A Sirene - Ed. 17 (Agosto)

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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER | Ano 2 - Edição 17 - Agosto de 2017


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A SIRENE

Agosto de 2017 Mariana - MG

PARA NÃO ESQUECER

Após 20 meses da tragédia e sem projeto definitivo para a reconstrução de suas casas, os moradores das comunidades atingidas de Mariana protestaram, no dia 14 de julho, na rodovia que dá acesso à sede da Samarco, no município. Em Barra Longa, atingidos também se manifestaram denunciando o crime nos tapumes colocados pela mineradora no Parque de Exposição da cidade. Aqui, eles explicam porque todas essas manifestações são legítimas. Foto: Gabriela Lima

PARA QUE HAJA MAIS RESPEITO CONOSCO

A manifestação é a maneira mais evidente do atingido adquirir seus direitos e lutar por justiça. O nosso objetivo era divulgar a insatisfação de todos, reivindicar que o processo seja mais rápido e que as pessoas sejam respeitadas. Esse ato surgiu na organização do povo da roça, mas teve participação de pessoas do Bento e de Paracatu de Baixo. Agora, a semente está plantada e germinando. Marino D’Angelo, atingido de Paracatu de Cima PARA MOSTRAR NOSSA INSATISFAÇÃO

Manifestar é um direito nosso, porque a gente não está vendo resultado nenhum quando se trata de nos colocarem na vida que tínhamos antes. Se o povo ficar parado, não vamos ter o nosso lar tão cedo. Então, é importante os atingidos se manifestarem sim, para a empresa perceber que nós estamos insatisfeitos com o ocorrido. Lilica, atingida de Ponte do Gama PARA LUTAR POR MINHA MÃE E TODOS OS ATINGIDOS

Estávamos nos sentindo isolados, porque todas as reuniões que a gente ia ninguém falava nada de Pedras. A gente decidiu se reunir para que todos participassem e pudessem falar o que perderam. Junto com o MAB, mandamos um ofício para a Samarco pedindo uma reunião, mas eles disseram que só fariam reunião com a Comissão dos Atingidos. Aí combinamos de fazer a manifestação para que a gente pudesse falar com alguém da empresa. Só que a polícia chegou, muito agressiva, com spray de pimenta. Eu fiquei bem nervosa, nunca tinha passado por isso, só via na televisão. Não somos vagabundos, a gente só está correndo atrás dos nossos direitos. Eu vou lutar, se a empresa está pensando que ela vai cansar a gente, eu vou à luta, porque tenho fé em Deus. Marlene Agostina, atingida de Pedras

Expediente

PARA FORTALECER NOSSA LUTA

Mesmo eu sendo contra a paralisação da rodovia, o protesto é uma das formas de mostrar que a gente não está satisfeito com a atual situação de depender do salário da empresa para sobreviver. O que a gente luta é para que ela devolva tudo o que perdemos e que garanta a reconstrução das nossas casas o mais rápido possível. Queremos também que sejam incluídas as pessoas que, atualmente, não são reconhecidas como atingidas. Vejo a manifestação como um ato para fortalecer nossa luta, pois mexe com a imagem das empresas e seus lucros. Kaé, atingido de Bento Rodrigues PARA DENUNCIAR O RACISMO AMBIENTAL

Os moradores do Parque de Exposição de Barra Longa, há 20 meses, convivem com a lama do rompimento da Barragem de Fundão, que foi retirada da praça de Barra Longa e depositada no parque, atingindo oito famílias que ali residem há mais de 60 anos. Desde então, essas pessoas tiveram que se relacionar com estranhos e com o trânsito intenso de caminhões e de máquinas, que ceifaram a liberdade deles e de seus animais. Bombardeados com a poeira, o barulho e o odor insuportável, e após inúmeras tentativas de acordo, os moradores protestaram nos tapumes que arbitrariamente foram colocados em volta do Parque pela Samarco e cuja única intenção era a de esconder o segundo crime que ela comete contra aquele povo: transformar o quintal

deles em um depósito ilegal de rejeito. Porém, mais uma vez, os atingidos foram reprimidos com a atitude da mineradora, que rapidamente apagou os dizeres dos manifestantes. Sérgio Papagaio, atingido de Barra Longa PARA SAIRMOS VITORIOSOS DESSA LUTA

Nós, atingidos, temos que nos unir e lutar sempre. Não podemos cruzar os braços diante do primeiro que falar “não”. Muitos desistem no meio do caminho, porque, com a Renova/Samarco, só funciona através da pressão e da insistência. É muito importante que os atingidos vistam a camisa da luta e partam para a busca de seus direitos. É através dela que conseguiremos a vitória. Simone Silva, atingida de Barra Longa

Erramos

Na última edição, na reportagem “Paracatu que fica”, página 8 e 9, o jornal A SIRENE errou ao afirmar que o nome de Dona Benigna era Beniga.

ATENÇÃO! Não assine nada Se te pedirem para assinar qualquer documento, procure o Ministério Público ou a Comissão dos Atingidos. Em caso de dúvidas sobre o conteúdo, conte com a ajuda de um advogado ou qualquer outro especialista.

Realização: Atingidos pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana e Um Minuto de Sirene | Conselho Editorial: Milton Sena, Adelaide Dias, Angélica Peixoto, Ana Elisa Novais, Cristiano José Sales, Fernanda Tropia, Genival Pascoal, Lucimar Muniz, Manoel Marcos Muniz, Mônica dos Santos, Pe. Geraldo Martins, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Silvany Diniz, Simone Maria da Silva e Thiago Alves | Editor-chefe: Milton Sena | Jornalista responsável: Rafael Drumond | Editora de Arte: Silmara Filgueiras | Editor Multimídia: Flávio Ribeiro | Editora de Texto: Miriã Bonifácio | Editora de Vídeo: Daniela Feix | Reportagem e Fotografia: Carlos Paranhos, Genival Pascoal, Larissa Helena, Lucimar Muniz, Madalena Santos, Sergio Papagaio, Simone Maria da Silva e Wandeir Campos | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Agradecimentos: Antonio Junior (Alicate), Guilherme de Sá Meneghin (Promotor de Justiça - Titular da 2ª Promotoria de Justiça de Mariana) e Festival Regenera Rio Doce | Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Lucas de Godoy e Luiza Geoffroy | Tiragem: 2.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de ajustamento de conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministério Publico de Minas Gerais (2ª Promotoria de Justiça de Mariana).


