, disse que transmitiria todo o seu conhecimento para a filha Sélia e não imaginava que esse legado se estenderia a tantas outras pessoas.
EDITORIAL “Toda a vida fui pescador, desde que meu pai me ensinou, quando eu tinha sete anos. Agora, meu barco tá aí, parado.” O barco parado de Arnoilton Pereira, atingido de Regência Augusta, Espírito Santo, ilustra a capa desta edição extra do Jornal A SIRENE - veículo de comunicação produzido por atingidos do rompimento da Barragem de Fundão de Mariana e de Barra Longa, Minas Gerais. O pescador considera que foi o primeiro a ter visto a lama chegar na região, pois testemunhou, no dia 20 de novembro de 2015, a mancha marrom de rejeitos avançar em direção ao mar. A lama da Samarco chegou mansa na Foz do Rio Doce. Lenta, mas, ainda sim, destruidora. Os rejeitos não tinham a força e a violência que, em Minas Gerais, devastaram comunidades inteiras, contudo, os impactos provocados pela contaminação do rio não foram menores para aqueles que vivem a tragédia a centenas de quilômetros de Fundão. Buscando ligar as duas pontas do crime de responsabilidade da Samarco, parte de nossa equipe seguiu o Rio Doce em direção ao mar, em julho deste ano. Saímos de Mariana até Regência para participarmos do Festival Regenera Rio Doce. Esta edição - distribuída em Mariana, Barra Longa e na Foz do Rio Doce - é resultado desse trabalho, fruto do desejo de comunicar os problemas enfrentados por atingidos de toda a bacia e de fazer ecoar a proatividade das ações de regeneração propostas no evento. Em relação a essas ações, destacamos, junto com os ativistas envolvidos na realização coletiva da iniciativa, a importância de se pensar a regeneração de toda bacia de forma ampla. Para que essa reparação seja possível, é importante considerarmos a amplitude da destruição e do sofrimento causado pelo desastre, buscando entender a complexa teia de relações que oferecem sentidos à existência do rio e das comunidades ribeirinhas. O gesto político do Festival Regenera ganha ainda mais importância quando se considera a irresponsabilidade da Samarco e da Fundação Renova ao não assumirem, verdadeiramente, um trabalho de reparação dos danos causados pelo rompimento. No Espírito Santo, a relação da empresa/fundação com os atingidos é ainda mais omissa do que aquela que testemunhamos, diariamente, nas dinâmicas movidas aqui em Mariana e em Barra Longa. Sem assessoria técnica e submetidos a um cadastro que não dá conta das privações impostas pela lama, os atingidos da Foz enfrentam difíceis quadros de desamparo e carências. O barco parado de Seu Arnoilton representa um pouco disso tudo. Ele diz da possibilidade de, um dia, se encher de peixes frescos e saudáveis. E, parado, fala do impedimento desse mesmo desejo. Acreditamos que essa imagem traduza a memória, a tristeza e a esperança de muitos atingidos, que, há quase dois anos, perderam a relação econômica, cultural e espiritual com as águas doces do rio. Rio Doce Ó, meu Rio Doce todo esse tempo pensei em ti. Culpa da Samarco que tirou você de mim. Com sua fauna e flora e sua biodiversidade de peixes um dia voltará. Acredito que Deus irá te abençoar e com sua enorme força todos irão voltar a pescar. Luiza Santos Peçanha 7º ano - EEEFM Vila Regência