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de e Direito

ntender

“Trata-se de um direito dos atingidos que possuíam veículos, a baixa no DETRAN/MG e o cancelamento de tributos, a partir do dia do desastre que produziu a destruição ou desaparecimento, sem qualquer custo adicional”

AÇÃO DO MP GARANTE CANCELAMENTO DE COBRANÇA DE TRIBUTOS DE VEÍCULOS Baixa dos veículos e cancelamento dos tributos de veículos atingidos pela lama da barragem de Fundão é o tema desta edição da coluna “Direito de Entender”. Ação do MP de Minas Gerais assegurou o cancelamento das cobranças e atingidos devem assinar, dentro do prazo de 1 (um) ano, declaração na Promotoria de Justiça de Mariana, informando a destruição ou o desaparecimento do veículo. Guilherme de Sá Meneghin Promotor de Justiça

Em decorrência do rompimento da barragem de Fundão, da mineradora Samarco, diversos veículos – automóveis, motocicletas, caminhões e outros – foram destruídos ou desapareceram no mar de lama que se seguiu ao colapso da estrutura. Mesmo diante da tragédia, os proprietários dos veículos não conseguiram dar baixa no DETRAN/MG pela dificuldade de “provar” o desaparecimento ou a inutilização total do veículo e continuaram a ser cobrados pelos tributos relacionados à propriedade dos veículos: Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), Taxa de Licenciamento (TL) e Seguro do Trânsito (DPVAT). Por outro lado, a Samarco, responsável pela destruição, negou-se a tomar qualquer providência para evitar a situação. Estas exigências, porém, são indevidas. O artigo 7º, inciso IX, do Decreto Estadual n. 43.709/2003 estabelece que “é isenta do IPVA a propriedade de veículo sinistrado com perda total, a partir da data da ocorrência do sinistro”. Em outras palavras, quando ocorre a destruição ou o desaparecimento do veículo, o Estado não podem mais cobrar IPVA, TL e DPVAT. Diante do impasse, que causava mais prejuízos aos atingidos, o Ministério Público de Minas Gerais, através da Promotoria de Justiça de Mariana, ajuizou Ação Civil Pública em face do DETRAN/MG (que é um órgão do Estado de Minas Gerais), Samarco, Vale, BHP e Renova. Como não foi possível um acordo inicial, o Ministério Público de Minas Gerais solicitou a suspensão imediata dos tributos, o que foi garantido pela Juíza na decisão liminar, até a solução do problema. Depois de longas tratativas, na audiência de conciliação do dia 25/07/2017, o Estado de Minas Gerais se comprometeu a dar baixa nos veículos junto ao DETRAN e cancelar todos os tributos cobrados a partir da data do desastre. Por sua vez, a Samarco e a Fundação Renova ficarão responsáveis pela destinação correta das carcaças encontradas. Assim, bastará aos proprietários dos veículos, dentro do prazo de 01 (um) ano, assinarem uma declaração na Promotoria de Justiça de Mariana, informando a destruição ou desaparecimento do veículo. Em seguida, toda a responsabilidade pela baixa dos veículos e cancelamento dos tributos será do Estado de Minas Gerais (DETRAN/MG). Além disso, os proprietários que pagaram regularmente IPVA do ano de 2015 poderão solicitar diretamente na Secretaria Estadual de Fazenda a restituição parcial do valor pago em 2015, referente aos meses de novembro e dezembro. Portanto, trata-se de um direito dos atingidos que possuíam veículos, a baixa no DETRAN/MG e o cancelamento de tributos, a partir do dia do desastre que produziu a destruição ou desaparecimento, sem qualquer custo adicional.

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Fotos Carlos Paranhos e Larissa Helena

Diagramação: Carlos Paranhos

Dia de feira

A Feira Noturna, projeto de iniciativa dos atingidos, tem como objetivo gerar renda para pequenos produtores de Mariana e proporcionar momentos de integração e lazer na cidade. Inaugurada no dia 6 de julho, sua realização, às quintas-feiras, vem gerando bons resultados para os feirantes e para o público que participa do evento. Por Dona Irene, Seu Zeninho, Milton Sena Com o apoio de Carlos Paranhos

Quinta-feira, 17 horas: a Feira Noturna está posta! Dona Irene e Zezinho do Bento, atingidos “dos antigos” - como gostam de se chamar -, montam a sua barraquinha ao lado do palco principal. “Tudo o que vendemos é fabricação da família. Trazemos de São Tiago, que fica a três horas daqui. Temos 21 variedades de biscoitos e vários artesanatos, mas pretendemos trazer mais coisa”, contam. Três tendas depois, Gisele Daman, moradora de Padre Viegas, distrito de Mariana, exibe bolos de maçã e brigadeiro de paçoca em sua barraca: “A expectativa é que o número de visitantes só aumente”. Três barraquinhas para o lado esquerdo e vemos Seu Valdir, produtor rural (ver página 4) que expõe lindas hortaliças, tão verdes quanto aquelas que nascem, sem dificuldade, em suas terras de Paracatu: “É uma iniciativa de primeira linha. Bom que eu conheço pessoas novas, que passam a conhecer minhas verduras”. A comunidade tem marcado presença na feira, tanto para jogar papo fora, quanto para experimentar as delícias disponíveis em cada uma das 30 tendas instaladas. O clima do local demonstra um pouco do modo de vida típico das localidades atingidas, que, em Mariana, buscam reviver, nesse espaço, antigos costumes e encontros que eram habituais em suas terras de origem. Assim como o Jornal A SIRENE, o time de Futebol Masculino e Feminino de Bento Rodrigues e o Programa de Educação e Direitos Humanos que envolve Barra Longa e o Rio Doce, a Feira Noturna é um projeto financiado pela Arquidiocese de Mariana com o fundo arrecadado a partir de doações feitas à entidade em virtude do rompimento da Barragem de Fundão. Por meio do Termo de Ajuste de Conduta (TAC), o Ministério Pú-

blico fiscaliza os repasses destinados a cada projeto. “Nosso desejo é que esse projeto signifique bênção para seus idealizadores, progresso para nossa região e realização para os(as) expositores(as)”, afirma Padre Geraldo Martins Dias, coordenador arquidiocesano de Pastoral de Mariana. Para cada edição, é cobrado um valor simbólico dos feirantes, de 10 reais, revertido tanto para a manutenção das tendas, quanto para o pagamento do lanche dos músicos que se apresentam no evento. “Apesar dos pesares, queríamos colocar a feira na rua e conseguimos”, afirma Milton Sena, presidente da Comissão da Feira Noturna de Mariana. Segundo o atingido de Ponte do Gama, o projeto enfrentou oposição. “Batemos de frente com uma Lei da Feira da Prefeitura Municipal de Mariana, que cobra uma taxa que não poderíamos pagar. Conseguimos a isenção através do vereador Fernando Sampaio, que elaborou uma lei específica para a Feira Noturna de Mariana. Ainda assim, enquanto a feira estava em discussão na Câmara Municipal, enfrentamos resistência por parte de alguns vereadores”, continua. Por outro lado, ainda de acordo com Seu Milton, o apoio da Prefeitura foi importante: “Eles têm nos dado o apoio necessário, como transporte, som, banheiros químicos, energia, dentre outros”. Quinta-feira, 22 horas: a Feira Noturna começa a ser desmontada. Percebemos o sorriso no semblante dos feirantes. Nem todas as mercadorias foram vendidas, mas a resposta é positiva. “Venho todas as quintas e pretendo vir nas outras. O espaço é bem agradável e aconchegante”, afirma Bruna Carvalho, enquanto degustava uma crepioca.


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Diagramação: Carlos Paranhos

Viva São Bento!

Julho é mês de São Bento. Momento de pedir a ele força para que nossa fé se mantenha indestrutível. Entre os dias 8 e 11, celebramos o padroeiro em Mariana e também homenageamos Dom Geraldo pelo seu jubileu e pelo apoio à comunidade. Nos dias 29 e 30, fomos para o nosso chão. Em meio às ruínas do vilarejo, encoberto pelo plantio de gramíneas e pelas alterações da paisagem feitas pela Samarco, revivemos as procissões da bandeira e da imagem do patriarca. Realizamos a missa nas ruínas da capela de São Bento, caprichosamente decorada, dando destaque ao altar como era. Fizemos queima de fogos, soamos o sino, nos emocionamos e clamamos por agilidade da justiça para conseguir o que é nosso por direito. Ao final, hasteamos a bandeira com a imagem do Santo e fomos todos nos confraternizar num bom forró. Por Cristiano Sales, Mônica Quintão, Maria Quintão e Simária Quintão Com o apoio de Carlos Paranhos e Lucimar Muniz

“Quero fazer um pedido: que todo ano as pessoas que estão aqui, e todas aquelas que não puderam vir, estejam presentes para celebrar o dia do nosso padroeiro São Bento, que nunca nos deixou sozinhos. Tenho fé, pela força do Senhor, que, um dia, irei te encontrar e te agradecer pessoalmente.”

Fotos: Carlos Paranhos

Atingidos de Bento Rodrigues em procissão com a Bandeira de São Bento

Cristiano Sales, atingido de BentoRodrigues, reponsável pela celebração festiva a São Bento

Moradores iluminam trajeto para a procissão da Bandeira do Padroeiro

ORAÇÃO A SÃO BENTO Ó Deus, Vós que Vos dignastes a derramar sobre o bem-aventurado confessor, o Patriarca São Bento, o espírito de todos os justos, concedei a nós, vossos servos e servas, a graça de nos revestirmos desse mesmo espírito para que possamos, com o Vosso auxílio, fielmente cumprir o que temos prometido. Por Jesus Cristo, Nosso Senhor, amém. Imagem de São Bento doada à comunidade por fiéis de São Paulo

Comunidade comemora seu padroeiro nas ruínas de sua Capela

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Ilustraçôes: Antonio Junior (Alicate)

A reconstrução dos subdistritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo segue incerta. Em novembro deste ano, a tragédia completará dois anos sem que as obras sejam iniciadas nos terrenos escolhidos pelas comunidades. Muitas são as razões dos atrasos e, por trás de todas elas, a incompetência da Fundação Renova/Samarco em gerir soluções céleres e eficientes para problemas previsíveis. Por Rafael Drumond Bento Rodrigues

QUESTÃO FUNDIÁRIA/ CARTORIAL DOS TERRENOS Até o momento, a Fundação Renova não possui nenhum terreno - nem de Bento, nem de Paracatu - registrado em seu nome.

APROVAÇÃO DO PROJETO URBANÍSTICO Tanto para o caso de Bento, quanto de Paracatu, a aprovação do Plano Urbanístico depende da alteração do Plano Diretor de Mariana LICENCIAMENTO AMBIENATAL Órgão responsável: SEMAD (Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável)

Gesteira

Paracatu de Baixo

• Escritura de compra e venda de Lavoura foi lavrada, mas o terreno ainda não está registrado em nome da Fundação Renova. • Para regularização da área, a proprietária das terras - a empresa ArcelorMittal precisaria movimentar um difícil e longo processo cartorial. • Como solução ao impasse, a Fundação fala em empreender, junto a Prefeitura de Mariana, um processo de desapropriação amigável das terras. A solução, possível, ainda não foi colocada em prática.

• Paracatu de Baixo será reassentada no terreno escolhido pela comunidade (Lucila) e em outras oito propriedades anexas. • Muitos dos terrenos dependem de regularização cartorial (registro de inventário, registro de compra e venda...). • A Fundação Renova informou que dos nove terrenos, quatro já foram adquiridos, quatro estão em processo final de negociação e apenas um (1) vinha oferecendo impasses à transação.

• Em julho deste ano, o projeto urbanístico para a comunidade foi reprovado pela Câmara Técnica de Infraestrutura instância que integra os trabalhos do Comitê Interfederativo que regula e fiscaliza a própria Fundação Renova. • O motivo da recusa do projeto é a desconsideração, por parte da Fundação, do tamanho mínimo dos lotes, em vista da declividade dos terrenos. • O projeto urbanístico deverá ser, em partes, refeito - tendo em vista o reassentamento da comunidade na porção mais baixa do terreno.

• Os moradores se recusaram a seguir na discussão do Projeto Urbanístico enquanto a Fundação Renova não efetuar a compra dos terrenos que abrigarão a comunidade. • O primeiro projeto urbanísti co de Paracatu não considerava toda a comunidade (cerca de 18 famílias atingidas não estavam incluídas) e mudava, radicalmente, a disposição espacial do subdistrito. As alterações realizadas no projeto original demandaram a compra de outros terrenos não escolhidos pela comunidade de Paracatu de Baixo.

Somente após o licenciamento ambiental, é que as obras nos terrenos, de fato, começam. Veja o que ainda está por vir:

Desmatamento

Movimento de terra

Loteamento e arruamento

O Licenciamento Ambiental dos terrenos só ocorre após a aprovação do Plano Urbanístico e o registro das propriedades, em cartório, pela Fundação Renova. Nenhum desses processos encontra-se em vias de conclusão. Esse licenciamento levará em conta questões como a movimentação de terras, a área a ser desmatada, a qualidade das águas (subterrânea e superficial), entre outros. Até o momento, os estudos ambientais já realizados nos terrenos foram conduzidos pela própria Fundação Renova, o que é fator de preocupação em vista da insuficiência de outros pareceres apressados emitidos pela entidade.

A comunidade de Gesteira, distrito de Barra Longa, também será reassentada. Hoje, seus moradores vivem em casas provisórias, distribuídas entre Barra Longa, Acaiaca e Mariana. O terreno para o reassentamento já foi escolhido pela comunidade e seu proprietário manifestou interesse público na venda das terras - o contrário do que alega a Fundação Renova. Até o momento, a Fundação não fez nada para garantir o reassentamento da comunidade. Segundo ela, aguarda-se o início das atividades da assessoria técnica da AEDAS na cidade. Enquanto isso não ocorre, os atingidos de Gesteira amargam, sem notícias, a espera pelo retorno à vida comunitária típica do distrito.

Obras


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Por Maria Auxiliadora, Vicente Celestino e Terezinha de Jesus Com o apoio de Genival Pascoal, Isabella Walter e Miriã Bonifácio

Os engenheiros e arquitetos que o desculpem, mas Vicente Celestino Arcanjo, 53 anos, morador de Paracatu de Cima, não inveja nenhum deles. Palavras suas. Foi Vicente quem ergueu a moradia de sua irmã, Maria Auxiliadora, assim como a casa onde mora. Infelizmente, a casa de Maria recebeu lama até a altura das janelas. Desde então, o trabalho de 42 anos, dela e do irmão, foi perdido. “A gente faz assim: na medida que vai comprando, vai fazendo. Vai nascendo filho, vai crescendo quarto. Aos poucos”, relembra Vicente. Ultimamente, Maria anda abatida. Recebeu um projeto de reconstrução da sua casa que tem lhe dado tanta dor de cabeça quanto as idas e vindas entre Mariana e Paracatu. “Primeiro, vieram com um projeto todo errado. Briguei demais. Mandamos voltar, eu e meus filhos. Era porta abrindo em cima de janela. Agora tá nessa história de derrubar a minha casa pra fazer o acesso para a nova por

cima da antiga. Isso eu não vou aceitar. Ninguém vai derrubar a minha casa enquanto eu não ver a nova de pé”, disse Maria, com braveza. Para Vicente, o motivo para quererem derrubar a casa da irmã é “não fazer vista para quem passa”: “Ela fica ali de frente. Todo mundo que vê, tira foto, fica chocado com a destruição”. Na teoria, a casa da atingida de Paracatu de Cima é uma das mais fáceis de ser reconstruída, já que, apesar do rejeito, a estrutura permanece intacta. “É só olhar e fazer o desenho.” E, também, porque o terreno onde será feita a nova moradia pertence à própria Maria e fica localizado alguns metros acima da casa invadida pela lama. Só que, na prática, a tratativa de negociação está praticamente parada, na frieza da burocracia e na insuficiência de diálogo entre as vítimas do rompimento e a Fundação Renova/Samarco. É por causa dos erros frequentes apresentados pela Renova/Samarco que vem nascendo, entre os moradores da zona rural, um sentimento cada vez mais forte de que eles próprios devem reconstruir suas vidas. Veja o caso de Deco e Maria Helena, moradores de Barretos, em Barra Longa, que entregaram a reforma da casa deles nas mãos da empreiteira contratada pela fundação/empres a .

Eles contam que o estrago do rejeito nem foi tão grande quando comparado ao desmazelo das obras realizadas. “Eles vêm aí, batem pedras sem necessidade nenhuma e trincam a casa toda. O engenheiro que mexeu aqui, eu falei com ele: ‘Você é engenheiro no papel, na terra você não sabe, não’. Como que vai fazer um paiol que era de telhado capacangaia com um lado de 3 metros e outro de 2 e alguma coisa? Daquele jeito, eu não queria”. A vontade do casal não é só por telhado capa de cangaia. Assim como Maria Auxiliadora, desejam, sobretudo, autonomia para estarem perto ou poderem influenciar diretamente nas decisões que dizem sobre o lugar onde vão viver. Essa opção não exclui a possibilidade dos atingidos contarem com orientações técnicas, mas os colocam no centro daquilo que, culturalmente, já estão acostumados a fazer. Autoconstruir, como pensa Vicente, é ter a chance de escolher o que há de melhor para si mesmo. Trata-se de um respeito à individualidade de cada morador e às particularidades da construção de cada casa que irá ser refeita ou reformada; de um poder de gerência dos atingidos sobre os processos de reconstrução de suas moradias - o que, importante lembrar, não implica na desresponsabilização da empresa pelos danos por ela causados.

Maria Auxiliadora e sua mãe Terezinha de jesus desenhadas à frente da moradia atingida

Dos subdistritos atingidos na zona rural de Mariana, Ponte do Gama, Borba, Pedras, Paracatu de Cima e Campinas, 26 famílias constam no Plano de Reparação da empresa. Para quem vive na região, esse número não condiz com a quantidade de famílias atingidas, inclusive as que foram removidas pela Defesa Civil. Dentre as 26, somente 10 concordaram com os projetos de reconstrução ou reformas apresentados. As outras 16 ainda não foram atendidas, pois os casos envolvem compras de outros terrenos.


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Ser da roça Por Madalena Santos

Ser da roça é sofrer preconceito no primeiro dia de aula. É ouvir perguntas que não fazem sentido. É ver pessoas fazendo comparações sem pé, nem cabeça. É ver o nome do lugar onde você mora servindo de piada. Isso acontece por conta do pensamento de quem não sabe o real sentido do que é ser da roça. Para esses, vou explicar que morar na roça é uma das melhores riquezas que eu tenho. Para quem não me conhece, eu sou Madalena Santos, moradora de Ponte do Gama, um dos melhores lugares que existem. Para mim, é um cantinho do céu e abrigo. O Gama é uma roça, e é um prazer imenso poder carregar comigo essa marca. Porque ser da roça é acordar de manhã com o cantar do galo, é ver um monte de passarinhos voando e assistir um beija-flor saindo do galho de rosa e sacudindo o sereno que caiu da noite passada. É presenciar a melhor coreografia entre o vento e as folhas do pé de aurora, naquele balanço tão lindo e calmo. É ter um ar tão puro, tão puro e a liberdade de andar descalça pela estrada. E quando a noite chega, trazendo com ela um sentimento de solidão, o silêncio é tão grande que, às vezes, o sono nem chega. Mas aí é só sair e olhar pra cima, ver o céu todo estrelado, que as tristezas e o cansaço vão embora. O bom da noite é quando a luz acaba, todos se juntam em volta do fogão à lenha para escutar o pai contar belas histórias, algumas de arrepiar e outras de fazer rir. Ser da roça também traz um monte de responsabilidade e a primeira é nunca fugir do serviço. É enfrentar de frente. Trabalhar e mostrar que ninguém vai para frente passando o outro pra trás. É saber ir, mas também voltar, sem deixar de lado suas raízes. A cada dificuldade, lutar para vencer sem perder a fé. É… Ser da roça é dar valor para as coisas simples da vida e ter a certeza que dinheiro nenhum é capaz de pagar a riqueza que carregamos, principalmente os ensinamentos. Um deles é o da minha mãe, Dona Lourdes, que sempre fala com os meus irmãos e comigo: “Meus, filhos, é de manhã cedo que começa o dia”. Sim, morar na roça é passar por vários perrengues, um mais pesado que o outro. Mas, no fim das contas é superá-los e dar graças a Deus por mais uma dificuldade vencida. Por um sorriso no rosto e continuar vivendo. E uma coisa eu falo com toda honestidade do mundo: morar na roça é bão demais.

A gente explica “O que a gente olha na roça é o entender. Às vezes as palavras saem errado, mas dá pra entender” Kaé - Atingido de Bento Rodrigues

Candieiro: 1. Quem guia a boiada para arar a terra. Tropa: 1. Burro. Boiadeiro: 1. Quem leva os bois para vender em outro local. Criação: 1. É tudo o que agente cria 2. Porco 3. Galinha 4. Cavalo 5.Vaca. Ir para a roça (para quem é da roça): significa plantar. Ir para roça (para quem é da cidade): 1. Significa lazer 2. Tranquilidade. Apertar o santo deles: 1. É pressionar a empresa 2. Exigir direitos. Acender fogo: 1. Por lenha no fogão. Roçar: 1. Capinar. Paiol: 1. Lugar onde a gente guarda alimentação. Bonde: 1. É andar um do lado do outro (de casal). Pessoa dada: 1. Aquela que te oferece bolo e café 2. Contrário de miserável. Enxerido: 1. Bisbilhoteiro.


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Fotos: Larissa Helena

A roça, com seus costumes, hábitos, tranquilidade, foi atingida pela lama. Quando pensamos nas comunidades que receberam rejeito, temos que considerar o modo de vida desses lugares interioranos, pequenos, rurais, de relação próxima com a natureza e com os bichos. Os problemas que o rompimento da barragem trouxe para essas pessoas são grandes e interferem exatamente sobre essas práticas de “ser da roça”. Para se voltar à vida como era, antes de tudo, é preciso respeito. Por Clodoardo Cerceau, Daniela Castro, José Jair dos Santos, Maria Carmo D’Angelo, Maria de Fatima Tavares, Maria Helena Com Apoio de Miriã Bonifácio e Wandeir Campos

Nas regiões atingidas, as estradas estão ameaçadas pelo excesso de veículos pesados e alteração das rotas. A passagem dos automóveis, incomum antes da lama, é responsável por levar sujeira e problemas respiratórios para dentro das moradias dos atingidos. As sirenes, que foram fixadas como medida obrigatória de segurança após o rompimento, também são motivo de preocupação. Além da interferência que elas causam na rede telefônica, algumas foram saqueadas e trazem insegurança para quem depende desse alerta para se sentir seguro. Com a passagem da lama, os atingidos da roça também perderam o abastecimento de água que vinha do rio Gualaxo do Norte. Agora, precisam criar alternativas de captação ou depender do caminhão pipa que passa sem frequência definida. Com tudo isso, o quadro de saúde de muitos deles está fragilizado. Como o posto de referência da região, que ficava em Paracatu de Baixo, não existe mais, eles, ainda, precisam enfrentar questões de mobilidade para terem o direito ao atendimento em saúde garantido. Os animais também dão sinais de que não se adaptaram à essa vida e que so-

frem sem o pasto e a baixada do rio. As marcas da tragédia fazem parte do cotidiano dessas pessoas que, diariamente, lutam para continuar sendo o que sempre foram. Nossas estradas, nossos caminhos “Aqui na roça não era comum ter esse volume de caminhões e máquinas toda hora. A poeira que sobe atrapalha a gente até de respirar, além de sujar nossa casa inteira. O que pedimos é para que eles passem com um caminhão pipa para dar jeito na poeira. Mas nem isso acontece do modo que pedimos.” Daniela Castro - atingida de Barretos, em Barra Longa “A estrada foi alargada, a poeira da lama é muito fina e a empresa não joga água para amenizar o levante dela. A poeira que vem do minério é diferente da que a gente tinha. A passagem dos carros grandes gerou buracos nas estradas. Além disso, a empresa plantou alguns matos que eles chamam de leguminosas e que invadem nossas estradas e temos que limpar, não oferecem manutenção nem pra isso.” Clodoardo Cerceau - atingido de Pedras.

A sirene “É certeza que quando a luz da sirene apaga, os celulares da gente volta a pegar sinal. Nós enviamos um ofício para a empresa pedindo para que resolvessem o problema e alegaram que é uma questão da operadora com o usuário, porém não apresentaram provas que a sirene não é a causadora dessa interferência, continuaram sem oferecer respostas convincentes para nós que somos atingidos.” Maria Carmo D’Angelo atingida de Paracatu de Cima Água, nosso bem maior “A morte do rio afetou a comunidade demais, né. Porque os bois bebiam água do rio e agora nenhum animal bebe mais. Além da água para as nossas criações, a falta dela afeta na vida dentro da casa da gente, para lavar as vasilhas e até para tomar banho. Nossa água vem da mina, mas sempre quando faltava o rio é que sustentava nós”. José Jair dos Santos, atingido de Ponte do Gama

Foto: Lucas de Godoy

“Antes a gente buscava água na capela ou até no rio mesmo e agora busca aonde? Prejudicaram a mim e todos moradores da comunidade de Ponte do Gama porque não temos mais as fontes, os rios que poderiam nos socorrer até as coisas normalizarem. O caminhão pipa está até levando água pra gente, mas sabemos que isso não vai resolver o problema” Maria de Fatima Tavares, atingida de Ponte do Gama Saúde em risco “Consulto pelo SUS (Sistema Único de Saúde) na Campina e na cidade de Mariana. Aqui, em Barra Longa, eu não posso. Alguns remédios eles não acham e acaba que eu tenho que comprar. Fui até pra casa da minha mãe em São Paulo, porque estava em tempo de dar um troço aqui na época que a lama veio. A cabeça da gente ficou muito ruim, é muita raiva que a gente passa todos os dias”. Maria Helena, moradora de Barretos


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Faça chuva, faça sol

POR LARISSA HELENA e Senhor Valdir

Ao passar pela porteira, o verde das muitas hortaliças que se agrupam nos canteiros chama atenção de quem chega. O cheiro é de terra molhada. Ao fundo, o barulho da água que jorra dos irrigadores e o som dos pássaros que passam pelo local. Nesse lugar, trabalham cinco mulheres - Arlinda, Maria Liberta, Leonidia, Maroca e Patrícia -, moradoras de Paracatu de Baixo, que aceitaram o convite de Seu Valdir para trabalharem na horta que ele mantém em sua propriedade. Para elas - que, hoje, vivem em residências temporárias na cidade de Mariana -, o projeto permite retomar, diariamente, o contato com Paracatu. É colocando a mão na terra que elas ocupam o tempo e fogem do cotidiano exaustivo. Se fizermos uma comparação entre a horta e essas mulheres, Maroca é a semente, trabalhadora mais velha que ensina todas as outras a germinar, inclusive na vida. Arlinda é como o gesto de plantar: graciosa, peculiar, generosa. Leonidia é guerreira igual ao pé de tomate, luta contra as pragas e o clima adverso, enquanto Maria Liberta colore de verde e apazigua a horta feito os pés de alface. Finalmente, Patrícia, a mais nova, é a água que rega e motiva o crescimento de todas as outras, o olhar para o futuro. Seu Valdir deixa seu convite para todos irem conhecer a horta, que é logo ali, em uma daquelas porteiras que ainda ficam na beira do rio.


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A SIRENE

PARA NÃO ESQUECER

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Foto: Daniela Felix

Especial: Foz do Rio Doce

No dia 14 de julho, o Jornal A SIRENE saiu de sua sede, em Mariana, e cruzou Minas Gerais, seguindo os rastros da lama em direção à Foz do Rio Doce, na região costeira do Espírito Santo. Este especial apresenta algumas histórias compartilhadas pelos atingidos de lá durante a oficina “Comunicação e Mídias livres”, ministrada por parte da equipe do jornal no contexto do “Festival Regenera Rio Doce”. Em Regência, é o dia 20 que marca a chegada da lama ao mar - data na qual, no mês de agosto, o Jornal A SIRENE lançará um especial contando mais sobre a experiência de nossos repórteres e a difícil situação dos atingidos que vivem na região. Afinal, quase dois anos após a tragédia, como os atingidos da região de Linhares (ES) estão vivendo? O que eles têm enfrentado? Quais suas perspectivas de futuro? Regenera rio doce Por Sergio Papagaio

Ali onde o Doce se liga ao mar, parece o oceano querer falar. Dizer ao povo todo que aqui chegar, das tristezas que o Doce trouxe de lá. Dizer do desespero do pescador que não pode mais pescar. A lama da Samarco o peixe fez contaminar, o trabalho dos comerciantes não dá mais para continuar. O turista que aqui vinha banhar, a lama fez questão de afugentar. E estas pousadas fechadas, para quem eram alugadas? Para o povo do surf e toda essa rapaziada. Ouçam o rio chorando a tristeza. A saudade e a solidão dessas águas que eram um campo de peixe, onde os pescadores colhiam, no ritual da sobrevivência, o pescado para saciar a fome ou para a venda no mercado. Mas um dia, em um decreto de barro, o ofício de pescador dessa gente foi revogado. E estes barcos enferrujados? Para os turistas eram sempre alugados. E o seu bar está fechado? Não é meu, é de minha mulher, cadê ela? Tá dentro de casa, sempre a chorar, pois os meninos querem um simples pedaço de doce, e ela não pode comprar. Mas, o cartão da Samarco, vocês chegaram a conquistar? Pra nós, eles não quiseram entregar. Em casa, sem trabalho, a cabeça dessa gente começa a pirar. Se sair pra pegar peixe, o Ibama toma a rede, leva o barco e o pescado. E, ainda, o pescador é preso e algemado. A Samarco fez o crime e é o pescador quem na cadeia vai pagar, se tentar a fome dos filhos saciar. Quantos dos responsáveis pelas 19 vidas ceifadas e daquela que não chegou a ser consumada, além do ecossistema detonado, quantos foram condenados? Agora, com a pousada fechada, o comércio parado, a rede e o barco confiscados, se for preso por trabalhar, quem de nossos filhos e filhas hão de tratar? Sem dinheiro, tendo que até água comprar, para a sede física matar. E a nossa sede de justiça quando vão saciar? E o Doce deixará quando de amargar?


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Somos atingidos, sim! Ainda que cada atingido sofra, a seu modo, as ausências e o duro presente impostos pela lama, muitas são as dificuldades compartilhadas pelos moradores da região. É uma história partilhada entre todos, cada um com o pedaço que lhe cabe. É a história dos pescadores da região, que, agora, deixam suas redes de pesca em casa e investem na criação de peixes em cativeiro. É a história daqueles que buscam, em tanques, um reencontro, mesmo que precário, com a água do rio e do mar. É a história dos agricultores que, em terras ainda com lama, deixaram de colher cacau com abundância. É a história que se repete com os comerciantes que têm dificuldades para tocar seus negócios e para as pousadas que, ausentes de turistas, fecham suas portas. Essa é a história de todos os atingidos que preencheram o “tal cadastro”, mas que ainda não receberam retorno da empresa. É a mesma história para os muitos atingidos da Foz do Rio Doce.

Por Atingidos de Areal,Entre Rios e Regência Augusta Com apoio de Daniela Felix e Silmara Filgueiras

Arnoilton Pereira, atingido de Regência Augusta

Fui o primeiro a ver a lama chegando em Regência, estava no rio com meu barco. Se você vier aqui em dezembro, janeiro, que chove mais, vai ver que a lama continua descendo pra cá, e a que tá no fundo sobe, fica tudo sujo. Antes aqui tinha todo tipo de peixe: de água doce, salgada, de clima frio, quente, de todas as fases da Lua. Toda a vida fui pescador, desde que meu pai me ensinou, quando eu tinha sete anos. Agora, meu barco tá aí, parado. Recebo o cartão auxílio, mas o dinheiro não chega nem perto do que eu ganhava vendendo peixe. Arnoilton Pereira, atingido de Regência Augusta Em Areal, nossa história é uma só: estamos praticamente desabrigados, porque não levamos mais a vida que tínhamos. A destruição começou em Minas Gerais e chegou até aqui. Pra todo mundo que vem pra cá, eu pergunto se o nosso rio vai voltar ao normal ou vai ficar assim pra sempre. Até hoje ninguém soube me responder. Como vamos viver sem o nosso Rio Doce, sem as lagoas, sem o cacau, sem o peixe, sem trabalho? Nós somos, sim, atingidos. E muito! Primeiro, por esses dutos da Petrobras, depois, pela lama da Samarco. A gente nunca ganhou nada, só nos deixaram a saudade e o medo de Areal acabar de vez. Ziza de Oliveira Alves, atingida de Areal Redes penduradas Eles falam que não pode mais pescar, então têm que deixar a rede em casa mesmo. Isso complicou muito a gente, dependíamos muito do rio e agora não podemos pescar. Tecia redes para vender, mas hoje está difícil… Agora faço rede para passar o tempo. Faço as redes e guardo elas. Darci Ivo, atingido de Regência Augusta Antes esse rio ficava cheinho de gente se divertindo, nadando. Hoje já não se vê mais ninguém. O rio servia pra tudo. Agora a Samarco manda o caminhão pipa, mas a água não dá pra tudo. Não planto mais porque não sobra pra irrigação. Meu marido recebeu o cartão auxílio, mas não é suficiente. As redes de pesca dele estão aí paradas apodrecendo. Carmen dos Santos, atingida de Entre Rios

Ziza de Oliveira Alves, atingida de Areal


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Sustento que não vem do mar Antes, a gente comprava a rede e buscava o peixe no mar. Hoje, a gente vai ter que sair de casa todo dia para cuidar dos peixes que criaremos. Vamos colocar o peixe aqui, cuidar. Quando eles estiverem no ponto de abate, vamos tirar dos tanques. Esse acidente que houve foi o mesmo que cortar os meus braços e as minhas pernas. Estou com meu barco parado lá no porto e também minhas ferramentas de pesca há quase dois anos. Leônidas Carlos, atingido de Regência Augusta Economia sem movimento O dinheiro circula pouco aqui em Regência. Algumas pessoas que receberam o cartão da Renova têm que ir até Linhares para fazer o saque, porque aqui não tem um caixa eletrônico. Já enviamos vários ofícios para a empresa para trazer um caixa eletrônico pra cá, mas eles responderam que teríamos que arcar com os custos da vigilância. Antes da chegada da lama, eu tinha lucro, agora, todo mês, eu tenho prejuízo. Todos os dias eu penso se devo vir trabalhar, mas, se eu fechar, eu perco a oportunidade de vender o meu estoque. É complicado! Às vezes, eu não compro mais mercadorias, porque não vendo e, se não vendo, é porque não compro. André Luiz Machado, atingido de Regência Augusta

Carmen dos Santos, atingida de Entre Rios

Moro aqui há 32 anos. Minha pousada é a primeira de Regência, vivia cheia. Agora não tem mais nada aqui. Nas férias desse ano não hospedei ninguém, só recebo gente que vem pra cá por causa da tragédia ou pra prestar serviço pra Renova. O dinheiro que recebo pelo cartão auxílio não dá nem pra pagar a energia daqui, todo mês tomo prejuízo. O pior é que dizem que só vai melhorar daqui a uns 15, 20 anos. Onde a lama passou, ela acabou com tudo. Maria das Graças, atingida de Regência Augusta

Leônidas Carlos, atingido de Regência Augusta

Sem respostas Não entendo o que é esse formulário, o tal do cadastro. Preenchi em dezembro e até hoje não recebi auxílio nenhum. Querem que a gente prove que é atingido, mas eu nunca tive carteirinha de pesca. Era marisqueira, limpava muito camarão, também trabalhava na roça. Em Regência, tinha muita fartura. Agora é desemprego pra todo lado. Tem que comprar água, peixe, não dá mais pra plantar. Subiu o preço de tudo. Não ter uma carne pra botar no prato de comida é triste. Nelma Flores, atingida de Regência Augusta Não adianta esperar pela Samarco. Ninguém vai ajudar a gente. Fiz o cadastro tem três meses e, até agora, nada. Só enrolam. A Renova fica prometendo que vai contratar gente daqui pra trabalhar nas empreiteiras. E, mesmo assim, é trabalho de apenas dois, três meses. Meu marido teve que ir buscar emprego em outra cidade. Enquanto isso, aqui em casa, a gente gasta boa parte do dinheiro pra comprar água pra beber. Se a gente toma essa água que a Samarco manda pelo caminhão pipa, passa mal. Sonia Pereira, atingida de Regência Augusta

Darci Ivo, atingido de Regência Augusta Fotos: Daniela felix

Nelma Flores, atingida de Regência Augusta


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foto: Daniela Felix

Papo de Cumadres: Festival Regenera Rio Doce Por Sergio Papagaio

Consebida e Clemilda, encantadas com o convite para o Festival Regenera Rio Doce, na vila de Regência, bem perto do mar, e na comunidade dos botocudos, povos ancestrais, chamada Areal. Clemilda diz: - Consebida, e aí, cumadre, nois vai pra Regência participá do festivá? - Claro, nois precisa levar o Jorná A SIRENE até lá e trazer de lá as notícia pro povo de cá. - Cumadre, amanhã bem cedo nois pode zarpar e uma parte do caminho da lama nois vai acompanhá pámode intender o que o povo sofreu e ainda sofre por lá. - Cumadi, quem vai guiar o carro pá nois em Regência poder chegá? - Com cumpadre Zé Dias acabei de combiná, ele também foi convidado e tá muito imporgado, pois a história de seus ancestrais ele vai levantá. - Como assim? Tô curiosa que só. - Ele é filho de índios, sua mãe era butucuda e seu pai pataxó. - Que coisa, ó. No sábado, 14 de julho, bem cedo, os três saíram de Barra Longa-MG com destino à Regência-ES. - Cumadre, quando saí de Barra Longa era a viage dos sonho, mas, ao passá pelo caminho e compreendê o que a lama fez com o nosso Estado vizinho, chego a ter medo de que essa seja a viage do pesadelo. - Comassim, cumá Clemilda? Isso me deixa até assustada. - Se avexe não, cê ainda não viu nada. Conversei com a dona da pousada e ela me disse que está quebrada, sem dinheiro até pá pagá as moça que, com ela, trabaiava. Depois que a lama de Fundão o Watu matou e os turista afugentô. - Conversei com aquele moço que parece o Malaquia, e ele me contou dos peixe que vendia e dos barco que alugava. Os barco tá tudo enferrujado, ô, pecadu. E os pano de pesca já tá podre e tudo rasgado. - A vida desse povo tá tudo invertida, se for pego pescandu, a rede, o IBAMA vai tomando e pode até prender o moço que tá trabaianu. Diz que o peixe contaminação tá causandu no sê humanu. - Acho muito estranho, divia prendê quem causou todo os danu: matô rio, matô bicho e matô gente, e ainda de todo jeito muita gente eles ainda tão matandu. - E os cartão pra uma boa parte da população estão negandu. Na reunião em Regência, onde vi o povo contandu, se tivesse de oio fechado achava que era o povo de Mariana, ou da Barra, ou de Rio Doce, ou de Santa Cruz que tava falandu. Os direitu que eles nega nesse lugar que eu tava falanu, no Espírito Santo também tão neganu. - E pros povos indígenas com seus custume ancestrá? - Eles não tão nem aí, quer que vai tudo se daná... O trabaio que os português começô continua do mesmo jeitu, os índio pra nois é sujeito, pra ês, é só rejeito.


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AGENDA DE AGOSTO

TODA SEGUNDA Reunião Interna da Comissão dos Atingidos Horário: 18h Local: Escritório dos Atingidos

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Roda de conversa Fórum Acolher Horário: 18h Local: Igreja Católica bairro Colina

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12 Reunião Cadastro (Assessoria e atingidos) Horário: 9h Local: Escritório da comissão

Audiência dique S4 Horário: 9h Local: Centro de Pastoral

2ª Aula da Turma de Bento e Paracatu Horário: 08h às 17h Local: Salão da Igreja do bairro Colina

Reunião Cadastro (Assessoria, atingidos, MP e Renova) Horário: 9h às 17h Local: Centro de Pastoral

9 Reunião do Cadastro (Assessoria e atingidos) Horário: 9h Local: Centro de Pastoral 3ª Aula da Turma da ComissãoCentro de Pastoral Reunião Interna da Comissão dos Atingidos Horário: 9h Local: Centro de Pastoral

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Reunião Cadastro (Assessoria, atingidos, MP e Renova) Horário: 9h às 17h Local: Centro de Pastoral

2º aula da Turma da Zona Rural Horário: 09h às 17h Local: Centro Comunitário de Águas Claras

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Nota de repúdio 26 de julho Foram publicadas no Diário Oficial da União as medidas provisórias 789, 790 e 791 As Medidas Provisórias alteram o marco legal da Mineração Nacional. Atualmente, tramitam para análises das comissões mistas de deputados e senadores. Posteriormente, passarão por votações nos plenários da Câmara dos Deputados e do Senado. Essas mudanças nos preocupam, pois entendemos que alterar o Código da Mineração com proposta de crescimento de 2% do PIB, por meio da promoção do aumento da fragilidade da fiscalização do Estado, favorece que novos desastres, como o que vivenciamos, voltem a ocorrer num curto espaço de tempo. Com essa preocupação, nos somamos às diversas instituições nacionais e internacionais que assinam a nota redigida pelo Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração e fazem pressão contra tais medidas. Seja você mais um a endossar essa campanha. Envie e-mail para: emporiodasideias@gmail.com

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Editorial As dúvidas que fazem de nós, muitas mais vezes, atingidas e atingidos. Quantas vezes mais vamos precisar ir e vir nos projetos de nossa reconstrução? Por quanto tempo teremos que brigar até conseguirmos comprar nossos terrenos? Por que tantas burocracias para adquiri-los, se, quando é do verdadeiro interesse da empresa, não há tantas complicações? Quantas reuniões serão necessárias para conseguirmos realizar a reformulação do cadastro? Quantas questões conseguiremos resolver sem precisar aguardar respostas que não chegam, consultas que parecem jamais serem feitas? Quando surgem divergências, os representantes da fundação/empresa falam “isso é um dissenso” - o que significa “não podemos e nem vamos resolver aquilo que vocês nos pedem”. Até quando nossas questões vão ser jogadas na caixinha desse tal dissenso? Por que nós, atingidos, com uma equipe pequena, formada por pessoas que nunca se imaginaram numa situação como essa, conseguimos dar conta de responder tudo o que a empresa nos solicita no tempo certo e o contrário não acontece? Quanta hostilidade os atingidos vão ter que sofrer na sede de Mariana? Até quando teremos que lutar para sermos reconhecidos como atingidos? De quantas formas teremos que mostrar que perdemos mais do que uma casa? É tão difícil entender o que significa perder todo um modo de vida? Como explicar que somos - e temos orgulho de ser - da roça? Será que o deslocamento, todas as manhãs, de atingidas para a horta em Paracatu não diz nada? Esse apego pelos nossos locais de origem, nossas celebrações, nossas culturas não explicam, por si só, o que move nossas comunidades? Como podemos ter tranquilidade se, hoje, vivemos na cidade, e nossas criações - as que sobraram - estão longe da gente? Como podemos ser felizes se não temos tempo nem para cuidar dos nossos bichos, se não temos nem terra para mexer? E como será quando voltarmos? Será que, quando esse dia chegar, vamos ter o que cuidar? Perguntamos porque já tem muito atingido sofrendo com saques de criações, de plantas raras e de partes das construções que ainda estão de pé. Depois de tudo o que passamos, ainda temos que sair às ruas e fazer manifestação para sermos ouvidos em nossas reivindicações básicas? Vivemos contrariados pelo modo de vida que levamos aqui na cidade. Somos pessoas humildes, que viviam da construção civil, das plantações, dos animais, da apicultura... Tínhamos uma vida muito simples. Não enfrentávamos os problemas psicológicos que, hoje, fazem parte da rotina de muitos de nós. Em casa, na roça, no mato, nós tomávamos nossa cerveja nos bares das comunidades. Jogávamos bola na praça, juntávamos a galera. Éramos livres. Éramos crianças de muitas idades. Até que a empresa vem, joga lama em nossa vida, em nossa história, em nosso patrimônio e em nossa cultura. Duro ter que explicar, pra quem não entende, o que a gente perdeu. Esse pessoal que negocia conosco vive outra realidade e acha que o mundo todo tem que enxergar a vida como eles. Não. Nossa felicidade é outra. E da nossa dor e das nossas perdas, é a gente quem sabe.


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